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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

2 anos de Revista SAMIZDAT

Em nossa época, dois anos é uma eternidade.

Vivemos a era da velocidade, da instantaneidade, da efemeridade, da futilidade. Se Baudelaire definia a Modernidade como o apogeu da moda e do passageiro, quando tudo era e deveria ser substituído pela próxima novidade, a Pós-Modernidade nada mais é que a hipérbole desta definição.
O que antes era mensurado em milênios, séculos ou décadas, hoje é contado em minutos, segundos, ou frações destes.
A notícia de uma hora atrás é notícia velha. A novidade de ontem é obsoleta. O lançamento de hoje amanhã estará nas pontas-de-estoque. Tudo passa tão rápido e em tamanha quantidade que, nem se dedicássemos 24 horas de nossos dias para descobrir as novidades, seria impossível abarcar tudo.

Se já me surpreendi quando do primeiro aniversário da Revista SAMIZDAT, muito mais me surpreende ainda estarmos por aqui.
Em 2009, a revista passou por mudanças silenciosas: autores que nos acompanhavam desde as primeiras edições deram lugar a outros, perdíamos por um lado, mas ganhávamos por outro. Renovação, reinvenção...

Mas a SAMIZDAT, que a princípio havia causado um certo burburinho no submundo da Literatura em português, tornou-se, por sua vez, notícia velha. Prosseguimos porque nos divertimos, apesar da esmagadora sensação de falarmos para ouvidos surdos.

Quem nos lê? Quem está do outro lado? Existe alguém para além dos caracteres e palavras que ansiosos rabiscamos para lançá-los ao mundo?

Não temos certezas, mas possuímos alguns dados. Nestes dois anos, mais de 65 mil leitores passaram por aqui, 32 mil deles baixaram alguma das edições em .PDF da SAMIZDAT, somos 18 autores fixos e publicamos aproximadamente 750 textos, entre contos, crônicas, poemas, artigos, resenhas e entrevistas, dando a nossa humilde contribuição, gratuita e com a melhor qualidade que nossos talentos permitem, para a cultura lusófona.

Dois anos...

E como somos teimosos, persistentes, ou simplesmente não sabemos quando desistir, acredito que outros anos ainda virão.

Desejo meus parabéns a todos que tornam a Revista SAMIZDAT possível, autores e leitores, pois a trilha é árdua, mas a paisagem é bela!





domingo, 27 de dezembro de 2009

Big Bangs

‘Microcosmacro’

“Ao olhar num microscópio de fundo,
As moléculas, átomos, os ‘quarks’...
Com as lentes do meu ‘neurar’ fecundo
Mergulho no ínfimo mais e mais.

Empunho agora um telescópio
Desafiando espaçostemporais
E no fim do Universo vejo a Terra
Na curva-luz, de bilênios atrás.

Acoplo lentes do ‘neurar’ fecundo
Submerjo do macro mais e mais
Em raios não curváveis como a luz.

Assim, no telescópio e microscópio,
No macro vejo-me dentro de um átomo,
No micro outro universo me reluz.”



‘Big Bangs’ sociais

“Ao olhar p’ras artimanhas no Mundo,
O homem e as máquinas que ele faz,
Com as lentes do meu ‘neurar’ fecundo
Percebo a humanidade mais e mais.

Conecto-me agora às ‘ciberredes’,
Desafiando espaços sociais,
Vejo que o virtual unir dos homens,
Democracia milenar nos traz.

Mas pra que direta democracia,
Se a representativa nos apraz?
Questiona quem o Mundo gerencia.

Mas a maioria acorda tenaz
E os microcosmos de cada homem
Explodem em ‘Big Bangs’ sociais.”


http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/





quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A dama da Lapa- Giselle Sato

Lapa. Bairro carioca do Rio de Janeiro, território livre da malandragem, resistência do “Bota-abaixo”, operação promovida pelo prefeito Pereira Passos. Vã tentativa de exterminar os cortiços apinhados de biscateiros, jogadores e excluídos.
Os intelectuais reúnem-se nos bares locais. Freqüentam o Colosso, o Viena Budapeste, o Capela e tantos outros na Mem de Sá, principal via dos acontecimentos. Na esquina do Lavradio, rufiões, prostitutas e cafetões sussurram as últimas peripécias de Madame Satã. Escutam-se histórias sobre os alemães farreando nos sobrados com as mulatas. Verdadeiras farras regadas a bebidas importadas. “Polaquinhas” verdadeiras mesclam-se às gaúchas de olhos claros nos bordéis de luxo. Dizem que o melhor pertence à Madame Clessi. Os cabarés com vedetes e cantores estão lotados e o Rio de Janeiro é uma festa. A paradisíaca Baía de Guanabara e Copacabana são os cartões postais para gente de todo o mundo. Impossível resistir à noite.

Saboreando uma boa caninha, de pé no canto mais escuro do balcão, Doutor José, ouve a voz arrastada de Catarina. O som monótono, insistente, repetindo a mesma ladainha:

— Te amarei eternamente pelos bares da vida. Serei sua sombra, nunca te deixarei. Afastei seus amigos, tua mulher te abandonou com vergonha das bebedeiras.

José pediu um duplo, entornou depressa e bateu o copo no balcão:

— Vai começar o tormento. Mais um, capricha sem pena. Estou ficando louco, ouvindo vozes e assombrações.

— Seu doutor, um homem letrado falando estas coisas chega a dar arrupios

O grito do dono do bar calou Bentinho, ajudante do bar e simpatizante de José, generoso nas gorjetas.

— Este moleque fala demais doutor, eu mesmo vou servi-lo. Xispa daqui e vá limpar as mesas. Abusado! Toma tenência ou te boto na rua!

— Manoel, deixe o menino. Ele não fez por mal. Vou terminar os dias no hospício — o homem enxugou o suor na manga da camisa, disfarçou e cambaleou até a mesa de sinuca.

O português olhava daquele jeito, de quem vê a desgraça diariamente, afogada em um copo de bebida:

— Doutor José, não se martirize desta forma. Que pendenga está tirando seu juízo? O doutor precisa descansar, está abatido, descorado...

— Amigo, não tens noção do meu sofrimento. Nem quero falar, prefiro beber até esta loucura passar. — o dono do estabelecimento e ouvinte dos clientes habituais serviu a terceira dose, quase a contragosto.

Bentinho espiava de longe, tinha o dom da vidência, herança da avó africana. O doutor não estava doido. No canto do salão, a figura de Catarina assombrava a mente entorpecida. Neste instante sabendo que era observada, fazia pose em cima do balcão de bebidas. Vestido negro, decote expondo a pele clara, boca pintada em vermelho rubro, o riso delicioso em olhares lânguidos, cheios de promessas. O mocinho reconheceu de imediato a puta mais bonita da Lapa.

Requisitada, festejada, pomo de discórdia de melhores amigos. Jóias, roupas e viagens. Tudo era pouco para a exigente Catarina. Fazia os homens ajoelharem-se aos seus pés para desprezá-los logo adiante. Maldosa mulher da noite, sem dono ou senhor, fazia o que bem queria e não respeitava nem a polícia. Corria à boca miúda a amizade íntima com o famoso transformista, o tal com a alcunha do malvado.

Quando conheceu José, foi amor à primeira vista. Desespero e agonia,
a obsessão destruiu Catarina, tornando-a ciumenta. Esqueceu a vida para tomar conta de todos os passos do amante. José não agüentou as cobranças, escândalos e desmandos da mulher. Terminou o romance e conquistou a pior inimiga.

Dando voltas em torno da mesa de bilhar, debruçava-se sobre o amante:

— Amanhã vamos às corridas no Jóquei Clube. Infelizmente sou seu amuleto de azar. Pobre querido, cada dia mais endividado...

José xingou irritado, após errar a jogada fácil. Os amigos caçoaram a má sorte. Catarina bebericava do copo de José.

— Lembra, meu amado? Nossos beijos intermináveis... Tão gostoso! Você lambia minha boca, bebia meu gosto, cheio de desejo... Quanta loucura fizemos!

José suava frio, visualizava Catarina nua, expondo os seios brancos como leite, torcendo os bicos de cereja. Era assim que ele os chamava. Convidando dengosa para o amor “Vem, vem sentir sua florzinha branca meu amor. Vem...”

O homem estava cansado, ajeitou a gravata e alisou os cabelos com os dedos. Podia ouvir claramente a voz da amante, suspirando:

— Lembra quando me conheceu? Gritou aos quatro ventos que eu era a mulher da sua vida. Fiz de você meu dono e senhor, desprezei todos os outros. Fui viver em cortiços, abortei teus filhos, perdi a beleza e você me abandonou na sarjeta. — ela fez um carinho no rosto de José — Não adianta padre nem feiticeiro, não obedeço a ninguém além do meu desejo. O instante em que me apunhalou libertou meu espírito para te seguir. Sou teu castigo, assim como a cachaça que te obriga a viver pelos bares.

José era um molambo bêbado no meio dos últimos fregueses. Não queria voltar para a casa vazia, cheia de lembranças. Dormir era sinônimo de sonhos eróticos com a defunta. Sexo vívido e extenuante. Acordava com os lençóis molhados. O gozo reprimido e envergonhado. O cheiro de Catarina impregnando o quarto era uma tortura. Podia sentir o corpo macio deslizando, roçando provocante. Desejava a textura da pele nas mãos vazias. Entrava em uma espécie de transe e perdia-se na ilusão, tateava o escuro procurando sentir a amante. Algumas vezes ela parecia tão real. Imaginava que faziam sexo dias e dias. José passava quase uma semana sumido do trabalho. Quando dava por si, parecia um morto-vivo, olheiras profundas, sem banho ou comida decente. Por mais que a odiasse, tinha uma atração louca, sensual, um ardor imoral. Desejava a morta o tempo inteiro, não tinha um segundo em que ela não estivesse em seus pensamentos. Atormentado, rememorou a briga fatal. A navalha de Catarina brilhando na escuridão, o sangue manchando o estofamento do carro, as ameaças até último suspiro. Depois o remorso, medo de ser preso e a idéia de empurrar o carro morro abaixo. Explosão e isenção de qualquer suspeita.

José tomou mais um gole e mandou a defunta pros quintos:

— Não me arrependo, seu fim foi o alívio de meio mundo.

Bentinho, pressentindo o perigo, pegou José pelo braço

— Doutor, eu sei o que o senhor está passando. Posso ajudar. É a mulher diaba que está te atormentando.

José arregalou os olhos

— Consegue ver a bruxa? Eu não suporto mais viver assim, prefiro a boa hora da morte.

— Não diga isto doutor, seja forte, não se entregue

Catarina, irritada com a intromissão, de um só golpe derrubou a prateleira de bebidas

— É muito tarde meu amigo, muito tarde e estou cansado. Perdi as forças.

A dor aguda atravessou o peito de José. Sentiu náuseas fortíssimas e a visão tornou-se cada vez mais turva. Escorregou até o chão amparado por Bentinho, tocou a serragem que cobria o piso com carinho e sorriu. Riu a risada dos ébrios. Enfartou, para deleite da alma penada que o aguardava na esquina.

Alguns juram que ainda hoje escutam as discussões dos amantes pelas encruzilhadas das ruas escuras. O som dos passos de Cataria, ressoando nos paralelepípedos, assombra as madrugadas dos boêmios e contribuem para o folclore local, tornando o lugar ainda mais atraente.




(revisão – V.)




nota: Um delírio, um conto soprado pela inspiração de Nelson Rodrigues, ainda que nem em sonhos, chegue aos seus pés. A homenagem ao mestre, com carinho.





domingo, 20 de dezembro de 2009

Quando não se sabe ter

Léo Borges



A tia Irene, que ia com pouca frequência às festas natalinas da família, não parava de choramingar por mais aquela injustiça. Em meio aos soluços, ela murmurava que era exatamente por causa desses aborrecimentos que sumia quando os festejos de fim-de-ano se aproximavam. Sem dinheiro para comprar presentes para todas as crianças, ela procurava passar a imagem de boa tia agraciando apenas o filho mais novo, ou o menos rebelde, do casal que estivesse sediando o encontro. Mas o espírito natalino não lhe sorria e a coisa nunca saía como esperava.


Remoeu o Natal de 1995, quando deu uma cueca com a estampa do Batman para o filho da prima Zuleica. Antes mesmo da chegada do novo ano, entretanto, soube que a peça virara proteção de frio para o canário-da-terra na varanda. Zuleica tentou explicar o fato dizendo que por causa da disputa dos filhos para usá-la, achou melhor atribuir à cueca uma nova ­(e cômica) serventia, colocando-a no ponto mais alto da casa para que os meninos, temporariamente, a esquecessem. O argumento, porém, não convenceu tia Irene que, ao ver a figura estilizada do morcego adornando a gaiola do passarinho, ficou extremamente ressentida e desapareceu nos Natais seguintes.


Reapareceu no fim de 2002, quando o filho da Eleonora, um garoto muito possessivo, ganhou da esforçada tia um conjunto de lápis de cor. Tia Irene acreditou que, com esse presente, agradaria a mais de uma criança, apostando num improvável gesto de altruísmo de Gustavo para com os irmãos e primos. Para sua tristeza, o garoto não apenas não dividiu como entrou numa áspera briga com os outros meninos que queriam emprestados os lápis. Por fim, um deles ainda escreveu na parede a infame frase: “a bruxa da tia Irene só deu presente pro Guto”. Tia Irene ficou horrorizada com o rabisco, mas raiva mesmo quem sentiu foi Eleonora. Nem tanto pelo teor do manuscrito, mas mais por ele ter sido feito na sala recém-pintada.


Porém, nada suplantava o que vinha ocorrendo no Natal daquele ano. Romeu, o filho de Silmara, era um garoto pacato e jamais dera indícios de que criaria problemas com qualquer presente que recebesse. Imbuída de uma imensa vontade de reverter o quadro de insatisfações, tia Irene viu que ele era o menino ideal para encerrar, de uma vez, todos os contratempos. Sua certeza, contudo, mesmo amparada pelo belo histórico do garoto, conhecido pelo completo desapego material, falhara: curiosamente, esta falta de ambição de Romeu a feriu mais do que em todas as outras ocasiões.


– Eu vi a meia que dei para o Romeu jogada embaixo da cama, babada, destruída... ele deu a meia para o cão! – queixava-se com a mãe do menino, que se aproximara do sofá onde a tia estava. – Em nenhum Natal eu vi tamanha falta de consideração. Perguntei nervosa: “porque você deu a meia para o Bilico?”. Falei para ele que o bicho havia levado a meia para debaixo da cama e que a destroçara por lá mesmo. E Romeu disse apenas: “a meia não é minha”. Ele ignorou o presente como quem ignora o nada.


Silmara lembrou-se de ter visto o cachorro andando pelo corredor com uma meia rasgada na boca, mas, para surpresa geral, quando ouviu o que havia ocorrido com seu filho, reagiu de modo totalmente contrário ao da desconsolada tia.


– Ele está melhorando, ele está melhorando! Graças a Deus! – disse com as mãos erguidas e sentou-se ao lado da melancólica tia.


A cena possuía contornos hilários, com a mãe comemorando uma aparente rejeição do filho e a tia invadida de tristeza justamente por isso.


– Silmara, porque você debocha de mim? Porque você ri quando estou triste? Sempre quis agradar as crianças desta família e nunca consegui. Romeu era minha última esperança. Logo ele, um garoto educado, que não é egoísta como os outros. Por que isso?


Silmara, tentando conter um pouco a sua alegria, viu que teria de dar alguma explicação àquela mulher que via nos presentes a única forma de conseguir carinho dos mais jovens. A mãe de Romeu pôs as mãos no ombro de Irene e, com paciência, abriu o coração:


– Tia, eu vou te contar uma coisa. A senhora pode até não acreditar, mas é verdade. O Romeu é um garoto especial: ele não sabe ter. Nunca soube. E não falo em sentido figurado, ele simplesmente não conhece a própria aquisição.


– Que isso, Silmara, que história é essa? Não precisa escarnecer do meu humilde presente inventando idiotices. Não tenho dinheiro para grandes mimos, você bem sabe. Se pudesse, dava um videogame. Mas minha aposentadoria é irrisória...


– Não é isso, tia. Certamente Romeu teria adorado o presente se compreendesse o que é ganhar um. No seu estranho entender, a meia que a senhora deu era de todos e não apenas dele.


Silmara revelou que descobrira o problema poucos anos atrás, quando recheava com guloseimas o porta-lanche de Romeu e o mandava para a escolinha. Ao descobrir que quem comia os biscoitos eram seus amiguinhos, ficou zangada.


– Romeu, esse lanche era seu! Porque você o deu para os meninos da sala? Eles te ameaçaram? Roubaram seu lanche?


– Não, mamãe. Eles pegaram porque estavam com fome.


Ela odiava essas respostas. Mas, constrangimento mesmo foi quando Silmara teve de correr atrás de alguns pedintes que receberam de Romeu boa parte da comida que havia na despensa da casa. Nesta ocasião, a mãe do generoso menino, aos gritos, ainda conseguiu recuperar com os mendigos um pacote de açúcar, algumas laranjas e duas latas de ervilha.


– Por que você faz isso? Não somos ricos! Não vê que me entristece?


– Se estou feliz e eles também, por que só a senhora se magoa?


Como forma de castigo pelo feito, Romeu ficou proibido de brincar com Bilico por três dias, já que, como os pais sabiam, parar de fornecer mesada seria uma inócua punição.


Silmara falou também sobre os momentos de tensão que teve de superar para mostrar aos outros que Romeu não era um retardado.


– Estão pegando tudo do seu filho! Ele é um idiota!


– Não! Ele não é um idiota, ele só não sabe ter! Mas é difícil pessoas como vocês, consumistas e egoístas natos, entenderem! – explodia. No fundo, porém, ela queria que ele agisse como seus detratores: que soubesse obter, ter e manter. Tudo seria melhor.


Tia Irene pensou que Silmara estivesse bêbada, mas logo descartou esta hipótese, pois a sobrinha não apresentava hálito de álcool. Estaria o pernil da ceia estragado e, com isso, causando delírios na mãe de Romeu? Lembrou-se, contudo, que ela própria também o comera e que, mesmo assim, mantinha sua sanidade. O problema, então, seria o forte remédio que Silmara vinha tomando para combater a insônia. Talvez fosse este o ladrão da saúde mental daquela mulher. Só isso poderia justificar a invenção de tão estapafúrdia história.


– Como não sabe ter, Silmara? Ele não fala, por um acaso, “meus pais” quando se refere a vocês numa conversa com outras pessoas?


– Não, Irene, não fala. O mais perto que ele consegue chegar de exclusividade é através do pronome “nosso”. Romeu crê, dentro dessa sua completa ingenuidade, que todos têm ou deveriam ter de tudo, e não uma única pessoa.


Nesse momento, Silmara mudou de expressão. Um laço de tristeza quis dominá-la.


– A professora do Romeu disse que ele precisava de ajuda especializada. Alguém que o fizesse entender o significado das palavras “meu” e “minha”. Ele até sabe pronunciá-las, mas desconhece o que querem dizer. Na reunião com os pais de alunos, a diretora disse que uma criança alfabetizada como o meu filho já deveria saber distinguir o “ter” do “não ter”. Com oito anos de idade ele não poderia continuar confundindo coisas tão antagônicas.


Alguns estranhavam as duas conversando com expressões tão mutantes: ora tia Irene chorando convulsivamente com Silmara rindo, ora tia Irene pensativa com Silmara fazendo cara de tristeza. Mas, todos achavam que eram as emoções do Natal e a expectativa do ano novo que estavam mexendo com a cabeça de ambas. Não havia outro motivo para nesgas de apatia, afinal, havia luzes piscantes, presépios bem montados, encontro de familiares distantes e comida em abundância naquele lar.


– E por que você ficou feliz quando eu reproduzi a resposta do Romeu? Por que você disse que ele está melhorando? Quando eu te contei o que ele disse pra mim, “a meia não é minha”, você vibrou... – questionou Irene, querendo entender onde estava a lógica naquela alegria.


O sorriso voltou ao rosto da mãe:


– Não vê? Romeu parece ter entendido, por meio da negação, o que é ter. Quando disse “não é minha”, ele percebeu que algo pode, de modo inverso, ser seu. Não sei como a senhora fez isso, mas a meia despertou algo nele, algo que até então não existia.


Tia Irene estava definitivamente espantada. Procurou Romeu com os olhos e o encontrou servindo doces a alguns convidados. O que era uma cena incomum, mas possível, de uma criança muito bem educada, logo ganhou outra perspectiva: havia ali um ser humano completamente diferente. Diferença esta que, com alguma tolerância, soava bonita e inocente a um menino, mas que seria verdadeira catástrofe quando este se visse adulto. Que tipo de marido ele seria se não soubesse ter uma mulher? Isso sem falar no sofrimento pelo qual passaria para conseguir emprego e juntar dinheiro. Era terrível constatar, mas ele precisava, urgentemente, abrir sua cabeça para o ter, pois, de outra forma, se tornaria uma aberração.


– Depois de uma bateria de exames – continuou Silmara –, concluíram que não havia tratamento médico possível. Alguns pedagogos afirmaram, inclusive, que nunca viram nada igual, a não ser em estudos de tribos indígenas primitivas. Se tivéssemos sorte, segundo eles, a única coisa que poderia fazê-lo melhorar seria o passar do tempo. Só Deus sabe o quanto rezei para que esse momento chegasse, o dia em que meu filho, finalmente, aprenderia a proteger seu patrimônio e descobriria, então, que seu lanche é mesmo seu, que seus pais são seus, que sua roupa é sua, seus presentes são seus e... sua meia... – Silmara emocionou-se –, que sua meia, dada por sua tia querida, é sua!


Tia Irene abraçou Silmara, se levantaram e foram ligeiras até o quarto onde tudo acontecera. No trajeto, esbarraram em alguns parentes que ignoravam aquela incrível história, permanecendo imersos em seus próprios casos, tecendo esquecíveis comentários sobre assuntos hipoteticamente felizes.

Felicidade mesmo foi o que Silmara experimentou quando viu o presente dilacerado. Ali ela decretou que aquela caminha bege e o roto pé de meia repousando solitário sob ela deveriam ser preservados como símbolos de uma grande mudança, pelo menos até o ano novo.


– Tia Irene, neste Natal você me deu um presente muito maior do que essa meia, muito maior que qualquer outro. Você, de algum modo, trouxe o meu Romeu ao convívio social.


Tia Irene encheu-se de vaidade e satisfação. Sem gastar quase nada com um presente, ela finalmente acertou. Ficou muito orgulhosa com a chance que criou – quem sabe um pequeno milagre de Natal – para que seu sobrinho pudesse vir a ter, enfim, inúmeras coisas, só suas, na vida.





sábado, 19 de dezembro de 2009

A vampiro dado não se olham os dentes





 


 

Uma resenha de

Kaori: Perfume de Vampira

GIULIA MOON

São Paulo: Giz Editorial, 2009

http://www.gizeditorial.com.br


 

Por


 

Volmar Camargo Junior


 


 


 

Dia desses, participei de um sorteio na comunidade do Orkut Escritores de Fantasia, um de vários que acontecem por lá, em que um autor que publica, e queira fazer um marketing do seu livro publicado, sorteia um ou mais de um exemplar da obra entre os membros do grupo. Eu até nem gostava , e ficava fazendo pirraça dos sorteios... mas, pra calar a minha boca, Papai do Céu, o Capeta, ou o Conde Drácula (através da Ana Cristina Rodrigues, escritora, colaboradora da SAMIZDAT e moderadora da referida comunidade, que me deu um baita xingão) me intuiu a parar de fazer birra com quem quer se divulgar, e entrar logo na brincadeira. Entrei, e, pra ficar ainda mais arrependido de ser um idiota escroto, fui contemplado. O prêmio: um exemplar autografado do romance Kaori – perfume de vampira, da escritora paulistana Giulia Moon.


 

Só tinha um porém: eu não gosto de vampiros. Desde os idos tempos da adolescência, em que atravessava as madrugadas jogando RPG – mais mestrando que jogando – alimentava uma antipatia por essas criaturas vis, mesquinhas, ardilosas, dissimuladas e traiçoeiras. Apreciava mais dilacerá-los com as garras dos lobisomens que eu "encenava". Isso, é claro, quando não preferia sagas medievais, ambientadas em terras distantes, onde a paisagem fosse dominada por dragões, magos, cavaleiros de armadura e guerreiras usando roupas feitas de tiras de couro presas por rebites. Uhhh!


 

Mas, então, vieram Giulia Moon e sua Kaori.


 

"Vampiros orientais... hum...", eu pensei. Tratava-se da história de uma vampira oriental, e isso já me deixou um tanto mais receptivo: nos tempos em que era RPGista de segunda a segunda, também era otaku (tá... nem tanto...), e achava bacana a idéia que os nipônicos tinham dos vampiros e criaturas sobrenaturais em geral. Em especial, o mangá Vampire Princess Miyu, ou, no original, Kyuuketsuki Miyu. E minha suspeita não era em vão. Em alguns pontos, Kaori e Miyu são bastante semelhantes. A propósito, a expressão "kyuketsuki" é uma das mais repetidas ao longo do romance. Contudo, ter pontos em comum com Miyu, foi bastante positivo: antes mesmo de eu começar a ler, para mim, a protagonista já tinha um rosto. O problema foi se livrar das imagens que me vinham à cabeça durante a leitura: em vez de moldar um filminho mental, criei um anime.


 

Kaori: perfume de vampira é um romance narrado, paralela e alternadamente, em duas épocas e lugares distintos: Japão, durante o Período Tokugawa, de meados do século XVII até meados do século XIX; São Paulo, durante alguns dias do ano de 2008. Mesmo sendo os protagonistas diferentes em momentos distintos da história, a figura central da trama é, como o título já deixa bem claro, Kaori.


 

Na porção "oriental" do romance, temos a narração de duzentos anos, alguns passados ao largo, outros, especialmente os últimos, observados mais detidamente. Por isso mesmo, tudo é mais lento, mais delicado, mais sutil, ao mesmo tempo em que é mais assustador, mais sangrento, mais bizarro, mais... exótico. Conta-se um pouco de Kaori ainda "viva" e depois, em sua existência como uma desmorta (um outro termo recorrente no romance, que achei bem colocado), seus percalços para se acostumar à não-vida, as primeiras necessidades e as situações conflituosas de estar-se tornando, paulatinamente, em uma kyuketsuki: uma vampira.


 

Na metade "ocidental", uma narrativa muito peculiar, ágil e "geográfica" a partir da visão de um observador de vampiros, ou, melhor dizendo, de um vampwatcher chamado Samuel Jouza (não, não é Souza, não! É Jouza... descendente de um povo do leste europeu...)
atuando pelas ruas da capital paulista. E quando eu digo "pelas ruas", estou sendo preciso: só não acompanhei a narrativa no Google Maps porque não quis (assim espero...). A autora situou sua ficção calcada no espaço urbano – e suburbano - contemporâneo de São Paulo. E, como se pode esperar, em um cenário que anda a mil, a narrativa anda a mil: carros, motos, socos, pontapés, pistolas, tocaias, correrias e perseguições de cães-homens (gostei deles!), tramas envolvendo até alguns níveis da administração federal (hehehe... eu adorei a burocracia do Instituto Brasileiro de Estudo de Fenômenos Fantásticos... ri muito comparando o IBEFF à empresa pública em que trabalho...).


 

Para o meu paladar ficcional, a porção oriental do livro é muito mais atraente. Nela, temos um mundo à parte. Para mim, mesmo o país dos xóguns histórico é tão alienígena (no melhor sentido) quanto a Terra Média. O Japão, ou a parte dele que conhecemos em Kaori é, de fato, um mundo fantástico, onde as criaturas do folclore japonês ganham vida, papéis, falas, e peso dramático. Mesmo que haja uma tendência para o terror, com uma dose bem... vermelha do melhor fetichismo sexual oriental, referido na obra como A Velha Arte, para mim foi como ler uma boa novela de Fantasia.


 

Jogar-se em um ambiente fantástico, conviver com criaturas fantásticas, em que as regras do mundo são permeadas por leis extra-físicas é o papel do Maravilhoso na ficção, e disso, tanto a Fantasia quanto o Terror compartilham. Talvez por isso, por essa criação/recriação do universo e das leis que o regem, a autora tenha – a meu ver – acertado mais a mão na Montanha dos Tengus do que na Avenida Paulista. Acho notável a diferença da narrativa de uma e da outra das "porções" da trama. Enquanto em São Paulo os personagens ganharam da autora falas "típicas", buscando um coloquialismo, talvez, um pouco forçado, na porção nipônica, mesmo a fala dos personagens mais comuns e secundários ganha ares de "contos de fada", ou, melhor ainda, da narração de uma lenda, ou de uma história muito antiga, em um país muito, muito distante. E, é claro, com uma finesse erótica, e umas relações de amor-e-ódio entre protagonistas e antagonistas que, sinceramente, me surpreenderam.


 

Além disso, é nesse ambiente que a autora desenvolve melhor seus personagens. Tanto que é nele que conhecemos (e depois, reencontramos), um dos guerreiros mais interessantes que já conheci: Wakabara Kodo. Não sei por que, não consegui captar essas relações, esse "tom místico", esse interesse por desvendar mais intimamente os personagens na parte contemporânea da história. Provavelmente, porque essa fosse a intenção da autora.


 

No fim das contas, levei mais tempo do que queria levar para ler o romance. E isso é bom. Às vezes, eu lia apenas um capítulo, e refletia por um ou dois dias. É, garantidamente, uma boa diversão para quem aprecia o gênero. Há algumas coisas, como eu mencionei antes, que não apreciei; outras, em que reconheci na Giulia (ou Sueli) uma tendência para a narrativa psicológica, coisa que não é fácil de fazer, e bem fácil de se perder. E, nessa questão, ela foi bem feliz. Eu, como não sou desonesto com ninguém, devo admitir: essa obra não me deixou mais simpático aos vampiros do que eu era antes de tê-la lido. Maaaaas... conseguiu me deixar muito (e por muito, entenda-se muito mesmo) interessado, e talvez um pouquinho seduzido, por kyuketsukis. Por uma, em especial.


 

Ai, aquela tatuagem de dragão...


 


 


 


 


 


 

____________________

E, em breve, na Revista SAMIZDAT, a entrevista com a autora de Kaori: Giulia Moon.





sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O que servir no Natal?

por Ju Blasina

Ah, o Natal! Época de paz, amor, união... E lista de presentes, amigo-secreto do filho, do marido, da filha adolescente na escola, na aula de inglês, na academia... Minha nossa, tem amigo secreto até no orkut! Surge amigo que não acaba mais!

E o que comprar para quem mal se conhece se já é difícil acertar na mosca com aqueles que se conhece bem? Sempre tem aquela pessoa que abre o seu presente — aquele que você levou horas procurando, precisou enfrentar a última semana de corre-corre nas lojas e teve que pagar o-que-foi-preciso-para-agradar-a-chata — e, em vez de dar pulos de alegria, faz aquela “cara de paisagem”. E então você diz:

— Se não gostou pode trocar, meu bem, eu te mando a notinha.
 E ela responde:
— Capaz (se for gaúcha), não precisa, eu amei! — mas dois dias depois te liga, cobrando a tal notinha.

Quer coisa mais “natalinamente” tradicional do que isso? Que tal a ceia de Natal? Ah, a ceia de Natal! Começa com o bom e velho cabo-de-guerra natalino — este ano nós passamos lá ou eles vêm para cá? — e isso costuma demorar... Mas, adivinha só: você venceu o cabo-de-guerra natalino, parabéns! Este ano, o natal será por sua conta e risco!

Quem costuma ocupar o assento do convidado, que se delicia com as iguarias e guloseimas tão fartas e harmonicamente distribuídas sobre a mesa, mal sabe o trabalho que dá preparar este banquete. Mais difícil ainda é decidir o que preparar para a ceia de natal — além é claro da boa e tradicional ave natalina. Sempre tem o fulaninho que não come vegetais, as crianças que tem pânico de uva-passa e a mais nova namorada do filho que você descobre — quando tudo já está preparado — ser vegetariana!

Solução: põe ela sentada entre as crianças e o fulaninho. E só ela fazer a triagem do prato deles e todo mundo fica satisfeito!

A cozinheira corre, se esmera, acaba se atrasando para se arrumar — momento em que o marido reclama e, para lhe dar razão, os convidados chegam — “malditos convidados”, pensa ela, mandando todo seu espírito natalino para o forno junto ao peru, que a esta hora já apitou e ninguém se deu conta.

Enfim está tudo pronto, ela olha orgulhosa para a mesa, per-fei-ta, e libera a horda bárbara ao ataque, liderada pelo seu próprio marido — louco de fome, pois o expulsaram da cozinha quatro vezes!

Quando chega a hora da sobremesa ela sente até uma dorzinha no coração, ao ver a velocidade com que é consumida sua torta-obra-de-arte  — aquela que levou doze horas para ficar pronta, como ela enfatiza a noite inteira — não durou mais de doze segundos depois do ataque das formigas-super-desenvolvidas-vestidas-de-gente.


A ceia só não acaba mais rápido do que o décimo terceiro, que quando você pensa que veio, já foi, mas ao contrário dele, o gostinho que fica é a satisfação de ver a mesa cheia, não só de comida, mas de amigos e felicidade!

E então? Já decidiu o que servir em sua ceia de Natal? Vai mandar fazer? Que seja! Só não se esqueça de servir uma boa dose de bom humor, antes, depois e principalmente durante as refeições: você vai precisar!

E tenham todos um Feliz Natal!





O fantasma dos Natais passados






Mais uma vez, o clássico A Christmas Carol, de Charles Dickens (1), vai para as telas (2) pela batuta da Disney Pictures; a mais recente teve sua estréia mundial no último dia 6 de novembro. Neste, quem substitui o Lima Duarte (3) - e os outros quarenta ou cinquenta atores, incluindo o Tio Patinhas... - no papel do velho avarento Ebenezer Scrooge é Jim Carrey. Ou, mais especificamente, sua versão digital. É que nesta versão, além das caretas naturais, Carrey contará com a tecnologia empregada nas animações de A lenda de Beowulf e O Expresso Polar. Todos os três utilizaram atores para "animar" personagens digitais que são vagamente parecidos com os atores que fazem seus movimentos. Outro ponto em comum entre as três películas é a direção de Robert Zemeckis, que parece ter tomado gosto pela coisa.

Essa tecnologia é um troço muito doido, mas é interessante de se ver: é desenho animado, mas quem titereia o boneco é um ator, através de uma técnica chamada motion capture (4)relativamente recente no cinema, mas bem conhecida dos jogos de luta 3D como o jurássico Virtua Fighter, do falecido Sega Saturn, ou os jogos da série Tekken.

A animação de Os fantasmas de Scrooge é extremamente bem-acabada e realista. O que é um tanto assustador: os filmes estão cada vez mais se entregando à computação gráfica, que deixou há tempos de ser apenas para os efeitos especiais. Agora, pode-se criar... qualquer coisa! O fato de haver um Jim Carrey para fazer as caretas de Scrooge (que são versões das mesmas caretas de Conde Olaf, que são versões das mesmas das do Grinch, das do Máskara, das do Ace Ventura...) é um luxo, praticamente desnecessário. Tivessem botado os animadores geeks a pendurar os sensores pelo corpo e contracenar com os cenários verdes, a Disney pouparia os milhões pagos ao elenco de estrelas. Depois, o presidente da Disney (o Tio Patinhas?) reclama que seus orçamentos estouram...(5).






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crédito da imagem: http://disneyportugal.files.wordpress.com/2009/05/christmas_carol.jpg





quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O presente dos Magos

Por O. Henry
Trad.: Henry Alfred Bugalho

Um dólar e oitenta e sete centavos. Isto era tudo. E sessenta deles eram em moedas de um centavo. Centavos economizados um ou dois por vez regateando com o merceeiro e com o açougueiro até corar as bochechas com a silenciosa imputação de parcimônia presente na proximidade de tais negociações. Della refez a conta três vezes. Um dólar e oitenta e sete centavos. E o próximo dia seria o Natal.

Claramente não havia nada mais para fazer a não ser afundar no sofazinho esgarçado e esganiçar. E foi o que Della fez. O que instiga a reflexão moral que a vida é feita de soluços, choramingos e sorrisos, com choramingos predominando.

Enquanto a dona da casa gradualmente transpunha o primeiro estágio para o segundo, dê uma espiada na casa. Um apartamento mobiliado a U$ 8 por semana. Ele não se encaixaria exatamente na descrição de indigência, mas certamente caminhava a passos largos para o grupo dos mendicantes.

No vestíbulo abaixo, havia uma caixa de correio na qual nenhuma carta chegava e uma campainha que nenhum dedo mortal apertaria. Ali também havia um cartão trazendo o nome “Sr. James Dillingham Young."

O “Dillingham” havia sido acrescido durante um período anterior de prosperidade quando seu possuidor estava ganhando 30 dólares por semana. Agora, quando a renda havia encolhido para U$ 20, eles estavam pensando seriamente em contraí-lo para um modesto e despretensioso D. Mas sempre que o Sr. James Dillingham Young vinha para casa e chegava ao apartamento, ele era chamado “Jim” e abraçado com força pela Sra. James Dillingham Young, já apresentada a você como Della. O que é tudo muito bom.

Della concluiu seu choro e cuidou de suas bochechas com o pó-de-arroz. Ela ficou perto da janela e olhou entediadamente o gato cinza caminhando sobre a cerca cinza num quintal cinza. Amanhã seria o dia de Natal e ela tinha apenas U$ 1,87 para comprar um presente para Jim. Ela havia economizado cada centavo que pôde por meses, com este resultado. Vinte dólares por semana não duram muito. As despesas haviam sido maiores do que ela calculara. Elas sempre são. Apenas U$ 1,87 para comprar um presente para Jim. Seu Jim. Muitas horas felizes ela havia gastado planejando algo legal para ele. Algo fino, raro e valioso — algo que se aproximasse um pouco da honra de merecer ser possuído por Jim.

Havia um espelho comprido entre as janelas da sala. Talvez você já tenha visto destes espelhos num apartamento de oito dólares ao mês. Uma pessoa magra e ágil pode, ao observar seu reflexo numa rápida sequência de tiras longitudinais, obter uma quase precisa concepção de sua aparência. Della, sendo esguia, havia dominado a arte.

De repente, ela precipitou-se desde a janela e estacou diante do espelho. Seus olhos resplandeciam, mas sua face havia perdido a cor dentro de vinte segundos. Rapidamente, ela havia desprendido o cabelo e deixado-o cair em sua plena extensão.

Agora, havia duas possessões das quais ambos os James Dillingham Youngs se orgulhavam. Uma era o relógio de ouro de Jim, que havia sido do pai e do avô dele. A outra era o cabelo de Della. Caso a rainha de Sheba vivesse no apartamento do outro lado do poço de ventilação, bastaria Della estender o cabelo na janela para secar para depreciar as jóias e dons de Sua Majestade. Caso o Rei Salomão fosse o faxineiro, com todos seus tesouros empilhados no porão, bastaria Jim puxar o relógio toda vez que passasse, para vê-lo arrancar a barba de inveja.

Então, agora o cabelo de Della pendia oscilando e brilhando como uma cascada de águas castanhas. Atingia para baixo do joelho e quase a recobria como uma veste. E então ela o prendeu novamente com nervosismo e pressa. Por um instante, ela hesitou e permaneceu imóvel enquanto uma ou duas lágrimas respingavam no desgastado tapete vermelho.

Vestiu o velho casaco marrom; vestiu o velho chapéu marrom. Com um rodopiar de saias e com o cintilante brilho ainda nos olhos, ela lançou-se porta afora e escada abaixo para a rua.

Onde ela parou, lia-se a placa: “Mme. Sofronie. Artigos capilares de todos os tipos.” Della correu um andar para cima e se deteve, arfando. Madame, grande, branca demais, cálida, dificilmente aparentaria ser a “Sofronie”.

— Você comprará meu cabelo? — perguntou Della.

— Eu compro cabelo — disse Madame.— Tire seu chapéu e vamos dar uma olhada nele.

Fluiu para baixo a cascata castanha.

— Vinte dólares — disse Madame, erguendo a massa com uma mão habilidosa.

— Pague-me rapidamente — disse Della.

Ó, e as duas horas seguintes passaram voando. Desculpe-me pela metáfora gasta. Ela estava esquadrinhando as lojas por um presente para Jim.

Finalmente, ela encontrou. Ele havia sido feito para Jim, e para ninguém mais. Não havia nenhum outro semelhante em nenhuma das lojas, e ela as havia virado de cabeça para baixo. Era uma corrente de platina simples e casta em seu design, apropriadamente proclamando seu valor pela própria substância e não por ornamentação meretrícia — como todas as boas coisas deveriam ser. Era até mesmo merecedora d’O Relógio. Assim que a viu, ela sabia que deveria ser de Jim. Era como ele. Quietude e valor — a descrição se aplicava a ambos. Tomaram dela vinte e um dólares, e ela se apressou para casa com os 87 centavos. Com aquela corrente em seu relógio, Jim poderia ficar apropriadamente ansioso quanto às horas em qualquer companhia. Grandioso como era o relógio, ele às vezes consultava-o furtivamente por causa da velha tira de couro que usava no lugar de uma corrente.

Quando Della chegou em casa, sua intoxicação deu lugar a um pouco de prudência e razão. Ela pegou o encaracolador, acendeu-o e esmeirou-se em reparar o estrago feito pela generosidade acrescida de amor. Que é sempre uma tarefa tremenda, queridos amigos — uma tarefa hercúlea.

Dentro de quarenta minutos, sua cabeça estava coberta por pequenos, rentes cachos que a faziam se assemelhar maravilhosamente a um ocioso colegial. Ela olhou seu reflexo no longo espelho, cuidadosa e criticamente.

— Se Jim não me matar — ela disse para si — antes que me deite um segundo olhar, ele dirá que me pareço como uma corista de Coney Island. Mas o que eu podia fazer — oh! O que podia fazer com um dólar e oitenta e sete centavos?

Às sete horas, o café estava pronto e a frigideira estava no forno quente e pronta para cozinhar as costeletas.

Jim nunca se atrasava. Della enrolou a corrente em sua mão e sentou-se no canto da mesa perto da porta por onde ele sempre entrava. Então, ouviu os passos dele na escada subindo o primeiro lance, e ela empalideceu por um instante. Ela tinha o hábito de recitar uma pequena prece silenciosa para as coisas mais simples do dia-a-dia, e agora ela sussurrou:— Por favor, Deus, faça com que ele ainda me ache bela.

A porta se abriu, Jim entrou e a fechou. Ele parecia magro e muito sério. Pobre sujeito, ele tinha apenas vinte e dois anos — e ter o fardo de uma família! Ele precisava de um novo casaco e não usava luvas.

Jim parou diante da porta, imóvel como um setter ao farejar a caça. Seus olhos estavam fixos em Della, e neles havia uma expressão que ela não conseguia interpretar, e que a aterrorizava. Não era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem terror, nem um dos sentimentos para os quais ela estava se preparando. Ele apenas a encarava fixamente com uma expressão peculiar em seu rosto.

Della se contorceu desde a mesa em direção a ele.

— Jim, querido — ela gritou — não me olhe deste jeito. Eu cortei meu cabelo e o vendi porque eu não conseguiria viver sem lhe dar um presente de Natal. Ele crescerá novamente — você não se importa, não é? Tive de fazê-lo. Meu cabelo cresce incrivelmente rápido. Diga “Feliz Natal!" Jim, e sejamos felizes. Você não sabe que belo — que lindo presente eu comprei para você.

— Você cortou o cabelo? — perguntou Jim, laboriosamente, como se ele não estivesse se dando conta do fato patente mesmo após o mais pesado trabalho mental.

— Cortei-o e o vendi — disse Della.— Você não gosta de mim tanto quanto antes, de algum modo? Sou eu sem meu cabelo, não sou?

Jim olhou para a sala com curiosidade.

— Você disse que seu cabelo se foi? — ele disse, com um ar quase de idiotia.

— Não precisa procurar por ele — disse Della.— Foi vendido, eu lhe disse — vendido. É Véspera de Natal, rapaz. Seja bom para mim, pois vendi-o por você. Talvez os cabelos da minha cabeça estejam contados — ela prosseguiu com uma súbita séria doçura — mas ninguém poderá contar meu amor por você. Devo preparar as costeletas, Jim?

Jim pareceu despertar rapidamente de seu transe. Ele abraçou sua Della. Por dez segundos, vamos abordar com discreto escrutínio uma matéria inconsequente sob outra ótica. Oito dólares por semana ou um milhão ao ano — qual é a diferença? Um matemático ou alguém sagaz lhe daria a resposta errada. Os magos trouxeram bens valiosos, mas este não estava entre eles. Esta asserção negra logo será iluminada posteriormente.

Jim tirou um pacote do bolso do seu casaco e o lançou sobre a mesa.

— Não faça mal juízo de mim, Dell — ele disse.— Eu não acho que haja algo de errado com o seu corte de cabelo, ou depilação, ou xampu que pudesse me fazer gostar menos da minha garota. Mas, se você desembalar aquele pacote, verá porque você me desconcertou, a princípio.

Dedos brancos e ágeis rasgaram o cordão e o papel. Então, um extático grito de alegria; então, credo! uma rápida mudança feminina para pranto histérico e lamentos, necessitando o emprego imediato de todos os poderes reconfortantes do senhor do apartamento.

Pois lá jaziam os Pentes — um conjunto de pentes que Della havia admirado desde há muito numa vitrina da Broadway. Lindos pentes, puro casco de tartaruga, bordas com pedras preciosas — no exato matiz para usar num belo cabelo evanescente. Eram pentes caros, ela sabia, e o coração dela havia simplesmente desejado e ansiado por eles sem a mínina esperança de possuí-los. E agora eles eram dela, mas as tranças que os adornos ambicionados adornariam não mais existiam.

Mas ela os abraçou contra o colo e, mais tarde, ela foi capaz de olhar para cima com olhar opaco, sorrir e dizer:— Meu cabelo cresce tão rapidamente, Jim!

Então Della saltou como um pequeno gato chamuscado e gritou — Oh! Oh!

Jim ainda não havia visto seu lindo presente. Ansiosamente, ela o estendeu na palma aberta. O opaco metal precioso parecia reluzir com o reflexo do espírito brilhante e ardente dela.

— Não é uma extravagância, Jim? Eu a cacei por toda a cidade para encontrá-la. Você terá de ver as horas cem vezes ao dia agora. Dê-me o seu relógio. Quero ver como ele fica nela.

Ao invés de obedecer, Jim deixou-se cair no sofá, pôs suas mãos atrás da cabeça e sorriu.

— Dell — ele disse — vamos pôr nossos presentes de Natal de lado e deixá-los lá por um tempo. Eles são bons demais para usarmos agora. Vendi o relógio para conseguir o dinheiro para comprar seus pentes. E agora que tal preparar as costeletas?

Os magos, como você sabe, são homens sábios — homens maravilhosamente sábios — que trouxeram presentes para o bebê na manjedoura. Eles inventaram a arte de dar presentes de Natal. Sendo sábios, seus presentes eram, sem dúvida, sábios, possivelmente tendo o privilégio de troca em caso de duplicação. E aqui eu desengonçadamente relatei a você a crônica desinteressante de duas crianças tolas num apartamento que, sem sabedoria, sacrificaram um pelo outro os maiores tesouros da casa deles. Mas, uma última palavra para os sábios destes dias, seja dito que, de todos os que dão presentes, estes dois foram os mais sábios. De todos que dão e recebem presentes, tais são os mais sábios. Em qualquer lugar, eles são os mais sábios. Eles são os magos.

*

O. Henry (1862-1910) era o pseudônimo usado por William Sydney Porter, um dos maiores contistas americanos do século e um dos autores mais populares do seu tempo. Nasceu na Carolina do Norte de família culta e abastada. A mãe morreu tuberculosa quando ele tinha três anos. Criado por uma tia, começou como aprendiz de boticário aos quinze anos e emigrou depois para o Texas, com sintomas de tuberculose. Casou e empregou-se como caixa num Banco, tentando ao mesmo tempo escrever comédia. Comprou um jornal, The Rolling Stone, que faliu pouco depois. Porter foi acusado de desfalque no Banco e fugiu para as Honduras, de onde regressou passados três anos para a cabeceira de sua mulher moribunda. Preso durante quatro anos numa penitenciária do Ohio, começou a escrever sob o pseudônimo de O. Henry. Saído da prisão, passou a viver em Nova Iorque, e embora extremamente popular, viveu o resto da vida recluso, no terror de ser reconhecido como William Sydney Porter, acabando por morrer alcoólico e na miséria. O. Henry foi autor original e fecundo, chegando a escrever praticamente um conto por semana. Entre suas obras estão "As sendas do destino", "No coração do Oeste" e "A voz da cidade".

Fonte: http://www.releituras.com/ohenry_menu.asp





quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Mariana Valle - poemas

Pegadas

Caminho na praia e deixo minhas pegadas na areia, marcas indeléveis no caminho da vida. Muitas vezes profundas, doloridas, por vezes suaves e sutis. Mas as marcas estão lá, como prova do que passei. Pé ante pé, cada vez com mais dedos. Assim vou chegando a meu destino. Ninguém pode alcançá-lo por mim. Só eu posso pisar. Dois corpos nunca ocupam o mesmo lugar.

Eu perco o sono e por vezes brigo e choro por causa da areia à frente, e das pegadas atrás, por causa dos pés a meu lado. Não importa. Um dia a onda vai me apagar.


5 sentidos


Me enrosco que gosto
no teu corpo desnudo
não escuto o mundo
pois me inundo
de tua pele e gemidos
meus cinco sentidos
só vêem você

Mariana Valle

Para ler outros textos da autora, clique aqui.





terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Revista SAMIZDAT entrevista Giulia Moon

Giulia Moon, autora do romance Kaori: Perfume de vampira, e de mais uma porção de contos tendo como protagonistas as criaturas mais badaladas da atualidade, fala à SAMIZDAT sobre ela mesma, sobre a diferença de escrever um conto e um romance, sobre os clichês da literatura de horror - e como não cair em suas armadilhas, e, é claro, sobre vampiros. Saiba mais sobre Giulia Moon em seu blog Phases da Lua (http://phasesdalua.blogspot.com). Sobre o romance Kaori, visite a página da obra na Giz Editorial.

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SAMIZDAT — Fale-nos um pouco de você, enquanto cidadã paulistana: quem é você, enquanto não está escrevendo ficção? Conte-nos um pouco de sua trajetória até publicar seus primeiros livros.

GIULIA MOON — Eu sempre tive habilidade para desenhar, herança do meu pai, seu Kazuo, que pintava à mão os painéis nas fachadas de cinemas paulistanos lá pelos idos dos anos sessenta e setenta. Com o tempo, esse tipo de atividade foi desaparecendo, pois os cinemas passaram a usar apenas letreiros luminosos nas fachadas. Lembro-me perfeitamente de meu pai pintando enormes painéis com as imagens do 2001: Uma Odisséia no Espaço, Sol Vermelho, O Dólar Furado e muitos e muitos filmes. Ele ampliava, com a ajuda de um episcópio, as imagens dos posters oficiais e depois os coloria no galpão que ficava nos fundos da minha casa. E deixava que eu pegasse pincéis velhos e restos de tinta para brincar.

Quando era adolescente, desenhei mangás e quadrinhos que serviam apenas para divertir os amigos. Nessa época comecei também a escrever contos, que também ficaram engavetados, pois nunca imaginei que poderia um dia publicá-los. Depois entrei numa faculdade de Comunicações, a FAAP, e me especializei em Publicidade e Propaganda. Fiz estágio em algumas agências e acabei trabalhando como diretora de arte na área de Promoção e Merchandising durante muitos anos. Nesse período fiz alguns trabalhos interessantes, como a criação dos personagens da Marisol, Lilica Ripilica e Tigor T. Tigre. Como publicitária, exerci várias funções: direção de arte, ilustração, direção de criação.

Em 2000, eu me encontrava meio entediada com os rumos da minha vida profissional. Havia conseguido um certo sucesso, mas não via muitas perspectivas além disso. Eu lia muito, principalmente livros de FC, Fantasia e Horror, e estava fascinada pelos livros da Anne Rice. Havia escrito, ainda como um simples passatempo, um conto de vampiros compridão, chamado A Dama Branca. Numa noite, navegando à toa pela internet, coloquei num buscador a palavra "vampiro". Surgiu um site brasileiro chamado Mundo Vampyr de fãs de vampiros. Comecei a explorar o site e, entre outras coisas, encontrei uma seção de contos. Resolvi então escrever um conto, "Um Tédio de Matar", uma história curtinha, do tamanho dos que estavam publicados lá, e enviei para o webmaster. Recebi quase em seguida um convite para participar de um grupo de discussão no Yahoo, a Tinta Rubra, composto de escritores amadores de contos de vampiros, pois o webmaster era o moderador do grupo. Foi assim que comecei a escrever regularmente nas minhas horas vagas. A Tinta Rubra trouxe também a oportunidade de mostrar o meu trabalho para um público mais amplo, fora do círculo de familiares e de amigos, e percebi então que talvez eu pudesse ambicionar algo maior do que simples passatempo na área literária. Acabei lançando o meu primeiro livro, uma coletânea de contos chamada Luar de Vampiros (Scortecci, 2003) graças ao incentivo dos participantes do grupo e, de lá para cá, tenho mantido uma produção constante, com mais dois livros de contos: Vampiros no Espelho & Outros Seres Obscuros (Landy, 2004) e A Dama-Morcega (Landy, 2006). Este ano lancei o meu primeiro romance, Kaori: Perfume de Vampira pela Giz Editorial.



SAMIZDAT — Giulia Moon é, segundo fontes seguras (rsrs) um nome artístico. Como é o seu nome de batismo, e por que a opção pela adoção de um pseudônimo? Você publica textos como "você mesma", diferentes dos textos escritos como Giulia Moon?

GIULIA — O meu nome real é Sueli Tsumori. "Giulia Moon" é um nickname que adotei quando entrei na Tinta Rubra. Ao invés de escolher, como os outros, um nome romeno vampiresco com títulos de nobreza como "condessa" e "lady", reuni dois nomes curtos que tivessem algum tipo de significado para mim. Eu sempre gostei do nome "Giulia", porque soava sensual, gracioso e fácil de ser pronunciado. E "Moon", porque sou uma apaixonada pela lua, adoro ficar devaneando sob uma lua cheia ou ler histórias que envolvam noites de luar – além de achar a grafia de "moon" muito legal, com os "o"s lado a lado, lembrando dois olhos arregalados de espanto. Quando lancei o primeiro livro, não havia razão para assinar de outra forma, já que a maioria dos meus leitores me conhecia como "Giulia Moon". E assim ficou. Nunca publiquei nada como Sueli, pois Giulia continua sendo, pelo menos para mim, o meu lado vampiresco, noturno, aventureiro – enfim, o meu eu que passava as noites teclando com amigos soturnos e escrevendo contos cruéis na Tinta Rubra.



SAMIZDAT — Os vampiros são um dos temas que, de tempos em tempos, voltam a ser moda. A que você atribui este fascínio que temos por estas criaturas?

GIULIA — Acho que as pessoas gostam de vampiros porque são, em primeiro lugar, vilões com um bom layout. São parecidos com os seres humanos, têm as vantagens da juventude eterna, imortalidade, dons psíquicos, força física. É um monstro que tem um arsenal de armas variado: a força, o poder psíquico, a sedução, a esperteza. Pode agir com a "mão pesada" ou com sutileza, dependendo da situação. Mas também pode ser sentimental, frágil, enfim, pode ter todas as fraquezas da mente humana, pois já foram humanos um dia. Para o autor, é um personagem muito estimulante, e isso faz com que o produto da criação tenha grandes chances de ficar bom. E, para o leitor, é aquele vilão (ou vilã) bonitão, sacana e malvado que adoramos odiar. Vilões assim sempre fizeram sucesso, pois adoramos esses contrastes: beleza com maldade, delicadeza com crueldade, e assim por diante.



SAMIZDAT — Com tantos autores, nacionais e estrangeiros, abordando o vampirismo, é possível fugir de certos clichês do gênero, ou ao fazê-lo corre-se o risco de descaracterizar o tema?

GIULIA — Bem, não existe uma lei que diga que tais e tais características são obrigatórias para um personagem vampiro. Acho que depende do bom senso de cada autor. Um bom senso que o faça reconhecer que, sem algumas características básicas, o seu personagem não é um vampiro, mas alguma outra criatura. Os vampiros do meu livro Kaori são os vampiros clássicos: predadores, bebem sangue (e só sangue), não andam a luz do dia, têm muita força e capacidade de se regenerar de ferimentos. Mas já escrevi contos em que os vampiros são seres microscópicos, por exemplo. Os clichês ruins são apenas aqueles que são mal trabalhados pelo autor.


SAMIZDAT — Muitos autores da nova geração encantaram-se com os vampiros por causa dos jogos de RPG, especialmente "Vampiro: a Máscara" (publicado no Brasil pela Devir). Você pertence a este grupo ou seu interesse é anterior? Qual foi sua inspiração inicial?

GIULIA — A minha inspiração inicial veio da literatura, do cinema e dos mangás. Só joguei RPG uma única vez, com alguns amigos. Eu adorei! É um jogo incrível, que faz uso de imaginação, de atenção, de perspicácia e é, antes de tudo, uma grande diversão. Mas mesmo àquela época eu não tinha tempo para frequentar as sessões de RPG e por isso não me tornei uma praticante. Tenho muitos leitores RPGistas e alguns deles estão até usando personagens dos meus livros para jogar. Deve ser bem interessante assistir Kaori, Kodo, Mimi e Missora inseridos num jogo de RPG!



SAMIZDAT — Em seu Kaori: perfume de vampira, você narra a história paralelamente em duas épocas e lugares diferentes: no Japão da Era Tokugawa, e na São Paulo contemporânea. É evidente que a porção moderna do enredo depende muito dos eventos narrados na parte do século XVIII. Mesmo assim, como foi o processo de escrita? Como você montou o romance? Foi escrito da forma como se apresenta, ou foram feitas duas tramas, e amarradas posteriormente?

GIULIA — Na verdade, eu tinha duas histórias na cabeça desde o início, e fui escrevendo as duas ao mesmo tempo, para que os detalhes de ambas fossem se entrelaçando. Pois mesmo que a história atual dependa mais da trama do passado do que o contrário, a forma de narrar o passado dependia também do que o leitor já sabia que ia acontecer no futuro. Por exemplo, todo mundo sabia que Kaori não morreria, pois ela reaparece na São Paulo de 2008. Mas a narrativa tinha que manter o leitor em suspense quando ela corria perigo no passado.

Às vezes, eu escrevia dois ou três capítulos no presente para depois voltar ao passado e vice-versa. Noutras vezes eu reescrevia alguns trechos para que se moldasse melhor à trama paralela. Foi um trabalho de verdadeiro artesanato, tecendo, cortando, costurando.



SAMIZDAT — Os protagonistas Kaori e Samuel aparecem em uma outra narrativa - um conto - segundo uma nota do romance. Quem veio primeiro: o conto ou o romance? Há outros personagens reincidentes, em outros contos? Você se sente tentada a escrever uma saga de três, quatro ou sete romances?

GIULIA Inicialmente, o conto "Dragões Tatuados", com Kaori e Samuel, fazia parte do esboço de romance que eu estava planejando. Quando recebi o convite de Ednei Procópio, editor da Giz Editorial, para fazer parte da coletânea "Amor Vampiro", tive a idéia de usar esse trecho para um conto, pois ele mostrava de uma forma interessante algumas facetas do amor de uma vampira. O conto fez sucesso e acabou abrindo caminho para a publicação posterior do romance.

Kaori já havia aparecido antes em dois ou três contos, alguns apenas como coadjuvante. A idéia dos famélicos já tinha sido lançada num conto chamado "Parasitas!", o vampwatcher já havia aparecido no conto "Mil e Trezentos Vampiros", ambos publicados na minha coletânea Vampiros no Espelho & Outros Seres Obscuros. Enfim, eu já estava delineando o universo de Kaori há algum tempo.

Quanto à saga, não sei se haverá tantos romances, mas estou escrevendo mais um livro dentro desse universo, pois sinto que ainda há muito nele a ser explorado.



SAMIZDAT — Sabemos que você era, essencialmente, uma narradora de contos. Como você define a diferença de escrever em um e em outro gênero?

GIULIA — A diferença mesmo é de fôlego. Assim como num conto a sua capacidade de síntese é posta à prova, num romance você precisa se dedicar a pesquisar, a se aprofundar e a detalhar. Um romance é um trabalho árduo, braçal, e de imensa concentração. Mas também é a ponte para uma ligação mais intensa e apaixonada com o leitor. Os contos são um exercício de imaginação, de criatividade, de habilidade. Um romance é, além de tudo isso, uma prova de resistência, de persistência e de foco.


SAMIZDAT — Você já tem um público fiel? Como seus leitores receberam o romance? Você tem algum feedback de seus leitores? É importante saber a opinião de quem nos lê, mas até que ponto você escreve para seu público, e em que medida você se mantém fiel ao que você quer escrever?


GIULIA — Os meus leitores receberam Kaori com festa. Acho que todo mundo que me conhece já me perguntou, em algum momento, por que eu não escrevia um romance, pois muitos dos meus contos tinham aquele jeitão de pedaços de algo maior. Senti, por parte desse público, uma grande alegria com a chegada de Kaori, uma recepção tão calorosa que até me surpreendeu. Por outro lado, com a publicação de Kaori, o número de leitores aumentou muito. Tenho recebido mensagens entusiasmadas comentando sobre o livro e os personagens. O engraçado é que eles leram Kaori, em média, em três dias, o que é surpreendente para um livro com quase quatrocentas páginas. Isso é um forte indício de que o livro cumpre bem a sua função de divertir e entreter o leitor, e estou bastante satisfeita com isso.

Quanto a escrever para o leitor, tenho a sorte de pertencer à grande fatia da população que adora se divertir com a leitura. Não acho que sou muito diferente da maioria dos leitores, por isso, sempre escrevo para mim mesma. Se não estou gostando do que escrevo, eu me entedio e não consigo ir adiante.


SAMIZDAT — Há um evidente trabalho de pesquisa sobre o folclore japonês em Kaori. Quanto tempo levou esse processo? A que fontes você recorreu? Há um ponto onde entra alguma "licença poética", ou você se manteve fiel à tradição?


GIULIA — A maior parte da minha pesquisa concentrou-se na História do Japão, que eu pouco conhecia, nem tanto para colocar dados no romance, mas para situar os personagens, seu comportamento, o ambiente em que vivem, na minha própria cabeça. As criaturas míticas de Kaori são bastante conhecidas pelos japoneses, é como se usasse Saci e Iara do folclore brasileiro, portanto não foi preciso muita pesquisa. Eu já conhecia os tengus e o nekomata de livros japoneses, mangás e filmes e só procurei me certificar de alguns poucos detalhes. Para isso recorri a consultas a sites que tratam do folclore japonês na internet. Quanto à fidelidade às lendas, no caso dos tengus de Kaori, usei apenas a forma visual original e brinquei com a idéia de uma criatura fantástica fazer uso da imagem de outra, pois eles não são tengus de verdade, e sim vampiros que se apropriam dessa lenda para incutirem temor às pessoas ingênuas da região. Quanto ao nekomata, mantive a maioria das características originais como as duas caudas, a possessão de cadáveres, etc.



SAMIZDAT — Você tem algum projeto em andamento? Pode nos falar um pouco a respeito?

GIULIA — Afora alguns convites para coletâneas, estou começando a escrever um novo romance dentro do universo de Kaori. Não posso detalhar muito a respeito, pois as idéias ainda estão se formando na minha cabeça, e tudo o que eu disser aqui pode mudar no instante seguinte. Pretendo mergulhar completamente nesse projeto a partir do início do ano, por isso devo "desaparecer" durante alguns meses para dedicar todo o meu tempo ao novo livro. Em 2010, completo dez anos como escritora, por isso quero iniciar o ano com força total!






domingo, 13 de dezembro de 2009

ÊXTASE

José Guilherme Vereza

Julio comprou um binóculo. Só para assistir mais de perto o que o edifício em frente ao seu oferecia de tipos e situações. A estréia do binóculo foi desastrosa. Viu uma senhora mudando a roupa e ao perceber que estava sendo observada, a velha abriu-se num exibicionismo agressivo e constrangedor.
Julio atirou o binóculo pela janela. Jurou a si mesmo extirpar o vício que colocava remorso, vergonha e fraqueza, juntos, embolados na boca do estômago. O ato impulsivo de puro arrependimento fazia parte de um ritual, que tinha início em palpitações, excitações, ansiedade, clímax e desaguava, sempre, em ânsias indigestas. Aos engulhos, livrou-se da imagem da velha.
Mas Julio não se emendava.
Passada a ressaca, resgatou o binóculo entre as folhagens do jardim do prédio, sem um arranhão na lente. Sinal de que a qualquer momento, a função poderia recomeçar. Não com a velha na mira, mas com outras atrações.
Descobriu um paraplégico que gostava de bolinar a enfermeira.
Dessa vez não se tratava de alguém que avançara na idade,
mas de um quase quarentão bonitão, condenado pelo destino a rodar pra lá e pra cá com sua cadeira num cubículo pouco mais digno que uma jaula no zoológico. A enfermeira aparecia toda terça-feira, para ajudar nas tarefas básicas, arrumação, refeições, banho e satisfações íntimas sempre indiscretas. Não cuidavam os amantes de preservar a privacidade e cometiam o sexo possível em grandes performances a poucos metros de lentes curiosas.
Era tudo tão evidente, que Julio percebia o ronronar da mulher sentada de cócoras em cada braço da cadeira, movimentando seu pélvis de cima para baixo bem no rosto do homem. Os braços potentes do paraplégico empurravam o corpo da enfermeira já totalmente nua para si, mãos enterradas nos glúteos, como que quisesse se deixar asfixiar e acabar para sempre aquela busca incessante pelo que não existia mais.
Julio não se contentava em ver o que via. Imaginava.
Classificou o paraplégico como um potencial suicida, que sonhava morrer gloriosamente tentando dar marcha ré à vida, retornando ao lugar de onde nunca deveria ter saído.
Um dia, quem apareceu na porta de Julio?
A enfermeira.
-Com licença, o senhor não é o sujeito que fica de binóculo espiando o que eu faço com meu cliente
Julio se encheu de coragem.
- Sou eu mesmo. Aliás, era eu mesmo. Joguei o binóculo no lixo. Nada acontecia de novo naquelas janelas.
- Pois é. Por causa disso, meu cliente está deprimido. Não se interessa mais por mim...
- Lamento... mas espiar os outros não estava me fazendo bem.
A mulher começou a soluçar.
- Na verdade, não sou enfermeira. Nem ele é meu cliente, nem paraplégico. Somos casados e alugamos de um amigo aquela quitinete, toda terça-feira.
Julio silenciou. Nem uma pálpebra mexeu.
A mulher se desculpou, agradeceu e saiu enxugando as lágrimas.
Terça seguinte, Julio comprou outro binóculo.
E diante das suas lentes, viu um casal exuberante, fazendo o amor dos amores, em cima de uma cadeira de rodas.
Com direito a uma cúmplice piscada de olhos da enfermeira.
Ou melhor, da mulher em êxtase.





quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Padres de calendário*

Maria de Fátima Santos

* Adaptação muito livre de uma crónica
apresentada no 3ºDesafio


A notícia dá conta de um calendário que tem em cada folha um padre. E eu leio e penso que é apenas um modo de actuar neste mundo de imagem. É até um método comum na Igreja Católica que nunca reprovou, antes pelo contrário, passar a papel os seus “santinhos”.
A notícia não me pareceu de molde a mais reflexão e muito menos a ser mote para crónica.

No entanto, a curiosidade falou mais forte e indaguei na Net: queria ver que padres eram esses. E juro que estarreci com a beleza dos moços.
Um calendário: doze meses, doze homens belos, um a seguir ao outro.
Doze homens castos desde o mês das Janeiras até ao Natal.
Doze padres soberbos: homens da mais pura beleza que Deus deu. Padres da Igreja onde um dia tomei baptismo e confessei pecados, e o sincero espanto do meu eu profundo, e uma plêiade de interrogações e ecos.
Eu que deixei de saber rezar há muito, vi-me a pedir: Senhor, afasta este cálice dos meus olhos; que Deus me valha, e na falta d’Ele, que me acudam fadas ou duendes, mas não me deixes memória destes doze acólitos, diáconos e padres.

Ainda tentei desvalorizar a intensidade desse meu sentir, lembrando a história de um outro calendário com senhoras entradas na idade. Engano, que as folhas de Janeiro a Dezembro com senhoras meio despidas a mostrarem os seus atributos na cozinha, não teriam a vitalidade de veículo de mensagem que eu pressentia nas folhas deste calendário a cheirar a beato.
E desatei a teclar a crónica que ora vos mostro.

Doze padres a ilustrarem os meses e vendem-se calendários desses em solo do Vaticano a esgotar tiragens!
Leva decerto a palma aos calendários de belos pares de mamas que forram as paredes da oficina de qualquer sapateiro ou outrem que tenha em boa estima a oficina.
E eu a imaginar a reacção do turista que entra e sai da Capela Sistina.
O calendário é dirigido a ele: como diz a notícia, em cada fotografia vem um informativo aos turistas que visitam o Vaticano.
O devoto, desprendido na sua condição de turista, a ser confrontado com cada um dos retratos e o seu conjunto: doze meses, cada mês um padre. Doze padres soberbos. Terá o turista ficado perplexo e apreensivo, a olhar em volta folheando sem saber se aquilo é coisa de Deus se do Diabo.
E ter-se-á benzido num gesto de afugentar conspícuos pensamentos, ou de ser perdoado dos que lhe vão surgindo.
Terá, decerto, rezado aos deuses da cristandade romana e apostólica e católica, ou que sejam outros os deuses e outra a irmandade, terá orado, estupefacto ao constatar que nem um dos fotografados, um que seja, esteja orando, de joelhos, ou prostrado em unção da fronte sobre o solo santo de uma Igreja.
Doze rapazes na força da idade. Doze futuros bispos. Doze potenciais cardeais. Um deles poderá ser, quem sabe de futuros, o chefe da Igreja.
E se é verdade, que uns tantos aparecem de paramentos brancos e doirados, rendas e chapéus, que todos envergam batina e colarinho branco, mais parece que os terão posto no intuito de despertar, a quem os olhe, o apelo a que se lhes trate com carinho o corpo, que se presume casto, ungido apenas pelos líquidos baptismais e outros igualmente santos. Nem se lhes associa, na santidade que é devida a cada homem da Igreja, salivares ou outros líquidos, que não seja o leite que lhes terá escorrido nos cantos da boca ao mamar, cada um deles, o maternal seio.
E eu, interrogando-me da intenção de quem colocou no mercado aquele material, imagino que o devoto turista há-de ter sentido o ferrete do pecado ao enfrentar os olhares de cada um dos padres daquele calendário. Terá clamado perdão a cada folhear, e na dúvida do préstimo para o espírito que teria aquele papel impresso, terá deixado pejada de retratos a Praça de São Pedro. Uma pena, que aqueles belos moços tenham sido assim espezinhados.

E constato que, via Net, a notícia foi divulgada a todo o recanto.
Andará meio mundo a enviar FW, e outros tantos a fazer cópias pirata: um clique, um jacto de tinta, e ali está o calendário estendido sobre a mesa de trabalho, resguardado por um vidro, ou colado na porta do frigorífico. Nem já é necessário ir ao santo solo do Vaticano para que cada um adquira a obra-prima que é o calendário.
Os mais devotos hão-de dependurar as doze folhas aos pés do leito em que repousam, e perante ele farão a oração da noite.
E estará aqui a lógica desta divulgação inusitada dos padres mais garbosos, carinhas larocas da Igreja: a finalidade inalienável deste calendário será fomentar a prece, zelar pela salvação das nossas almas.
Oraremos a olhar em cada mês um moço, a percorrer-lhe o rosto e o que demais possamos ver-lhe na foto; faremos oração imaginando-o a nosso lado, de mãos postas, a orar connosco. Uma vez por noite, doze meses, e ficaremos com um lugar cativo no Paraíso.

Ou talvez no Vaticano ande algum louco à solta, que disponibiliza pelo mundo os mais belos exemplares dos seus padres e diáconos, futuros bispos e papas, apenas para arrecadar uns cobres.

Ou, quem sabe, o alvo da promoção da padralhada mais jovem através do calendário, seja o de ir fazendo o caminho, avisando o povo, que a Igreja está mudando, que se preparem as beatas para um destes dias ser preciso que ajeitem paramentos nas suas sacristias: umas emendas nas mangas, um descer de bainhas, uns acrescentos nas opas, um entremeio de renda, com cachinhos de uvas e anjinhos: é que os padres que substituírem os que estão agora no activo, nem terão barriga, nem serão baixinhos.
Moços na força da vida, habituados ao ginásio e ao jogging, hão-de querer passar para outra hora a missa das seis da tarde, por via de que não empecilhe com o horário do squash.

E confesso que o calendário me sugere que a Igreja seria decerto outra, mais pujante, mais cheia de devotos nem só nos dias santos, se no supremo magistério estivesse um daqueles garbosos homens tipo Gary Grant já grisalho, já octogenário, mas que desse gosto ver falando, lá do alto daquela janelinha, ao seu povo. Um charmoso a transportar o ceptro em atitude triunfante e não de molde que a sua função mais se assemelhe à de um cajado.

Quiçá tenha o calendário por único fito angariar novos adeptos para o sacerdócio.
Uma mensagem contida em cada foto, do tipo: “você ficará bonito como noviço”. Ou, mais prosaico, mas mais incisivo: “seja um deles”. E ficar, assim, a Igreja com os mais jovens, saudáveis e belos homens de cada novo lote.

Ou, vendo a coisa noutro prisma, talvez tenham feito os rapazes apenas serem isco para angariar a devoção de moças jeitosas, belos cus e mamas, e assim dotar os locais de culto de beatas à altura dos seus padres: substituir nas funções as tradicionais mulheres viúvas ou esposas mal casadas e solteironas feias.

Venham pois mais calendários com moços padres e, porque não, uma primeira edição com fotos de freiras criteriosamente escolhidas…













fotos daqui











Domingo, dia santo


Maria de Fátima Santos
publicado aqui


Em nome do Pai e do Filho
A pia com uma pinguinha lá no fundo
E ela aspergindo água pelo rosto
Domingo, dia do Santo

A igreja à pinha
As famílias muito unidas
E ela
Sem mais do que a cadela
no adro,à espera

Chovia que Deus dava
Águas de Janeiro
Esfriara tanto
Em nome do Pai e do Filho
e do Espírito Santo

Ensopada de água
e de caminho
Sentada na pontinha de um banco
Ave Maria, balbucia
Como se rezando

Esfrega uma mão na outra
De mãos postas
Ela que semelha orando
Em nome do Pai e do Filho
e do Espírito Santo





O Rei dos Judeus


14 de Nisan, ano 3790 do calendário hebreu
Jerusalém, Judéia

Sim! Agora eu percebo claramente!
É agora que os céus se abrem e os anjos descem para me suspender?
Onde? Onde está o meu refúgio e a minha salvação, meu Pai? E as promessas com as quais Você me convenceu?
Aguda sensação de dor por todo meu corpo. Meus pulsos doem, meus pés também. Alguém está puxando o meu polegar do pé. Um cão. Sou o repasto das aves de rapina e dos cães selvagens. Prometeus crucificado. Em breve, o abutre de Deus pousará sobre mim para devorar meu fígado.

— Saia daqui, seu animal repugnante! — o soldado romano repele com sua lança o animal — Desculpai-me, vossa majestade. Estes cães não mais vos importunarão!

Sim! Vocês podem zombar e rir de mim. Eu sou o bode expiatório; vocês, romanos, são incapazes de compreender o destino dos hebreus. Nós nascemos para o cativeiro e para a morte. Nossa história é marcada pelo sangue dos nossos ancestrais; é na morte que nós renascemos e buscamos forças para persistir. Vocês estão certos, sou um rei, mas não deste mundo. Abaixo, estão Maria, João, Salomé e minha mãe. O meu Reino não é daqui, pois, se fosse, os meus seguidores teriam morrido por mim.

Ó Jerusalém, que mata os seus profetas! Ó cidade maldita, assentada sobre a nação mais infeliz do mundo. Serva ignóbil do invasor; verme de Sião; de vós exala o odor repugnante da carnificina; de vós exala o enxofre da corrupção. Vós, que foste a morada do rei, convertestes-vos nesta imundície que repele o olhar. Quisera eu estar mil vezes voltado para o monte Gerizin, local santo dos samaritanos, ou para Roma, a capital fétida dos pagãos, a morrer tendo-vos como panorama. É em vós que habita os corações endurecidos dos fariseus, a ganância dos saduceus, a intolerância e a soberba dos escribas; é em vós que reside toda a sorte de bandidos e assassinos; bêbedos e prostitutas. Ó Jerusalém, ó cidadela pútrida.

Foram muitos os dias que vaguei por estas ruas nojentas, rodeado por traidores e sacerdotes vorazes pela minha execução. Não encontrei nenhum ouvido cativo, nenhuma alma disposta a seguir-me até o mais profundo dos abismos. Aqueles em quem depositei minha confiança fugiram. Melhor para eles! Não estão agora dependurados por cravos como eu! Como dói o peso do abandono, mais do que o peso do meu próprio corpo que devo suspender agora para conseguir respirar. Eu cria que minhas palavras eram como ar para eles, mas não! Meus ensinamentos eram como manjares, que num dia se come e dele se farta, noutro, porém, se na ausência deste quitute, apenas o pão basta. Só que eu não posso deixar de respirar o Reino, pois ele sou eu. Renegar o que eu disse seria renegar a mim mesmo. Na verdade, a minha atual condição é apenas a devida conclusão da minha tortuosa missão.

Meses, anos, passaram como raios que rasgam o céu em noite de tempestade. Ninguém vê de onde vêm, tampouco onde caem. Tão rápido quanto estes relâmpagos sou eu. Do dia em que saí da minha vila até o momento em que cheguei em Jerusalém não se passaram muitas estações. Vivi menos primaveras do que gostaria; no entanto, penei demais nesta vida amarga. Deus me cumulou de belas palavras e do poder para inculcar fé nas pessoas mais humildes e ignorantes. Elas me seguiram até o dia em que isto lhes foi conveniente. Morrer por uma crença nunca foi nem jamais será agradável a pessoa alguma. Apenas profetas e loucos sacrificam-se por um causa.
E eu, o que sou? Profeta ou louco?

Olho para os soldados que me crucificaram e sinto compaixão por eles; amo-os, não dissimuladamente, mas com toda a sinceridade do meu coração. Olho para os sacerdotes que me maldizem e os amo; olho para João e Salomé, caros amigos, para Maria, adorada esposa, para minha mãe, e o meu peito se incendeia. Talvez seja o ar que entra rasgando com dificuldade nos meus pulmões. (É tão difícil inspirar nesta posição!). Mas talvez seja a flama do amor, a qual eu vim alimentando durante toda a minha vida. No início, eu temia o seu poder, mas fui obrigado a reconhecê-la como a minha maior arma. Se eu odiasse, eu não estaria aqui. Se eu odiasse, eu não estaria morrendo, mas sim matando. Se eu quisesse mal àqueles que me querem mal, tudo seria diferente. Mas eu amo! Amo as pessoas e os animais, o sol, a lua, a terra e as espigas que crescem no campo. Amo esta cruz que me mata! Talvez eu a ame mais do que tudo, porque, para mim, ela é libertação!

Fui iludido. Não há hostes celestiais para me receber no paraíso; não há som de trombetas. Não há nada. Um vazio me invade; um vazio mais forte que o amor. Estamos perto do fim. Acredito que, se alguém um dia se lembrar de mim, ele possa aprender uma lição: toda profecia, cedo ou tarde, se realiza. Eu sou o bode expiatório. Mas não purifico pecado algum, nem do meu povo, nem dos meus amigos, nem sequer os meus próprios. O único pecado que carrego sobre mim é o de falar a verdade. O maior de todos os pecados!

Meu Pai me esqueceu. Desviou seus olhos de mim e me deixou para morrer. Não sou o único; companheiros meus agonizam ao meu redor. Não só eles, estes soldados, os sacerdotes, meus amigos e familiares, toda a Jerusalém, agonizam. O fim está próximo e não haverá clemência para nenhum deles. Deus se disfarçou de ovelha, mas Ele é um lobo! Ele me fez acreditar que nos amava, obrigou-me a mentir para o povo, mas somente agora eu percebo: Deus criou um mundo imperfeito para nos castigar. Somos crianças levadas sofrendo uma severa punição. Não há anjos nos protegendo porque não merecemos. Nosso destino é o sofrimento. No fim, há somente a morte. Triste constatação, a mais pesarosa de todas. Basta desta vida! Não posso suportar mais!

— Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

Extraído da obra "O Rei dos Judeus"