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segunda-feira, 25 de maio de 2009

Eu-Tu-Nada

Unidos no tempo corpo e palavras...
Nós um, “eu-tu”, num eu completo e só;
Andrógino das Eras bimetálicas,
Bipartido por Zeus (o sublevava).
Fulminar de um relâmpago sem dó,
Que sublimou-nos nas etéreas mágicas.

Cindidos no tempo corpo e palavras,
Mas tão iguais, tal duas formas pálidas,
De novo reencontrados numa mó,
Sonhei que tu (eu?) a mim (tu) amava(s),
(Talvez só se busquem as antagônicas)
Pela primeira vez me senti só.

Outra vez sem tempo, corpo ou palavras,
Depois de tudo reduzido a pó,
Nos vemos hirtos de tais formas trágicas,
(Unidimensional paixão de um Jó),
Extremas, impensadas, desarmônicas,
De tudo que entre nós tu não falavas.

Tempo, corpo, palavra... (E(e)ra mágica?)
Numa “tecnoEra” que sei de co,
Quando teu feminino desprezavam,
Te venerei mui além das palavras
Num platonizar que me arrastava
Para, em nós ou na garganta, um nó.

Romântico, ingênuo ou bem pior,
Penso nas coisas que me apaixonava:
Quando um imã uma vez é dividido,
Pra uni-lo em mesmas faces, nem mágica;
Um pedaço tem que inverter seu lado,
Para que ambos voltem a ser um só.

Em corpos separados (eu gostava...)
Pela natureza (... muito...)(melhor?),
Entrego minhas (de ti?) palavras
Ao tempo (...realmente.) nas etéreas
Mágicas. Bipartido eu só sinto:
Eu um, tu uma, eu incompleto e só!

Terra da Luz, 26 de agosto de 1997 – 14h.





sábado, 23 de maio de 2009

O Admirador – Parte 3: Suspeitos

(Maristela Scheuer Deves)

Sim, decidiu ela. Mesmo com medo, iria ao enterro para ver quem estava lá e como o autor dessa brincadeira mórbida iria se sair sem o seu corpo para sepultar. Acabaria, de uma vez por todas, com o plano dele. "Aliás, já está na hora de descobrir quem ele é", murmurou para si mesma, relembrando, com uma seqüência de calafrios, o desenrolar daquela história.

Desistira de tentar avisar os pais e os amigos que estava bem. O melhor a fazer, até à hora de ir ao cemitério, era sumir para que ele não a encontrasse. Só assim estaria segura de que não haveria, mesmo, um cadáver para ser colocado no caixão. Tentando controlar-se, correu ao quarto e pegou uma mochila. Olhou para o celular; melhor não levá-lo, decidiu. Depois de tantos dias trancada em casa, sentiu-se estranha ao pegar o elevador. Notou que o porteiro a olhou espantado, sem responder ao seu cumprimento. "Vai ver achou mesmo que eu estava morta", pensou, desanimada.

Fez sinal a um táxi que passava e deu o endereço de um hotel do outro lado da cidade. Lá, trancou-se no quarto, sentindo-se finalmente segura. Abriu a agenda na intenção de listar possíveis suspeitos, mas, a princípio, não conseguia imaginar ninguém que lhe quisesse fazer mal.

A não ser... Não, ele não seria capaz disso! Ou, pelo menos, não teria criatividade para tanto. A idéia, porém, insistia em martelar-lhe a mente: o ex-namorado, com quem terminara após descobrir uma traição e que não aceitara a separação na época. Lembrou-se como ele costumava ligar-lhe sempre, insistentemente, até que decidira trocar o número do telefone...

Mas, não, a solução lhe parecia fácil demais. Tinha de ser outra pessoa. Mas quem? Começou a repassar na mente todos os colegas e ex-colegas de trabalho, os vizinhos do prédio, mesmo os amigos da época de faculdade. Ninguém parecia se encaixar no perfil. Ainda olhava para a página em branco da agenda quando sobressaltou-se com uma batida na porta. "Encomenda para a senhorita", anunciou a voz que reconheceu como a do rapaz que carregara a sua mochila até ao quarto.

O já costumeiro arrepio voltou a percorrer-lhe o corpo – afinal, não pedira nada, e ninguém sabia que estava ali. A sensação mostrou-se correta quando abriu a porta e recebeu a rosa vermelha. "Só faltam seis horas. Não falte ao nosso encontro", dizia o cartão.

(continua no próximo mês)





A Peruca – Giselle Sato

Roberto Carlos dos Santos Pinto. Por razões óbvias mantinha apenas o primeiro nome no crachá onde exibia com orgulho a função de ''Gerente''. Trabalhava em uma loja de departamentos, no maior Shopping da Zona Norte carioca. Vinte e dois anos de serviço. Nenhuma falta ou atraso. Promoções, prêmios e metas vencidas no “Curriculum” invejável. Baixinho e atarracado adorava ser chamado de Robertão. Bigode bem aparado, uniforme ligeiramente apertado e a hipótese não confirmada do uso contínuo de peruca.

Havia bolsas de apostas e um “Bolão” para quem conseguisse provar a existência da falsa cabeleira. Infelizmente o desafio parecia impossível. As demonstradoras de produtos capilares viviam oferecendo tratamentos gratuitos, mas nunca puderam tocar em um fio de cabelo do gerente. Apesar de solteiro nunca aceitava os convites dos colegas para um chopinho no final do expediente. A rotina casa/trabalho/casa era mantida sem exceções. Era um solitário. Filho único cuidava da mãe doente e um tanto senil.

Até à chegada de Juliana tudo parecia cinza desbotado. A morena exibiu o maravilhoso gingado no uniforme rosa e o mundo de Robertão vibrou em cores. Jú trabalhava para a “Lingerie Du Corpo”, arrumava a seção, ajudava as freguesas e exibia os dentes branquíssimos no sorriso simpático. O corpo perfeito para qualquer roupa íntima. A mulata de olhos cor de mel e boca carnuda enfeitiçou o gerente:

-Bom dia, bem-vinda à loja; sou Roberto, muito prazer.
Estendeu a mão e apertou os dedinhos da moça, deliciado com o perfume, a pele, a voz e o jeitinho suave de Jú:

- Vou trabalhar aqui este mês, muito prazer senhor Roberto.

- Mas que pena...

-Como? Fiz alguma coisa errada para o senhor não gostar de mim?

-Imagine, pena que ficará só um mês. Tão simpática e agradável. Se precisar de alguma coisa sou o gerente. E pode me chamar de Roberto. Nada de senhor!

- Ah, que bobagem a minha. Muito obrigada. Já vou indo, preciso organizar os lançamentos.

Durante todo o dia, Roberto deu um jeito de passar perto da secão feminina só para olhar Juliana. Não conseguiu disfarçar o interesse e a loja inteira percebeu e passou a comentar. Principalmente as funcionárias antigas, furiosas com a novata:

- Ridículo, deve ter idade para ser filha dele.

- Não precisa exagerar, só acho que ele não se enxerga.

- Está com inveja Maria? Ciúme?

- Eu? Ciúme do Robertão? Está doida Lú? Olha a cara de bobo apaixonado.

- Ele vivia de olho em você e agora só pensa em Jú. Homem é tudo igual! Safado!

Finalmente chegou sexta-feira... Após o fechamento da loja, o tradicional chopinho. Pela primeira vez o gerente apareceu no barzinho. Esbanjou simpatia conversando animadamente com todos, pagando rodadas e sendo sempre muito solícito com Juliana. Ora pegava uma bebida, oferecia um petisco, um guardanapo, sempre atento e dedicado. Jú parecia deliciada com as atenções. Os colegas foram saindo aos poucos e só restaram os dois. Robertão e Juliana. E a conversa foi ficando mais íntima:

- Moro aqui perto e você?

- Com meus pais em Bel.

- Bel?

-Belford Roxo. Lá na baixada...

-Nossa! No mínimo umas três horas de ônibus, não tem medo de assalto? A esta hora sozinha é muito perigoso.

-Não percebi o tempo passar, são quase duas horas da manhã e não sei o que vou fazer...

- Pode ficar lá em casa, moro sozinho. Quer dizer, minha mãe é bem velhinha e não incomoda nada. Tem quarto sobrando, seu namorado não precisa ficar com ciúmes.

- Que namorado? Estou solteira, e vou aceitar seu convite, estou super cansada, Robertão...

A residência dele ficava na rua em frente ao shopping. Dez minutos e estavam na casinha humilde mas bem conservada. Fez questão de mostrar todos os cômodos: muita coisa antiga, móveis pesados e um cheiro de gato insuportável. Juliana olhou com repulsa os seis gatos empoleirados pelas poltronas, mesas e até em cima da geladeira. A morena disfarçou a ''cara de nojo'', Roberto era só gentileza :

- Quer tomar um banho, minha querida? Pego uma toalha limpa para você.

- Aceito. Com este calor fico tão suada... Você adivinhou meus pensamentos.

Quando Roberto voltou com a toalha, Ju estava no chuveiro com a porta aberta e a cortina de plástico transparente revelando tudo:

-Vem, vem que a água está uma delícia. Robertão não pensou duas vezes, arrancou as roupas e entrou no box do banheiro apertado. Agarrou o corpo desejado, tocou cada pedacinho com carinho. Tonto de tesão, esqueceu completamente seu maior segredo.

Jú acariciou o rosto de Robertão, o pescoço e os cabelos... saíram em suas mãos provocando um grito horripilante. Juliana segurando a peruca e gritando, despertou a mãe de Roberto. A idosa entrou no banheiro estarrecida com a cena: o filho nu e sem conseguir sair do lugar. Com uma mulher igualmente pelada, segurando um chumaço de pêlos molhados. Alguns segundos depois, Juliana corria pela casa procurando as roupas. Roberto levou a mãe de volta para o quarto e tentou convencê-la de que tudo havia sido um pesadelo. A velha senhora estava em pânico e precisou tomar calmantes. Escutou quando Jú bateu o portão da entrada com força. Ainda era madrugada, ficou preocupado com a moça na rua deserta mas estava tão envergonhado que não conseguiu tomar qualquer atitude.

No dia seguinte a Loja inteira sussurrava o fato, Juliana foi transferida para outro Shopping na mesma tarde. Saiu feliz, carregando na bolsa os 500 reais do prêmio do ''Bolão'' e a peruca enrolada em um saco plástico. Robertão assumiu a calvície pela primeira vez. Caminhou pelas seções exibindo a careca brilhante. Ignorou os risinhos e olhares dos colegas. Ao final do dia estava mais animado com os elogios ao seu novo visual. Havia descoberto o charme dos carecas.





sexta-feira, 22 de maio de 2009

Como substituir amores

Barbara Duffles


Logo no primeiro dia em que chegou, Lolinha conquistou o coração de Aquiles. Loura, seios fartos, boca convidativa, cintura fina. E não tinha somente estes atributos de mulher fútil. Aquiles via nela duas das qualidades que mais admirava nas fêmeas: não tagarelava e sabia ouvir o companheiro. Como todo relacionamento, o início foi de muita paixão. Noites e noites rolando na cama com Lolinha, Aquiles não queria saber de mais nada. Chegou a fingir uma gripe para faltar ao trabalho e garantir alguns dias de luxúria com sua loura. Seu programa preferido era tomar banho de banheira com ela: adorava como o corpo de Lolinha ficava escorregadio na água, um convite para momentos inigualáveis a dois.

Também como todo relacionamento que dá certo, da paixão voluptuosa veio o amor incondicional. Aquiles e Lolinha continuavam enroscados dia e noite, mas agora os encontros tinham pitadas de romantismo rasgado. Aquiles levava flores, preparava jantares a dois em seu pequeno apartamento. Cada vez mais apaixonado, ele se declarava de forma emocionada, fitando os olhos sempre abertos dela, desejando ainda mais a boca convidativa da moça.

Como alguns relacionamentos que dão certo e depois se perdem, o amor foi corrompido por uma dose exagerada de ciúme. Tão grande era o sentimento de Aquiles por Lolinha, que ele se transformou num obsessivo de marca maior. Com medo de perder sua mulher para os amigos, Aquiles nunca a apresentou a ninguém. Os dois passavam a maior parte do tempo juntos e sozinhos, sem interferências externas. Os amigos cochichavam a respeito dele às escondidas. Ninguém acreditava que Aquiles tinha mesmo a tal mulher incrível da qual ele tanto se gabava. Afinal, nenhum deles havia visto Lolinha. Chegaram a fazer um bolão no escritório, onde as más línguas apostavam que “ela”, na verdade, era “ele”.

Aquiles não se importava com o que diziam, pensava só em Lolinha, em ficar com ela, em aproveitar seu silêncio em paz. Sim, silêncio, pois, como já foi dito, ela não tagarelava e estava sempre atenta ao que dizia o namorado. Mas a verdade é que Lolinha não falava. Nada, nadinha. Um júbilo para os ouvidos de Aquiles, falador profissional que sempre se irritou com mulheres verborrágicas.

Só que, como a maior parte dos relacionamentos, a rotina chegou, abriu a porta e sentou no sofá. Após tanto tempo isolados do mundo, Aquiles e Lolinha não tinham mais o que conversar. Ou melhor, ele é que não tinha o que dizer, já que ela não emitia sons mesmo. Aquele silêncio todo de repente virou um suplício. Aquiles começou a desejar que ela falasse. A boca outrora convidativa de Lolinha se transformou num buraco negro desinteressante. Num dia de angústia incontrolável, empurrou a mulher contra a quina da parede. E então foi o fim.

Num estouro que se ouviu até nos andares de baixo, Lolinha desapareceu. Esparramados no chão, pedaços de plástico que um dia formaram o corpo da boneca inflável de Aquiles. Desesperado, ele agarrou-se aos restos mortais de sua amada, jurando nunca mais comprar outra.

Uma semana depois, o correio entregou um pacote no apartamento de Aquiles. Era Silvinha, uma morena de arrasar quarteirão.

*Texto publicado originalmente no livro "Não Abra" e no blog "Não clique"





quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mistério outonal

Léo Borges


Folhas bege-sêmen caíam dos arvoredos da praça, criando enormes volumes e evidenciando a greve dos garis logo no início da nova estação. A névoa que surgia por de trás da casa de arquitetura obsoleta, cuja infiltração das paredes era escondida por artesanatos postos à venda, possuía um doce mistério: poderia ser fruto do clima outonal, mas também existia a possibilidade se ser a fumaça química de combate aos mosquitos do carro da prefeitura. A brisa gélida que acompanhava esta neblina brincava sutilmente com os cabelos pintados da bonita e ociosa moça da janela, ora embaraçando-os em nós, ora incomodando seus olhos cor de manjericão.

Com os cotovelos na sacada, tentando, vez por outra, acertar com cuspes um besouro que andava por entre o monte de folhas na calçada, a garota era cúmplice da chegada do outono e seu friorento ar romântico. Entretanto, não o contemplava só: um mendigo, deitado num dos bancos da praça, admirava a tal chegada de forma semelhante. Além dele, um rapaz, em outro banco, também curtia ambos: tanto o surgimento da frente fria quanto a bela loira na janela. Esta, por sinal, parecendo ainda mais deslumbrante ao emergir daquela fumaceira branca. O olhar de Lisa, que misturava preguiça e enfado, fitou o estranho. Sem reconhecê-lo como alguém da cidade, procurou analisá-lo melhor: achou-o horroroso. Porém, ficou intrigada com o fato de ele, além de ser feio e gordo, estar mais mal vestido que o mendigo. Ao perceber que o rapaz piscava os olhos com certa insistência em sua direção, Lisa acreditou que este ousava paquerá-la. O que ela não sabia era que aquilo não passava de um tique nervoso. A jovem, então, fez cara de zanga, soltou os cabelos que estavam enroscados nas alças da janela e fechou-a.

Recostou-se no armário e ficou admirando-se no reflexo do espelho. Lisa, loira da metade dos fios em diante e corpo – vá lá – muito cobiçado na cidade, julgava-se extremamente atraente para os caipiras da região. Vivia praticamente só por conta das constantes idas dos pais à fazenda, por causa de sua avó ter resolvido ir morar num asilo depois que descobriu que seu avô comprara um bordel e, motivo principal, por ser uma garota realmente muito chata.

Olhava por entre o decote de sua blusa de botões parte de seus diminutos seios. Acreditava ferrenhamente no poder de sedução deles, apesar de serem absurdamente pequenos, formosos como duas uvas maduras. Colocando-se de lado, aproveitou para analisar a lateral de sua coxa esquerda. Percebeu algumas celulites e, então, virou-se para analisar a outra, tentando salvar o momento de admiração. Também havia marcas que denunciavam certo acúmulo de gordura. Contrariada, ficou em quatro apoios, envergando o corpo e esticando as pernas. Viu que assim as famigeradas celulites praticamente sumiam, mas, para sua decepção, eram as estrias que agora se tornavam visíveis.

Lisa queria ser modelo e acreditava que só não era pelo alto índice de desemprego no país, por causa do dólar, do conflito no Iraque, da guerra civil no Sudão e da pesca predatória na costa do Chile. Enfim, pelo que via na TV. Embora não fosse uma mulher antenada, sabia que o mundo estava em crise e era por isso, achava ela, que só lhe ofereciam empregos de telemarketing. No campo afetivo, sua mente fútil dizia que era mulher para poucos homens. No máximo três porque senão virava orgia. Talvez um ator ou, deixando sua imaginação circense aflorar, um adestrador de leões. Como se considerava uma tigresa, quem sabe um desses não lhe daria jeito?

Foi quando alguém bateu à porta, quebrando suas idéias idiotas. Mancando devido a uma cãibra na panturrilha ocasionada pelas acrobacias narcisistas, Lisa foi atender achando que seria dona Marlene, a senhora da casa geminada à sua que vendia cigarros, bananas, artesanatos e, vez por outra, chamava-a para pedir dinheiro emprestado ou só para falar mal da vizinhança. Para seu espanto, entretanto, era o mesmo rapaz que havia visto na praça.

– Pois não? – atendeu surpresa. Em seus olhos via-se perplexidade e lentes azuis.

– Estou olhando esses objetos de barro e quero levar um para guardar como lembrança desta cidade. Aquele ali – falou o forasteiro, apontando para a maior peça do local, um belo busto feminino com o rosto repleto de mini-bolinhas –, adornará bem meu escritório. Lembrarei com isso que este lugar, apesar de não constar no Google, existe.

O inebriante e sedutor estilo matuto de Lisa passara impiedosamente a guarda do rapaz, evoluindo para uma chave-de-braço.

– Ah, desculpe, mas você tá todo errado, tá ligado?... Não trabalho com esses troços. Eu sou só a vizinha e proprietária da casa da dona Marlene, que é a artesã. Por sinal as vendas devem estar fracas porque o aluguel dela está atrasado. Como seu ateliê é também a sua casa, ela atende até de noite, assim como eu... quero dizer... enfim, ela deu uma saída mas já volta. E, com relação àquela obra, eu servi como modelo – destacou orgulhosa. – As bolinhas no rosto são as espinhas. Dona Marlene é insuportavelmente detalhista...

– Isso é o que me impulsiona a empreender todo esse empenho em adquiri-la. Da praça já havia consolidado visualmente a sua eloqüência. E se essa maravilha eu já armazenei na mente, por que não a sua estátua segurando a porta lá do meu escritório?

Lisa ficou desconcertada com tantas palavras difíceis e achou que Juliano fosse um grande nerd. Logo percebeu que de fato era mesmo. Mas, viu também que o rapaz procurava ser afável e essa postura fez com que a garota mudasse seus pensamentos. Então, de repulsa passou a nutrir certo interesse pelo camaradinha. Esquadrinhando o rosto do jovem, Lisa viu que ele não era tão feio e seu jeito intelectual-canalha ajudava a melhorar o lastimável conjunto. Juliano usava óculos de grau elevado, tinha a barba por fazer, não era alto, possuía mau hálito, estava fora de forma e ainda tinha o cacoete que o fazia piscar os olhos forçosamente a cada meio minuto. Apesar de tudo isso e também da roupa amassada que lhe conferia uma aparência de espantalho, o cara até que tinha seu charme. A moça gostou muito do jeito dele, mas procurou não demonstrar e tentou ser natural.

– Quer um suco de laranja enquanto a espera? Está muito gostoso. O suco. Você também. Brincadeira! Entre e fique à vontade. Qual seu nome, gato? O meu é Melissa, mas pode me chamar de Lisa.

Juliano ficou com água na boca ao ver Lisa andando para a cozinha. Estava muito excitado. Não exatamente pelo fato de o destino estar lhe concedendo uma deliciosa ninfeta de bandeja, mas sim por saber que mataria sua sede com um gostoso suco da fruta. Caminhou com o olhar pelas pernas da jovem – contornando as varizes, obviamente – até onde estas formavam os pés. Adorava pés. Mas também adorava bunda. Então procurou fazer o caminho inverso, subindo com o olhar. Subiu, subiu, subiu, mas não teve tempo de contemplar o monte glúteo, pois Lisa já estava de frente, voltando com o copo de suco.

Por um rasgo no short, a calcinha branca da gata pornograficamente escapava. Um som exageradamente caipira de uma dupla sertaneja desconhecida invadia a sala, vindo de um aparelho na estante. Um pouco tonto pela hipnose que a bela imagem do corpo de Lisa lhe causara, e também pela irritante música, Juliano apoiou-se em um quadro na parede onde Lisa aparecia ao lado de um homem montado sobre um jegue. Com o toque o quadro caiu. Constrangido, o rapaz rapidamente o recolocou no lugar.

– É seu pai? – perguntou para tentar disfarçar, apontando para a imagem no quadro rachado.

– Meu namorado – mentiu a jovem, pois se tratava apenas do bem-dotado caseiro da fazenda dos pais.

Juliano coçou o queixo, intrigado em querer saber, afinal, quem era o namorado.

– O que está por cima – esclareceu Lisa, vendo a dúvida nos olhos do visitante.

– Que sorte a dele, ter uma mulher assim: até certo ponto inteligente, relativamente atraente e, com doses cavalares de boa vontade, sincera.

Melissa sentia-se cada vez mais envolvida com o estilo debochado daquele sujeito.

– Sinceridade é algo incerto, pois se eu lhe disser que visto um sutiã preto realçando meus deliciosos peitos, isso pode ser verdade para você, caso não saiba, de fato, qual a sua cor – instigou a moça, permitindo que um lascivo interesse aflorasse como não acontecia há pelo menos três horas.

– Primeiro, você está sem sutiã; segundo, se você usasse sutiã este seria provavelmente branco para combinar com a cor da sua calcinha, e, terceiro, seus peitos são pequenos demais para serem considerados “deliciosos” – asseverou o jovem, mostrando segurança nas palavras.

Com inequívoca firmeza, Juliano desmontou a arrogância de Melissa. Ao final da última palavra, beijaram-se. Uma das mãos do forasteiro logo promoveu uma apropriação indébita da cintura de Lisa, passando por cima da blusa de seda. Tentou escapulir para dentro, mas sua falta de intimidade com os botões impediu um primeiro avanço. Melissa abriu mão de seu orgulho bobo e não só permitiu como implorou que Juliano a explorasse por inteiro.

Um pouco assustado com o frenesi da gata, ele a derrubou com carinho sobre o sofá. Na queda, Lisa bateu com a cabeça na quina do móvel, mas não pôde gemer porque Juliano ainda a beijava. As coxas da garota, apesar de não definidas e porcamente depiladas, formavam delicioso convite. Todavia, as mãos do rapaz, mesmo munidas do ingresso, quase foram barradas diante da brutal inexperiência no assunto.

Lisa, por sua vez, babava e mordiscava com ardor o pescoço do amante, utilizando toda a saliva que sobrara após o ataque ao besouro. Com descabida violência, a garota erguia a camisa de Juliano, passando a morder com intensa luxúria seu peito e também a barriga, faminta como um cágado procurando por alface numa horta. Gemidos de muita dor, e às vezes de prazer, ecoavam pela sala.

Escorregando de maneira profissional pelo corpo do rapaz, Lisa agachou-se e pôs-se a abrir sua calça. Enquanto superava os obstáculos têxteis, a loira discursou sobre como o destino pregava peças: minutos atrás, quando observara Juliano na praça, achou-o tenebrosamente feio e sem qualidades. A partir daí, um engano, uma conversa, um suco de laranja, um conhecimento maior e já foi o suficiente para ela se colocar ali, ajoelhada diante dele numa submissa posição para uma boa sessão de sexo oral.

Ao término do monólogo, uma profunda sensação de prazer invadiu o corpo de Juliano. Nem tanto pela chupada quente e gostosa da garota, mas mais pelo fato de esta atividade fazer interromper aquele falatório ridículo e sem propósito. Experiente, Lisa conseguia fazer com que seu aparelho ortodôntico não machucasse o rapaz. Ela seguia na eficiente acrobacia com a língua em atos que mostravam, com absoluta certeza, que por aquela boca muitos compradores de artesanato já haviam passado.

Ciente de que sua festinha ficaria restrita a um boquete, caso Melissa não cessasse a exuberante performance, Juliano puxou-a pelos cabelos loiros com inegável virilidade. Não conseguiu trazê-la na primeira tentativa, pois a excessiva quantidade de tinta amarela nos fios fez sua mão escorregar. Essa mesma mão resolveu, então, terminar de destruir o short já rasgado da garota, porque até então, pela delicadeza, o rapaz não conseguira nada e ambos ainda continuavam vestidos.

Possuindo-a carinhosamente, Juliano finalmente provou o sabor de Lisa e viu que esse era ainda melhor que o do suco. O corpo da jovem, quente como um forno siderúrgico, fazia Juliano entrar em outra estação – a do verão, muito provavelmente. Lisa seguia na mesma cadência, com inconfundíveis gritos, palavras sem nexo e frases com erros graves de concordância verbal. O rapaz curtia cada segundo, pois tinha noção de que comer outra igual àquela demoraria um bom tempo, caso não apelasse novamente para o Miami Night Girls. O orgasmo para Lisa chegava sob a forma de choques pelo corpo. Menos intensos, é claro, do que aqueles que ela sentia quando mexia no chuveiro elétrico com as mãos molhadas.

Olhando para o relógio, Juliano percebeu que já estava muito atrasado para a saída do ônibus pirata com os outros estudantes do seminário “Como aumentar a população das áreas rurais”. Viu, porém, que ter desvendado o mistério trazido pelo outono valeria qualquer esporro que certamente ele ainda ia receber do supervisor de turmas.

O pensamento de ambos viajava leve e gostoso após o coito. Lisa, fitando os olhos de Juliano, refletia: “Que romântico! Mesmo depois do amor ele ainda continua flertando comigo!... Ah, não, porra... é só o cacoete...”. Enquanto que Juliano também se confrontava com um dilema filosófico altamente revelador: “É... acho que no cuzinho não vai dar tempo...”.





segunda-feira, 18 de maio de 2009

Firewall para Mercedes

Joaquim Bispo

Há quem se queixe de que os Mercedes nunca fazem piscas. Dizem que os condutores de carros desta marca são de arrogância e sobranceria extremas, e por isso compraram um carro que pensam que os coloca acima das regras da estrada e das normas de cidadania, mesmo quando não passa de uma lata velha de marca, como se ela lhes conferisse um qualquer «estatuto Mercedes». Dizem que têm desprezo pelos peões que, para atravessar a rua, esperam em vão que o carrão passe, e pelos automobilistas que, no cruzamento à frente, aguardam que o Mercedes passe, quando o condutor, afinal, vira antes sem fazer piscas. Que obrigam várias pessoas a esperar, em vão, consciente e intencionalmente. Que fazer piscas é que não, que está acima dos seus princípios. Dizem que ignoram acintosamente os automobilistas que atrás deles têm que fazer travagens, guinadas apressadas ou perdem tempo sem razão. Que antes uma falência que fazer piscas.

Nada de mais errado – informaram-me. Os condutores de Mercedes são, duma maneira geral, pessoas com um alto sentido de cidadania. Fazem sempre piscas, cada vez que mudam de direcção, mesmo que não vejam peões ou automóveis atrás ou à frente de si. Tomam por princípio que, mesmo que não o estejam a ver, pode haver um peão ou um automobilista dependentes da sua trajectória e, em conformidade, accionam os piscas, exaustivamente, a cada curva mais acentuada. Essa é a sua postura cidadã. Simplesmente, o sistema do carro não permite que os piscas sejam vistos no exterior. É um problema de estatuto assumido pela marca, há muitos anos. Cada Mercedes está equipado com um detector que foi programado com os dados biomédicos médios de um condutor de Mercedes. A antena do detector está alojada na estrela de três pontas inscrita num círculo, que constitui o símbolo da marca. Cada vez que o condutor dum Mercedes faz piscas, o detector analisa o sinal e, se a origem for um verdadeiro condutor de Mercedes, bloqueia a transmissão do sinal. É uma espécie de «firewall» para prevenir que um qualquer condutor desses carros pífios que por aí se arrastam se faça passar por um verdadeiro piloto de Mercedes. Sim, piloto é uma designação muito mais adequada a quem conduz uma dessas máquinas transcendentes.

Dizem que tudo começou com uma alteração que um mecânico habilidoso introduziu num Mercedes, a pedido do dono. Era um cliente que sentia o apelo do «estatuto Mercedes» e temia que uma distracção ao volante o levasse a mostrar consideração pelo próximo. Rapidamente, o exemplo foi seguido por centenas de outros condutores de Mercedes, até que a marca integrou essa novidade nos modelos seguintes, para os interessados, ou seja, todos. Outras marcas seguiram o exemplo da Mercedes e hoje é frequente ver carros de diversas marcas a não fazer piscas, tanto que se chegou a falar em «estatuto BMW» e «estatuto Audi». A propagação do fenómeno vulgarizou demasiado o conceito de «estatuto», pelo que se desenvolveu um processador mais abrangente que foi designado por «espírito Mercedes». Este sistema computorizado pode ser instalado por qualquer condutor, mesmo que não possua melhor máquina que um «carocha». Ou que, como no caso dum condutor de táxi que, embora pilotando um Mercedes, não tem, em geral, «estatuto Mercedes». Socorre-se, então, do «espírito Mercedes», às vezes, melhorado com vários «up grade», não sinalizando a marcha, ultrapassando pela direita, queimando sinais vermelhos, parando a um metro do passeio, estacionando a ocupar três lugares.

Sabendo destas informações, não há razão para continuar a considerar incivilizados os pilotos dos Mercedes. E se alguma vez virem um carro desta marca a fazer piscas, tomem uma coisa como certa: o carro foi roubado. Não duvidem disso só pelo facto de verem um bronco ao volante. Também há ladrões de automóveis que têm esse ar. Mas aconselho a que não vão logo chamar a Polícia. É que o carro pode ter a «firewall» avariada.





Autor convidado

Foram postados hoje os textos do autor convidado (Rodolfo Bispo), com data de 11/5/09:
http://www.revistasamizdat.com/2009/05/autor-convidado-rodolfo-bispo.html#links





"Nós" está morrendo

É com grande pesar que constato mais um lento e agonizante padecer na língua portuguesa. Desta vez é o pronome pessoal “nós” que está na UTI, em coma profundo. E sua morte não foi decretada por nenhum acordo ortográfico, deu-se misteriosamente através de um silêncio tácito, onde (vai saber) a preguiça foi a mentora. Quase ninguém mais o utiliza, sendo gradativamente substituído pelo famigerado “a gente”.

– Quem vai?
– A gente.

A sonoridade tônica e incisiva do “nós”, que em tempos idos possuía espaço nas rodas, agora só é encontrada em algumas poucas rimas poéticas, fazendo par com um avulso “sós”, como no "Romance de nós", de Luiz Filipe Castro:

"(...)
Que resta do amor
a quem é como nós?
Envergonha-me pôr
em verso: «somos sós;
(...)"

Arriscar esse bonito pronome numa conversa informal hoje em dia é algo não apenas esdrúxulo como também petulante.

– Nós vínhamos devagar.
(que sujeito metido...)

– A gente vinha devagar.
(ah, bom!)

O problema é que as pessoas ainda acham que o "nós" pode se recuperar e que o "a gente" vai deixar de ser esse assassino impiedoso. Enquanto isso não acontece, o pessoal vai se confundindo com as flexões. “Nós” está morrendo, mas sua concordância verbal inadvertidamente permanece, criando orações ridículas:

– A gente vamos.

– Nós vai.

Não dá para negar que o “a gente” destruiu a plasticidade pomposa das três letrinhas. E não podemos nem falar em economia de sílabas pois "nós" só possui uma. O "a gente" vem sendo, sem trocadilho, um agente exterminador pronominal: está asfixiando o "nós", mas já detonou o oblíqüo "nos" e, como se não bastasse, arruinou também o formoso "conosco". Nada de "ele nos encontrou". Agora é "ele encontrou a gente". Ela veio conosco? Negativo. Ela veio com a gente.

“Nós” está tomando o mesmo destino do robusto e vistoso “vós”. Esta segunda pessoa do plural morreu, como se diz, Cristo era menino. Só o ouvimos agora nas liturgias, quando Cristo era menino (ou mesmo adulto). “Porquanto vós todos sois filhos da luz, e filhos do dia; nós não somos da noite, nem das trevas”. Tessalonicenses 5:5. Não sei se é por causa dessa verve bíblica do “vós” que quando ele é citado já lembro do Charlton Heston, do Yul Brynner ou do meu avô me chamando para a missa dominical.

O “você” (corruptela do reverente “vossa mercê”) tomou, aos poucos – quando está pluralizado – o lugar do “vós”. E, sem maiores alardes, o internetês tratou de simplificar tudo isso em algumas consoantes frugais: “vcs” (vocês) ou “vc” (no singular). Como no inglês, onde "you" (você) é grafado com uma simplicidade atroz: "u".

Por falar em "você", o “tu” não se rendeu facilmente a este pronome. Tanto ele quanto o "ti" possuem uma blindagem regionalista notável. Em determinados locais do Brasil o "você" quase não tem vez: "Tu vais à festa de Nando?", "Abração pra ti!".

Dos pronomes pessoais do caso reto só mesmo o “eu”, o “ele” e o “eles”, de uma forma geral, ainda se mantêm vivos. Mas, mesmo assim, sofrem com a sanha do resumo de informações. Muitos não falam “eu não sei”, simplesmente dizem: “sei não”. Não tardará o tempo em que “eu” também sucumbirá ante a virose que já assolou os pronomes “nós” e “vós”. Estes, pelo menos, em ambientes poéticos e religiosos, ainda são venerados.





O dia em que o mundo não acabou


Você lembra o que estava fazendo no dia 11 de agosto de 1999?

Eu me lembro...

Durante o começo de mês de agosto, e até um pouco antes, começaram a ser divulgadas notícias de que o mundo acabaria quando do eclipse solar em 11 de agosto. A fonte era "fidedigna": o pai de todas as calamidades futuras, Nostradamus.

Eu e um amigo nos sentamos na pracinha do condomínio onde morávamos, sob a sombra duma árvore e aguardamos. "Se o mundo acabar, tudo bem", pensávamos, "se não acabar, tudo bem também". Passamos o dia inteiro conversando e esperando, esperando e conversando.
Nesta nossa espera, havia um quê de resignação, de estoicismo. De que adiantaria querermos lutar contra os desígnios celestes, ou do Universo, ou de Deus? Se era para o mundo acabar, que diferença dois seres insignificantes como nós faríamos para mudar isto?

Mas havia pessoas que não aceitaram passivamente este fato. Entre elas, havia um outro grupo de amigos que, na virada da noite de 10 para 11 de agosto, reuniram-se para se salvar.
Não sei inspirados em qual ensinamento esotérico, em qual religião, em qual obra de misticismo, eles concluíram que desenhar um círculo no meio da sala e todos se amontoarem dentro dele bastaria para salvá-los do fim.

Imagino que tipos de pensamentos passaram pelas cabeças deles: será que eles acreditavam que o círculo de proteção os salvaria, mas que, fora dele, toda a raça humana se extinguiria? Qual é o sentido de sobreviver uma dúzia de pessoas enquanto todo o restante da civilização deixava de existir? Ou será que pensavam que o gesto deles serviria para salvar toda a Humanidade?

Um sobre o outro, eles vararam a madrugada, por vezes reclamando da posição incômoda, por vezes tentados a se levantarem, abandonar o círculo de proteção, e ir tomar água ou ir ao banheiro, mas sempre com a proibição:

— Não rompa o círculo! Você vai matar a todos nós!

O que os fazia imediatamente mudar de ideia e permanecer lá, com cãibras, com torcicolo, segurando o xixi, gemendo, à espera do fim do mundo.

Mas o mundo não acabou. O sol nasceu e atravessou a cortina da sala, fazendo com que aquele amontoado de gente despertasse.
Foi uma alegria! O mundo estava salvo! Nostradamus havia errado na profecia (ou ela apenas teria sido adiada)?

Ou quem sabe não tenha sido o ato altruísta deles que nos salvou do terrível fim?

O mundo acabará um dia, isto é um fato; assim como o nosso sistema solar, a galáxia, o próprio Universo se extinguirá um dia. Alguns mais alarmistas prevêem o fim para 2012, mas, quando o mundo novamente não acabar, vão prorrogar nosso tempo de existência por mais alguns anos.

Fico pensando no que eu faria se tivéssemos certeza de quando seria o fim; acho que faria exatamente a mesma coisa que já fiz um dia: eu me sentaria sob a sombra duma árvore e aguardaria, com o mesmo pensamento de antes - "Se o mundo acabar, tudo bem; se não acabar, tudo bem também".





Uma vez idéia, sempre idéia

Caio Rudá de Oliveira

Recentemente, todo bom brasileiro que se preze se achou no direito de dar o seu pitaco sobre o recente acordo ortográfico. Se pela conjuntura ou por real interesse pela coisa, já é outra história.

O fato é que só os blogues devem amontoar uma quantidade de informação desse assunto suficiente para uns dois anos de leituras. Tem gente que é contra ou a favor mas não sabe por quê, tem gente que não sabe o que é mas tem opinião formada e tem gente que sabe mas não tem. Esse último, meu caso. Pelo menos até hoje.

Reformas no idioma, a priori, buscam uma melhora. Prefiria crer que a unificação da língua portuguesa não fosse uma brincadeira de menino e se vários especialistas, de diversos lugares, decidiram por agir de tal maneira é porque há motivos que o justifiquem. Mas agora vejo o despropósito desse acordo. Vão acabar com o acento da palavra idéia. Poxa, afinal é a marca do meu blogue que está em jogo. O agudo para mim é tão parte do vocábulo quanto o i ou d. Sem ele, ficará algo mutilado, como uma árvore sem suas folhas.

Sei que não vou aderir a essa ideia, e vou ficar com minha antiga idéia. Se eu ceder, daqui a pouco vão querer arrancar o acento de "Rudá" também. Então, peço a todos adesão ao Manifesto Anti-castração de Idéia, pois além do agudo, estão levando junto o assento da palavra.

Por último, vai haver punição por não escrever dentro das novas regras ou, no máximo, vou ser o burro que acentuará idéia?





Prêmio Ig Nobel

Caio Rudá de Oliveira

Eu tento entender a humanidade; eu juro que tento. Porém tem certas coisas que fogem da compreensão de qualquer ser humano. Para mim, o mundo perdeu a sua capacidade de surpreender.

Na História, sempre houve o contraponto entre bobos e inteligentes. Os primeiros servindo de matéria para o estudo dos segundos, que por sua vez oferecem resultados e melhorias para o bem comum. Uma espécie de mutualismo. Ultimamente, no entanto, as coisas têm se confundido. Tem surgindo toda sorte de pseudointelectuais e também cientistas aos quais adjetivar 'estúpidos' é de um eufemismo ímpar. Portanto, fica difícil definir os bobos e os inteligentes. Deve haver alguns poucos que se encaixam fielmente nessas categorias, mas hoje eu aposto numa maioria híbrida. E como se sabe, híbridos são animais estéreis.

Logo, inférteis são também suas produções, artísticas ou científicas. Não contribuem lá com muita coisa. No máximo garantem o troféu eu-fiz-algo-em-minha-vida ao seu mentor. Assim, tudo bem que não acrescentem nada, mas também ser uma experiência tão inútil que não vale toda a demanda de esforços, dinheiro e tudo o mais é o fim da picada. Os artistas ainda têm a licença de transcender, ousar e não ter lógica. Ciência é feita de método e aplicação prática; um pouco de seriedade cai bem. No entanto, esses preceitos básicos para se fazer ciência parece terem sido esquecidos pelos novos Einsteins. Todo ano, inúmeras experiências e pesquisas, no mínimo, inúteis são realizadas. Alguns, além de sem serventia são engraçados, chegam a ser patéticos e beiram o bizarro. E para completar, já que a espécie humana é por demais oportunista, até existe prêmio para contemplar esses gênios e seus experimentos interessantes. É o tal do Ig Nobel Prize, ou Prêmio Ig Nobel.

Desde 1991, são distribuídos prêmios em diversas categorias para as 'pesquisas que fazem as pessoas rirem e depois pensarem', como sugere o lema do grupo que organiza as cerimônias. Cerimônias essas que, pasmem, são realizadas com a colaboração da Universidade de Harvard.

Todo tipo de despropósito já foi catalogado e premiado. Só não sei se o critério é recompensar os mais dementes ou os menos, dentro do contexto dos cientistas malucos. Esses professores Pardais, aliás, são laureados em uma festa pomposa, semelhante ao parodiado Prêmio Nobel. Vale citar alguns desses destemperos:

Em 2007, na categoria Paz, o Air Force Wright Laboratory foi o vencedor, por sugerir a pesquisa de uma 'bomba-gay' que faria as tropas inimigas sentirem uma atração sexual mútua. No mesmo ano, na categoria Linguística, Juan Manuel Toro, Josep B. Trobalon e Nuria Sebastian-Galles receberam as honras por descobrirem que ratos às vezes não conseguem diferenciar gravações de japonês e holandês tocadas reversamente. Em 1995, cientistas japoneses e seu treino de pombos para distinguirem pinturas de Picasso das de Monet também foram laureados, em Psicologia. Três anos mais tarde, foi concedido prêmio em Estatística a Jerald Bain e Kerry Siminoski, do Canadá, por seu estudo sobre o peso, tamanho do pênis e comprimento do pé. Também entra na lista uma tese de Ph.D. sobre a história das lojas de donuts canadenses, um spray para detectar a infidelidade de um marido, um dispositivo ao qual se amarra uma mulher prestes a dar à luz e gira em alta velocidade para auxiliar o parto, imãs que levitam um sapo e também um lutador de sumô, a descoberta de que o buraco negro preenche todos os requisitos para a localização do inferno. E é daí para pior.

Resta saber quem são os mais débeis: os cientistas ou quem os premia.





Use óculos

Caio Rudá de Oliveira

Não raro nos pegamos a observar, com aquele olhar profundo, para incautos sujeitos que andam distraidamente na calçada, ou que estão na fila do banco - completos inocentes. Eles não imaginam que, a poucos metros de si, alguém pode estar a traçar minuciosamente seu perfil psicológico, lição básica do manual “A arte de bisbilhotar”.

Nesse tipo de construção da imagem alheia, os óculos são um item crucial na determinação das características, conferindo um certo ar de intelectualidade a quem os usa. Tanto acredito nessa afirmativa que me rendi ao fenômeno da estereotipagem ao comprar meus novos óculos. A intenção foi substituir a armação antiga, leve, fina e mais arrojada, por uma mais cheia, clássica, bem ao estilo escritor, cuja aparência me colocaria mais de acordo com o propósito da literatura.

Certamente Drummond não seria reconhecido pelo seu talento se não usasse óculos. Também João Ubaldo Ribeiro e Manuel Bandeira. Benditos são esses óculos que servem de auxílio à visão, verdadeiros olhos, e que também colaboram com a imagem de cult, genuínos passaportes para o sucesso artístico.

Quer ser ouvido? Use óculos. Suas palavras irão soar como conselhos de um sábio. Quer ser referência? Use óculos. Sua figura se valoriza com eles em sua cara. Quer ser jornalista? Use óculos. Suas matérias estarão na capa de jornal. Quer ser escritor? Use óculos. Você irá entrar para a Academia Brasileira de Letras. Quer bancar o inteligente sem saber patavina? Use óculos. É um verdadeiro fato alquímico; do cobre ao ouro, da ignorância à sabedoria.





Eu só quero chocolate

(Maristela Scheuer Deves)
Uma balança me deu, não faz muito tempo, uma notícia assustadora: estou com quase 56 quilos. Melhor dizendo, algumas vezes estou umas gramas acima disso, outras, ainda bem, um pouco abaixo. Sei que as gordinhas de plantão vão rir da minha idéia de que estou "pesada" demais, mas para mim, que até meus 25 anos era magérrima, esses quilinhos em excesso preocupam.

Minha média de peso, por muitos anos, não passou dos 47 quilos. Depois, nos últimos anos, subiu para 50, oscilou por um bom tempo na faixa até 52, subiu traiçoeiramente para 54 e agora... 56! Quem me conhece bem vai dizer que a balança demorou a acusar o que eu como: no almoço e na janta até que sou comedida, mas na hora dos lanches, sai de baixo... O vilão da história, é claro, é o chocolate.

Mas, meu Deus, eu adoro essa delícia derivada do cacau, e fico numa dúvida cruel entre seguir engordando nesse ritmo (minha ex-cinturinha fina parece a cada dia assustadoramente maior) ou abrir mão de um costume já consagrado: meus chocolates diários, geralmente no finalzinho da tarde. E mais alguns chocolates durante o dia, e a pizza com cobertura de chocolate ao menos uma vez por semana, e o chocolate em pó comido de colherada, e a musse de chocolate de sobremesa, e o bolo de chocolate, e...

Que atire a primeira pedra quem não fica com água na boca ao passar pela seção de chocolates no supermercado e nem come um brigadeiro escondido de vez em quando. Ah, eu ia esquecendo: minha dieta também inclui eventualmente os brigadeiros, e, frequentemente, uma caixinha da delícia que são os achocolatados - seja ele Nescauzinho, Toddynho ou qualquer outro do gênero. Hummmmmm!!!!!!!!!!

Muitas vezes já me perguntaram se eu não enjoo, mas acho que nunca vou enjoar. Claro, às vezes não consigo comer de uma vez os dois bombons ou as quatro barrinhas (das pequenas, viu, não sou nenhuma esganada!) que compro na lancheria ou no mercadinho da esquina, mas dali a pouco a vontade volta.

E agora que está chegando o inverno, ai, que vontade de fazer um delicioso fondue... de chocolate, é claro. Sem falar na maquinha de café, com três opções (isso mesmo, TRÊS!) de chocolate quente, que instalaram tentadoramente no corredor da empresa onde trabalho. Como resistir? Não pensem que eu não como outras coisas; refrigerantes e muita pizza também fazem parte do meu cardápio. Mas, tem coisa melhor – não mais saudável, isso eu sei que tem, mas melhor?

Alguém deveria inventar algo saudável, não-engordante, e igualmente gostoso; aí talvez me convencesse a deixar de lado as milhares de calorias da dieta atual. Por enquanto, encolho a barriga e sigo curtindo a minha vida de não-mais-magra-mas-ainda-não-gorda, comendo tudo o que posso e rezando para que de alguma forma aquilo tudo não se acumule na minha cintura.

Bem que a minha mãe me aconselhava, quando eu reclamava que era magrinha demais: "Melhor assim. Se um dia você engordar, vai sentir saudade de quando te chamavam de palito..."





A arma mais perigosa da Terra



Volmar Camargo Junior

Se acontecer, coincidentemente, de dez pessoas estarem em um mesmo recinto, e uma delas bocejar, automaticamente, outro pobre coitado, por adesão inconsciente, irá fazer o mesmo até que todos os membros daquele grupo estejam contaminados pelo bocejo.

Se, além desses, houver décimo primeiro, e este infeliz for jornalista, ferrou tudo. Em menos de vinte minutos, está feita a primeira epidemia de bocejo. No vigésimo segundo minuto, haverá pessoas que conhecem aqueles dez mandando e-mail para as redações dos jornais, dizendo que não conseguem parar de bocejar. Todos os jornais, concorrentes do empregador daquele décimo primeiro indivíduo, o jornalista, que estava lá e viu os dez bocejando, vão atrás de mais informações e, como mosca em rolha de xarope, vão descobrir que o bocejo se espalha a uma velocidade alarmante. Os governos são orientados a manter os bocejadores em quarentena, e os amigos, parentes, vizinhos e parceiros de canastra dos dez primeiros bocejadores sejam mantidos sob criteriosa vigilância. E, se você apresentar os sintomas de abrir largamente a boca, respirar pesada e fortemente, sentir zumbir leve e continuamente os ouvidos, lacrimejar os olhos, haverá o despertar de um duro complexo de culpa, porque você é um portador do bocejo, e todos os que o virem serão irremediavelmente contaminados.

Isso, é claro, até que a notícia epidêmica esfrie, como aconteceu à gripe aviária, à febre aftosa, à doença da vaca-louca, e surja outra coisa com que os jornalistas se ocupem.


Publicado originalmente no blog "Tô C*gando!", do mesmo autor: http://toc-gando.blogspot.com/2009/05/h1n1-e-arma-mais-perigosa-da-terra.html





Oito horas de sono, dois litros de água e menos de duas mil calorias




Volmar Camargo Junior


Gato é o bicho mais inútil que existe. Eu queria saber de onde é que esses bichos tiram tanta disposição pra dormir. Três quintos do seu dia eles passam dormindo, um quinto se lambendo e o outro quinto destruindo alguma coisa dentro de casa – ou arrumando confusão na rua. Os gatos são adolescentes a vida inteira.

As normas (quem disse?) da vida saudavelmente correta dizem que os humanos normais e civilizados devem dormir de sete a oito horas diárias. Eu não tenho saco para dormir. Acho que a gente perde muito, muito, muito tempo inerte, só respirando, babando e deixando o organismo trabalhar sozinho... acho isso perigoso demais (já p*idei dormindo tão alto que acordei com o barulho). Se neguinho for prestar atenção, oito horas é um terço do dia. Isso significa que, se eu for seguir à risca essa contagem de horas dormidas, um terço da minha vida vai ser babando e p*idando inconscientemente. Fazendo as contas meio por cima, então, eu tenho dezenove "anos úteis". Vai ver é por isso que a maior parte dos adolescentes (i.e.: os vivos) são tão imprestáveis: nos anos teen (dos treze aos dezenove, segundo a língua do viúvo da Lady Di), dorme-se em média doze das vinte e quatro horas possíveis de um dia. É uma provável explicação para terem tanta disposição para não fazer nada, e espaço livre no HD mental para enfiar música de gosto duvidoso e sentimentos de auto-piedade. Isso, é claro, os que não turbinam sua chatice com álcool y otras cositas más.

Eu durmo pouco, como muito e só bebo água no café. E, de vez em quando, misturada com outras coisas que na adolescência eu não curtia.

Ah, sim. Eu já fui adolescente. E fiz todas as impertinências pertinentes à idade. Minha mãe não tem saudade dessa época.



Publicado originalmente no blog "Tô C*gando!", do mesmo autor: http://toc-gando.blogspot.com/2009/05/oito-horas-de-sono-dois-litros-de-agua.html





domingo, 17 de maio de 2009

Gargântua (excertos)

ou a muito horrível vida do grande Gargântua, pai de Pantagruel

François Rabelais
trad.: Henry Alfred Bugalho


(Ilustração: Gustave Doré)

Capítulo VI.
Como Gargântua nasceu dum jeito muito estranho

Enquanto eles agradavelmente debatiam sobre beber, Gargamele começou a se sentir mal das partes baixas; então Grangousier se levantou da grama e a reconfortou honestamente, pensando que era o bebê a lhe fazer mal, e lhe disse que seria melhor que ela descansasse sob o salgueiro, pois em breve ela estaria bem e era conveniente ter nova coragem para a chegada iminente do pimpolho, e que apesar de a dor poder ser severa, ela logo acabaria, e que a alegria que se sucederia amenizaria toda a dor, de modo que nem memória dela restaria.

— Coragem de ovelha! — ele disse — Dê a luz a este menino, e logo faremos outro.
— Há! — ela disse — com que facilidade vocês homens falam! Bem, por Deus, vou me esforçar, porque você me pede. Mas suplico a Deus que lhe seja cortado!
— O quê? — disse Grandgousier.
— Há, ela disse, você é um bom homem! Você entendeu bem.
— Meu membro? — ele disse — Pelo sangue das cabras! Se bem lhe apetece, faça com que tragam uma faca.
— Há — ela disse — Deus me livre! Que Deus me perdoe! Não disse isto com sinceridade, e não faça nada do que digo. Mas eu terei trabalho o bastante por hoje, se Deus não me ajudar, por causa de seu membro e para agradá-lo.
— Coragem, coragem! — ele disse — não se preocupe e deixe que quatro bois façam o trabalho. Vou tomar mais uma bebida. Se lhe recair algum mal, você me terá por perto: dê um assovio que estarei com você.

Pouco tempo depois, ela começou a suspirar, a se lamentar e a chorar. Subitamente, de todos os cantos vieram as parteiras e, apalpando por debaixo, encontraram algumas saliências nojentas, e pensaram que era o bebê. Mas era o fiofó dela que havia lhe escapado, por causa do amolecimento do intestino — chamado de entranhas — porque havia comido muitas tripas, como havíamos declarado anteriormente.

Então, uma velha feia da companhia, que tinha a reputação de ser uma grande médica, vinda de Brisepaille, perto de Saint Genou, sessenta anos atrás, fez-lhe um constipante tão horrível que suas pregas se obstruíram e se fecharam tanto, que, até com os dentes, seria difícil abri-las, o que é algo horrível de se pensar: mesmo imitando o diabo, que na missa de Saint Martin, transcreveu o bate-papo de duas galesas, esticando o pergaminho com os dentes.

Por este inconveniente, soltaram-se os cotilédones de seu útero, através do qual a criança saltou pra cima e entrou na veia cava. Então, escalando o diafragma até os ombros (onde a veia se divide em duas), ela tomou o caminho da esquerda e saiu pela orelha esquerda.

Assim que nasceu, não chorou como as outras crianças: “Miez, miez", mas gritou em voz alta, "beber! beber! beber!", como se convidasse todo o mundo a beber. E o barulho era tão alto que podia ser ouvido ao mesmo tempo nos países de Beausse e Bibaroys.

Questiono-me se você não acredita totalmente neste estranho nascimento. Se não acredita, não me importo; mas um homem de bem, um homem de bom senso, acredita em tudo que lhe contam e em tudo que lhe chega por escrito. Isto é contra nossa lei, nossa fé, nossa razão, contra as Santas Escrituras? De minha parte, não encontro nada na Bíblia Sagrada que seja contra isto. Mas, se esta foi a vontade de Deus, você diria que ele não o fez? Ah, misericórdia, não emburreça jamais seu espírito com estes vãos pensamentos, pois eu lhe digo que nada é impossível para Deus e, se ele quisesse, todas as mulheres dariam à luz, doravante, pela orelha.

Não foi Baco engendrado desde a perna de Júpiter?
Não nasceu Roquetaillade do calcanhar de sua mãe?
Crocmoush da pantufa de sua babá?
Não nasceu Minerva do cérebro, através da orelha de Júpiter?
Adônis da casca de uma árvore de mirra?
Castor e Pólux duma casca de ovo que havia sido posto e chocado por Leda?

Mas você se espantaria e estupefaria mais se eu lhe expusesse aquele capítulo de Plínio, aquele no qual ele fala de nascimentos estranhos e contrários à natureza; ainda que eu não seja tão mentiroso quanto ele foi. Leia o sétimo livro de sua História Natural, cap. III, e não me perturbe mais a cabeça.

Capítulo VII. Como Gargântua recebeu seu nome e como ele bebia vinho

O bom homem Grangousier bebia e se regalava com os outros, escutou o horrível grito que seu filho deu ao entrar na luz do mundo, exigindo: “Beber! Beber! Beber!” Então disse: “Que garganta!” Ao ouvirem isto, os assistentes disseram que a criança deveria se chamar Gargântua, porque esta havia sido a primeira palavra dita pelo pai após o nascimento, em imitação ao exemplo dos antigos hebreus, com o qual ele concordou, e agradou bastante também à mãe. E, para acalmar a criança, eles lhe deram de beber em abundância, e a carregaram até à fonte e a batizaram, como é o costume dos bons cristãos.

E ordenaram que trouxessem dezessete mil, novecentas e treze vacas de Pautille e Brehemond para amamentá-la ordinariamente, porque era impossível encontrar amas suficientes no país, considerando a grande quantidade de leite necessária para alimentá-la; apesar de alguns médicos escotistas terem afirmado que sua mãe a amamentaria e que ela poderia tirar de suas mamas mil, quatrocentos e dois barris e nove canecas de leite por vez; o que não é provável, e esta proposição foi considerada mamariamente escandalosa e ofensiva a ouvidos pios, e com um toque de heresia.

Nestas circunstâncias, ele foi cuidado até um ano e dez meses; depois deste tempo, pelo conselho dos médicos, começaram a carregá-lo, e foi feita uma bela charrete de bois, inventada por Jean Denyau. Nela, levaram-no para passear e ele se alegrava muito; e o exibiam, pois ele tinha uma bela face e dezoito queixos. Quase nunca chorava, mas cagava a toda hora. Pois ele era incrivelmente fleumático de bunda, tanto por causa de sua compleição natural quanto pela disposição acidental que lhe adveio por tomar os vinhos setembrinos. Mas ele não bebia sem motivo; se acontecesse de ele estar amuado, nervoso, chateado, ou feliz, se ele tripudiasse, se reclamasse, se chorasse, traziam-lhe a bebida para restaurar-lhe o ânimo, e imediatamente ele se acalmava e se alegrava.

Uma de suas governantas me disse, jurando pela figa, que ele se acostumou tanto a isto, que o mero som de canecas e jarros faziam-no entrar em transe, como se desfrutasse das alegrias do paraíso. De modo que, considerando sua compleição divina, para alegrá-lo, de manhã, faziam ressoar copos com uma faca, ou garrafões com suas rolhas, ou as canecas com suas tampas, e aqueles sons o deixavam feliz, saltitante, e ele se debatia no berço, balançando a cabeça, monocordiando os dedos e baritonando com o cu.

Fonte:
http://www.ed4web.collegeem.qc.ca/prof/rthomas/pm/gargantua.pdf





François Rabelais e o mundo às avessas

Henry Alfred Bugalho


Poucos autores foram tão geniais, renovadores e mal compreendidos quanto François Rabelais. Nascido numa quinta próxima a Chinon, em 1494, filho dum advogado local, Rabelais ingressou cedo na vida monástica. No entanto, por causa de suas ideias e obras, ele bateu de frente com a Igreja, com os teólogos e os eruditos da Sorbonne.

Atuou como médico e, mais do que isto, redigiu e publicou livros na área de Medicina, mas foi por causa do conjunto dos livros de "Gargântua e Pantagruel" que Rabelais se imortalizou e revolucionou a Literatura.

Segundo o mais importante trabalho sobre a obra de Rabelais, escrito por Mikhail Bakhtin, a grande novidade de “Gargântua e Pantagruel” não residia nos temas abordados — como o grotesco, a escatologia, a carnavalização do mundo ou o mundo às avessas —, mas sim na renovação feita por ele da língua francesa, ao introduzir termos e expressões derivados diretamente do grego e do latim, e ao utilizar uma ortografia própria, que serviriam, em parte, como inspiração para mudanças posteriores do idioma. Bakhtin defende que o sucesso imediato da obra-prima de Rabelais se deveu ao caráter popular dele, já que Rabelais conseguiu trazer para a Literatura a linguagem e a vida da praça pública e do mercado, rompendo, em parte, com a natureza elitista da escritura. O sucesso de “Gargântua e Pantagruel” seria o reflexo do povo retratado a si mesmo, ao mesmo tempo em que isto seria a fonte da controvérsia entre Rabelais e os eruditos de sua época.

Os dois primeiros livros da obra, Pantagruel (publicado em 1532) e Gargântua (publicado em 1534), surgiram sob o pseudônimo de Alcofibras Nasier, um anagrama de François Rabelais, e foram imediatamente condenados pela Sorbonne e pela Igreja Católica. Nestes dois volumes, são apresentados o nascimento e a criação dos gigantes Gargântua, o pai, e Pantagruel, o filho, duma maneira bastante cômica, escatológica e, às vezes, herética. O personagem Gargântua já existia anteriormente, numa obra anônima e bastante popular, e Rabelais bebeu desta fonte para elaborar sua série, sofisticando bastante a narrativa original e introduzindo novos elementos.

No terceiro livro da série, inicia-se a narração do dilema de Panurge, um dos companheiros de bebedeira de Pantagruel, sobre se ele deveria se casar ou não. Para obter uma resposta, eles decidem empreender uma viagem em busca da “Botelha Sagrada”. Esta viagem prossegue pelos quarto e quinto livros, nos quais Pantagruel, Panurge e Frei Jean, um ex-monge, se deparam com uma série de aventuras por mares desconhecidos.

Nestes cinco livros, Rabelais desenvolve toda uma concepção do mundo, unindo aspectos sacros, eruditos, elevados ao baixo, mundano, vulgar, grotesco.

François Rabelais morreu em Paris em 1553. Um dos mais controversos autores da História se despediu da vida terrena com a célebre e disputada frase: "Parto para ver o Grande Talvez... Fechem as cortinas, a farsa acabou".

Leia um trecho de "Gargântua e Pantagruel"

Fontes:
BAKHTIN, Mikhail, Cultura Popular na Idade Média e Renascimento. São Paulo: HUCITEC, 1987.

The concise dictionary of foreign quotations
http://books.google.com/books?id=3KLz2QEdQaoC

Wikipédia
http://en.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois_Rabelais





sábado, 16 de maio de 2009

Propaganda do produto revolucionário das Organizações Tabajaras* para Daniel Dantas e afins:

Cansado de ter sua prisão preventiva decretada injustamente? Você não aguenta mais aparecer na TV com aquelas algemas horrorosas e ordinárias? Seus problemas acabaram! Chegaram as Algemas Gilmar Mendicator! Cravejada de strass, a pulseira Brilhantes é tão luxuosa que nem vai parecer que você está preso! Já a versão em acrílico transparente fará com que suas mãos pareçam estar soltinhas da silva, até nas imagens exibidas em telas de HD TV.

Ligando agora, você ainda ganha um incrível par de algemas de pelúcia laranja, para vestir as delicadas mãozinhas de sua irmã, esposa ou outro laranja qualquer com um ar super fashion!

Faça seu pedido agora! Ligue para 1711 -7171, para comprar suas Algemas Gilmar Mendicator. E ganhe de brinde essas fantásticas algemas de pelúcia laranja! Ou peça pelo site: http://www.stf.tabajaras.com/

*A invenção do produto/propaganda é minha. Só me apropriei do nome "Organizações Tabajaras" porque eu posso, afinal ex-moradora da Ladeira dos Tabajaras é pra sempre das organizações!

Mariana Valle





quinta-feira, 14 de maio de 2009

Ria muito com pouco

Caio Rudá & Ricardo Thadeu

Ânus 70
Há muito tempo, numa discoteca muito, muito distante havia aquela cara, que abalava as noites de sextas-feiras ao chacoalhar freneticamente sua estrutura óssea em contratempos, antecipando a filosofia dream-theateriana. Era Lé de Zé Pelim, madeixas inimigas dos pentes e calças tão apertadas que por pouco não o rachavam ao meio, aproveitando a fissura glútea.

Em certa ocasião, ele que esperava por Darth Vader para lhe vender as balinhas de menta, ia amarrando os cadarços da mente, com um Hollywood entre os dedos. As luzes da bola cintilante dependurada do teto encandeavam os olhos de Lé de Zé Pelim, alterando levemente o fenótipo de seu “azinho-azinho”.

Da multidão, o amigo Vader surgiu e lhe entregou os comprimidos. Ele os ingeriu depressa. Lentamente, as luzes cintilantes que encandeavam seus olhos passaram a ser projetar, tal qual lâmpadas fluorescentes com som acoplado. E num devaneio interplanetário, lá estava Lé de Zé Pelim duelando com seu amigo de outrora, Darth Vader.

O embate durou centenas de milhões de anos-sem-luz, e, aproveitando o tropeço dos cadarços amarrados, o traficante estelar conseguiu desferir um golpe mortal no cambaleante Lé, cujo final foi o contato brusco com o chão.

No meio da pista da dança, um Ramone distraído foi testemunha do cumprimento da profecia. Como se tivessem apertado o review do vídeo cassete de não sei quantas cabeças, Lé de Zé Pelim retornou à posição inicial.

– Hey, ho! É um milagre brasileiro! – vociferou sem acordes punk o Ramone.
– Que a força esteja com você! – e sublimou o Lé de Zé Pelim.

Negócio da China
Em um camelo paraguaio de sotaque francês:
− Esse relógio é à prova d'água?
− É, mas melhor não testar.

Apesar da queda do sr. Dow Jones, a transação ocorreu sem maiores turbulências. No final, o turco vendedor acena seu kipá.
− Hasta la vista, monsieur.


Caio Rudá de Oliveira

Consulta Médica
O doutor:
- O senhor precisa comer ferro. Está com suspeita de anemia.

Nova consulta, raio-x, desenhos estranhos, objetos pequenos, cortantes:
- Mas que diabos. O que aconteceu com o senhor?
- Sabe como é, doutor. O feijão tá caro, o quiabo também...

Conto de Natal
Não pude escrevê-lo pois passei mal depois da ceia.

Sono
Vou escrever até...





Significantes

Joaquim Bispo

As palavras têm, por vezes, sonoridades e construções ortográficas que sugerem outras, com significados muito diversos. Pode, por isso, usar-se a sonoridade e a entoação para dizer algo que, não ofendendo ninguém, formalmente, contém uma ferroada subjacente.
Um dia, um colega de trabalho chegou dizendo que, no meio duma discussão no autocarro, uma mulher atirou para outra: «Vá para a Bósnia, sua Herzegovina!»
O exemplo foi inspirador, de modo que, uns tempos depois, usei a seguinte arma de arremesso para terminar em beleza um desentendimento no trânsito: «Ó meu caro amigo, sabe o que é que eu lhe digo? – Vodafone!»
O outro ficou uns bons três minutos, de olhos em alvo, a digerir a mensagem, contaram-me depois!

***

Conheci um japonês, de gestos tão bruscos como os dos samurais dos filmes, que se chama Yátá ! A sua esposa, não tão dócil como as gueixas dos filmes, chama-se Komo Yátá?!

***

Ontem vi um livro com o seguinte título: O que fazer depois de morrer

Ora aí está um assunto com o qual devemos preocupar-nos. É, com certeza, fundamental que cada um programe meticulosamente e com antecedência as actividades que vai desenvolver depois de morrer para que, quando chegar a altura, não fique para ali indeciso e enfadado sem saber como ocupar o tempo!





Gripe das aves

Joaquim Bispo

Os tempos perigosos que correm alteram até as rotinas mais arreigadas. No meu bairro, havia uma velhota que todos os sábados ia à mercearia comprar milho para dar aos pombos. Certo sábado, vi-a comprar, para além do habitual saquinho de milho, dois pacotinhos de lenços de papel. Disse que tinha visto vários pombos a espirrar e com o bico a pingar, coitadinhos.

***

Parece que a gripe das aves não constitui grande perigo para o Homem, se este não tiver contactos próximos com aves infectadas. Notícias do Olimpo fazem saber que Leda, por precaução, já pôs o cisne a dormir no sofá!





No tempo em que os animais falavam

Joaquim Bispo
O carneiro e o lobo

No tempo em que os animais falavam, o Bush e o Saddam estavam a beber num regato.
– Estás a sujar-me a água! – disse o Bush.
– Eu? – ripostou o Saddam – Eu, como, se é daí que vem a corrente?
– Se não és tu, é o bin Laden!
E certeiro, espetou-lhe um corno no fígado.

***

Identificação

Quando a coligação árabe invadiu alguns países ocidentais, distribuiu pelos seus soldados baralhos de cartas onde cada carta tinha a fotografia de um ocidental procurado pela coligação. Isso ajudava os soldados a identificar com rigor os elementos perseguidos, que aos olhos árabes parecem todos iguais. Bush era o sheik de espadas e Blair a odalisca de paus.

***

Confissão

Saddam foi apanhado num domingo. Na terça-feira, descobriu-se que possuía documentos que o ligavam ao comando da al-Qaeda. Quinta-feira, encontraram a documentação que provava inequivocamente que o Iraque possuía armas de destruição maciça, e no sábado, confessou que foi ele que lançou duas bombas atómicas sobre o Japão.

***

O ambiente sob suspeita

– Sr. Presidente, temos que assinar o Protocolo de Quioto: pela primeira vez em 10 000 anos, o gelo desapareceu do Monte Kilimanjaro.
– Não assino nada. Se o gelo desapareceu, havemos de encontrá-lo. Ele pode fugir, mas não se pode esconder!





Gazeta de Notícias

O maior piolho do mundo

Arqueólogos encontraram o que pode ser considerado o maior piolho do mundo, com quatro metros de comprimento por três de largura.
O insecto, classificado como Phthiraptera Gigantos, foi descoberto durante as escavações para a construção de um banheiro público, a sul de Paris.

Alguns historiadores se adiantaram em afirmar que se trata de um dos vários piolhos lendários de Gargântua, que aterrorizaram a França durante a Baixa Idade Média, atacando mulheres e crianças cabeludas.

Canibal, mas sem perder a classe

A socialite Thabatha ("com dois 'h's, sim senhor!") está viajando para o Congo esta semana para cumprir uma promessa: se sua Poodle sobrevivesse até aos quinze anos, ela faria algum ato de solidariedade.

Juju – a Poodle – completou o décimo-quinto aniversário mês passado, por isto, Thabatha se viu na obrigação de arcar com a promessa.

"Conhecer a África será um grande sonho", afirma a socialite, que acrescenta "sempre que eu ouvia relatos de canibalismo, eu ficava chocada. Agora será a minha vez de fazer a minha parte".

A promessa de Thabatha será de levar bons modos e ensinar etiqueta a uma tribo de canibais incrustada na selva do Congo. "Entendo que o canibalismo seja um rito tradicional daquele povo; minha intenção não é mudar a cultura deles, mas sim acabar com aquela imagem de alguém com um fêmur humano na boca e com a cara toda ensanguentada".

Para as aulas de etiqueta Thabatha está levando dúzias de talheres de prata, porcelana chinesa, guardanapos e toalhas bordadas.

Quando questionada se ela não tinha medo de ser comida pelos canibais, ela logo respondeu: "Isto seria um luxo! As minhas amigas iriam morrer de inveja!"

Mulher mata e empalha marido

Os moradores dum bairro de classe média na Cidade do México ficaram estarrecidos ao descobrirem que Dona Dolores, uma das senhoras mais benquistas na vizinhança, havia matado e empalhado o marido.
"Nós nem percebemos nada diferente", afirma uma testemunha que prefere não revelar sua identidade. "Todo os dias, nós víamos Don Miguel sentado na varanda do prédio, por isto, tudo parecia estar normal".

Na verdade, Dona Dolores havia assassinado a pauladas o marido, Don Miguel, dez anos atrás, após ele ter chegado bêbado em casa, agredido-a e a violentado, segundo a versão de Dona Dolores. "O pior é que eu amava o desgraçado! Jamais conseguiria viver sem ele, então, resolvi empalhá-lo e deixá-lo em casa para me fazer companhia. E, acredite em mim, ele é um marido muito melhor morto do que vivo".

Dona Dolores e Don Miguel possuíam uma loja de taxidermia, onde vendiam animais silvestres e domésticos empalhados.

Quem descobriu o crime foi uma criança, quando, uma tarde, jogava futebol na rua e a bola acidentalmente caiu na varanda. "Nós chamamos por Don Miguel, pedindo para ele nos devolver a bola, mas ele não respondeu. Foi quando eu subi lá e o vi daquele jeito".

Os peritos criminais ficaram surpresos com o cuidado que Dona Dolores teve na hora de empalhar as partes íntimas de Don Miguel. "Era a parte mais importante do corpo", ri Dona Dolores.
"É um verdadeiro trabalho de mestre", afirmam os peritos, que cogitam a possibilidade de leiloar Don Miguel para algum museu.

O papa é pop

O papa fez revelações bombásticas à imprensa esta tarde numa coletiva de imprensa. "Sou gay, ateu e apoio o uso da camisinha".

Este comentário causou comoção na cúpula do Vaticano, que delibera qual será o destino papal.

Segundo a bula "Pastor Aeternus", proclamada durante o Concílio Vaticano I, o papa não erra e, quando ele se dirige à comunidade cristã, é sempre infalível. Isto tem suscitado profundas reflexões teológicas e atiçado grupos de minorias ao redor do mundo. Em San Francisco, centenas de milhares de homossexuais se reuniram para comemorar o anúncio do papa, enquanto que em Berlim grupos de neo-nazistas atearam fogo em quatro igrejas e em cinco sacerdotes católicos.

"Isto pode alterar o rumo da Igreja e dos países católicos", afirma o porta-voz de uma das ONGs mais importantes em combate à AIDS.

"Que o papa era viado, todo mundo sabia! Ele já comeu metade dos cardeais!" garante uma fonte anônima.

Apreensão recorde de drogas

A polícia desbaratou, na noite de ontem, a maior quadrilha de tráfico de drogas do Rio de Janeiro e fez uma apreensão recorde de cocaína, maconha e ecstasy.

"Estamos muito contentes com o eficaz trabalho da polícia", declarou o delegado da divisão de narcóticos "e pretendemos dar uma boa destinação para o que foi apreendido: revenderemos a droga a preços populares e doaremos uma parte para comunidades carentes; o que sobrar, vai ficar na delegacia mesmo – a maconha é da boa e os investigadores estão loucos para queimar tudo até à última ponta."

O prefeito da cidade confessou estar estarrecido com as declarações do delegado: "Pô, e eles nem me convidaram pra festinha!", reclamou ele.





quarta-feira, 13 de maio de 2009

O alvo simbiótico

O meu nome é Zork e sou batedor-explorador sénior, sou um guarda avançado de primeira categoria especializado na observação de espécies com potencial. A minha função é de extrema utilidade pois a minha raça, com o pragmatismo que a caracteriza, há muito que desistiu de suportar sozinha a subsistência e confortos e caprichos.

Aprendemos que é bem mais simples e eficaz identificar outros com o potencial simbiótico adequado e transformá-los gradualmente em nossos servos. De início, a vítima, tecnologicamente menos evoluída, não compreende o jogo latente que está a decorrer. Depois... bem, depois é já tarde demais. Como uma mosca espantada e aturdida e enredada na teia, quando percebe o que se passa, já nada pode fazer, não se liberta. Na verdade se chamarmos as coisas pelos nomes próprios, não existirá aqui qualquer simbiose ou relação simbiótica. Existe sim, parasitismo. E isso mesmo, digo-o sem qualquer pudor: somos parasitas!

Naquela tarde preparava-me para desempenhar as tarefas para as quais me tinham treinado. Ia ser fácil pois o ponto de observação no piso de cima do edifício ficava mesmo junto ao enorme balaústre e era muito bom. A visão, soberba, perfeita, abrangia praticamente cento e oitenta graus. Além disso era um recanto acolhedor e agradável de modo que certamente permitiria iniciar o relatório com todo o conforto.

Observei-os e vi como tratavam os "pequenos" com amor e carinho, nunca os deixando sós e desprotegidos em momento algum. Vi como falavam a toda a hora, constantemente, frequentemente, com eles. E quanto falavam… oh Deuses, que entusiasmo, quase parecia um vício! E forneciam-lhes com solicitude, sem reclamar, toda a energia necessária. E na presença da mais pequena sujidade, logo acorriam e limpavam com extremo cuidado.

Vi como são preocupados. A certa altura um "pequeno" caiu e o seu servo levou prontamente as mãos à cabeça proferindo expressões para as quais não possuímos ainda tradução:

– Ai meu Deus! E agora? – disse ele.

Depois, curvou-se e tomou rapidamente o "paciente" em mãos inspeccionando-o com cuidado, para verificar se estaria de boa saúde ou necessitaria de algum tratamento. Noutra das observações, constatei que além de preocupados também sabem ser extremamente leais e obedientes. O "pequeno" estava aos gritos com sua voz fina irritada. E o gigante só dizia: «Sim senhor, querida; desculpa querida; eu sei amor». Tudo isto é verídico, eu próprio o vi com o meu sistema de sensores. E tudo isto me bastou.

Os "pequenos" eram sem dúvida os seres mais afortunados de todo o universo. Mas não continuariam assim por muito tempo. Tudo o que necessitávamos era colocar em prática o plano: substitui-los gradualmente por elementos da nossa espécie no domínio dos servos gigantes prestáveis e solícitos. Tendo chegado a este ponto, a minha atenção, objectivos e prioridades mudaram e obtive dados mais detalhados. E foi então que surgiu um contratempo inesperado e todas as dificuldades a ele inerentes. Afinal não iria ser assim tão fácil. Porque os "pequenos" eram compostos por várias subespécies, todas elas incompatíveis entre si.

Resignado, coligi os nomes delas e coloquei-os no meu relatório:

NOKIA

SIEMENS

MOTOROLA

SONY-ERICSSON

SAMSUNG

...

Agora, a minha próxima tarefa vai ser analisar em detalhe cada uma dessas vertentes raciais a fim de explorarmos com eficácia todas as suas vulnerabilidades.





segunda-feira, 11 de maio de 2009

Autor convidado – Rodolfo Bispo

Decoração

No outro dia, fui a uma loja de decoração e fiquei muito espantado, porque havia lá mobília de Estilo Colonial. Para mim, colonial significa colonialismo, exploração, escravatura, tortura, homicídio, valas comuns.
– Eh, pá, isso é o ideal para a salinha da televisão! Eu quero decorar a minha casa assim!
Se o Estilo Colonial é uma boa ideia para decoração, eu quero que a Inquisição Espanhola seja um «fashion statement»:
– Ofélia, essa mini-saia é tão… não sei… tão… Inquisição Francesa!
– Tá parva?! Esta saia é, claramente, Inquisição Espanhola! Não vê que dá com os sapatos… estes sapatos que se usam agora… Estilo Genocídio no Ruanda? Ai, adoro Genocídio no Ruanda! Quem me dera poder decorar com este estilo a minha sala! Ai, a sério, estou tão farta daquele Estilo Colonial que lá tenho! Não está tão associado a morte, escravatura e destruição quanto eu gostaria.
Eu acho que esta coisa do Estilo Colonial começou num navio negreiro. No escuro do porão, um escravo segredava a outro:
– Espero que o mundo nunca esqueça esta injustiça terrível, que esta página horrenda da História sirva de inspiração para… talvez uma moda qualquer, talvez decoração!
Deve ter sido isso. Mas por quê parar no Estilo Colonial? Por que não um passo de dança Estilo Acidente de Viação na A5?
– Eh, pá, espectacular! Muito «fashion», «man»!
Ou, por exemplo, o Estilo de Penteado Cancro nos Intestinos! Hã? Boa?

(Texto de sketch de áudio)


Yellow Submarine Aluga-se – T4+1 boas áreas

Cheguei ao computador e todos os botões estavam errados, trocados, equivocadamente posicionados. Ao lado do P estava um botão azul de uma camisa que usei uma vez para uma cerimónia de circuncisão a laser. No lugar da barra de espaços estava um espaço para alugar. E em vez do ESC tinha a ESC 2+3 (Escola Secundária de Cashkaische (Cascais dito com aparelho nos dentes)).
Quando vi que no ecrã havia dois limpa-vidros, percebi.
Saí do carro e jurei nunca mais conduzir bêbado.

Migalhas das torradas

O carcaças da minha vizinha! O caraças da minha vizinha manda-me com as migalhas das carcaças para a pontinha da janela; a beirada da minha vidraça fica forrada com a porrada de migalhas e restos das toalhas das carcaças do caraças da loiraça da minha vizinha.

Vai um em anexo

Anexei o senhor meu punho ao ficheiro facial fronteiro na zona nariguda da fronha feia de um cavalheiro que ministra um cargo político.
Fiquei com os nós imundos de Honestidade, Confiança, Rigor e outras mentiras com que a besta do senhor se maquilha antes de vir de se vender na Assembleia.
Ele que vá perguntar as horas a outro eleitor. A lata desta gente!

Ontem fui a uma exposição

Nas exposições de arte contemporânea, gosto muito de ver toda a gente descontextualizada. Pessoas normais a ver coisas muito estranhas. Espantadas:
– Mas o que é isto? Isto é arte? Esta não percebo. Mas é só isto?
Desta vez, aquilo de que gostei mais foi pintar vinte símbolos fálicos e depois convidar os meus pais e os meus sogros para me virem dar os parabéns.

(Quatro posts do blog pessoal)


Comprei uma boneca insuflável; na primeira volta tive um furo!

Se o caso "Jesus na cruz" fosse agora, não era publicitado! Não dava em Bíblia! Era só uma notícia da Faixa de Gaza no jornal da TVi!

"Deus escreve direito por linhas tortas" não faz sentido! É como um elogio ofensivo:
– A sua filha é tão bonita que podia ser prostituta!

Vi na montra duma loja: "Últimas liquidações!" – Serão saldos ou execuções sumárias?

Levei o portátil ao barbeiro...
– Alguém sabe limpar teclados? Isto está cheio de cabelos!
Do mal, o menos, podia ter ido ao Peepshow!

Aquela velhota ainda tem as maminhas firmes, ou aquilo é rigor mortis?

Mais depressa se apanha o mentiroso que o coxo. Sou pescador e para mim tanto me faz, apanhar um ou outro! Tudo o que vem à rede é Google!

Há males que vêm por bem... Sim, mas provavelmente passam por bem, contornam e seguem para mal!

Olhai os lírios do campo...espera, são silvas!

(Posts no Twitter)


Rodolfo Bispo (1981) é pintor por paixão e formação, no entanto, tem encontrado na escrita a forma de expressão adequada a mensagens menos sintéticas. Alimenta um blog pessoal desde 2003: http://www.peludoeazul.blogspot.com/ Desde 2007, tem-se deixado seduzir pelo stand up, e a escrita de humor em geral, tendo sido passados vários sketches seus no programa de rádio Cómicos de Garagem: http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/comicos-de-garagem/ Integra, também, o grupo humorístico que produz o blog: http://aultimasopa.blogs.sapo.pt/ Ultimamente, entusiasma-se com a brevidade, de possibilidades acutilantes, do Twitter: http://twitter.com/RodBispo





domingo, 10 de maio de 2009

O Dilema do Morto-Vivo

— Sinto muito, senhor Jorge, mas não podemos liberar o seu auxílio-doença. Consta em nossos bancos de dados que o senhor está morto — a funcionária do INSS fitava a tela do computador.
— Mas, minha filha, eu ‘tô vivo! Bem aqui na tua frente!
— Não há nada que eu possa fazer, seu Jorge.
Desorientado, Jorge deixou o posto do INSS e foi para casa.

— Maria, você não sabe da última — resmungou Jorge.
— Fala, meu véio... — Maria lavava roupa no tanque.
— Não vou recebeu o dinheiro da licença-médica. ‘Tão falando que estou morto.
— Como assim, Jorge?
— Não sei, só disseram que eu havia morrido.
— Amanhã, você volta lá e confirma esta história.
E foi o que Jorge fez. Na manhã seguinte, retornou ao INSS, porém, obteve a mesma resposta.

— Estranho, não? — Maria coçava a cabeça.
No entanto, Jorge não respondeu, absorto em pensamentos. Passou o dia calado, não quis assistir à novela, foi dormir cedo. Mas o sono não veio, Jorge rolava na cama, atormentado com a idéia de que eles estivessem certos.
— E se eu estiver morto, Maria? — perguntou ele.
— Deixa disto, Jorge, você ‘tá vivo! — retrucou Maria, dormitando.

— Você tem que ir a um cartório, Jorge. Lá eles podem dizer se você está morto ou vivo. Se estiver morto, eles vão ter um atestado de óbito, com seu nome e data de falecimento — assegurou Luizão do boteco.
Jorge seguiu o conselho. Foi ao cartório e perguntou ao notário se havia um documento atestando sua morte.
— Que disparate, senhor! Se você está vivo, como espera que eu encontre algo provando seu falecimento?
— É o que dizem por aí! Só quero confirmar.
O tabelião se conformou, procurou e encontrou a prova que Jorge ansiava.
— Em que dia morri? — indagou Jorge, curioso.
— 15 de setembro de 1980.
— Quando eu tinha vinte anos — concluiu Jorge.

Em 15 de setembro de 1980, Jorge voltava de viagem com seu pai, sua mãe e a irmã caçula. O pai, caminhoneiro, os havia levado a Aparecida do Norte, cumprir uma promessa. Na contramão, um motorista de ônibus bêbado perdeu a direção e atingiu o caminhão onde Jorge e sua família estavam.
Todos morreram.

Jorge cuidava os túmulos onde ele e seus parentes estavam sepultados. Inequivocadamente, estava escrito “Jorge de Lima”, data de nascimento e morte. Não havia dúvidas.
Algo macabro havia ocorrido para que Jorge estivesse andando por aí, houvesse se casado com Maria, tido filhos, arranjado emprego. Se ele estivesse morto, como tudo indicava, qual explicação haveria?
Coisa do diabo? Ou um milagre de Jesus?

— Maria, tomei uma decisão... — Jorge estava triste. — Não gosto nada desta situação. Um defunto não pode ficar perambulando pelas ruas. Vocês vão ter que me enterrar.
Contrataram os serviços duma funerária e organizaram o velório. Jorge se deitou no caixão e, quando chegava algum dos seus amigos para ver o finado, ele lhes dava uma piscadela.
O padre fez um sermão, mas os rapazes não queriam fechar o esquife.
— Vai pessoal, estou morto há quase trinta anos, só falta completar o serviço!
Levaram o caixão para o cemitério, Maria chorava, os coveiros cobriram de terra o ataúde. Um dia muito triste pra todos.

— Dona Maria, não podemos liberar a pensão do seu marido — disse a funcionária do INSS. Nossos bancos de dados indicam que seu marido está vivo.
— Não, moça, ele ‘tá morto. Morreu trinta anos atrás.
— Há um Jorge de Lima falecido aqui, mas é outra pessoa. Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer.





sexta-feira, 8 de maio de 2009

A verdadeira história do Velho do Saco

Volmar Camargo Junior

Uma realidade em Pereirópolis é que muito de seu território é ocupado por lavouras. Uma dessas fazia fundo com um campo de propriedade do Exército. Anos mais tarde, a tal fazenda foi desapropriada e incorporada pelo município, tornando-se um loteamento urbano. Hoje é o Bairro Setembrino da Silva. Diferente de outros bairros que têm seus nomes por causa de eventos históricos ou em homenagem a políticos locais, aquele bairro foi batizado por um acaso curioso. Ou melhor, por causa da curiosidade desse personagem.

Seu Setembrino da Silva era daquelas pessoas que já são idosas quando os idosos ainda eram jovens. Havia quem o chamasse “Setembrino Matusalém”. Outros, ainda mais maldosos, falavam que se fossem somadas as idades do Seu Setembrino e da Dona Maricota, aquela do Sabão Milagroso, o resultado passava de trezentos anos. Morava numa casinha isolada em uma quadra de terra doada a ele por um compadre, que, aliás, era seu único vizinho. Conhecido pelas invencionices, o velho Setembrino passava dias enfurnado num galpão no fundo do pátio, de onde só saía para comer ou para dormir; o segundo menos que o primeiro. Passado um tempo, o velho aparecia com uma nova criação, que eram coisas interessantes, mas não menos absurdas: um espantalho que se mexia quando os pardais se achegavam na horta, ou sistemas de irrigação, ou alavancas para abrir e fechar o galinheiro ou ainda um distribuidor de ração para os pombos-correio que ele criava. As matérias-primas de suas obras-primas eram coisas que ninguém mais quer. Por isso, quando não estava inventando algo, caminhava pelas ruas da Vila da Pereira – que futuramente viria a ser Pereirópolis – carregando um saco de sucata às costas. Não, não é coincidência: Seu Setembrino deu origem à lendária figura do Velho do Saco.

Um dia, nas andanças entre uma empreitada e outra pelo lugar onde atualmente é o bairro que tem seu nome, o velho Setembrino entrou em um terreno baldio para dar vazão aos seus reflexos parassimpáticos. Enquanto obrava, observou o lugar com os olhos atentos de sempre. E sua busca não foi infrutífera: o inventor encontrou um objeto cilíndrico formado por muitos gomos de metal – como um ananás, só que menor – enferrujado, mas ainda inteiro. No lugar da coroa do tal ananás, uma alça comprida e um pito que unia a essa alça uma argola. Terminou o “serviço” e levou o achado para casa.

De tudo quanto foi maneira, o velho tentou desmontar a coisa, e o “ananás” não cedia um milímetro. Deu nele com golpes de marreta, usou uma serra de cano, bateu com um facão até deixar a ferramenta sem fio, e nada. O compadre e vizinho, alarmado pela barulheira e por não ter visto o Setembrino por muitos dias, resolveu dar uma conferida, para ver se estava tudo bem. Encontrou o homem sesteando, escorado na parede do galpão, sentado em um mochinho – um banquinho sem orelhas, coisa que era muito comum nas casas de gente simples. Dentro do recinto havia um braseiro aceso. Curioso, o compadre entrou pé-por-pé para ver o que o Setembrino estava inventando daquela vez. Transtornado pelo susto, apagou o braseiro com um balde d’água, correu pra fora do galpão e levou – arrastou, melhor dizendo – o seu Setembrino pra longe de casa o mais rapidamente que pôde.

Depois daquilo, nem compadre, nem ninguém convencia o Setembrino de que o “ananás” que ele pôs na boca do fogão à lenha era, na verdade, uma granada. Para a sua sorte, era só o casco vazio, sem pólvora. Mas, por via das dúvidas, o Exército fez uma inspeção rigorosa no campo onde ele a havia encontrado e nas imediações. Nunca foi publicado nenhum relatório, mas, dizem as línguas dos curiosos que foram achadas mais três, e que uma explodiu. Contudo, até hoje ninguém confirmou oficialmente.








Laboratório Poético: dois pecados (um, pela metade), e mais outras coisas sem sentido

Volmar Camargo Junior


Ira

Ai, moléstia maldita

que tira o gosto de tudo

e do resto todo o sentido

Ai, penúria ordinária

rasga-me de dentro a fora

expulsa minhas entranhas

Dor da minha imundície, raio que me parta

Porra, que merda de dor filha da puta!


Preguiça

precis..

escrev...

um poe...

intei...

Ah, cansei!



Monólogo

“abre aspas

Tenho dito.

fecha aspas”



Vadiagem

É manhã.

É dia.

E daí?



Doce Nostalgia

Leite condensado, caramelizado

Com flocos crocantes

Coberto com o delicioso sabor do passado.