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terça-feira, 25 de novembro de 2008

Conspiração ZHAARP

"Em 2068, por todos os lugares do mundo, de um lado, sessenta famílias controlando toda a riqueza do planeta enquanto seus aparatos de poder reagem violentamente ao que chamam de desordem das massas. Do outro, milhões de pessoas invadem no mesmo instante os gabinetes corporativos e governamentais. São os braços de três bilhões de sobreviventes que se organizam mundialmente através da Grande Rede e deliberam regras para regular a desordem esgotadora de pessoas e natureza que perdurou por mais de cinco séculos."

- Não deixaremos que esta anarquia continue a assolar o mundo. - Diz um bigodudo senhor no meio da imensa mesa de sessenta lugares ocupados.

- De hoje não passará, senhor Karl Mittali. Apresento-lhes o plano que nossas corporações deverão seguir.

Todos olham ansiosos para o grande holograma que surgiu no auto da mesa. Walton Lee Rockefeller prossegue:

- Vejam esta constelação de satélites ao redor da Terra. A maioria deles estão equipados com canhões Zhaarp que disparados em direção a todas as cidades da Terra, inutilizarão todos os equipamentos eletrônicos. Será o fim da Internet e com ela todas as mobilizações que atentam contra a liberdade dos empreendimentos.

- Mas sem Internet como ficarão nossos negócios? Se voltarmos à era do papel, dos contratos através de correios, nossos lucros cessarão. Diz um gordo senhor.

- Muito simples, senhor Carl Johnson. A partir de amanhã passará a funcionar a mundial rede fotônica, única imune aos pulsos Zhaarp. Todas as nossas operações passarão a utilizá-la. Diferente da Internet baseada em eletrônicos e totalmente descontrolada, a rede fotônica (que utiliza somente raios luminosos) será centralizada e apenas os conteúdos que nos interessam trafegarão por ela. Devemos firmar agora o compromisso de que nossas Industrias nunca mais produzirão eletrônicos. Tiremos assim a ferramenta com que os baderneiros se mobilizam e retomaremos o controle do mundo, a tranqüilidade dos nossos negócios.

Todos aplaudem exultantes. Pequenos hologramas em frente de cada magnata coletam suas assinaturas biométricas. Cada corporação recebe uma parte a ser cumprida no plano. O grande holograma central se transforma em um imenso cronômetro em contagem regressiva mostrando o tempo inicial de seis horas, seis minutos e seis segundos.

(Capítulo 4 do Romance "RETORNO AO BIG BANG MICROCÓSMICO")





segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Nossa história abandonada

Lendo uma reportagem, tempos atrás, fiquei pensando como é estranho que nós, muitas vezes, simplesmente apaguemos da mente fatos marcantes do nosso passado – do nosso, mesmo, não o de nossos pais ou avós. No embalo das novas tecnologias, nem sabemos mais manusear uma máquina de escrever, sobre a qual nos debruçamos horas e horas para aprender datilografia. E com o advento do ar-condicionado, ainda saberíamos fazer um leque para espantar o calor, como nos tempos de criança?

A vida doméstica foi o que mais mudou desde os meus primeiros anos – e olhe que tenho só 33. Hoje, me parece impossível que, na infância, eu tenha bebido água puxada com balde de um poço junto de casa. Ou, mais estranho ainda, que os banhos não eram de chuveiro elétrico, mas sim de chuveiro de lata, uma espécie de balde com chuveirinho adaptado no qual despejávamos água aquecida. As torneiras só vieram bem depois. No lugar de vaso sanitário, até os meus quatro, cinco anos, usávamos os “toaletes” de madeira, construídos em cima de poços-negros. E eu adorava ir ao banheiro na casa da vovó, onde além do modelo adulto havia um para crianças...

Em vez de videogame, a brincadeira era mesmo na rua, no pátio, na mata atrás da casa do vovô, no telhado da casa vizinha, de onde passávamos o dia pulando e subindo, com a falta de medo dos pequenos. A TV também era companhia, mas os desenhos e programas pareciam Ter mais sentido. Sítio do Pica-Pau Amarelo, Clubinho Gaúcha Zero Hora... Bons sonhos eles inspiraram!

Outras brincadeiras que me fascinavam tinham, também, a ver com o passado – dessa vez, dos meus antepassados. Adorava fuçar no girau da casa do vovô Jacó, descobrindo livros e objetos antigos. E todos aqueles quadros nas paredes da velha casa em estilo enxaimel? E o grande relógio sobre duas portas fechadas, atrás das quais, segundo a vovó Leduína, se escondia o “Christkind”? Na casa dos outros avós, Guilherme e Linda, a atração era o galpão, onde estavam as quinquilharias – o baú dos bisavós e tataravós, que deu origem a várias histórias; as bijouterias antigas; as estranhas fotos mostrando noivas vestidas de negro.

Hoje nada disso existe mais. Nem as brincadeiras, nem os banheiros ou chuveiros improvisados, nem os museus de faz-de-conta, nem os avós. Até da memória eles somem, às vezes. Mas, quando lembro, dá uma saudade...





domingo, 23 de novembro de 2008

Alice por trás do espelho - Giselle Sato


Alice. Desde o nascimento, estava marcada: parto complicado, icterícia e pulmão fraco:- É uma menina, a senhora quer pegar um pouquinho?

- Não. Tô com fome. Enfermeira, eu quero comida. Entendeu?

- O bebê precisa ser amamentado. Ela é tão fraquinha, precisa de cuidados...

- Cê acha, mesmo? Dá mamadeira pra ela. Quer prá você?

- A senhora não trouxe nada pra criança vestir?

- Vocês não doam enxoval pros pobres? Pelo menos, doavam...

A menina cresceu, lenta e desajeitada. Nunca chorava e falava muito pouco. Passava os dias quieta, olhando as paredes descascadas. Dessa forma, apanhava menos que os irmãos. Eram surras diárias e sem motivo.

Foi crescendo feito bicho. Sem escola, faminta, disputando as migalhas e restos. Com treze anos, aparentava oito. A mãe não sabia quem era o pai das crianças. Quando o filho mais velho sumiu, deu graças aos céus e amaldiçoou os quatro restantes.

A mulher passava o dia inteiro na birosca. Filava uma cachacinha e oferecia o corpo gasto. Quando voltava para casa, enxotava os filhos: - Tô cansada de sustentar tantas bocas. Vão tentar a sorte no asfalto. Vão embora...

Um dia, Alice desceu a favela. Caminhou pelas ruas sem rumo. As pessoas desviavam, olhando sérias e desconfiadas. Ela não entendia. Andou a manhã inteira até chegar ao centro da cidade.

Passou por uma grande loja de brinquedos. Parou diante da vitrine, admirando as bonecas, os castelos e as fadas. Tudo era lindo e diferente. Desejou poder tocar alguma coisa, uma pequenina, apenas uma daquelas maravilhas, bastaria...

Então, viu seu reflexo. Nunca tinha parado para olhar para si. A aparência desgrenhada, roupas puídas e encardidas. Sentiu vergonha e encolheu os ombros. Procurou andar pelos cantos das calçadas. Abaixou a cabeça, lembrando a mãe chamando-a de lesada e ‘’fraca das idéias’’.

Grossos pingos começaram a cair, anunciando a chuva forte. Discretamente, catou restos de comida no lixo em frente à lanchonete. O atendente ofereceu os salgados murchos do fim do dia: - Pegue e saia daqui, o patrão não gosta que fique na frente da loja.

Comeu um pastel e guardou o resto na sacola plástica. O temporal formou rios de lama e sujeira. Os bueiros entupidos transbordavam detritos e esgoto . As pessoas comentavam que era uma enchente. Alice não entendia nada.

Foi quando viu o bando de crianças. Vinham correndo pelo meio da rua, gritando palavrões e ameaçando o povo. Quase trinta delas, aparentando, no máximo dez anos. Seguiam um garoto mais forte que parecia o líder.

Alice reconheceu o irmão desaparecido. Daniel, que a mãe colocava no sinal vendendo balas e chicletes. Alice gritou bem alto o nome do irmão : - Alice, vem com a gente, não posso parar!

- Pra onde vai?

- Por aí, está tudo inundado. Anda logo, vem...

- Não. Tenho medo.

- Vem Lice, eu te ajudo.

- Não.

- Eu volto pra te buscar. Vá pra igreja. Lá é bem alto.

Em poucos minutos, a confusão estava formada. Trabalhadores recém saídos dos escritórios tentavam entrar nos estabelecimentos abertos. A multidão, desesperada, buscava abrigo ou tentava voltar aos edifícios comerciais. Quem estava do lado de dentro, não saía nem deixava abrir as portas.

O bando desapareceu pelas vielas. A água não parava de subir e o povo acuado. Duas horas mais tarde, já não havia para onde correr. Todos disputavam o espaço nos degraus mais altos da catedral. A escadaria estava tomada por gente de todo tipo.

Alguém empurrou Alice para fora do patamar. A menina caiu na água imunda, batendo na altura do peito. Em segundos, a correnteza forte, tragou o corpinho, arrastando-o para longe... Alguns gritavam, apontando a pequena que não se debatia. Ninguém saiu do lugar, assistiram Alice sumir lentamente...

Enquanto deslizava nas águas turvas, Alice recordou a vitrine onde se viu pela primeira vez. Pensou nas coisas bonitas e viu a si mesma no meio de todas aquelas riquezas.
Rodeada de bonecas, o mundo além do reflexo...Alice por trás do espelho. Nem sentiu quando a morte apagou seus sonhos.





sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Descobertas

Marcia Szajnbok

Na primeira vez que subiu aquela escadaria, de mãos dadas com a mãe, João sentiu medo. O lugar lembrava uma casa mal-assombrada, dessas que aparecem nos filmes: pouca luminosidade, portas altas, a escada de madeira produzindo estranhos ruídos sob os pés. Depois de meses desempregada, Bete finalmente conseguira um trabalho: faxineira numa escola de música. Maestro Manfredo, o dono do conservatório, concordara com que Bete levasse consigo o filho pequeno, desde que o menino não atrapalhasse as aulas. Foi assim que João chegou ao universo da música: assustado pelos fantasmas que a velha casa evocava, pelo tal do Maestro, que imaginava ser um velho narigudo cheio de verrugas e muito bravo, e pela mãe – esta, um perigo bem real quando se zangava com ele. João tinha apenas cinco anos, e aparentava ainda menos com sua baixa estatura e magreza, as pernas finas, e os dentes grandes e brancos aparecendo demasiadamente no contraste com a pele escura.
À medida que os dias passavam, entretanto, João ia ficando mais à vontade. Descobrira um modo de passear despercebido pela escola: tirava os sapatos, andava de meias. Como todo o chão era de madeira, o garoto patinava nas tábuas largas e, assim silencioso, percorria todas as salas de aula como que invisível.
No que devia ter sido outrora um porão, havia um pequeno anfiteatro, onde os alunos tinham aulas de canto com o Maestro.
- Meninos, cantemos! O coração que canta não conhece tristeza! – era sempre com esse bordão e a batuta levantada, que ele dava início às sessões de cantoria.
Encolhido em alguma cadeira da última fila, João ouvia. Visto assim de longe, o Maestro nem parecia tão mau. Várias vezes em cada aula, ele interrompia, os alunos recomeçavam. E João ouvia. A partir de certo momento, seria capaz de cantar junto, mas só o fazia em pensamento, a voz da mãe com o indicador esticado em seu nariz, repetia-lhe na memória: - Nem um pio, entendeu bem? Nem um pio, senão você entra na piaba! João não sabia o que era uma piaba, mas pelo tom de sua mãe, não devia ser coisa boa.
No primeiro andar, havia a secretaria e duas salas de aula com carteiras e lousas. Ali os alunos aprendiam história da música, análise, folclore, teoria musical, solfejo, harmonia. Esse vocabulário iniciático tornou-se familiar para o menino. O que ele mais gostava de acompanhar eram as aulas de solfejo: as mãos ritmadas batendo nas mesinhas, a fala acompanhando o ritmo:
- La-á-Dó-Lá-Si-í-Dó-Ré-Si-Sol... João repetia mentalmente essa linguagem estranha e monossilábica. Mesmo sem ter nenhuma idéia do significado daquele amontoado de sons, achava bonito o grupo todo declamando aquela ladainha em uníssono.
No entanto, o melhor estava no andar de cima. Era preciso vencer a escadaria rangente, mas sempre valia à pena. Eram três salas, duas menores e uma grande, onde aconteciam as aulas de instrumentos: violão, violino, violoncelo, flauta e piano. Na sala maior, João encontrou um tesouro.
Certa vez viu a porta aberta, ninguém lá dentro, e entrou. Achou curioso que, numa sala tão ampla, houvesse um só móvel no centro. Ele era engraçado. Enxergou ali uma cabeça disforme: a boca ampla, dentes brancos e pretos num sorriso estático, a parte de trás com um formato irregular, como um crânio com a tampa aberta. Não resistiu. Puxou para perto daquela abertura o banco que ficava diante da boca, e espiou lá para dentro. Várias tramas de fios sobrepostos uns aos outros, pinos metálicos, tiras de feltro vermelho recobrindo pedaços de madeira de diferentes formatos. Era um quebra-cabeças incompreensível.
Ouviu vozes no corredor e passos que se aproximavam. Apavorado, João correu a se esconder atrás da cortina de uma das janelas. Respirava devagar para que ninguém notasse sua presença. E então, ouviu. Era um som límpido, suave, um som que parecia falar-lhe, lindo. Pôs um só olho para fora e viu que, diante do móvel estranho, uma menina mexia na grande boca aberta e, a seu lado, uma senhora lhe corrigia os erros. No final da aula, a professora indagou à aluna, se tinha gostado de tocar num piano de cauda. Era isso, então! Um piano de cauda!
Depois que elas saíram, João se aproximou novamente. Encheu-se de coragem, e encostou um dedinho numa das teclas. Bem de leve e tão devagar, que não se produziu nenhum som. Desde então, sempre que podia, o garoto se punha em seu esconderijo atrás da cortina e acompanhava as aulas no piano de cauda. Do mesmo modo que acompanhava o solfejo e o canto orfeônico, aqui também ia aprendendo as músicas pela repetição. A diferença é que o piano não cantava, e por isso foi desenvolvendo um tipo de memória diferente, puramente musical, a seqüência melódica sem palavras, desvinculada de significados. E quando se via sozinho na sala, chegava perto e acariciava as teclas, maravilhado.
Um dia, inadvertidamente, apertou uma das teclas com mais força do que o habitual. O som produzido assustou-o, e não pôde conter uma gargalhada. Mas, cativado, repetiu o toque. O que ouviu lhe soou de algum modo familiar. Tateando, foi apertando outras teclas, até que obteve um par, e os dois sons em seqüência evocaram um trecho melódico. A partir daí, esqueceu a regra materna do nenhum - pio e despreocupou-se completamente. Depois do par, achou o terceiro som, e depois o quarto, e assim sucessivamente ia recompondo, por tentativa e erro, um pedaço de melodia muitas vezes ouvida na clandestinidade de seu posto atrás da cortina. Por instantes, o mundo se resumiu àquela sala: o menino, o piano, a música. Como se, para lá das paredes, nada mais existisse. Por estar assim, tão absorto, demorou um pouco para compreender que vinha da porta da sala a voz que lhe interrogava:
- O senhor pode me explicar o que é que está fazendo aí?
João, paralisado, não conseguia responder. Parado na soleira, as mãos postas na cintura e o cenho caricatamente franzido, estava o temido Maestro.
- Toque de novo, pediu ao menino. A música que você estava dedilhando, toque de novo.
João tocou, apesar do tremor que lhe agitava a mão. Sem saber o nome das notas que apertava, repetiu a seqüência: Dó-Ré-Mi-Fa-Re-Mi-Do-Sol. E parou. Maestro Manfredo, então, segurou gentilmente o indicador do garoto e guiou-o até a próxima nota da série, outro Dó, uma oitava acima. Olharam-se nos olhos, o menino esboçou um sorriso tímido, e encontrou a continuação da melodia: Si-Dó-Ré-Sol-Lá-Si-Dó-Lá-Si-Sol-Ré... E as horas foram passando. João aprendeu que o banco podia subir até que estivesse numa altura confortável, que aqueles sons se chamavam notas, que cada uma tinha o seu nome, e que poderia apertar cada nota com um dos dedos, fazendo a mão deslizar ao invés de pular sobre o teclado. E descobriu, principalmente, que Maestro Manfredo não era um velho cheio de verrugas e muito bravo, e sim um professor paciente que, acima de tudo, divertia-se muito ensinando crianças.
- Você sabe como se chama essa música que estamos tocando? perguntou-lhe às tantas o Maestro. João não sabia. Achou muito estranho quando lhe foi dito que aquela era uma Invenção a Duas Vozes. Como se lesse seus pensamentos, Maestro Manfredo completou: - É claro que todas as músicas são invenções de alguém... mas esta aqui faz parte de uma coleção de invenções bem difíceis de se inventar! E os dois riram muito.
As lições se repetiram por algum tempo, mas João não se tornou concertista. Seu estudo de piano terminou quando a mãe conseguiu outro emprego, dois anos depois. Ao se despedir do Maestro, ele abriu uma gaveta cheia de partituras antigas. Remexeu, procurou, até que tirou de lá umas folhinhas amareladas, cheirando a guardado, onde estava escrito “Johann Sebastian Bach: Inventio 1 C-Dur BWV 772”. Preparando-se para fazer uma dedicatória, perguntou ao garoto:
- Como é mesmo seu nome todo? João... ?
- João Sebastião Ribeiro, respondeu o menino.
Maestro Manfredo, então, abraçou-o afetuosamente e abriu um sorriso largo, que João nunca tinha visto naquele rosto. Seu significado, só compreendeu muitos anos depois. Mas, aquela imagem e o calor daquele abraço guardou para sempre, bem junto com a partitura, a dedicatória, e o amor pela música, sobretudo pela música de Bach.





quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Gosto Refinado

por Pedro Faria

Eu sempre tive uma fantasia com as pernas dela. Não com os seios, com a boca ou com a bunda.
Além do mais, era sempre o mesmo sonho: O facão, o sangue, o pote de molho barbecue...
Fico duro só de pensar.
Acordei ontem de manhã depois da, não sei, milésima vez que sonhei com aquelas pernas grossas dela. Tinha sujado meus lençóis, e decidi que não agüentava mais. Esperei chegar a noite (só a antecipação me obrigou “liberar a tensão” cinco vezes durante o dia), pus uma toca preta, peguei o facão que guardo com minhas ferramentas no galpão e marchei até a casa dela.
Todas as luzes estavam apagadas, menos a do quarto dela no segundo andar. Subi na árvore e abri a janela do outro quarto.
Entrei, e assim que saí para o corredor, ouvi um grito vindo de seu quarto.
Congelei de medo, porém sabia que não tinha como ela ter me visto, e, além disso, eu não tinha feito nenhum barulho.
Eu sabia que se desistisse agora, eu nunca ficaria livre dos sonhos.
Então me dirigi de encontro ao som.
Com o ouvido encostado na porta, eu consegui ouvi-la, berrando e chorando, e gritando com uma voz mais aguda do que eu pensei ser possível para um ser humano.
Assustado, chutei a porta com força suficiente para arrancá-la das dobradiças, e o que eu vi, eu nunca esquecerei enquanto viver:
Ela estava deitada na cama, o choro interrompido, substituído por um olhar que era misto de dor e surpresa.
Havia um homem de pé ao lado dela, um homem que eu reconheci como sendo um vizinho nosso em comum. Ele segurava com as duas mãos a perna esquerda dela, decepada na altura da cintura, um machado sangrento deitado no tapete junto à cama. Ele a tinha lambuzado com algo, e estava arrancando com os dentes, grandes pedaços da parte carnuda da coxa.
A situação seria cômica; e de fato foi, por alguns segundos, nós três nos olhando com expressões de surpresa estampadas em nossos rostos, nossos olhos arregalados. Até que os gritos dela voltaram, lavando a graça embora.
Uma expressão de fúria tomou conta de minha face, e eu o encurralei, meu facão em seu pescoço.
“Mas o que é isso?”, gritei.
Seu olhar era o de um homem morto.
“Você está usando mostarda?!”
E nós dois caímos na risada.





Dezessete

por Pedro Faria

Ele precisava dar uma volta.

Saiu de casa com o passo apressado, e subiu no primeiro ônibus que parou.

Queria matar, destruir. Estava irritado com tudo. Achava que se alguém o olhasse nos olhos naquele momento, ele partiria para cima para brigar.

Com a intenção de se acalmar, ele fechou os olhos e tentou se lembrar de coisas boas. Porém, em cada imagem que lhe aparecia estava ela, e isso o fazia fechar com mais força seus punhos, até que suas unhas mal aparadas lhe cortassem superficialmente a pele áspera das mãos.

Para ele, ela havia morrido. Ele cansara de despejar seu carinho e amor sobre ela, e não obter nada em retorno. Ele queria apenas o amor dela, um tom de satisfação na voz dela quando conversassem. Um pingo de felicidade, de carinho, em seus olhos, quando ela o visse.

Ele queria se sentir desejado. E com ela, nunca tinha conseguido.

O ônibus seguia seu caminho enquanto ele olhava para fora: As pessoas, que não passavam de borrões para ele, cuja existência não lhe acrescentava em nada. Ele sentia ódio por elas, um ódio que vem do ciúme, da inveja, da vaidade. Ele precisava machucar alguém, ferir uma pessoa, fazê-la sentir como ele se sentia.

O que lhe despertou para a realidade foi a gota de sangue no assento a seu lado.

Ele balançou a cabeça. Tinha saído de casa justamente para esfriar a cabeça, para deixar a violência contida dentro de seu quarto, numa bolha. Mas ao que parecia, a bolha o havia seguido, e grudara em seu coração.

Puxou a cordinha, e saltou no ponto. Colocou as mãos nos bolsos da jaqueta e olhou ao redor.

Não conseguiu conter uma risada ao ver onde estava.

Tinha pegado justamente o único ônibus que lhe deixava à porta da casa dela e, como o bordão de alguma piada cósmica sem graça, era lá onde havia saltado.

Naquele momento, ele não conseguiu mais se segurar. A bolha de raiva tremia em seu peito, sua respiração tinha acelerado.

Ele marchou até a casa dela. Bateu vigorosamente na porta.

Quando ela abriu a porta, ele achou que iria desmaiar. Era esse o efeito que ela fazia sobre ele: Perto dela, ele não era nada, era como um fragmento de um gigantesco cenário construído para a diversão dela, no qual ela era o centro de todas as ações, e todos os diálogos eram sobre ela.

O olhar dela quando o viu foi de confusão. Isso não foi o bastante para detê-lo.

Ele investiu para ela, fazendo-a cair sentada numa poltrona.

Ela começou a gritar.

Após fechar a porta, ele se aproximou dela.

“Não, agora você vai ficar sentada aí e me ouvir! Eu fiz tudo para você, tudo mesmo. Ouvi seus lamentos, tratei de suas feridas, enxuguei suas lágrimas. E você, nada!”

Ele estava errático. Seus olhos desfocados, como se estivesse drogado.

Ela tentou se levantar e fugir, mas ele a segurou de bruços na poltrona.

“Eu vou fazer o que tenho que fazer. Eu vim fazer a cobrança”.

Havia uma estante atrás da poltrona. Ele puxou seu cinto e prendeu as mãos acima da cabeça, amarrando o cinto na estante.

Com seu joelho nas costas dela, ele tirou suas calças e a cueca. Toda aquela briga o havia deixado excitado.

Arrancou a bermuda dela, e a calcinha. As nádegas dela estavam quentes, e ela chorava.

Ele queria que ela não gostasse.

Enfiou as mãos entre as pernas dela. Ela chutava e gritava.

Ele ignorou a vagina dela. Não, ali seria fácil demais.

Então ele a penetrou no orifício entre suas nádegas, de uma vez só. O grito dela foi horrível.

Com as duas mãos pressionando o corpo dela contra a poltrona, ele começou o vai e vem dentro dela. Ela chorava, implorava para que parasse, mas ele não se importava. Estava adorando aquilo. Estava finalmente tomando o que sabia ser seu de direito.

Sangue pingava no chão.

A posição estava ficando desconfortável para ele. Então, ele a segurou por baixo, para levantar seu corpo na poltrona.

Quando a mão dele tocou no meio das coxas dela, uma surpresa: Ela estava encharcada, seu mel lambuzando os dedos dele.

A puta estava gostando!

Esquecendo qualquer desconforto que pudesse estar sentindo, ele continuou mais forte.

Aí, ela riu.

Ele parou. A risada dela não era apenas fora de lugar, era horrível. Seu sangue congelou.

É só isso? Vamos, mais forte! Vamos lá! Vai me dizer que já entrou tudo? É só isso mesmo?

Você me enoja! Precisa me pegar desprevenida, me amarrar, para fazer o que não teria coragem. Você é um fraco.

Mais! Você começou agora você vai terminar.

Mais forte! Mais, mais!”

Ele continuou se movendo, a risada dela ecoando em sua mente, suas palavras flutuando pela sala, ditas com uma voz gutural, que não era a dela.

Seu suor escorria sobre o corpo dela, e ele achava que ia desmaiar. Notou que estava muito fácil penetrá-la. Mesmo que o corpo dela tivesse se ajustado, estava muito fácil.

Olhou para baixo, e gritou.

As nádegas dele lhe envolviam a barriga. Ele estava entrando nela, como ele sempre quis. Estava se tornando parte dela, para sempre. Achou que deveria estar feliz.

Mas não estava. A única coisa que sentia era um medo paralisante.

Isso, agora sim, mais forte! Somos apenas eu e você agora, amor.”

Ele gritou, e algo o atingiu no rosto.

Olhando bem, ele viu que era o chão. Estava caído em seu quarto, o suor do pesadelo lhe ensopava a camisa.

Esfregando o rosto, ele se levantou. As imagens do sonho iam e vinham em sua mente, e ele estava tonto com a queda. A última coisa que lembrava era de ter ido deitar com raiva.

Aí ele se lembrou dela, e deu um soco na parede.

Estava cansado dela em sua cabeça.

Levantou-se. Daria um passeio.

Isso o acalmaria.

Sim.

Uma caminhada. Talvez uma volta num ônibus.

E tudo ficaria bem.





terça-feira, 18 de novembro de 2008

Crônica: Erótico ou Pornográfico- Eis a questão- Giselle Sato


O próximo SAMIZDAT especial, apresentará o tema erótico. Quando o assunto é sexo, alguns termos são associados automaticamente.

Pornografia e erotismo surgem como correntes antagônicas. Para entender, montei um mosaico e com muito cuidado, tentei encaixar as peças. O assunto é delicado, fascinante e polêmico.

Pornografia tem origem grega, significa inscrita da prostituição. Atualmente é a representação, por quaisquer meios, destinada a instigar a libido. O aspecto moral é bastante pesado. Está associada, aos maiores problemas sociais do mundo moderno.
Crimes contra menores, estímulo de violência e abusos sexuais. Neste ponto, fica bem claro a diferença moral e legal das duas vertentes.

Porém, ao falar de erotismo as coisas mudam. Usamos um tom mais brando, sofisticado e com ares de superioridade. Erotismo é referente a amor, paixão e desejo ardente. Prazer pelo prazer.

Apesar da intensidade, é associado a um conceito suave e permissivo. No mundo das artes, a linha entre pornografia e erotismo é muito tênue. Como diferenciar a pornografia e o erotismo?

Paixão, amor e desejo. A necessidade fundamental de algum contato. O erotismo sugere a presença, ainda que virtual de compartilhar o prazer. Mesmo em pensamento, não foge da idéia de registrar um parceiro.

Há textos conceituando essas duas palavras à participação ativa. Como se na pornografia, o estímulo à participação fosse direto e de forma objetiva. No erótico esse convite é subliminar, o que condiz com o conceito de que o pornográfico expõe e o erótico faz desejar.

A literatura erótica traduz a inspiração em forma de desejo. O sexo está inserido na narrativa, podendo ou não ser o assunto principal. A imaginação em possibilidades múltiplas, conduz ao mundo íntimo. Velado, oculto e silencioso.

O que não ocorre nos textos pornográficos. O contexto deste tipo de leitura é o sexo explícito. Sem a menor preocupação em ser vulgar ou obsceno. É cru, realista e sem meio-termo. Tem urgência e o ‘tesão’’ é imediato!

O erotismo é algo que pode não ser pornográfico, porém a pornografia é necessariamente erótica. Temos outro ponto que ainda hoje, e por muito tempo, tornará esses conceitos nebulosos e pessoais. O que define o que é erótico: quem o produz ou quem observa?

Definitivamente, erotismo e pornografia caminham lado a lado. Estão presentes em nossas vidas, entram em nossas casas através dos canais de comunicação. São usados em propagandas, mexem com o imaginário e estão disponíveis.
Sem hipocrisia e falsos moralismos, acredito que somos responsáveis por nossas escolhas. E limites.





Crónica: A vida continua

Joaquim Bispo



Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de «palacetes» e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitectura que, ao longo dos tempos, tem reflectido a arquitectura dos vivos. E melhor preservada que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros.
Vêem-se jazigos de todos os estilos: neo-gótico, neo-manuelino, neo-clássico, casa portuguesa. Uns, imponentes, a reflectir a importância do defunto em vida, outros, discretos, a exaltar a humildade devida ao novo estado. Alguns são autênticas esculturas arquitecturais. É nos cemitérios, também, que existe, talvez, a maior concentração de escultura por hectare. Alguma, de grande qualidade. Além de chorosos anjos, escondendo a face, encontram-se, também, muitas alegorias da dor e da perda, adequadamente acompanhadas de fustes de colunas partidos ou troncos de árvore decepados precocemente. Lápides verticais ostentam delicados rendilhados florais em alto-relevo ou símbolos adequados à profissão e ao estatuto do finado.
Uma deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de certeza, mais tranquilizante e culturalmente mais estimulante que um passeio por muitos dos jardins da cidade.

Estes cemitérios têm ritmos próprios. Cada talhão de enterramento passa por uma fase de alvoroço, de abertura de covas e montões de coroas de flores, que progride, durante umas poucos semanas ou meses, em linhas paralelas ao longo do talhão. Aos poucos, as linhas revoltas vão evoluindo para um aspecto arrumado, pincelado de lajes de mármore e floreiras multicoloridas. Chega um momento em que todo o talhão se arrumou e mantém um aspecto muito estável durante cinco anos, com os mármores alinhados, entremeados por um ou outro monte de terra dos defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com uma ou outra placa de mármore com inscrições do tipo: «Grand-maman – Je ne t’oublierais jamais».
Muitas vezes, esses talhões, de meio hectare de área, estão circunscritos por um muro quadrilátero de gavetas de cimento embutidas nas quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo apenas os ossos lavados e desinfectados dos corpos que tenham atingido o estado necessário ao levantamento.

Estar sozinho num desses talhões a observar a extensão florida agitada pela aragem e a ouvir o concerto da vibração das centenas de pequenas floreiras metálicas, faz-nos sentir num universo distinto do nosso. São várzeas artificiais, «prados» de flores naturais de caules cortados, e de flores de plástico, inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores que nem a Natureza produz.
Depois, passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser escalavrados pelos levantamentos avulsos, que deixam uma paisagem desoladora semeada de crateras rectangulares por entre as campas intactas cujos ocupantes se atrasaram a atingir a decomposição total. Passado algum tempo, tudo recomeça e o talhão recobra a «vida» florida – se de vida podemos falar –, para mais um ciclo de enterramentos.

Aos Domingos, os ciganos instalam-se todo o dia no cemitério a honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde está o caixão do familiar falecido e o chão do passeio por baixo da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta aberta com várias fotografias do defunto expostas e jarrinhas de flores sobre naperons brancos.
Os outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto o inexorável apagamento da dor que a passagem do tempo provoca. As floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico que «duram mais tempo». Mesmo essas são, às vezes, levadas pelo vento. No fim do Verão, a maioria das floreiras está vazia.

Perto do Dia de Finados – 2 de Novembro –, os cemitérios enchem-se, numa romaria de mãos carregadas de flores. Cumpre-se a «obrigação» e o ritual. Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, é possível ouvir pelas alamedas:
– Anda cá, o 1622 deve ser para aqui!
– O João não disse onde é? Ele já cá veio uma vez!
– Sim, mas já foi há muito tempo!
Há pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas. Nessa ocasião, são sobretudo os muros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época.
Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: «O tempo passa – A saudade aumenta». Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmente. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor do primeiro dia; ninguém conseguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.





segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A Festa de São Simão Esgaratujo

Ricardo Palma
Trad.: Henry Alfred Bugalho

Faustino Guerra cumpria a condição de soldado raso durante a batalha de Ayacucho. Assegurada a independência, obteve licença definitiva e recolheu-se à província de seu nascimento, onde conseguiu ser nomeado professor da escola do vilarejo de Lampa.

Certamente, o bom Faustino não era um homem de letras; mas para desempenhar seu cargo e deixar os pais de família contentes, bastava-lhe saber ler medianamente, ter uma caligrafia regular e ensinar de cor a doutrina cristã aos meninos.

A escola estava situada na rua Ancha, numa casa que, na época, era propriedade do Estado e que hoje pertence à família Montesinos.

Contra o costume geral dos mestres daqueles tempos, Seu Faustino pouco utilizava o látego, o que fez com que fosse batizado com o apelido de São Simão Esgaratujo. Ele o ostentava mais como um sinal de autoridade do que como instrumento de castigo, e era necessário que a falta cometida fosse muito grave para que o professor aplicasse um par de açoitadas, do tipo que nem tira sangue, nem deixa roxo.

Em 28 de outubro de 1826, dia de São Simão e Judas para ser mais exato, grandes festejos foram celebrados nas principais cidades do Peru. As autoridades estavam empenhadas e mandaram oficialmente que o povo se alegrasse. Bolívar estava, então, em todo seu apogeu, mesmo que seus planos de vitaliciedade começassem a eliminar o afeto dos bons peruanos.

Apenas em Lampa não houve manifestação alguma de regozijo. Para os lampeanos este foi um dia de trabalho, como qualquer outro do ano, e os meninos foram, como de costume, à escola.

Já havia passado do meio-dia quando Seu Fastino mandou fechar a porta pra rua, dirigiu-se ao curral da casa, fê-los ficar em fila e, chamando dois índios robustos que lhe serviam, ordenou-lhes que agarrassem os meninos. Do primeiro ao último, todos levaram uma dezena de chicotadas, com as bermudas arriadas, aplicadas pela mão do professor.

A gritaria foi ensurdecedora e houve pranto coletivo por mais de hora.

Quando chegou o momento de fechar a escola e mandar os meninos para a casa de seus pais, disse-lhes Seu Faustino:

— Falem, pícaros godos, como vocês contarão o que acabou de acontecer! Coureio vivo ao primeiro que eu descobrir que saiu a me caluniar.

“Terá ficado louco?", perguntavam-se os pequenos; mas não contaram a suas famílias o ocorrido, se bem que as escoriações das chibatadas os haviam deixado acabrunhados.

— Que bicho mordeu o professor, que era tão manso de temperamento, para distribuir tão furioso açoitamento? Já descobriremos.

No dia seguinte, os meninos chegaram à escola, não sem recear que a sessão se repetisse. Por fim, Seu Faustino fez sinal que iria falar.

— Meus filhos — ele lhes disse — tenho certeza de que se recordam do rigor com que os tratei ontem, contra meu hábito. Tranqüilizem-se, que só faço estas coisas uma vez por ano. E vocês sabem por quê? Sinceramente, filhos, digam-me se souberem.

— Não, senhor professor — responderam em coro os meninos.

— Pois vocês hão de saber que ontem foi o dia do santo do libertador da pátria, e não tendo nenhuma outra maneira para festejar isto, já que os lampeanos têm sido tão ingratos para com aquele que os tornou gente, eu recorri ao chicote. Assim, enquanto vocês viverem, terão gravado na memória a lembrança do dia de São Simão. Agora estudem sua lição e viva a pátria!

E a verdade é que os poucos que ainda vivem daquele grupo de meninos se reúnem em Lampa em 28 de outubro e celebram com um banquete, no qual brindam por Bolívar, por Seu Faustino Guerra e por São Simão Esgaratujo, o mais milagroso dos santos em matéria de refrescar a memória e esquentar as partes posteriores.

(1871)
Fonte: Tradições Peruanas, http://www.cervantesvirtual.com/


Biografia
Ricardo Palma era filho de Pedro Palma Castañeda e de dona Guillermina Soriano Carrillo; neto paterno de Juan de Dios Palma e de Manuela Castañeda. Nasceu em Lima em 7 de fevereiro de 1833. Desde jovem teve envolvimento com a política junto a ala dos liberais, a qual o incitou a participar em um malfadado levante contra o presidente Ramón Castilla, que levou a seu desterro ao Chile por três anos. A política o conduziu aos cargos de cônsul do Peru, senador por Loreto e funcionário do Ministério de Guerra e Marinha. Mas foi nas Letras a atividade em que se destacou. Desde jovem começou a escrever poesias e peças teatrais, inclusive a realizar colaborações em jornais do país. Teve grande presença na imprensa satírica, na qual foi um prolífico colunista e um dos baluartes da sátira política peruana do século XIX. Começou colaborando na folha satírica El Burro, para ser posteriormente um dos principais redatores de La Campana. Mais adiante, fundou a revista La Broma.

Também foi um colaborador assíduo de publicações sérias como El Mercurio, El Correo, La Patria, El Liberal, Revista del Pacífico e Revista de Sud América. Também atuou com correspondente de periódicos estrangeiros durante a Guerra do Pacífico.

Em 1872, foi publicada a primeira série de sua principal obra: "Tradições Peruana".

Ao longo de sua vida, publicou artigos históricos, trabalhos de investigação como Anais da Inquisição de Lima e inclusive estudos lexicográficos sobre a variedade peruana do espanhol.
O êxito conquistado por suas Tradições e sua incansável capacidade intelectual o converteram em uma figura reconhecida em vida, não apenas em seu país, como em todo o mundo hispanófono, que o acolhe como um dos escritores clássicos de prosa mais acessível do continente americano. Foi membro correspondente de La Real Academia Española, La Real Academia de la Historia e de la Academia Peruana de la Lengua, assim como membro honorário da Hispanic Society de Nova York. Em 1881, participou da defesa de Miraflores durante a batalha de Miraflores de 15 de janeiros de 1881, no Forte Nº 2, sob o comando do coronel Ramón Ribeyro, quando as tropas invasoras incendiaram a cidade, incluindo sua casa. Em 1883, foi nomeado diretor e restaurador da Biblioteca Nacional do Peru.

Casou-se com Cristina Roman Olivier, com quem teve vários filhos. Seu filho, Clemente Palma, foi um escritor de destaque, autor de contos fantásticos, geralmente de terror, sob influência de Edgar Allan Poe, e sua filha, Angélica Palma, foi uma das fundadoras do movimento feminista peruano. Morreu no distrito limenho de Miraflores, em 1919.





O Conde Lucanor


Don Juan Manuel
Trad.: Henry Alfred Bugalho

Conto VII

O que aconteceu a uma mulher chamada senhora Truhana 


Certa vez, Conde Lucanor conversava com Patronio deste modo:

— Patronio, um homem me propôs algo e também me disse a forma como consegui-lo. Assegurou que tem tantas vantagens que, se com a ajuda de Deus tudo ocorrer bem, seria para mim de grande utilidade e proveito, pois os benefícios se unem uns aos outros, de tal forma que, no final, seriam muito grandes.

Então, contou a Patronio tudo que sabia. Após ouvi-lo, Patronio respondeu o conde:

— Senhor Conde Lucanor, sempre ouvi dizer que o prudente se atém às realidades e desdenha as fantasias, pois muitas vezes a quem vive destas costuma ocorrer o mesmo que se sucedeu à senhora Truhana.

O conde perguntou o que havia acontecido a ela.

— Senhor conde, disse Patronio, havia uma mulher que se chamava senhora Truhana, que era mais pobre do que rica, e que, indo um dia ao mercado, levava um jarro de mel sobre a cabeça. Enquanto seguia pelo caminho, começou a pensar que venderia o mel e que, com o que lhe dessem, compraria um bocado de ovos, dos quais nasceriam galinhas e que logo, com o dinheiro que lhe dessem pelas galinhas, compraria ovelhas, e assim iria comprando e vendendo, sempre com lucro, até que se visse mais rica do que todas as suas vizinhas.

Logo pensou que, sendo tão rica, poderia arranjar um bom casamento a seus filhos e filhas, e que iria acompanhada pela rua por genros e noras, e pensou também que todos comentariam sua boa sorte, pois havia conseguido tantos bens, mesmo que houvesse nascido muito pobre.

Assim, pensando nisto, começou a rir com muita alegria por causa de sua boa sorte, e rindo, rindo, deu um tapinha na própria testa, o jarro caiu no chão e se rompeu em mil pedaços. Senhora Truhana, quando viu o jarro quebrado e o mel derramado pelo chão, começou a chorar e a se lamentar amargamente, porque havia perdido todas as riquezas que esperava obter com o jarro, se este não houvesse se quebrado. Assim, porque pôs toda sua confiança em fantasias, não pôde fazer nada do que tanto esperava e desejava.

Se quereis, senhor conde, aquilo que dizeis e pensais sejam realidade algum dia, procura sempre que se tratem de coisas razoáveis e não fantasias, ou imaginações duvidosas e vãs. E quando quiserdes iniciar algum negócio, não arrisqueis algo mui caro, cuja perda vos possa causar desgosto, com o intuito de obter um proveito baseado apenas na imaginação.

O que Patronio contou agradou muito o conde, que agiu de acordo com a história e, assim, se saiu muito bem.

E como Don Juan gostou deste conto, escreveu-o neste livro e compôs estes versos:

Em realidades certas podeis confiar,
Mas das fantasias deveis vos afastar,

***

Conto XIII

O que aconteceu a um homem que caçava perdizes 


Outra vez, o Conde Lucanor conversava com Patronio, seu conselheiro, e lhe disse:

— Patronio, alguns nobres muito poderosos e outros nem tanto, às vezes, causam danos a minhas terras ou a meus vassalos, mas, quando nos encontramos, eles me pedem desculpas, dizendo-me que fizeram-no obrigados pela necessidade, muito a contragosto e sem poderem evitar. Como eu gostaria de saber o que devo fazer em tais circunstâncias, suplico-vos que me deis vossa opinião sobre este assunto.

— Senhor Conde Lucarno, disse Patronio, o que haveis me contado, e sobre o qual me pedis conselho, parece-se muito com o que ocorreu a um homem que caçava perdizes.

O conde lhe pediu que contasse a história.

— Senhor conde, disse Patronio, havia um homem que estendeu suas redes para caçar perdizes e, quando já apanhado bastantes, o caçador voltou para junto da rede onde estavam suas presas. Na medida em que as recolhia, tirava-as da rede e as matava e,enquanto fazia isto, o vento, que batia em cheio em seus olhos, o fazia chorar. Ao ver isto, uma das perdizes, que estava presa na malha, começou a dizer a suas companheiras:

— Olhem, amigas, o que acontece a este homem! Ainda que nos mate, olhem como ele se condói por nossa morte e, por isto, chora!

Mas outra perdiz que avoava por ali, mais velha e mais sábia do que a outra que havia caído na rede, respondeu-lhe:

— Amiga, dou graças a Deus porque me salvei da rede e agora peço a Ele que salves a mim e a todas minhas amigas dum homem que busca nossa morte, mesmo que dê a entender com lágrimas que muito se condói.

Vós, senhor Conde Lucanor, evitai sempre aqueles que vos causam dano, mesmo que dêem a entender que sentem muito; mas se algum vos prejudica, sem buscar vossa desonra, e se o dano não for muito grave para vós, se se trata duma pessoa à qual deveis favores, e que além disto foi forçado a isto pelas circunstâncias, eu vos aconselho que não se importeis demais, mas deveis procurar que tal não se repita tão freqüentemente que chegue a macular vosso bom nome ou vossos interesses. Mas se vos prejudica voluntariamente, rompei com ele para que vossos bens e vossa fama não se vejam lesionados ou prejudicados.

O conde viu que este era um bom conselho que Patronio lhe dava, seguiu-o e tudo ficou bem.

E vendo don Juan que o conto era bom, ordenou pô-lo neste livro e fez estes versos:


A quem te faz mal, mesmo que seja para ti pesar,
Busca sempre um modo para poder dele se afastar.


Biografia

Don Juan Manuel (1282-1348) nasceu no Castelo de Escalona, na província de Toledo. Por ser filho do Infante Don Manuel de Castela (Senhor de Escalona e de Peñafiel) e de Dona Beatriz de Saboya, era sobrinho do rei Alfonso X, o Sábio, e neto de Fernando III, o Santo. Herdou de seu pai o grande Senhorio de Villena, recebendo os títulos de Príncipe, Senhor e Duque de Villena.
Foi educado como um nobre, adestrado em artes como equitação, caça e esgrima, aprendeu latim, História, Direito e Teologia. Literariamente, sua formação incluiu a leitura de diversos poemas clericais (Livro de Alexandre, Livro de Apolônio...), os tratados de Raimundo Lúlio, a obra de Alfonso X (especialmente, a História da Espanha), vários livros doutrinais e coleções de frases, provérbios e ditos de sábios, traduzidos de línguas orientais, ou do latim, para o castelhano (Calila e Dimna, Sendebar...), etc.

Aos oito anos, perdeu os pais, por isto, desde muito jovem, pôde dispor do amplo patrimônio de sua família. Aos doze anos, iniciando uma atividade que o acompanharia por toda a vida, participou na guerra para repelir o ataque dos mouros de Granada contra a Múrcia.

Casou-se três vezes, escolhendo suas esposas por conveniência política e econômica e, quando teve filhos, esforçou-se para desposá-los com pessoas pertencentes à realeza.
Don Juan Manuel se converteu em um dos homens mais ricos e poderosos de sua época e, além de manter ele próprio um exército de mil cavaleiros, chegou a cunhar sua moeda própria por um tempo, assim como faziam os reis.

O autor de “O Conde Lucanor” dividiu seus esforços, durante toda sua vida, entre suas atividades como escritor e nobre cavaleiro. Ao seu redor, houve certas críticas sobre sua vocação literária, pois se pensava que um nobre de tão alto prestígio não deveria se dedicar a tais atividades. O prazer que encontrava na escrita e a utilidade que via nela para os outros o levaram a seguir com sua atividade literária.

Don Juan Manuel teve disputas constantes com seu rei. Na época, o trono de Castela esteve ocupado por dois monarcas que até chegaram a traçar planos para matá-lo: Fernando IV e Alfonso XI. No entanto, o último buscou a fidelidade de Don Juan Manuel ao pedir a mão de sua filha, Constanza. Finalmente, o rei rejeitou o matrimônio já arranjado e encarcerou a jovem no Castelo de Toro.

A luta entre o rei e Don Juan Manuel se prolongou por uma década, e houve pelo menos duas ocasiões em que este quase chegou a cair nas mãos do primeiro. O rei também se opôs ao transporte de Constanza a Portugal para se casar com o infante Don Pedro de Portugal.
A necessidade de paz interna para enfrentar o rei de Marrocos e a mediação de Dona Juana Núñez, sogra de Don Juan por seu terceiro casamento, fez com que o rei devolvesse a Don Juan seus bens e honrarias em 1337, pondo fim à inimizade, que se consolidou definitivamente com a autorização para o casamento de Constanza e, até 1340, quando ambos se aliaram contra os muçulmanos na batalha de Salado, tomando-lhes a cidade de Algeciras.

Após estes acontecimentos, o infante Don Juan Manuel deixou a vida política e se retirou para a Múrcia, onde passou seus últimos anos entregue à literatura. Orgulhoso de suas obras, decidiu reuni-las todas num único volume, que desapareceu queimado num incêndio.






domingo, 16 de novembro de 2008

No Elevador

Voltar para casa o deprimia. A expectativa de, após um dia de trabalho ouvindo os berros animalescos de seu Djalma tratando-o como um reles vassalo; abrir a porta de casa e topar com a megera, estendida no sofá, devorando bombons e metida em um enorme robe cor-de-rosa era um desajuste para qualquer mortal. Fosse só isto, ele até que poderia tolerar, mas as cobranças, humilhações e o desprezo iam minando, dia após dia, o que ele e a esposa ainda fingiam ser um casamento.
- Bancário! – exclamava a esposa carregando no desprezo, boca marrom de chocolate – Não passas de um medíocre e vil bancário! E pensar que eu podia estar casada com o Deputado! Que triste sina a minha!
No decorrer dos anos, passou a ter nojo de chocolate. Bastava o cheiro para nauseá-lo.
Sua angústia diária tinha início dentro do elevador do prédio onde morava. Acompanhava o lento passar da cabine pelo andares até chegar àquele palco seu tormento. “Lar, doce lar”, resmungava em tom irônico.
Naquele final de tarde tudo parecia caminhar para a mesma rotina de achincalhes promovidos pela megera. Apertou o botão de chamada do elevador e esperou que ele chegasse até o térreo. Quando fechou a porta ouviu uma súplica.
- Sobe?
Era uma voz adocicada, mansa, suave, em tudo contrastante com o tom estridente e marcial de sua esposa. Curioso e gentil, segurou a porta do elevador. Ela sorriu para ele em sinal de agradecimento. Tratava-se não de uma mulher exuberante, mas alguém que estava elegantemente vestida e denotava alguma sofisticação. Seus gestos eram refinados e um leve perfume agradável exalava de sua pele. Saltou no décimo andar, sacudindo a cabeça em sinal de boa noite.
Desde aquela data, a curta viagem de elevador tornou-se o melhor momento do seu dia. A presença daquela mulher e os quase monossilábicos cumprimentos pareciam amenizar todo o peso do cotidiano desprezível de sua existência. Ansiava por aqueles minutos, chegava a fazer uma horinha no hall social do prédio esperando que ela chegasse, forçando a coincidência do encontro. Entristecia-se caso ela não aparecesse e renovava a suas esperanças para o dia seguinte.
Numa tarde, enquanto esperava o elevador já desapontado pela ausência da sua admirada, ela surgiu no hall social. Chorava. As lágrimas inundavam seu rosto, umedecendo os olhos redondos. Não havia ainda prestado atenção na beleza dos seus olhos castanhos. Na verdade, o tempo da viagem era demasiadamente curto para se prender a detalhes.
- Posso ajudá-la, moça?
Sacudiu negativamente a cabeça.
Ele ofereceu um lenço, prontamente aceito. O elevador chegou.
- Sou feia?
- Não.. imagina...
- Pareço uma pessoa sem atrativos? Me visto como uma freira?
- Claro que não!
- Ele acha que sim – disse soluçando – que fazer amor comigo é como beber água. Algo sem gosto, sem graça.
- Ele deve ter dito isto da boca pra fora – disse ele enquanto entravam no elevador.
Assim que a porta fechou, ela inesperadamente o agarrou, beijando-o com volúpia. Entre o correr dos andares, amaram-se de pé, vestidos. Parcos minutos de prazer até o elevador alcançar o décimo andar.
Os encontros passaram a ser diários. Quando havia uma ou mais pessoas esperando o elevador, eles aguardavam a oportunidade de subirem sozinhos. Caso um ou outro estivesse com o seu companheiro, fingiam indiferença e desconhecimento, um tanto desapontados pela oportunidade perdida. Amavam-se dentro da cabina, respiração ofegante, um misto de prazer e medo de que os respectivos cônjuges pudessem estar do outro lado da porta, no andar seguinte. Arrumavam-se rapidamente ante a aproximação do andar onde ela morava. Era automático, sem preliminares, sem nomes, curiosidades sobre a vida de cada um. Nada os atrapalhava naqueles breves momentos de paixão. Somente o ato de amor os consumia.
Um dia, um blecaute tomou conta do Rio de Janeiro. A cidade foi invadida por um breu no começo da noite. Tudo parou, inclusive o elevador onde os amantes estavam. Os bombeiros, ao abrirem a cabina, parada entre dois andares, os encontraram risonhos, nus e gargalhantes, suas roupas espalhadas por todo o elevador. Ela agora sabia que ele se chamava Mauro. Ela, Andréa. Tiveram tempo.





sábado, 15 de novembro de 2008

Entrevista: Carlos Henrique Iotti




Carlos Henrique Iotti, 44 anos, gaúcho de Caxias do Sul, é colaborador dos jornais Pioneiro (www.pioneiro.com) e Zero Hora (www.zerohora.com), e tem vários livros publicados, principalmente de tiras com o personagem Radicci.
Radicci, seu personagem mais famoso, foi criado em 1983, representando um ítalo brasileiro (ou gringo, como ele mesmo diz) de temperamento forte, amante do vinho e do ócio. Casado com Genoveva, é pai de Guilhermino. O personagem Nono completa a típica família de descendentes de italianos.


Iotti tem ainda outros personagens menos conhecidos, como a dupla de criação Deus e o Diabo, que competem entre si numa espécie de agência de criação e propaganda.

Além de atuar como chargista e cartunista, inclusive com trabalhos na Itália, Iotti também tem programas na rádio e na TV (este último, Iotti Repórter, pela RBS).

 

Além de uma série de livros com as melhores charges, Iotti está lançando um DVD com o show onde interpreta seu personagem.


Como você começou a desenhar? Seu trabalho foi desde o início direcionado para o humor?

Sou formado em Jornalismo pela UFRGS e foi ainda na faculdade que criei o meu primeiro personagem. Era um guerrilheiro trapalhão chamado Ernesto Che da Silva, uma espécie de sátira ao movimento estudantil da época. De lá para cá outros personagens foram criados (como Frederico e Fellini, que conta a história de amor e ódio entre um menino e seu gato -, Deus e o Diabo, que são uma dupla de criação publicitária, Adão Hussein e o Radicci e a Genoveva) e aí de cara percebi que normalmente tudo que é trabalhado com humor fica mais leve, mais digerível. É muito melhor ler uma charge do que um editorial, por exemplo. Sem esquecer que o editorial tem um mérito maior, quando bem escrito. Então me aventurei como jornalista na área do cartunismo.




Como funciona o processo de criação de suas personagens? O Radicci, por exemplo, de onde veio a inspiração?


O Radicci foi criado em 1983 para ser a síntese do nosso colono. Uma caricatura do tipo italiano que aportou em 1875 e seus descendentes. Uma caricatura dos hábitos, dos costumes e da fala dessa gente. Se é que é possível fazer uma caricatura disso.

Ele é uma HQ regional. É muito conhecida no Sul do país, mas é uma tira regional. Eu acredito que o público se identifica com a família Radicci, pois ela fala do cotidiano, do dia a dia do colono. Que pode acontecer ali com o colono, mas que pode acontecer em outros lares, em outras formações.


Como é a tua relação com o Radicci? Tem gente que te confunde com ele?

Ás vezes há uma confusão entre criador e criatura e aí as pessoas esperam que eu me comporte como o Radicci. Não fazem a distinção entre o Iotti e o intérprete do Radicci. Isso sempre gera fatos engraçados, que até rendem repertório pras piadas mesmo. Um dia, encontrei um colono ali do Desvio Rizzo (distrito de Caxias). Ele me olhou embasbacado e disse:

- Oh, tu que é o Radicci?

- Sim, sou eu!

- Ma Dio! Até meio negro tu é! - Eu fiquei rindo, fazer o quê?

Um dia fui a Ibiçá. Acho que toda a cidade estava reunida no salão paroquial. Eu tinha voltado da praia e estava todo bronzeadão. Para realçar minha cor, coloquei um terno branco, bonito. Entrei no salão e disse: "Alôôôô, guRRizada!". Bem, tudo ficou no mais absoluto silêncio. Eu só ouvia o bater de asas de uma mariposa que estava rondando a luminária. E, no meio daquele vazio sonoro, alguém cochichou: "Bah, esse daí que é o Radicci?". O pessoal fica um pouco decepcionado, sabe, porque espera que eu seja gordo e bonachão. Em cada lugar que eu vou é a mesma reação.


O que você lê?

Leio de tudo. De bula de remédio a romance. Gosto muito de autores como Tabajara Ruas, Ernest Hemingway, livros com a temática de mar e guerra também vejo de tudo.

E que história foi essa de senador romano?

Me convidaram a fazer parte de um movimento não-partidário, associativo, o que foi me convencedo no sentido de ver que sim, talvez fosse possível ajudar de alguma forma os descendentes, as pessoas com dupla cidadania, etc. O convite partiu mais para lidar com questões relativas à cultura, a intercambiar as coisas entre Brasil e Itália e obtive 14 mil votos. Fui o brasileiro mais votado e sou suplente de senador na Itália agora.
Há alguma técnica à qual você recorre para causar o riso? Conte-nos o seu segredo.

Sou um tanto tímido, tenho de embarcar na onda dos personagens e aí vou me soltando. Na verdade não há nenhuma grande técnica assim.

Escrever sob prazos é um estímulo ou um obstáculo para você?
Ter prazo é sempre um estímulo. Jornalista que não tiver prazo não escreve (risos).

Iotti, dê uma definição acadêmica para quem não conhece o "sotacón". Quem são os falantes dessa variante lingüística? É português, é italiano, é gauchês...?



É uma variante que mistura o italiano e o português – utilizando a fonética do colono, transpondo isso para a grafia sem nenhum filtro.


Quando ingressou na faculdade, sua intenção já era atuar como ilustrador ou você tinha outras aspirações?

O desenho foi um caminho natural. Eu simplesmente não parei de desenhar, como de modo geral as pessoas fazem quando “crescem”.


A sua «dupla da criação» foi objeto de protestos por parte de alguns leitores. Como é que você lida com os protestos? Influenciam as suas tiras futuras?

Na verdade foi um editor que ficou com receio de publicar em virtude de uns leitores bem religiosos. A maioria das pessoas costuma me dar um retorno bacana, mas polêmica sempre é bom, instiga a fazer mais coisas.

Qual considera o seu melhor desempenho: a imagem ou o texto? Qual custa mais a apurar?

Depende, tem dias que a imagem é melhor do que o texto e vice-versa.

Há quem diga que os quadrinhos já se aproximam de um patamar de arte, como uma forma de literatura e não apenas um produto comercial. Qual é a tua opinião em relação a isso? E como você vê o espaço do cartunista nesse meio? Você se considera um artista?

Os quadrinhos aos poucos foram galgando um lugar muito legal, de espaço, de visibilidade, de patamar artístico também. Há sempre quadrinhos muito legais e gente que tem um traço que eu admiro muito. Eu gosto muito dos desenhistas locais. O Santiago e o Edgar Vasques são chargistas que eu conheço e admiro. Também tem o Jaguar, que é carioca, que foi editor do Pasquim, um marco no jornalismo brasileiro. Gosto ainda do Ziraldo e do Angeli, que é o criador do Chiclete com Banana e atualmente está fazendo as charges na Folha de São Paulo. A maioria do pessoal que lida com quadrinhos está lutando muito ainda para conseguir o seu lugar ao sol e ser reconhecido. Precisa existir uma valorização bem maior dentro dessa área. De todo modo, sempre tem surgido gente nova e a Internet é um meio muito bacana de divulgação desses trabalhos. Vira e mexe descubro alguma coisa diferente.


No seu site tem uns contos narrados em "sotacón". Além disso, você escreves ficção em português? Já pensou, ou até já tentou, transpor as histórias do Radicci em forma de microcontos?

Na verdade o que faço são quase pequenas crônicas neste estilo do sotacón. De quando em vez aplico de escrever como o Radicci e acaba sendo divertido também.


Que dica, que recado, que recomendação você dá a quem quer escrever humor?

 

Nunca desistam no primeiro “não”. Vocês vão receber vários deles durante a sua trajetória. Não tem espaço, não tem chance, não tem condições… Se desistir no primeiro “não”, não vai adiante. Tem que ser chato, tem que lutar. É um começo terrível, é uma verdadeira tragédia, porque o mercado é muito pequeno, limitado. Ou a pessoa abre o próprio mercado à base de muita perserverança, ou acaba indo para outro caminho, vai ser desenhista de publicidade ou algo parecido. Se você quiser ser um chargista realmente, vai precisar de muita persistência.


Perguntas feitas por:

 

Volmar Camargo Junior

Carlos Alberto Barros

Joaquim Bispo

Henry Alfred Bugalho

Maristela Deves

 

Coordenação e organização:

Maristela Deves


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Mais sobre o Iotti e seus personagens na página oficial do Radicci: http://www.radicci.com.br

Crédito da foto: André Guimarães Antunes.





sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Pequenos desencontros

Volmar Camargo Junior


Platão? Que Platão?

 

— Ouvi dizer que todas as coisas do mundo, um dia, existiram no mundo das idéias. Então, como podemos saber se na verdade, o mundo das idéias não é aqui? Às vezes, eu penso que sou apenas um personagem na imaginação de um escritor desocupado e...

 

[Estas foram as primeiras e as últimas palavras de um personagem que não entrou em nenhuma das minhas histórias. Não tenho paciência para esses atrevimentos.]

 

 

Primeiro amor

 

Orlando reconheceu na rua a menina por quem havia se apaixonado nos tempos do primário, e correu para dar-lhe um abraço. Thereza, abordada por um desconhecido com tamanha intimidade, achou que seria descortês dizer-lhe que foi um engano, mas evitou o contato físico. Soldado Juarez, à paisana, viu na cena um princípio de assalto, e com dois golpes fulminantes nocauteou e imobilizou o suspeito. Um cinegrafista amador filmou com a câmera do telefone celular a ação do policial responsável pela captura de Orlando Silva da Silva, estelionatário, que estava foragido havia meses. Nem depois de a foto do dito cujo sair nas manchetes dos noticiários Thereza associou aquela cara à do gorducho que lhe deu um beijo babado na quarta-série. Naquela época, ela só tinha olhos para o Roberto Carlos.

 

 

Voyeurismo

 

Todos os dias, o menino espiava pelo buraco no muro do vizinho, e do outro lado via um gramado e, à distância, uma cabana na árvore. Tocado pelo remorso, o pai esmerou-se para fazer um bela plataforma de madeira, sustentada pelos galhos da mangueira que havia em seu próprio pátio. Feliz da vida, o menino correu até seu baú de brinquedos, tirando de lá o binóculo que ganhara no Natal. Finalmente teria uma vista privilegiada da tão amada cabaninha do quintal ao lado.





Microcontos

Medalhista de ouro

Na modalidade “xixi à distância”, ninguém derrotava o Marquinhos.

***

As viravoltas da vida

Na época da escola, todo mundo tirava sarro da “girafa”, que corria para o banheiro chorar sozinha.

Ano passado, ela foi a modelo mais bem paga do mundo.

***

Sexo virtual

— Ai, gozei! E você?
Mal sabia ele que o computador dela havia pifado.





quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Para lá do muro

A cada ser a sua arte. A da barata é resistir, contornar,
encontrar novos caminhos rodeando os obstáculos. Só
não a virem de cabeça para baixo!

                                                                                Anónimo


A enorme massa branca e sólida estava ali desde que me conheço. Fria e imponente com seus sessenta metros de altura, numa vizinhança próxima, em frente a minha janela, travando com sucesso silencioso o ímpeto expansionista das nossas modestas construções. Tão perto... tão à bica! No topo um longo corredor feito calha servia de auto-estrada por onde deslizavam velozes e silenciosos os pequenos “robot”.

Cresci brincando em redor deste monstro marco de fronteira, habituando-me gradualmente à sua presença. Meus pais e avós referiam o artefacto nas suas histórias de nossos serões dos domingos de inverno quando, reunidos em volta da lareira aquecíamos os ossos e alimentávamos a alma com tudo o que conseguíamos escutar.

Parece que alguns loucos tentaram escalá-lo ou contorná-lo. De alguma forma vencer aquela barreira, esgotá-la, encontrar-lhe um fim. Foi assim com o homem que chegou um dia vindo do horizonte feito de pó para logo partir duas horas após chegar à nossa cidadela. Com o seu ar cansado e a longa barba branca, deixou a voz fraca confidenciar que já andava naquela demanda desde os vinte anos. E assim comeu, bebeu, descansou um pouco, ganhou fôlego e logo proferiu “não há tempo a perder que a vida é curta” e foi-se em busca do fim da coisa, da extremidade de cauda de bicho feito cobra, cobra feito muro, muro feito obstáculo e omnipresença, qual navegador incansável, Gil Eanes com o seu cabo Bojador para dobrar!

As tentativas de subida não colheram melhor sorte. Depressa colocaram em evidência o propósito dos nossos companheiros metálicos. Ao invés do frio cortante na chegada ao cume de um qualquer Everest, os alpinistas desgraçados encontravam o calor de um raio quente fulminante ficando reduzidos a menos nada naquela fracção de segundo.

Só o mistério sobreviveu a todos estes fracassos. Mistério mal recebido, mal acolhido, tornando-se adubo eficaz para crescimento rápido da especulação e crença ignorante. Logo apareceram para a festa os hábitos e rotinas pouco racionais, os dogmas, os pecados, as remissões e auto flagelações, o poder dos poucos em função da dormência dos muitos.

O dia de leitura e escrita é um desses hábitos que não apela muito em prol de nosso bom senso e sanidade mental. Todos os anos naquele dia – o último, a massa humana de crentes inicia jornada e vai colar-se junto ao enorme paredão. Cada qual tem primeiro de encontrar um espaço para si (apagando se necessário escritos antigos) e escreve os seus desejos, as suas aspirações para o ano vindouro. E o “senhor do muro”, o “magnífico que tudo pode”, em toda a sua bondade não tardará a satisfazer tal ensejo conferindo a cada um o seu cada qual.

Talvez seja perfeccionista, detalhista, até um pouco chato mas sempre me conheci muito observador. O meu olho treinado e mente atenta depressa me revelaram as diferenças, a revolução silenciosa que ocorria no topo fronteiriço. E a diferença estava no tempo, no aumento de tempo entre cada chegada e cada paragem em frente a minha janela. O minuto e meio entre chegadas no fim de mês passado tinha-se alongado. No início da semana – estamos na segunda semana do mês, já íamos em dois minutos. Nesse dia decidi: se as coisas continuassem da mesma forma, ao fim de três meses teria todo o tempo que necessitava – trezentos segundos, cinco longos minutos.

Ninguém excepto Patrícia sabia das minhas intenções. Minha vizinha e confidente desde sempre, ela daria uma ajuda essencial no projecto. Nesses meses muni-me de tudo o que era necessário e preparei-me com rigor e afinco. A estratégia era simples – aproveitar a multidão em dia da excursão anual de tolos, partir com eles e não regressar, ficando junto ao muro como lapa na rocha, bem encostado, fora de ângulo de visão dos guardas cibernéticos. Depois, com a ajuda do equipamento sofisticado, escalar cerca de cinquenta e cinco metros e ficar esperando o sinal. Ao notar que “a costa estava livre” a minha companheira fecharia a janela e eu subiria rapidamente o que restava.

Finalmente o dia chegou e eu estava preparado. Escalei, a janela fechou-se e então subi os últimos metros. Triunfante, cheguei ao topo e olhei para o lado. Nem sinal de “robot”. Respirei fundo. Observei. Foi com estranheza que minha vista encontrou o outro eu, qual imagem minha no espelho que também subia, que respirava fundo, que me fitava. Ficamos examinando as nossas caras incrédulas, incrédulos por um momento. Olhámos para o horizonte de edifícios em cada lado, para as janelas em frente, para as Patrícias que acenavam. Então, decidimos preservar nossa sanidade mental e descemos. O que vimos, nunca contámos a ninguém. Hoje pensamos certamente eu e ele (ou deveria dizer eu e eu) como para desvendarmos um mistério encontrámos outro bem maior e fugimos voltando rapidamente à realidade de nossa toca. 





quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Surpresa

Depois daquele dia, marcamos de nos encontrarmos, na semana seguinte, na sorveteria “Bola de Neve”, a melhor da cidade.
Fazia um tempo fresco e ensolarado, eu já aguardava no local. Cheguei dez minutos mais cedo, como de costume. Nesse tempo comecei a observar ao meu redor. Uns onze metros à frente, uma família, pai, mãe, filho e filha. Crianças pequenas. O menino, que era dois anos mais velho que a menina, estava com a cara inteirinha lambuzada de sorvete e mergulhava seu boneco nele. A mãe gritando. A menina chorava e dizia querer pastel, não sorvete. E a mãe gritando. Enquanto o pai tomava o seu sorvete sossegadamente e olhava o movimento na rua. E a mãe gritando. No lado interno, no canto, tinha uma mulher gorda que estava na sua terceira tigela. Tomava desesperadamente e completamente lambuzada, mãos, rosto, barriga e até a ponta do nariz. Era cômico. Na mesa encostada à parede, duas amigas conversavam sobre os garotos da escola e se deliciavam com enormes copos de milk-shake.
Fernando apareceu e me assustei. Nem pude ver a cara do homem quando tomou o sorvete com sal que um garotinho tinha posto.
– Olá! Achei que não viesse mais.
Ele sorriu puramente e me beijou a bochecha. Tive a impressão de já ter visto esse sorriso tão doce.
Logo pedimos sorvete. Eu, Montanha Negra, ele, Céu Estrelado.
– Nos dias de hoje é difícil conhecer pessoas como nos conhecemos. Num bar no centro da cidade não é o melhor lugar. Seria normal numa festa, na faculdade, com os amigos...
– É o mundo moderno... Mas você forçou.
Dei de ombros.
– Você não teria me visto.
Ele pensou e enfim, disse:
– Talvez... Sempre morou aqui?
– Nasci aqui. Vivi até os seis anos. Fiz alguns amigos nesse tempo, mas acabei perdendo contato. Depois minha família se mudou para ficar mais unida. E voltei faz um mês e meio. Retornei às origens. A cidade mudou tanto todos estes anos.
– Que ótimo... – disse, diminuindo a intensidade, com cara de assustado ou que não entendeu nada – Eu era um de seus amigos. Lembro-me do seu rosto, seus olhos... Seus cabelos...
– Não pode ser! – disse perplexa– Bem achei já ter visto seu sorriso doce. Nunca me esqueci.
– Quanta felicidade te reencontrar! E só agora nos demos conta disso!
Os sorvetes tinham chegado. E trocamos colheradas como velhos amigos.
– Como foi a sua vida lá?
– Minha família toda é de lá. Senti muita saudade daqui e aos poucos a família e os novos amigos foram amenizando essa carencia. Mas nunca me esqueci deste lugar. Tanto que deu certo de voltar. Agora faço jornalismo.
– Naturalmente. Sempre me lembro daquela época com nostalgia. Nem me lembro como você era, seu jeito, seu temperamento... Mas jornalismo combina com você.
Que Máximo!
Acabamos por estender o encontro até o jantar. Jovem estudante que sabe cozinhar, e bem!
Fechamos a porta.



Continua! Não perca no próximo mês!