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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Raro leitor



Raro leitor,

“Um dia a gente chega, no outro vai embora”, diz a letra da belíssima canção Tocando em frente. Em tudo na vida é assim: tem a hora do encontro, tem a hora da despedida. Depois de vinte e três textos, chegou a hora de me despedir. Faço-o a contragosto e tão-somente pela necessidade de me dedicar a outros projetos. É hora de me despedir e, ao mesmo tempo, agradecer pela acolhida nesses quase dois anos de colaboração. Quando cheguei por aqui, tinha nas mãos apenas minha arte e vida severina. Era 28.fev.2013. Mês seguinte, cuidei de espalhar uns desperdícios apanhados no rio do cotidiano. Em seguida, porque era abril, cuidei de homenagear Brasília, minha quase Pasárgada, meu sonho feliz de cidade por quatorze anos. Maio foi a vez de homenagear o cronista, esse vira-letras de raça. Em junho, uns flagrantes da vida como ela não deveria ser. Colecionador incansável de tudo que diga respeito à “vida se vivendo em nós e ao redor de nós” (Clarice Lispector), em julho reparti com o raro leitor cinco contas de um colar; em cada conta, um acontecimento que fisgou minha atenção. Em agosto, mês dos pais, resolvi encarar o mais difícil dos textos que já terei escrito. Tratei de percorrer a margem móvel da vida e, nela, a história errante do meu pai. Setembro, com a chegada da primavera, Brasília ficou em festa. No mês das crianças, atirei no papel umas belezas que passaram pelos meus olhos de homenino. Observador atento aos brilhos do chão, novembro foi a vez de repartir mais belezas colhidas no miúdo chão do cotidiano. Fechei 2013 com umas mal traçadas linhas.

Para abrir 2014, o inventário de uma procura – a procura da crônica. A seguir, julgando saber como se chega à crônica, provei minha sabença com uma (des)receita de crônica. Em março, o susto de testemunhar cronos alucinadamente veloz. Em abril, desanimado com a pauta pouco apetitosa de assuntos, decidi: eu não vou escrever nada. Em maio, reconciliado com o tempo, cuidei de mapear onde a lentidão tem vez. Junho foi o mês da bola e o Brasil passou longe do show de bola que se esperava. Muito antes pelo contrário. Julho foi a vez de homenagear aquele que vive de dar tratos à bola, um eterno filho do desassossego, o escritor. Para acompanhar agosto, sol a gosto. No colo de setembro, depositei umas lembranças de como cheguei à Filosofia – para não ficar. Para embalar outubro, o relato de uma pequena viagem a minha terra. E para não sair do pequeno, em novembro me dediquei a celebrar a pequena arte da felicidade. Fechei 2014 tecendo amanhãs.

E tecendo amanhãs, chegou o hoje da minha despedida. Antes, quero dizer que no tecido de tantos ontens, além dos textos para a Revista Samizdat, houve espaço para eu publicar um livro. É este livro que eu gostaria de deixar de presente ao raro leitor, me desculpando por oferecer um presente que é, literalmente, Quase Nada. Dizendo melhor: na aparência, o livro é quase nada; na essência, é um pouco menos. Clique na imagem abaixo e veja o raro leitor se não estou certo. 


Quase no fim, não posso deixar de consignar o meu agradecimento ao Henry Alfred Bugalho, o editor, e a todos os colaboradores da revista com quem, honrosamente, partilhei este espaço. Muito obrigado!

Com um abraço já de saudade,

Tarlei Martins   





O CAMINHO DA ÁGUA




Diante da televisão, Mohsen parece em transe. Como na primeira vez que vira o filme dirigido por Luc Besson, a cena final de Léon o comove.

Não serei mais o Jean Reno xiita. Não salvarei minha própria Matilda. Não ensinarei nada a ninguém. O efeito do ácido inebria sua mente e Mohsen pouco se importa com o corpo obeso e encerado que sangra feito um agonizante porco sobre a king size. Mohsen está sereno. Chora de alívio enquanto sorri. Pensa em aventurar-se pela Châtelet-Les Halles com esta navalha na mão, a boca suja de batom e sangue. Desiste. O chão do quarto, forrado com um embolorado carpete lilás de veludo, é seu único amparo. Logo chegarão os comparsas do homem que assassinara e surpreendê-lo-ão com a morte do tête, do chefe, lambuzada em seu rosto. Serei presenteado com a mesma liberdade e paz que, de um único golpe, arranquei da garganta suja de Alistair.

Sente saudades de Meshed, sua cidade natal, o que lhe parece um sentimento contraditório. Ansiara por toda vida abandonar a província de Razavi Khorasan e seguir para o Ocidente, onde se transformaria em um iraniano capaz de arrancar aplausos e lágrimas em Cannes. Em coletivas de imprensa, falaria em nome de todas as nações muçulmanas, não em farsi, mas em bem articulado árabe. Por me amarem, eles entenderão meu povo. Por me amarem, eles escutarão nossa voz.

Fora uma grande tolice ter batido em Nayib. Aquele soco arrastou-o a Paris, à navalha, ao homem morto. Mas o maldito sunita era um provocador, sempre fora. Não era a primeira vez que Nayib dizia obscenidades à Atefeh, irmã de Mohsen. Havia algo de americano naquele garoto, algo de demoníaco escondia-se por trás de seus dentes tortos, seu débil riso de escárnio. Esmurrado, Nayib sangrou e riu, como se adivinhasse a proximidade da morte. Não seria condenado à forca sozinho, carregaria um desafeto. Quando a bosta e a urina escorressem por suas pernas, agonizaria vingado.

Dias após o atrito com Nayib, Mohsen foi arrastado por seu tio, Farhad, para um dos muitos quartos da casa onde vivia toda a família Panahi. As lágrimas imediatamente brotaram no ainda pueril rosto de Mohsen, que cedeu ao costumeiro assédio e aceitou-o com resignação.

Não queria fazer aquilo, jamais quisera. Por seis anos o irmão de sua mãe submetera-o a seu repulsivo desvio. Enquanto Mohsen chorava de vergonha e dor, a curra proporcionava ao tio um gozo sublime. Se delatasse o agressor, arruinaria o nome de sua família para sempre. Preferira então manter silêncio e aceitar o suplício quase rotineiro como purgação.

― Mohsen, precisas ir embora do Irã ― sussurrou o homem com a boca colada ao ouvido do sobrinho. Seu bigode áspero roçava o lóbulo enojado do menino, que tremia indefeso sempre que ouvia aquela medonha voz. A mão calejada do tio pousada sobre sua boca, o imberbe corpo pressionado entre a fotografia de Ruhollah Khomeini e o peito de Farhad, sujeito odioso, cujos olhos febris entregavam-se sem resistência à cegueira que o guiava para dentro do corpo de Mohsen.

― O que há entre Nayib e ti? ― perguntou Farhad. Colérico, inquiriu o sobrinho como faria o marido de uma esposa adúltera, antes de apedrejá-la, antes de atirá-la aos cães raivosos de Meshed.

Por que ele esbraveja? Por eu ter batido em um sunita de merda?, questionou-se mentalmente o rapaz. Não. Era outro o motivo para a exasperação do homem que o vilipendiava com dolorosa frequência. Vingativo Nayib. Não queria morrer sem a companhia de um inimigo que temesse de fato, sem devolver a humilhação que levara por dias estampada em sua cara.

― Olhe, escute-me, sobrinho. Encontraram um caderno no qual ele anotava em detalhes seus encontros amorosos com outro rapaz. O talibã espancou-o até que ele confessasse seu repulsivo pecado. Depois puseram uma corda em seu pescoço e enforcaram-no diante de seus familiares. Mas, antes de morrer, ele foi obrigado a revelar quem era seu amante. Ele gritou teu nome, Mohsen! Além de ti, só há mais dois homens em nossa vila assim chamados. Um deles é casado; e o outro, velho demais. Logo chegarão aqui.

Assustado, Mohsen sentiu a potência do punho de Nayib sobre seu rosto. Devolvera ele o golpe de maneira traiçoeira e irreversível. O nome de Mohsen pronunciado por uma boca condenada a silenciar de vez. Mas, antes do silêncio: Mohsen.

― Meu cunhado ― prosseguiu o tio ―, teu pai... Quando ele souber que o sodomita falou em ti, levar-te-á a um médico para que te examinem. Descobrirão que já te entregaste a um varão e depois te torturarão para que reveles outros nomes. Não posso envolver-me nisso, Mohsen. Casar-me-ei com Mitra no final do ano. Não posso ser desonrado por causa do que tu me obrigaste a fazer. Eu não tenho culpa! Como uma prostituta infante, seduziste-me! Por que te fizeste tão bonito? Desde pequenino, tão belo! Eu não tenho culpa. Bastar-me-ia nós dois, mas parece que a ti não. Se assim continuássemos, ninguém jamais descobriria. Tu tinhas que deitar com Nayib, aquele vagabundo imoral? Por que me traíste, Mohsen? Sempre cuidei de ti, ingrato. Sou teu tio, sou da família. Por que tu não permaneceste apenas meu? Agora... Agora tudo está perdido.

Mesmo que o tio recolhesse a mão suada que tapava sua boca, Mohsen jamais esclareceria que havia sido vítima de uma cilada caluniosa, de uma calculada inverdade. Assistir ao sofrimento do usurpador de sua juventude proporcionou-lhe prazer semelhante ao que Nayib experimentara ao gritar o nome de um inimigo antes de sua covarde execução.

― Tem um homem ― emendou o devoto noivo de Mitra ―, um paquistanês de Karachi, que leva para a Europa crianças e adolescentes que não podem mais viver aqui. Já acertei tudo com ele. Tens de encontrá-lo agora, pois muito em breve a sharia, a lei islâmica, chegará como uma serpente à nossa porta e enroscar-se-á em teu pescoço.

Angustiado, Mohsen quis saber como pagaria por sua fuga, por sua viagem sem retorno.

― Não te preocupes. Ele não cobrará nada. Já está habituado a ajudar jovens delinquentes por todo o Oriente Médio. Agora, segue até este endereço.

Decidido, Mohsen tomou o papel das mãos de Farhad e abandonou sua casa sem ao menos olhar para trás. A vingança de Nayib parecia ter surtido um efeito contrário, finalmente iria embora de Meshed e nunca mais teria que se submeter ao desequilíbrio de seu tio. A liberdade estava a algumas pedaladas da rua em que morava e ele a receberia das mãos de um paquistanês chamado Badar Fateh.

As mulheres lavarão meus pés com óleos e perfumarias, os homens baixarão a cabeça ao ver-me passar, tornar-me-ei o califa do velho mundo ocidental. 

Por ser encantador, por ser irresistível, Mohsen Panahi poderia ter sido alguém importante na Europa, talvez um grande ator, que falaria aos ocidentais em nome do povo muçulmano. Mas a desforra de Nayib mordeu-lhe os calcanhares antes que pudesse realizar o quimérico desejo de ter seus lábios beijados pelo estrelato.

Durante a travessia do Mar Cáspio, um menino morreu vitimado por um ataque de asma. Oito fugitivos, amontoados em um cubículo secreto no porão de um barco pesqueiro, e um cadáver. Por dias, Mohsen aspirou a morte para dentro de suas narinas já tão envenenadas pelo odor de peixe em putrefação. Sentia-se mais um dos vermes que comiam os intestinos de seu companheiro de exílio. Com a onisciência que apenas possuem aqueles que por acaso sobrevivem, Mohsen digeria em silêncio as vísceras do menino morto e ignorava todo o horror excedente. Era mister manter-se são. 

Os outros jovens traficados fugiam de chibatadas e amputações. Apenas Mohsen escapava da morte certa. Talvez por isso fosse o único que não se arrependera, o único feliz por estar ali, o único que não desejara nem por um momento ser o defunto que se desmanchava em sucos. Mohsen permanecia cativo do mesmo desejo de liberdade que a todos havia atraiçoado.

Sem cerimônias ou lágrimas, o corpo do pequeno passageiro da própria tragédia foi atirado às águas. Jamais conhecerão seu nome. Os garotos não se importaram, contentaram-se em saber que, apesar de morto, ele preservaria as mãos que a lei dos aiatolás teria decepado em público.

Em letargia, indolentes, atravessaram a Rússia, Ucrânia, Polônia e Alemanha. Durante o trajeto, por estradas toscas e de difícil acesso, chacoalharam dentro de baús fechados, escuros e sem ventilação. Quando paravam em postos de fronteira, podiam escutar as risadas de Badar Fateh, que subornava os guardas e fiscais com o dinheiro que havia comprado nove meninos.

A cada diferente sotaque e troca de veículo, outro rapaz caía morto, tísico, faminto. Apenas três chegaram vivos à França. Percorreram enclausurados a região nordeste descendo até Alsace, onde cruzaram Lorraine, retornaram por Franche-Comté, e entraram em Champagne-Ardenne.

Na região de Chaumont, foram entregues aos cuidados de um casal norueguês de aspecto gentil e delicado, o que os tornava ainda mais intimidadores e monstruosos. A eles cabia a tarefa de ensinar aos cativos algumas palavras em francês e deixá-los sadios e apresentáveis para quando fossem levados a Paris, onde a transação de Badar Fateh seria de fato concluída.

Para Mohsen, deitar naquela cama, dormir pela primeira vez em território francês, foi como sentir a carícia de uma mão delicada sobre a ferida aberta pela boca suja de Nayib. Os ossos que saltavam de sua pele acomodaram-se sob os lençóis limpos e então ele suspirou como quem chega ao paraíso após uma morte truculenta. Tudo ficará bem, Badar Fateh é um homem santo, mentiu para si mesmo e logo em seguida adormeceu em paz pela última vez em sua vida.

Meninos iranianos que ignoram as leis de Alá não valem nada em seu próprio país, mas há ocidentais que movimentam verdadeiras fortunas apenas para deitar com um deles. Em Paris, isso não é diferente. O gosto pela carne do Oriente Médio aumentara desde os atentados de onze de setembro. Políticos, clérigos, milionários excêntricos, pais de família, cidadãos modelo; enfim, homens de todo o tipo e de uma única espécie descobriram uma maneira de sustentar suas hediondas taras sem que fossem acometidos por inconveniente remorso. Estuprar um garoto muçulmano não lhes parecia crime, na verdade, acreditavam prestar um grande favor ao mundo civilizado.

Os exploradores drogavam suas prendas a fim de que não reagissem com selvageria aos bizarros caprichos da refinada clientela que frequentava a discreta casa de Alistair Becaud, onde crianças eram servidas em banquetes de pedofilia, molestadas e humilhadas por homens com os pés metidos em coturnos, correntes em volta das cinturas adiposas, chicotes em riste, de caras brancas e monstruosas.

Que veut cette horde d'esclaves, de traîtres, de rois conjurés, pour qui ces ignobles entraves, ces fers dès longtemps préparés, ces fers dès longtemps préparés, français, pour nous, ah quel outrage, quel transport il doit exciter, c'est nous qu'on ose méditer, de rendre à l'antique esclavage. Sob o efeito hipnótico do pico de heroína, Mohsen deixou-se currar incontáveis vezes por um número indefinido de cidadãos íntegros e exemplares. Durante os abusos, com suas pupilas dilatadas e voltadas para lugar nenhum, ele orava para que Badar Fateh jamais pusesse os olhos em sua irmã quando  a fim de fomentar o lucrativo mercado europeu de carne infantil ― retornasse a Meshed em busca de outros enjeitados. 

Sinto saudades tuas, Atefeh. Ainda cantas para mim as canções que inventas? Há quanto tempo estou longe de ti? Quem sou eu agora? Ainda teu irmão? Não sei, não sei.

Fugir jamais fora uma opção. Um estrangeiro sem documentos, um imigrante ilegal, sempre seria visto como uma ameaça. A quem Mohsen se queixaria de seus agressores? Quem daria ouvidos a um iraniano de dezesseis anos viciado e prostituído? Seus sequestradores eram seus proprietários, pertencia a eles tanto quanto suas gravatas Armani e anedotas xenófobas. Retornar ao Irã seria suicídio. Assim, escolhera fenecer aos poucos pelas mãos de estranhos a morrer de um único golpe pelos punhos do talibã, sob o envergonhado olhar dos seus. Também abandonara cedo o sonho de constituir família com uma mulher que amasse de verdade, pois nem mesmo a pior das mulheres mereceria ser desposada por um homem tão corrompido quanto Mohsen Panahi. Nunca teria filhos e isso o acalentava, pois não correria o risco de perdê-los para um paquistanês de sorriso fácil que traficava meninos para o inferno em troca de alguns euros emporcalhados de miséria humana.

Um ano antes de partir de Meshed, Mohsen assistiu a execução de dois rapazes que foram enforcados porque haviam feito amor. Um deles tinha menos de dezoito anos. Não, Mohsen Panahi e seus dezesseis anos de vida não seriam poupados caso ele ousasse macular o solo iraniano com seus pés que caminharam descalços sobre o barro seboso da besta inimiga. Em casa, esperavam-lhe bem mais que setenta e quatro chibatadas.

Hoje cedo, acordaram Mohsen e ordenaram que ele se vestisse como uma prostituta. Pintaram sua cara, calçaram-lhe sapatos femininos e de saltos altíssimos, puseram uma peruca de fios violáceos sobre sua enevoada cabeça e levaram-no até o quarto de Alistair Becaud.

Após entrar nos aposentos do tête e fechar a porta atrás de si, Mohsen olhou com curiosidade para o homem nu deitado sobre a cama de colchas e lençóis dourados. Não chegou a odiá-lo, há tempos havia desaprendido a sentir. Pôs uma pastilha embebida em ácido sob a língua e deixou que o divino suavemente o penetrasse e anestesiasse totalmente suas extremidades nervosas.

― Mon petit péché  disse Alistair com os braços suspensos no ar, o rosto tomado por sensuais e obtusos apetites. Mon petit péché, meu pequeno pecado.

Posto de joelhos sobre o corpo do tête, do reto de Mohsen brotou uma lâmina de cabo retrátil. Afiada, a navalha desenhou na garganta de Alistair a fonte na qual ele ainda se afoga, enquanto Mohsen assiste impassível a própria obra antes que o sujeitem a um semelhante destino.

O filme acabou. O noticiário informa que o governo do Irã produziu uma nova geração de centrífugas para aprimorar o processo de enriquecimento de urânio.

Que setas persas cruzem em brasa a escuridão do céu e beijem a face do Ocidente antes que esta porta seja derrubada, conjura Mohsen ao lembrar-se inevitavelmente de Nayib.

Teria sido minha existência mais feliz se eu houvesse me deixado enforcar ao teu lado. Tu disseste meu nome não por simplesmente me odiar, mas a fim de salvar teu namorado do intolerante cadafalso. Ah, Nayib, seu tolo. Não reclames da corda que te abraça o pescoço. Não te enganes, rapaz. Digo-te eu que, entre o desejo e o sonho, há destinos piores que o nó da forca e a própria morte.



 Emerson Braga





terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Colcha de Retalhos #5

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


VISIONÁRIOS

Os donos do mundo sabem que o petróleo derivou-se de animais e vegetação soterrados
Pensando no futuro, matam, desmatam e encobrem




LABIRINTO

Costumava dizer que estava apenas experimentando, abrindo portas
Algum tempo depois, entre tantas, já não sabia mais por qual sair




INSANIDADE

Depois de um dia cansativo, dando suor e sangue no trabalho, ele sentou-se à sua poltrona, no meio da sala. Seu filho surgiu correndo pelo corredor, saltou sobre ele e lhe deu um abraço apertado. Ele, já sem forças, retribuiu com um beijo no rosto e disse para o filho que se sentasse ao chão para que pudesse prestar atenção no jornal.
Após uma notícia, o garoto ficou curioso e perguntou:
- Mas, pai, como é que as vacas ficaram loucas?
- Elas foram alimentadas com ração que continha carne de vaca e um monte de produtos químicos, daí elas ficaram doentes e enlouqueceram.
- Então as vacas que se alimentaram de vacas são chamadas de vacas loucas?
- Sim. Isso mesmo.
- E como é que são chamadas as pessoas que se alimentam de pessoas?
Após pensar um pouco no seu dia e no estado em que estava, ele respondeu:
- Chefe, meu filho. Nós chamamos de chefe.




DESEQUILÍBRIO

Dinheiro faz o mundo girar
Até ficar tonto e cair






segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O equilíbrio que noutrem abunda

Existe algo que sempre me causou inveja e despeito: o equilíbrio alheio, enquanto outro algo me impinge raiva e autocomiseração: o desequilíbrio próprio.

Não estou falando aqui daquele controle, serenidade e moderação no campo das ideias e do diálogo. Esse tipo de discrição até que me faz companhia com certa frequência. Falta-me sempre, dia a dia — negando-me a brisa da graça até em momentos primordiais —, é o domínio corporal. Não me sustento na corda bamba nem se ela estiver apoiada ao solo! Sou frouxa desde a infância, quando vovó insistia em me chamar de Pamonha.

Minha vizinha Ester é exemplo de firmeza. Impressionante vê-la levar consigo, sozinha, os três filhos pequenos. Ela não vai de carro, não; mas de ônibus pleno, locomovendo-se com desenvoltura a qualquer hora do dia ou da noite. Os destinos são variados: da Ceilândia Sul à Rodoviária do Plano Piloto, da W3-Sul à Comercial Norte de Taguatinga, de Águas Lindas até o Gama... Coisa mais linda ela passando, desconstrangida, pela roleta da Linha 311.3: Eduardinho, ainda de colo, vai seguro ao peito; Aninha, atada à mão direita; Rianzinho, pregado à mão esquerda.

Ester e as crianças nunca se abalam com as freadas bruscas nem se desesperam quando inexistem assentos, espaldares ou barras livres para apoio. Já nasceram acostumados às ríspidas trocas de marcha, quebra-molas e freadas abruptas. É de encher os olhos o movimento harmônico da Dona Polva e seus polvinhos que deslizam ilesos pelo mar de seres espremidos na carcaça de levar e trazer! Ester consegue, sem cair: pagar a passagem ao cobrador, guardar o troco na bolsa, desvencilhar-se dos anônimos que se amontoam nos corredores, carregar a bolsa com fraldas e agasalhos das crianças, contê-las durante toda a viagem e descer na parada certa, sem esquecer nenhum filhote pra trás.

O movimento espontâneo dentro de um ônibus é digno de aplauso! Rendo-me a essas criaturas, como Ester, que simplesmente vão e vêm nas conduções lotadas, sem necessidade de escora, guincho ou reboque.

Ao contrário de Ester e de outros humanos providos de estabilidade corporal, eu não ouso carregar livros, bolsas, sacolas — nem muito menos filhos — quando ando de ônibus ou metrô. Preciso de membros sempre desocupados, disponíveis a se agarrar rapidamente a uma haste, braço de cadeira ou cintura mais próxima. Depois que passo pela roleta, peço uma acomodação digna à Nossa Senhora do Banco Vazio. Caso a Mãe não possa me atender de imediato, vou andando na insegurança, de solavanco em solavanco, na tentativa de me estabilizar de alguma forma. As oscilações se sucedem, uma queda é iminente! Ir ao trabalho de ônibus é perigo diário de morte pra mim!

Acha que é exagero de minha parte? É porque você não me conhece. Uma vez, eu levava minha primogênita no colo num ônibus de Recife. Ela tinha dois aninhos na época. O marido já estava lá no fundo do ônibus, com o carrinho do bebê. Quando me vi ali desamparada, depois de atravessar a roleta, tendo de desbravar, com a criança nos braços, interminável caminho dentro do transporte urbano, desatei a gritar: “Socorro. Eu não consigo”. O digníssimo teve de voltar e resgatar a pequena, sob olhares incrédulos e sorrisinhos disfarçados de muitos passageiros. Com presepadas desse quilate, a coragem só vai minguando, né? Espatifar-me literalmente no chão foi só uma vez, mas o quase se repete bastante.

Falei muito do autodomínio num coletivo. Mas também admiro (invejo feio) quem sabe andar de magrela, sobe e desce ladeira carregando balde na cabeça, faz estrelinha, anda elegante de sapato alto, dá cambalhota, roda pirueta, desfila de perna-de-pau, realiza todos os movimentos na aula de pilates, marca gol de bicicleta, escala montanha, namora animado em rede estreita...

O que dizer dos ginastas artísticos que dançam nas barras, executam com perfeição os encarpados e os mortais ou saltam sobre o cavalo? São deuses da força e do equilíbrio, a quem certamente devo me curvar!

Medalha de ouro aos abençoados que abundam em equilíbrio! E algum consolo, sabedoria e proteção para quem — assim como eu — precisa muito se aprumar nessa pamonha de vida.


Maria Amélia Elói





domingo, 25 de janeiro de 2015

As Incertezas de Crpt

Joaquim Bispo




Quando Crpt se religou, encontrou-se sentado na zona de acesso às partidas aéreas da cidade arqueológica de Ur. De imediato, detetou o imperativo de entregar uma mensagem impregnada na área encriptada, dirigida ao arqueólogo “Gilgamesh”. A instrução de ação era clara — “A mensagem deve chegar à Casa Branca na véspera de Natal do ano 2899” —, mas o que isso significava era um completo enigma. Por enquanto.
Tratou de consultar mentalmente a enciclopédia interna de acesso expedito. Ficou a saber que Natal era uma primitiva data religiosa, que se transformara numa festividade frívola, realizada pelo solstício de inverno do hemisfério norte, e que o significado principal de Casa Branca era o de um antigo edifício de comando mundial situado numa das zonas irradiadas na última Guerra do Petróleo. A escavação arqueológica do local iniciara-se havia uns vinte anos e era uma das mais prometedoras da Zona Oriental.
Para o esclarecimento de data tão bizarra, não havia qualquer pista. Decorria o ano 643 da era de Wu Wang e, seguindo a instrução à risca, tinha mais que tempo de a cumprir — 2256 anos e dois dias, mais precisamente. Isso era uma eternidade. Provavelmente, nem o seu corpo duraria tanto, apesar de ser fabricado com as mais dúcteis e resistentes ligas biometálicas e com tratamentos autorregeneradores. O seu trabalho quase permanente nas zonas irradiadas expunha-o a corrosões intensas. “Para quê, enviar uma mensagem com um prazo de entrega de milénios?”, perguntava-se. Havia, com certeza, um erro na data indicada. Ou, quiçá, uma charada a resolver na própria instrução de ação, que o destinatário sob pseudónimo prenunciava. Qualquer das hipóteses era pouco verosímil, dado o rigor normativo habitual das comunicações. Quando acontecia um erro, era invariavelmente da responsabilidade de um Homem.
Uma pergunta começou a dominá-lo: “o que esperaria dele o comando da Delegação de Kandahar, numa situação como esta?” Enviou um pedido mental de iluminação ao Conselho Central, mas, mais uma vez, o silêncio foi a resposta. Dantes, acreditava obter revelação, quando pedia ajuda em momentos de incerteza, mas havia muito tempo que uma ausência absoluta de sinal era a norma. Sentiu-se abandonado por um momento, mas depois reagiu, confiando no permanente controlo da Delegação, ainda que silencioso, sobre o seu livre-arbítrio.
O melhor a fazer seria entregar a mensagem, o quanto antes. Mas, interrogava-se: “por que levar uma mensagem a uma zona irradiada, proveniente de outra zona irradiada, mas com escavações apontando para épocas tão diferentes? Por que tanto enigma na instrução de entrega da mensagem?” É certo que não lhe competia questionar, mas obedecer. Devia fazê-lo, embora sentisse que, apesar do imperativo subjacente, tinha autonomia para desobedecer. Mas, se contrariasse este, podia correr o risco de fazer algo pernicioso para o Homem. E isso era o pecado máximo. Por outro lado, a mensagem saía muito da rotina, a começar por não conseguir identificar a entidade que inculcara a mensagem encriptada no seu âmago.
O seu trabalho, nos últimos meses, era transportar informação classificada entre o centro arqueológico de Ur e a Central. Já havia levado várias mensagens à capital terrestre, com resultados das escavações arqueológicas nos níveis sumérios e, uma ou outra vez, sobre os progressos da descontaminação na região. Lembrava-se de todas essas viagens, mas, desta vez, só se recordava da preparação da viagem para a Região do Meio e de se religar já na estação aérea, com instruções para se dirigir à Zona Oriental.
Obedecendo à imposição imanente, cuja origem desconhecia, estaria a servir o Conselho Central dos 21 sábios de Wuhan ou a ser usado para fins proibidos, talvez por uma entidade revoltosa? Esta última intuição do seu intelecto perturbou-o. O que menos queria era ser manipulado por entidades perniciosas para os Homens.
Pensou, computou algumas das hipóteses prováveis para a explicação da situação e decidiu-se. Não seguiria para a Zona Oriental sem ter algumas pistas sobre o teor da mensagem que transportava, ou a entidade de origem; também não iria a Kandahar revelar as suas hesitações sobre a missão de que estava incumbido; nem voltaria à escavação de Ur a queixar-se de angústia e a tentar obter respostas. A existir uma hipotética alteração da sua estrutura inconsciente, provavelmente, fora lá feita.
Como que respondendo a esta intenção de desobediência, uma angústia asfixiante invadiu-o. Olhou em volta à procura de ajuda, mas apenas ao longe divisou outras unidades cibernéticas autónomas. Com dificuldade ligou mentalmente a unidade de energia sobressalente e saiu para o exterior. O sol atingiu inúmeras das nanocélulas fotovoltaicas embebidas no revestimento, o que lhe transmitiu um novo ânimo, e a angústia desvaneceu-se.
Iria a Bagdad pedir ajuda e conselho a uma unidade cibernética de pesquisa e deteção, a única a quem alguma vez se afeiçoara, quando ela prestara serviço em Ur, uns dois anos antes. Era muito estimada na escavação e um arqueólogo Homem chegou a apaixonar-se por ela. A Delegação agiu sem demora e os amantes foram deslocados para escavações separadas. Agora, dedicava-se à descoberta, identificação e recuperação dos objetos do antigo museu de Bagdad, dispersos aquando duma invasão oriental, numa das primeiras Guerras do Petróleo, especialização com que fora entretanto impregnada.
A consciência cibernética dele proibia que lhe fizesse uma revelação integral das instruções recebidas, mas avaliou que era baixa a probabilidade de a divulgação restrita da instrução comprometer a missão. Aliás, sem ajuda, o desempenho da missão podia estar em risco. O máximo que podia acontecer — acreditava —, era reeducarem-lhe o processador central e mergulhar temporariamente na ausência de computação e mesmo de funcionamento elementar. O máximo era demasiado, mas estava disposto a sacrificar-se por um límpido serviço pelo Conselho, que por fim reconheceria os seus bons serviços e lhe devolveria a ligação.

Psqs recebeu-o com algumas manifestações de agrado, o que reconfortou Crpt. Analisaram ambos a situação deste e também Psqs estranhou a instrução que Crpt recebera. O protocolo de origem parecia regular, mas vago — Base Ur —, e os dados individualizados do emissor estavam encriptados.
Ela lembrou-se, então, de calcular a que ano da era em vigor na época das guerras do petróleo corresponderia o ano em curso. Intuição certeira: 2899. O que poderia denotar uma instrução, toda ela codificada com referências de mais de 600 anos? Seita cultora do passado? Brincadeira de técnicos cibernéticos? Casa Branca seria uma metáfora para o atual edifício das decisões mundiais em Wuhan? Por que Natal?
Psqs ficou silenciosa e introspetiva durante uns momentos. Depois, revelou que tinha acesso a um descodificador de mensagens encriptadas pelo método Ling; que se ele quisesse, podiam tentar abrir a mensagem. Entre o pecado cibernético e o perigo de estar a ser usado para trair o Conselho, Crpt optou pela transgressão.
O descodificador era adequado. Cautelosamente, começaram por aceder à identidade do emissor: “Arq. Lalit Chandra”. Ambos reconheceram o nome do vaidoso arqueólogo de Ur, especialista da civilização suméria, que denunciara o envolvimento do arqueólogo Gellert com Psqs. Dizia-se que, secretamente, realizava rituais de religiões antigas. A seguir, descodificaram a mensagem encriptada:

 “Gilgamesh”! 
Soube que foste instalado nessa base de elite, depois daquele episódio lamentável, com a nossa “amiga” cibernética. Se estás a ler esta mensagem, é sinal de que a lata eletrónica onde segue é tão arguta como eu suspeitava. Tive de criar uns enigmas na instrução, para contornar o controlo de comunicações.
“Gilgamesh”, grande amigo! “Enkidu” não te esqueceu. Como podia? Fazíamos uma equipe imbatível, coesa em todos os aspetos, que ainda hoje é lembrada em Ur. Andávamos sempre juntos, adorávamos estar juntos, por isso nos deram estes epítetos mitológicos que adotámos com gosto. Éramos tão felizes!
Não, “Gilgamesh”, “Enkidu” não te esqueceu. Nem te perdoou. Como pudeste rejeitar-me, envolver-te com… Nem sequer era uma pessoa! Não passava de uma criação de engenheiros cibernéticos, uma escavadora com mamas. Nunca aceitei a rejeição, nunca a aceitarei.
Presumo que estejas bem instalado, se calhar bem acompanhado. Eu? Chafurdo na lama mesopotâmica. Sozinho. Terrivelmente triste. Sem um carinho. Não aguento mais. Por isso te envio esta lata, com um voto de sonhos felizes. Bye!

Os amigos perceberam de imediato o que estava prestes a acontecer e só puderam abraçar-se, antes que a explosão levasse metade do edifício onde se localizava o alojamento de Psqs.
Na Delegação de controlo cibernético de Kandahar, perdeu-se, de repente, o sinal de duas unidades em Bagdad.

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77


* * *





sábado, 24 de janeiro de 2015

O BARBEIRO


Entrei desconfiado. Afinal de contas, no quesito “corte de cabelo”, o Japão sempre foi para mim uma gigantesca babel. E não somente pelas dificuldades com o idioma, mas principalmente pelos embates que tenho tido com os barbeiros nipônicos no momento de pedir o tipo de corte. Ou eles exageram, aparando demais no topo, ou não cortam o suficiente, recusando-se, por exemplo, a colocar as costeletas na medida certa. Isso sem falar nas inúmeras mãos trêmulas que destruíram meu já nada favorável visual e que, em conjunto, levaram-me à conclusão de que não há maior sofrimento para um estrangeiro no Japão que a barbearia.

De tal modo que a desconfiança citada no início do texto tinha todas as razões para existir. O que se agravou quando fui comunicado que Maria-San ― era este o nome da barbearia, não do barbeiro ― era um dos locais mais tradicionais de Quioto: o que traduzi logo como “ele não está acostumado a clientes estrangeiros, então nem pensar em falar outra língua que não a japonesa”.

Mas qual! Ao adentrar o recinto, para minha surpresa, fui recepcionado por um simpático senhor com um sonoro “good morning”, completado pela indagação com a famosa mímica da tesoura: “Cut?”. E para corresponder o esforço, respondi-lhe com o tradicional “hai” (sim, em Japonês) e, em seguida, sentei-me para entregar meus até então “maltratados cabelos” às profissionais mãos do barbeiro.

E não me arrependi. Nem do corte nem da conversa. Pois o simpático velhinho, além do talento com a tesoura, fez-me lembrar as boas barbearias do passado ― onde o dono era conhecido de todos no bairro e falava dos mais diversos assuntos, desde futebol até a vida da vizinhança. E foi justamente o futebol que possibilitou a comunicação com nosso barbeiro de Quioto. Após a pergunta inicial (Donna kuni kara kimashita? ― De que país você vem?),  ele, descobrindo que se tratava de um brasileiro, começou logo a falar sobre Copa do Mundo. E aí a decepção japonesa foi citada bem menos que os “sete a um” que tomamos dos alemães. E depois de voltar três vezes ao mesmo assunto ― sempre seguido de uma gargalhada pela derrota canarinho ―, o Sr. Yumiki ― exato: a essa altura eu também já sabia seu nome ―, pegou o espelho e perguntou-me: “Good?”. E, após o meu “Hai”, ele fez o famoso sinal do “círculo formado pelo polegar e indicador” e arrematou: Ok!

Agradeci-lhe e, saindo da barbearia, sorri de satisfação; uma vez que, indubitavelmente, Maria-San, personificada no conversador Sr. Yumiki, havia resgatado minha fé nos barbeiros japoneses.

De tal forma que, no próximo ano, de volta a Quioto, irei novamente ao Maria-San. E, do jeito que (des)anda o futebol brasileiro, regressarei à barbearia com outras divertidas histórias de nosso desempenho nos gramados para que o Sr. Yumiki e eu possamos novamente rir juntos.
  





quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

As pombas da rodoviária

Duas senhoras que aguardam a chegada do coletivo 1075 prevista para as vinte horas falam do clima, da política e da inconveniência das pombas que andam e voam rasantes perto das cabeças, das taças de café com leite e das torradas com margarina, presunto e queijo, na rodoviária. Comparam as pombas aos ratos e o efeito imediato da imagem é de contração em ambas as caras, rugas ainda mais acentuadas na testa e ao redor da boca, o nojo compartilhado. Elas têm a urgência dos que sentem saudade, uma ânsia de encontro que se deixa abalar pela impertinência das pombas, agora contando já seis, ciscando perto das sapatilhas das duas. Enxotam os bichos, batem os pés na calçada, e reclamam que a prefeitura é incompetente e não vê o absurdo, a porcalhada que é esse bando de pássaros sujos importunando as pessoas.

Naquele lugar de chegar e partir, as pombas ficam. Ficam sobre a tela de proteção logo abaixo do telhado, de madeiramento que grita manutenção, ficam ao redor dos caixas eletrônicos, entre os bancos de ferro, ficam em cima das mesas plásticas das lancherias, bicando restos de sanduíche, ficam pisando e repisando os próprios cocôs secos, ficam fazendo número e fedor, o quadro cinza e branco e esverdinhado de penas e bico. As senhoras erguem as cabeças e correm os olhos pelas paredes e instalações internas e externas do prédio, mais escandalizadas, como permitem tal infestação?

Os taxistas seguem à espera do próximo desembarque, seus carros brancos estacionados na área reservada são alvos fáceis de dejetos, o pipoqueiro e seu tapapó também, os cães deitados ao pé da lixeira idem. As duas senhoras se importam com os riscos, por todos. Faltam cinco minutos para o ônibus apontar na esquina e se dirigir ao box oito. Ainda bem, comentam com alívio. Quando a porta do veículo abrir, em algum momento o filho caçula de uma e a sobrinha de outra vão descer, reconhecer os rostos familiares, pegar suas bagagens e por fim ao difícil exercício que as senhoras fazem de suportar as pombas, a presença constrangedora das pombas. As senhoras, como a maioria esmagadora das pessoas, estão de passagem. Querem deixar logo a plataforma.

Os primeiros passageiros começam a sair e a se encaminhar ao bagageiro para buscar malas e mochilas. Os esperados saem. Há abraços, há pressa, há reclamação a respeito das pombas. Uma voz alta corta as conversas e faz as cabeças virarem em sua direção. O homem que esfarela um pão dormido e está rodeado de pombas como se ele mesmo fosse uma diz, solene:

- Bem-vindos a cidade do Rio Grande, berço do Estado, terra do vento, do peixe e do polo naval. Aproveitem as paisagens daqui, a praia do Cassino e as vagonetas, vejam o município em pleno desenvolvimento. Tenham uma boa noite! – e se vai em direção aos banheiros públicos, ajeitando a touca de lã, deixando aves por rastro. Os passageiros e seus acompanhantes dispersam imediatamente, os táxis são ocupados e dão início às corridas, o motorista se fecha no ônibus, e as senhoras se despedem ligeiras, ultrajadas com a ousadia das pombas da rodoviária.





quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A Polaquinha

Mestre da narrativa curta, quase haicais em forma de prosa, Dalton Trevisan sempre foi cobrado pelos seus leitores a aventurar-se em uma história mais longa. Dezoito livros de contos depois nascia, em 1985, A Polaquinha, novela de que narra as estripulias de uma jovem curitibana no universo do sexo.
Polaquinha, cujo verdadeiro nome nunca nos é revelado ao longo da narrativa, leva uma vida medíocre, com namorados e amantes não menos ordinários do que ela. O primeiro, um moleque asmático, o segundo um jovem imberbe com problemas de coluna trocado por um advogado mau caráter e manco que por sua vez dá lugar a um motorista de ônibus de maus bofes e desempenho na cama proporcional à sua canalhice. Todos eles, de uma forma ou de outra, usam e abusam de Polaquinha que, mergulhada em um oceano de prazeres, deixa-se levar passivamente.
A prosa é enxuta, levemente pornográfica, contudo divertida. Rimos. Às vezes um riso de compaixão por uma moça que se deixa ingenuamente enganar por tipos de homens tão baixos, mas presentes no imaginário brasileiro. Em outras ocasiões o riso é amarelo, de identificação. Quantas Polaquinhas já não foram vítimas da nossa lábia, canalhas de plantão?

Os capítulos finais do livro simbolizam de certa forma a tragicômica mesmice em que Polaquinha se meteu (trocadilho forçado), numa constante troca de parceiros em um dia comum de uma moça que decide “dar-se” para ganhar uns trocados a mais dentro de um bordel fuleiro. O texto quase que se repete, inclusive nos diálogos, a despeito da rotatividade de clientes. Polaquinha nos desperta compaixão, pero sin perder la sensualidad.





terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A época mais feliz

Mentir sempre foi uma das minhas benevolências mais praticadas com a minha mãe. Tudo o que eu como filho não poderia suportar era o lamento materno fustigado pela decomposição familiar. Quem olhava para a mesa da cozinha poderia imaginar que a miséria estava distante. Uma toalha feita com sobras de tecido era cerzida com a delicadeza daqueles dedos desgastados de D. Lucia. Nas prateleiras ao redor daquele espaço umas tábuas fixadas na parede sustentavam poucas panelas velhas e, várias latas de produtos dos quais nossas línguas nunca tinham sentido o gosto.
A infância foi cercada de imprevistos e dores – eu e meus outros quatro irmãos, nunca pudemos frenquentar o convívio social – restava apenas a escola. Que nos serviu por pouco tempo, assim que meu irmão mais velho chegou aos doze anos, precisou parar de estudar. Com isso, meu pai embestou em tirar os outros três da escola, pois acreditava que ajudando em casa seriamos mais homens. Porém, com o passar dos anos, tivemos algumas mortes, e a mais significativa foi a de S. Baltazar – nosso pai.
Nesta época eu tinha oito anos, não sabia direito nada, apenas sabia do homem rude, que maltratava a minha mãe, e aos poucos perdeu praticamente tudo o que tinha construído com trabalho em jogatinas e mulheres. As terras de Santa Helena estavam reduzidas ao espaço suficiente para a família deter a degradação sofrida.
As mentiras sempre estiveram presentes em casa – lembro de escutar meu irmão mais velho dizer que os animais da propriedade foram roubados, lógico isso inocentava o pai. Com a ausência de Baltazar fomos todos para o comércio informal – o primogênito trabalhava em uma frutaria, logo cairia em desgraça e seria assassinado após uma discussão em um bar. Os outros dois foram exercer atividades de chapas nos acostamentos – depois de alguns meses nunca mais foram vistos.
Sozinho em casa aprendi a lidar com a mentira, na tentativa de acordar todos os dias e dizer para minha mãe que a vida é perigosa, mas não viver é o pior dos perigos – por mais que com as minhas mentiras, eu fizesse parte deste ensejo.
Anos mais tarde fui ser alfabetizado, com isso poderia escrever e ler as cartas nunca escritas pelos meus irmãos. Pagava para alguém sempre colocar a correspondência no portão, o sorriso imensurável de D. Lucia ao receber a carta era o que sobrava da nossa gênese. Acabei de maneira inóspita exibindo uma felicidade corada para a família que minha mãe realmente achava ter. Apegada a imagem de uma santinha ela rezava toda a noite pelo retorno de seus filhos. Nestas horas eu sentia uma necessidade física de pegar uma faca e cravar na vida.
Nunca esqueço o dia em que vi minha mãe em um caixão sem um véu cobrindo seu rosto. Morreu com um semblante de felicidade, não parecendo que padeceu a vida toda das amarguras sofridas cotidianamente. O único que sobrou velava ao lado de outros poucos moradores antigos de Santa Helena a gratidão e a promessa de que a vida precisa ser vivida – independente de como seja.
Hoje sinto ao ver meus filhos, que a miséria da infância contornada pela toalha rala da mesa e todas aquelas latas de produtos que nunca sentimos o gosto foi a época mais feliz da minha vida, quero dizer, de nossas vidas. Herdei de minha mãe este sentimento.






Desembarque

O avião pousou com tal suavidade, que o comissário soltou um comentário típico
de um entusiasta pela própria profissão: touché. Logo ele, pensei, tão acostumado com subidas
e descidas, ainda é capaz de se encantar com um toque suave no planeta.
A partir daí, os agradecimentos de sempre, as recomendações de permanecerem sentados
até o completo estacionamento da aeronave e muito cuidado ao abrir os compartimentos de
pequenas bagagens sobre as poltronas.

Doze horas de voo acabavam. Braços espreguiçavam, bocejos se multiplicavam.
Liberados os cintos de segurança e tudo vira uma final no Maracanã lotado.
Pessoas se agitam no menor espaço, pegam suas bugigangas, catam seus pertences de mão,
maletas passam sobre cabeças que se abaixam, excusez moi, desculpe, obrigado, merci.
Perfilados, todos esperam a ordem do início da marcha.

À minha esquerda, já no corredor, uma belezura de uns vinte e poucos anos,
cabelos castanhos claros mal presos a uma piranha desalinhada, semi abraçada por uma echarpe,
bolsa à tiracolo, segura com uma das mãos a alça comprida de  uma mala de rodinhas cor de rosa,
última forma em design, suponho, mais fashion e elegante impossível.

Tem os olhos fixos no seu celular. Seus dedos da outra mão e de unhas bem feitas estão nervosos.
De esguelha, vejo que está trocando mensagens. E vejo também: subitamente seu rosto contrai,
as narinas dilatam, as sobrancelhas fortes e delineadas se enviesam, a testa lisa franze,
a boca fechada é mordida pelos dentes, e uma lágrima jorra de seus olhos verdes.

Discreta, não emite som. Percebe que eu havia percebido o momento.
Também discreto, desvio ligeiro os olhos à janelinha distante,
supostamente distraído pelas manobras do pessoal de terra em torno do avião.
Indócil curiosidade. Volto a olhar a menina com jeito de mulher - ou vice-versa -, que,
agora, leva as costas das mãos aos olhos, enxugando vestígios de uma emoção repentina.

Finjo que não vejo. Só finjo. Minhas antenas captam a criatura tão mais emocionada quanto discreta,
repetindo as contrações faciais, mordendo os lábios, suspirando baixinho, deixando o rosto molhado
e fungando o nariz tentando disfarçar soluços.

E já que o diabo da fila não anda, penso em gritar para as pessoas abrirem passagem para ela.
A moça precisa chegar antes. Penso também em perguntar se está bem, mas sei lá, estava na cara que
ela não estava bem, e o que eu poderia fazer, se é que eu poderia fazer alguma coisa? Sou péssimo nesses momentos.
Poderia soar intrometido, parecer abusado, galanteador com prazo vencido, intruso.
Penso em ajudá-la carregando sua mala design cor de rosa, mas só penso. A curiosidade incorrigível me paralisa.

A fila anda e ela segue em frente, Smartphone entre os dedos, cabelos castanhos claros desalinhados, merci, au revoir, obrigado, bon journée, até que alcança a porta do avião e seus passos aceleram aeroporto adentro.

Fila da Polícia Federal. Imensa. Vai e vem serpenteando o salão gigantesco,
fazendo as pessoas passarem tais zumbis umas pelas outras dezenas de vezes.
Claro que não tiro o olho daquela fonte inspiradora de vida, assim como ela só tira os olhos verdes do Smartphone para ajeitar a alça da bolsa, que teima em cair do ombro.

Tem um olhar evidentemente aflito, triste e cabisbaixo. Segue seu zig zag no automático, resignada pelos caprichos dos trâmites, incapazes de perceber que alguém naquela multidão está passando maus bocados, flechada por algum motivo grave e contundente.

Continuo a discreta espreita e ainda percebo uns e outros constrangidos espasmos de emoção no rosto da moça. Chorinhos súbitos, baixinhos, que vão e vem, perceptíveis apenas ao enxerido covarde curioso que sou.

Pronto. Brota um manancial para afogar o meu imaginário.
Quem deve ter morrido? "Menina, volta correndo porque seu pai está muito mal."
Claro, o celular deve ter dito coisa pior.

Pode não ser o pai. Pode ser a mãe, a avó, o avô, irmão, amigo, amiga, o namorado.
Mas por que morreria o namorado? Um acidente, talvez.
Trágico demais. Pode ter sido a notícia de uma doença de um querido,
a confirmação de uma gravidez indesejada, o que fazer com o futuro?
O que dizer à família?

Pode ter sido o fim do namoro -  o amor é a coisa mais triste quando se desfaz.
Mas súbito assim? Por uma fria web mensagem? Deve ser um mané esse cara.
Ou teria sido a melhor amiga que confirmou estar namorando exatamente o namorado mané enquanto ela vagava pelas margens do Sena?
Sena? Teria ela deixado um amor avassalador em Paris?
As lágrimas bem poderiam ser um coquetel de paixão e saudade, alimentada por um email romântico e sincero. Ái como dói uma separação. Ái como é gostoso chorar por amor correspondido.

Enquanto a fila anda a passos indolentes, observo a menina com traços de mulher -  ou vice-versa -,
se distanciando e se aproximando lentamente de onde estou, num vai e vem recorrente,
onde vão e vem infinitos pensamentos, dos mais tristes e trágicos aos mais prosaicas e bobinhos.

Chego a imaginar que seu poodle pode ter fugido de casa, ou que sua calopsita possa ter sofrido um enfarte, mas por respeito à gravidade do seu rosto, dispenso tais possibilidades.

Finalmente ela chega ao guichê muito antes de mim.
Apresenta seu passaporte atabalhoada, conversa alguma coisa com a policial, que,
suponho, lhe deseja boas vindas educadamente. Sem querer, atraso a fila para acompanhar o que se segue. Estico o pescoço o mais que posso, girafa de binóculo, vejo a criatura apressada correr em direção à alfândega.
Algo de muito sério deve ter acontecido. Não passou pela esteira de malas, não despachou bagagem maior. Passa ao largo do free shop; mais estranheza. Que motivo tão forte levaria uma mulher menina - ou vice-versa -, tão charmosa e bem cuidada a não passar pelos perfumes, cosméticos e outras delicadezas de um free shop?

Sortuda, não é parada pelos fiscais.

Lá longe de onde estou, vejo a porta do desembarque se abrir.
E a criatura aflita puxando sua malinha cor de rosa design, seu cabelo castanho claro desalinhado,
sua echarpe esvoaçante, desaparece na multidão.
Deixando um rastro de inquieto mistério, derramando infinita poesia.





domingo, 18 de janeiro de 2015

“As asas da barata são mais úteis que as da galinha”: Os dias quentes se arrastam mornos, de Sidney Summers


Os dias quentes se arrastam mornos (Coisa Edições, 2014) chegou pelo correio, enviado pelo próprio autor, Sidney Summers, e de cara me agradou. O texto presente em sua quarta capa fisga o leitor por sua rudeza e força estética: “Eu só acredito em quem sente frio. Por dentro ou por fora. Eu só acredito em quem se desespera”. É assim que o livro nos convida à leitura, para nos desesperarmos junto com ele, junto com o narrador e protagonista da maioria dos seus contos (ou serão todos?), Will Cagliostro, este personagem com nome de mafioso, habitante de alguma cidade muito quente, tão quente quanto sua vida é morna, embora nem sempre, já que ele está sempre se defrontando com situações tensas, envolvendo brigas e desentendimentos.
Solitário, Cagliostro é não apenas rabugento e boca-suja, mas aquele que parece se autorrelegar ao submundo, à vida chã das coisas mais ínfimas, ainda que conheça filosofia e muito mais. Bebe exageradamente, trabalha nos serviços mais rente ao chão, como num açougue, ou descascando batatas apodrecidas que serão utilizadas para compor pratos no restaurante degradado, degradante. Will é constantemente humilhado, mas humilha também, passa por cima de quem pode, quando pode. Não tem piedade de nada ou ninguém, nem mesmo de si. Insone, vaga pelas ruas, em busca de sabe-se lá o quê. Mas, na sujeira mais suja em que se encontra, revela um desejo de pureza, de limpar-se, que se amplifica pelas inúmeras vezes em que se vê às voltas com o combate com insetos.
Os insetos, aliás, parecem persegui-lo, vão aonde ele vai, esgueirando-se pelas paredes, escondendo-se atrás do vaso sanitário, passando por seus pés. São principalmente eles, seres repulsivos, que despertam no protagonista o ódio mais doido, a necessidade de deles se livrar, de limpar-se deles e limpar o ambiente da presença rastejante e incômoda.

Insetos, ainda, que parecem ser uma constante na obra de Sidney Summers, jovem escritor soteropolitano que tem contos publicados em diversas revistas nacionais (Ellenismos, Cruviana, Jornal Relevo, Desenredos, Cinzas no Café, Verbo 21, dentre outras) e é autor de Como os velhos cães (Coisa Edições, 2014), além de coautor de Ratos com asas (Clube de Autores, 2010), e Pão com recheio de sobras (inédito). Talvez a influência de Bukowski e seus companheiros seja ainda muito presente. Talvez a faca ainda precise passar mais em suas frases, cortando-lhe arestas indesejadas. Pode ser. Mas o fato é que este moço tem força narrativa, tem ímpeto, tem habilidade e talento para o trato com as palavras. Sua voz já foi encontrada. Agora é continuar na caminhada.





sábado, 17 de janeiro de 2015

O gosto dos dias






                              A garrafa de água fica do lado de fora, não guardo na geladeira. Gosto do gosto dos dias.

                                                         





sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Um conto madrilenho

Só alguém como ela, nascida em Las Barranquillas, sabia dar valor às acomodações que recebera na casa do Sr. Velásquez. Era grata pelo quarto, pelo emprego, pelo silêncio quase permanente do idoso, que preferia calar-se a ter que se dirigir a ela ou a qualquer outro com a voz arrastada pelo Parkinson.O quarto claro e o pequeno banheiro acoplado cheiravam a alfazema. Ali, Encarnación se lembrava com mais brandura da infância, das roubalheiras do pai, das rezas da mãe, de quem herdara a crença. Desde pequena, sentia-se atraída pelas imagens cuidadosamente limpas dos santos mantidos em um oratório de madeira carcomida. E enquanto os irmãos corriam atrás de uma bola velha, ela brincava com as figuras miúdas de gesso que lhe faziam companhia naquela vida dura.

Interrompendo as memórias, prestou atenção ao som irregular que saía da boca do Sr. Velásquez, um arquejar que ela nunca ouvira antes. Acostumada apenas aos tremores sem som que sacudiam o idoso, assustou-se com o ruído incomum. Aproximando-se dele, perguntou-lhe o que estava sentindo. Mas o homem apenas fechou os olhos, sem dizer nada. Pegando o aparelho de pressão ao lado da poltrona, colocou-o gentilmente no braço do idoso.
— 17 por 10... Muita alta. Vou ligar para o Dr. Ramirez — disse para si mesma.
Sentiu a mão do Sr. Velásquez agarrando seu braço, fazendo seu corpo tremer junto com o dele.
— Não!
— Como não? O Dr. Ramirez foi claro: se a pressão subir, eu tenho que ligar para ele.
Sem soltar-lhe o braço, o velho ergueu com dificuldade a outra mão e apontou para a televisão à sua frente. A reportagem estava no fim, mas Encarnación voltou-se a tempo de ver, na tela, a foto de um menino pequeno, com cerca de cinco anos. 

“... e se alguém tiver alguma pista do paradeiro do menino Juanito, entre em contato com uma delegacia de polícia ou com a nossa emissora.“

O Sr. Velásquez estava desolado. Os olhos marejados mostravam que havia se emocionado com o sumiço da criança. Sem perder mais tempo, ela colocou sob a língua dele um pequeno comprimido. Pouco depois, percebendo que a respiração do idoso havia se acalmado, e que ele cochilava, ligou o equipamento eletrônico de escuta que ficava no bolso dele e retirou-se para o seu quarto, levando na mão o par do aparelho de escuta. Esse fora o jeito encontrado pelo Dr. Ramirez para que ela pudesse controlar o idoso à distância, já que ele não gostava que ninguém o vigiasse de perto.  
Sentada na cama, tentou retomar a leitura do romance que começara na véspera, mas seus olhos não absorviam uma linha sequer, desobedientes. Sentiu vontade de rezar, embora aquela não fosse a hora habitual em que fazia as suas orações. Tentou mais uma vez a leitura, mas sem sucesso. Voltou, então, os olhos para o velho oratório de madeira que trouxera consigo, única lembrança da mãe. Se não leio, rezo, pensou, levantando-se sem pressa. Fez o sinal da cruz já em frente às três prateleiras abarrotadas de imagens. O que será que vocês querem uma hora dessas, hein? Então, seu olhar estacou na imagem envelhecida da Virgen Del Pilar. Surpresa, deu-se conta de que o pequeno Jesus de gesso havia desaparecido dos braços da madona. Procurou cuidadosamente a peça no oratório e, depois, por todo o quarto, sem encontrá-la. Pensou em perguntar ao Sr. Velásquez se ele havia pegado a imagem por algum motivo, mas logo percebeu que não era uma boa ideia. O velho tinha Parkinson, mas não era demente.
Voltando à sala, encontrou novamente a televisão ligada. A foto de Juan, o menino desaparecido, estava em todos os canais: “...vestindo short preto, camisa azul-claro...”. Aborrecida, repreendeu-o suavemente, mas ele não pareceu se importar. Desistiu de convencê-lo. Era seu dia de folga e ela não queria perder mais tempo. Como fazia sempre, esperou apenas pela chegada do filho do Sr. Velásquez e saiu discretamente, deixando sobre uma mesinha na sala os remédios do idoso com instruções detalhadas.
Os parques e museus madrilenhos eram a sua paixão. Escolhia sempre um deles para visitar nos dias de folga, não se importando em repetir o passeio de vez em quando. Sem família havia muitos anos, e com poucas amizades, transformava as folgas em prazer. Aquele dia tinha sido destinado ao Real Jardín Botánico, do qual jamais se cansava de apreciar as árvores bem cuidadas, os caminhos floridos e as esculturas majestosas.
Um vento forte a envolveu e a echarpe que trazia no pescoço voou, desengonçada. Parece uma pipa, pensou, olhando o pedaço de pano acinzentado no ar. Finalmente, o objeto pousou em um gramado mais à frente e ela caminhou até lá, abaixando-se para pegá-lo. Engastalhada nas franjas do pedaço de pano, seus dedos sentiram alguma coisa dura. Um segundo depois, segurava entre as mãos trêmulas a imagem do pequeno Jesus que deveria estar no colo da Virgen del Pilar, em seu quarto, na casa do Sr. Velásquez. Não pode ser, não pode ser! Sentindo-se mal, saiu do parque tonta.
Em casa, cumprimentou rapidamente o Sr. Velásquez e seu filho, surpresos por vê-la de volta tão cedo. Já em seu quarto, retirou da bolsa o pequeno Jesus, limpou-o com a ponta da echarpe e o encaixou com perfeição no colo da santa. Não bastasse o inexplicável dos acontecimentos, ela percebeu que algo mais estava errado. Chegando bem perto da figura de gesso que acabara de encontrar, apavorou-se. Diferentemente de antes, a pequena imagem vestia agora short preto e camisa azul-claro, como... como...
— Algum problema, Encarnación? — quis saber o Sr. Velásquez, que tinha vindo atrás dela em sua cadeira de rodas.
Ela hesitou. Não queria ser chamada de maluca. Mas depois decidiu que seria melhor não mentir. Sem acreditar no que ouvia, ele tentou acalmá-la.  
— Deite um pouco. Mais tarde nós vamos tentar entender esse mistério.
Mas não houve explicação. Nem naquela noite e nem nas próximas. E a rotina de silêncios, lentamente, reinstalou-se na casa.
Um mês depois do incidente, Encarnación estava mais tranquila, embora seu coração batesse acelerado a cada vez que se aproximava do oratório. Era fim de tarde e ela se levantou para rezar um pouco, como todos os dias. Empalidecendo, olhou em desespero para a Virgen de la Cabeza, que ficava na prateleira do meio. Faltava-lhe nos braços o Menino Jesus, a exemplo do que ocorrera com a Senhora do Pilar. Com a vista turva, chamou o Sr. Velásquez, sem se importar que a atitude pudesse ser considerada inconveniente. Assustado pelo tom da voz dela, o idoso veio logo, encontrando-a chorando e tremendo muito. Apontando o oratório, ela repetia:
— De novo! De novo!
Uma hora mais tarde, medicada pelo Dr. Ramirez, Encarnación sentou-se ao lado do patrão na sala, sonolenta por causa do calmante que tinha sido obrigada a tomar.
— Você devia descansar — disse-lhe o idoso.
Ela se recusou. Apenas fechou os olhos e encostou o corpo no espaldar da poltrona que ladeava a dele. Então, subitamente, abriu os olhos e perguntou, com a voz amedrontada:
— Alguma outra criança desapareceu?
Sim, mais um menino havia sumido em Madri; outra criança de cinco anos. Com medo de que Encarnación o impedisse de assistir ao noticiário, o Sr. Velásquez não lhe contara nada.
— O que o menino vestia? — ela quis saber.
— Calça azul, blusa amarela... Acho que era isso.
Sem nenhum comentário, ela deu boa-noite e recolheu-se ao seu quarto, nervosa. No dia seguinte era sua folga semanal.

                                                                ***

Encarnación amava o Museo del Prado com um amor que se costuma dedicar somente aos seres vivos. Dizia que ali havia mais vida do que em muitas casas espanholas. Mas, naquele dia, não estava conseguindo se concentrar nas obras. Sentia-se inquieta, cheia de pressentimentos. No entanto, depois de um tempo passeando pelas salas do museu sem que nada de mais acontecesse, resolveu ir embora, aliviada. Faltava visitar apenas a sua obra predileta, antes de voltar para casa. Dirigiu-se ao magnífico óleo de El Greco, El caballero de la mano en el pecho, e ergueu os olhos para a tela que sempre a comovia. Horrorizou-se. Em vez de estarem voltados para frente, os olhos do caballero miravam tristemente o chão logo abaixo da moldura. Agachando-se, pegou a pequena peça de gesso no piso em frente ao quadro: um Menino Jesus de calça azul e camisa amarela, que guardou rapidamente na bolsa.
Em casa, estranhamente calma, colocou a pequena figura de gesso nos braços da Virgen de la Cabeza. Em seguida, sentou-se na beira da cama, pensativa.
— Encarnación, Encarnación! — ouviu a voz fraca e arquejante do Sr. Velásquez pelo aparelho eletrônico. — Acharam o Juanito, acharam o coitadinho! Morto! Assassinado!
Recobrando-se da apatia, ela correu para a sala, mas a reportagem já havia acabado.
— Onde? — perguntou ansiosa ao idoso.
A hesitação do Sr. Velásquez a inquietou ainda mais.
— Onde? — insistiu.
— No Real Jardín Botánico — ele disse, por fim. — E nas mãos dele... Nas mãos dele havia uma imagem... da Virgen Del Pilar.
Antes de voltar para o quarto, pediu licença ao patrão para fazer uma ligação telefônica. Assim que desligou, ajustou o aparelho de escuta do idoso e foi deitar-se.
Na manhã seguinte, o Sr. Velásquez tossiu e arquejou bem perto do aparelho, como fazia sempre que queria chamar a atenção de Encarnación. Mas a moça não apareceu. No quarto dela, ninguém parecia ter dormido. A cama, arrumada como sempre; a cômoda, com meia dúzia de objetos; o banheiro, asseado e cheirando a alfazema. Ele já se preparava para deixar o quarto, irritado com aquele sumiço sem aviso, quando deu com os olhos no oratório. Não, não era impressão sua. Alguma coisa estava diferente. Aproximando-se o mais que pôde, olhou para o alto, para a última prateleira do móvel velho. Uma virgem que nunca estivera ali, mas que ele conhecia mais do que todas as outras, ninava em seu colo dois meninos. O de short preto dormia, sorrindo, e o de calças azuis acarinhava o rosto da Virgen de la Encarnación em silenciosa adoração.
Na sala, a televisão ligada falava de uma história urbana:

“Foi preso hoje o assassino dos meninos Juanito e Ramón. Segundo a polícia, um telefonema anônimo deu a pista do local em que poderia ser encontrado o corpo do segundo menino desaparecido. Os policiais prenderam o assassino no momento em que ele deixava os subterrâneos do Museu de El Greco, onde, lamentavelmente, havia acabado de matar o pequeno Ramón. Assim como aconteceu com Juanito, o menino tinha entre as mãos a imagem de uma madona...”