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sexta-feira, 29 de julho de 2022

Menina Bonita

 


Nasci há cerca de meio século! Dito assim, parece horrivelmente antigo, mas a verdade é que nasci no século passado, na década de sessenta.

Era um mundo diferente, aquele para o qual abri os olhos, no longínquo ano de 1965. Governava António de Oliveira Salazar, num país, que há quatro anos via a sua juventude esvair-se para o “ultramar”, na chamada guerra colonial.

Quase não recordo os primeiros anos, claro, tirando uma ou outra história que, à força de ouvir contar tantas vezes pelos familiares, já não sabemos se se trata realmente de uma memória nossa.

As primeiras recordações que sei serem minhas, e que consigo datar, serão por volta dos cinco, seis anos, pouco tempo antes de começar a escola primária. A minha baliza temporal é a bandeira a meia haste que me recordo da minha mãe ter dito ser por causa da morte do Salazar que foi em 1970. Eram tempos muito diferentes, lembro-me da da leiteira que empurrava um carrinho e passava porta a porta a vender o leite a granel, da padeira com a enorme canastra à cabeça, por vezes a minha avó ou a tia-avó, que distribuía o pão. O cheiro dos cigarros “Definitivos” que o meu bisavô fumava, o sabor do toucinho salgado e das azeitonas da mercearia da esquina.  A moeda brilhante e o “Simolzinho” que o avô dava na pequena tasca, por onde passava ao fim do dia, ao regressar do emprego.

Em casa, o meu mundo, além da habitação propriamente dita, era o quintal partilhado com uma vizinha, onde havia couves, feijão verde e uma figueira que dava figos vermelhos muito doces. A vizinha tinha galinhas e coelhos. Nesse quintal, havia também o barraco, como chamávamos à pequena construção onde a minha mãe “tangia” a máquina de tricotar, com o rádio a transmitir o folhetim “Simplesmente Maria”. Era um mundo inteiro cercado pela porta para a estrada por um lado e pelos muros que separavam de outro terreno... desconhecido.

Não consigo saber quando nem porquê me comecei a interessar pelo outro lado do muro... talvez a curiosidade pelo desconhecido, talvez por ouvir vozes do outro lado ou possivelmente por escutar risos de criança.

Imagino que, quando saltei o muro a primeira vez, me deva ter sentido como o Flash Gordon pela primeira vez em Mongo, ou como os primeiros exploradores portugueses nas costas de África. Não ponho dúvidas que devo ter explorado todos os recantos daquele mundo novo que eram áreas extensas, muitas vezes maiores que o meu quintal, com casebres abandonados, árvores de fruto e duas casas habitadas, uma à esquerda e outra à direita da minha; Na da direita, rapidamente aprendi que não devia aportar o meu navio explorador naquelas paragens; Era a morada de um terrível e feroz animal! Só soube mais tarde que se chamava Dragão. Por mim, fiquei aterrado quando me vi frente àquela enorme e temível criatura, que saltava e espumava dentro de uma imensa jaula, ladrando a sua indignação pela minha ousadia e mostrando os enormes dentes com que ameaçava destroçar-me. De certeza que devo ter tido a minha quota parte de pesadelos com aquela horrível fera. Na da direita, encontrei um tesouro... a menina bonita, da minha idade, com compridos cabelos negros, aos cachos e uns vivos olhos castanhos que me olhavam com curiosidade e admiração.

Tornámo-nos, claro, companheiros inseparáveis e juntos vivemos aventuras maravilhosas a desvendar aquele mundo sem fim que era o terreno nas traseiras da minha casa.

De que falaríamos nós e quais seriam as brincadeiras, naqueles tempos longínquos, em que o mundo rodava devagar e vivíamos vidas inteiras, até que uma das nossas mães nos chamasse para comer. Cantávamos a canção da Tonicha que nos maravilhara os olhos e os ouvidos no festival da canção... ainda hoje, os versos da “Menina do Alto da Serra” me parecem que foram feitos para ti, a minha menina bonita de cabelos aos cachos:

“Menina de saia aos folhos,
Quem na vê fica lavado.
Água da sede dos olhos,
Pão que não foi amassado.
Menina do riso aos molhos,
Minha seiva de pinheiro.
Menina de saia aos folhos,
Alfazema sem canteiro”

Quando comecei a frequentar a 1ª classe, numa escola a poucas centenas de metros de casa, comecei a ver-te menos vezes, mas todos os minutos eram para saltar o muro e reencontrar a minha menina bonita de olhos brilhantes.

As minhas idas à mercearia para recados incluíam o livro onde era anotada a despesa para ser paga no fim do mês. Era o tempo em que os detergentes para roupa traziam, por  brindes, brinquedos para as crianças, que os rebuçados, vinham embrulhados em papeis que eram cromos para colecionar. O Helmer desesperava a tentar apanhar o Pernalonga, o Pápaléguas fazia gato sapato do coiote, o Daffy Duck e o Picapau endoideciam todos os restantes.

Quando passei para a 3ª classe houve um grande acontecimento, a nova escola primária, acabada de construir há uns anos, foi inaugurada com pompa e circunstância. Nunca tinha visto tantos e tão bons carros, consegui ver até o professor Marcelo Caetano e eu e mais umas dezenas de crianças não perdemos a oportunidade de correr ruidosamente atrás da viatura oficial.

Os quadros afixados, um de cada lado do crucifixo que dominava a parede sobre o quadro negro, agora tinham outro significado. Uns meses depois, tiraram-nos... dizem que por causa da liberdade, na altura não percebi muito bem. Por outro lado foi fantástico terem vindo demolir o muro que separava o recreio das meninas e dos meninos. Agora podíamos fazer tropelias numa área muito maior.

De repente, gritava-se “Viva a liberdade!”, todos andavam com cravos vermelhos ao peito e a “Gaivota voava com asas de vento e coração de mar”.

“Uma gaivota voava, voava,
Asas de vento,
Coração de mar.
Como ela, somos livres,
Somos livres de voar.

“Tomaram conta da quinta dos carros!”, disse-me um colega e eu fui ver; Os portões estavam escancarados e as paredes cobertas de letras pintadas em vermelho, os jardins da entrada estavam cheios de caixas, móveis, lixo... uma pena.

Também eu e tu, menina morena, do cabelo aos cachos, brincamos aos soldados libertadores, que expulsaram os homens maus que não deixavam que fossemos livres... o que quer que isso quisesse dizer.

Agora éramos mais... e tu tinhas duas primas que começaram a vir brincar connosco e eu tinha o meu irmão mais novo e o meu primo. Os seis, éramos um exército difícil de dominar. Foi nesses dias maravilhosos que revivemos os episódios da novela “Gabriela”, tu a bela Gerusa e eu o apaixonado Rômulo. Meses mais tarde, estávamos na base lunar, que seria construída num futuro longínquo,  em 1999. Tu a enigmática doutora Helena e eu o sisudo comandante Koenig.

Era a chegada dos retornados e por todo o lado havia pessoas, umas tão brancas como nós, outras nem tanto, que falavam um português diferente e olhavam-nos com sobranceria... enfim, quando cá chegaram, eu já cá estava, não precisei deles até àquele momento, não iria ser agora que iria precisar. Uma vez, fui a uma mercearia acabada de comprar por um desses retornados e, coisa que nunca tinha visto, andavam atrás de mim a ver se roubava alguma coisa!!! Do alto dos meus onze, quase doze anos, nunca disse nada a ninguém, mas a ofensa bastou-me e nunca mais lá pus os pés.

No ano seguinte, o espaço 1999 tinha que dividir o seu espaço com a escrava Isaura e eu fui o malvado Leôncio que tudo fazia para te prender a ti a doce e inocente Isaura.

Nessa época de descobertas, foi fácil perceber que o feminino e o masculino se atraem em todas as espécies e a aproximação entre mim e a tua prima estava a provocar efeitos em nós. Foi fácil roubar um beijo trapalhão. Quando nos surpreendeste, éramos demasiado jovens para perceber a tua indignação, e eu, como um idiota, achei que estavas apenas preocupada com a tua prima...

Aquele foi o último ano que brincamos juntos. Com a entrada para o ensino secundário, o tempo era pouco e as novas amizades, criaram laços que nos puxavam em direções diferentes.

O “mundo” continuava em revolução. Ramalho Eanes foi eleito presidente da republica e Mário Soares o primeiro ministro... as coisas estavam más para a política, foi a primeira vez que ouvi falar em FMI. No Vaticano, assumia o papado João Paulo II.

Continuei a ver-te, mesmo assim, a espaços até ao dia que fizeste a tua festa de quinze anos, ali mesmo, num dos edifícios abandonados, daquele mundo perdido que outrora desvendaste comigo. Era ainda a época dos bailes de garagem. Durante uns dias, enquanto preparávamos o espaço, contatei de novo contigo. Os teus olhos brilhantes, o teu cabelo negro, ondulado, traziam recordações e nostalgia. Lembramos as nossas brincadeiras e os teus olhos pareceram brilhar ainda mais. No tão esperado dia da tua festa, havia muita gente que eu não conhecia. Os teus amigos novos, chegados contigo de um mundo onde eu não existia. Fomos dançar e senti em ti, na tua flexibilidade e leveza, um grau de evolução muito superior ao meu, mais mulher, mais adulta. Mas foi quando te vi dançar com os teus novos companheiros, com o teu novo amigo, que eu percebi que, a menina bonita dos cabelos negros e olhos brilhantes, já não era minha.



À "minha" eterna Zézinha 
1964-2018






segunda-feira, 25 de julho de 2022

Ponto de encontro

 

O tempo era de liberdade. O regime autoritário e conservador de décadas caíra dois anos antes. Cada um entendera os novos tempos segundo as suas aspirações. Alguns chamaram-lhe libertinagem e advogavam travagens sociais, depois das políticas.

Para Marco, acabados os fulgores da utopia revolucionária, era tempo, sobretudo, de continuar a aproveitar o relaxamento do controlo social e das regras morais apertadas de antigamente. Gostava da legitimação que lhe dava a expressão “Tirar a barriga de misérias”. Resumindo: desfrutar os prazeres da libido, tanto quanto sabia. Tanto quanto conseguia. E diversificando, sempre que possível.

Várias linhas longitudinais paralelas no interior do cinto, como mapa ferroviário, só esperavam receber nomes femininos para começar a ser marcadas com estações e apeadeiros, como as outras mais próximas da fivela.

No vigor dos seus 28 anos, o único problema era o da oportunidade, ou antes, o da capacidade de criação de novas oportunidades. Porque, mais do que acrescentar marcas, o objetivo inconfessado era gravar mais e mais novas linhas.

Certa manhã de domingo, o telefone acordou-o com um convite de saída: Etelvina ia sair com uma amiga e o namorado dela e… faltava um.

Boa! A que horas me vêm buscar?

A linha de Etelvina já contava com quatro ou cinco estações, mas, na altura, Marco estava sem carro; já era bem bom conseguir marcar mais uma estação, mesmo que não fosse numa linha nova.

O namorado da amiga tinha um grande carrão e, depois de um passeio pela serra da Arrábida, levou o grupo para uma pequena vivenda para os lados da Lagoa de Albufeira. Um gira-discos criou o ambiente propício para dançar. Apesar de se sentir a falta da potência do som e da vozearia das boites, foi-se criando boa disposição e até algum enleio de sedução que Marco terá insinuado e Marília, a amiga, terá apreciado.

A batida animava, os olhos claros e o volume de outros encantos do novo conhecimento ajudavam ao empolgamento de Marco, pela perspetiva de nova aquisição ferroviária; perdão, sensual. Ambos tentavam fingir que a interação era a normal num pequeno grupo de amigos, animado pela dança, mas se Etelvina via com razoável conformismo a possibilidade de troca, o namorado de Marília já não estava a gostar da brincadeira. Afinal, o carro era dele, a casa era dele, e fora ele que trouxera a mais apetecível sobremesa. Resolveu esclarecer que o encontro era de divertimento entre amigos e não de troca de casais. Por outras e conciliadoras palavras. Mas sem margem para evasivas.

Sem problema. Cada um dos aspirantes a promíscuo mostrou-se muito humilde e cumpridor do status instalado, mas estava só a adiar o que ali apetecera. Nessa noite tiveram de se contentar com o prato do dia, mas já com água na boca para o sabor que se esperava sofisticado das iguarias que se adivinhavam. Mas que não perdiam pela demora.

No dia seguinte, Marco combinou um almoço com Marília no “Ponto de encontro”, um restaurante em Alvalade.

Já tinha uma partida de ténis marcada para esse dia, o seu próximo dia de folga, mas não quis arriscar um adiamento do almoço. Havia que soprar na brasa enquanto estava acesa.

Ainda pensou tentar alterar o ténis, mas achou que a boa disposição que o exercício físico lhe transmitiria seria uma boa garantia para uma companhia divertida e enérgica. Além disso, duas horas e meia chegavam para as três partidas do costume. Dava mais que tempo.

No dia da possível inauguração da nova ferrovia, a primeira partida decorreu bastante disputada, mas Marco ganhou-a. A segunda foi para o colega, com alguma facilidade. A terceira, a decisiva, foi outra vez renhida. Foram a tie-break por várias vezes.

Esses prolongamentos eram bem-vindos, mas começavam a preocupar Marco, que via a hora marcada com Marília a aproximar-se perigosamente. Eram tempos muito anteriores aos telemóveis; não podia avisar que talvez chegasse atrasado. E não tinha coragem de pedir ao amigo para deixar o encontro a meio, ele que, mais uma vez, o tinha ido buscar à porta de casa. Decidiu que, se chegasse atrasado, pediria desculpa pelo atraso e tudo ficaria bem. Como era frequente no emprego.

A ganhar por 6–5 e a servir para match-point, Marco bateu potente e colocado. Se ganhasse aquele ponto, ganhava o encontro e ainda conseguiria chegar a horas ao almoço. O amigo defendeu o serviço com dificuldade e em desequilíbrio. Era o fim, felizmente. Calculou Marco e sentiu-o dolorosamente o adversário, que viu a sua bola seguir baixa a dirigir-se para a rede. Caprichosamente, talvez até por alguma ajuda da brisa, a bola bateu na parte superior da rede, subiu talvez meio metro, caiu ainda sobre a aresta da rede e… tombou para o campo de Marco, que corria desesperado.

«Azar ao jogo...», pensou, a tentar confortar-se. Na prática, aquele ponto perdido exigia prolongar o encontro por, pelo menos, mais duas bolas. Para seu maior constrangimento, o amigo empatou a partida e foram novamente a tie-break. A diferença abismal de ânimo dos jogadores ditou o resultado final. A Marco já não interessava ganhar nenhuma bola. Avançou decidido para a derrota.

Em vão. Quando chegou ao restaurante, passava meia hora do combinado. Afogueado, percorreu as salas, na expectativa, à entrada de cada uma, de encontrar Marília sozinha numa mesa, mas não estava. A boa disposição física esmoreceu até se transformar em cansaço e apatia. Abusara da sorte.

Nos dias seguintes, telefonou várias vezes para a casa de Marília, mas a mãe dizia sempre que ela não estava. Viu-a vários meses depois, num dia de folga em que, já com carro, foi passar o dia à praia do Meco. Vinha a caminhar pelo areal com um pequeno grupo de rapazes e raparigas, que seguiram, enquanto ela parou a cumprimentá-lo. Ambos nus, como quase toda a gente naquela praia de nudistas, mas sem desfaçatez para se desfrutarem, ao menos, com o olhar, deram os dois beijinhos da praxe, trocaram três trivialidades e seguiram.

«Aquele ponto...», amargurou-se Marco. Ali terminava o projeto de uma linha que, sem estações nem um mero apeadeiro, não chegara a ter movimento. Só a mudança de agulha de uma automotora que, reluzente, ainda se divisava ao longe.

Joaquim Bispo

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Imagem:

Claude Monet, Gare Saint-Lazare, Chegada de um comboio, 1877.

Museu de Arte Fogg, Universidade de Harvard, Cambridge, USA.

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terça-feira, 19 de julho de 2022

Amargor

 


Ouvi dizer que há solução para uma vida vazia. Mas as mesmas pessoas que ladram isso reforçam o estereótipo de que não é possível. Elas mentem e se enganam o tempo inteiro. Parece que jorram abobrinhas porque não têm o que falar. São, igualmente, almas vagantes da existência. Flávio, um amigo muito próximo, entrou na onda de empreender. Foi cooptado pela nova febre da liderança coaching. Quer me vender um troço mesclado entre terapia e direcionamento, quando ele, o próprio, sequer tem prumo. Foi, recentemente, vendedor de produtos de “nutrição revolucionária”, florista, empreendedor do ramo de circulação urbana (Uber), e, agora, diz que definiu o seu destino, ou seja, ajudar pessoas a encontrarem o seu mundo. E o pior, ele leva no papo uma ruma de desesperados. As pessoas querem resultados fácies, ou a expectativa de algo promissor. É só conferir o tanto de gente que cai em armadilhas de pirâmides de criptomoedas. Na verdade, embalam um sonho de sucesso; que, por seu turno, tem a ver unicamente com o dinheiro. Sendo Flávio um amigo muito presente, boa praça e atencioso, não quis lhe desmotivar, dizer que não o faria por não acreditar etc. e tal. Ainda sabendo que Flávio não é afeito a conselhos, fiquei na dúvida se deveria orientá-lo – eu, um fracassado, não tanto da mesma laia. Não tenho a capacidade de desmanchar sonhos, muito menos de ser o tutor de um homem crescido, dono do seu nariz. E, veja só, Flávio alega que tem em consideração, como referência, o sucesso de Porfírio, nosso amigo de infância. Ora, Porfírio nasceu em berço de ouro e foi introduzido, muito novo, no ramo empresarial de castanhas e derivados do caju, uma fruta rica, nordestina, exportada para vários países. “Jota, Porfírio entendeu o que lhe disse e está montando um novo plano para alavancar. Vai dar certo, você vai ver!”. Acho que por piedade, ou pena, Porfírio “embarca” nas ideias de Flávio; compra seus cursos, ajuda na aquisição de materiais e numa infinidade de coisas. Claro, Porfírio é amigo até debaixo d’água, como dizem; quantas vezes não me socorreu?! Incontáveis. É, para nós, um irmão. A ingenuidade de Flávio me comove e me preocupa. É sério que ele espera que alguma de suas dicas seja levada em consideração por Porfírio? A questão é que Porfírio dá a entender que Flávio está certo e entra no jogo. Outro dia, pediu que eu não o desmotivasse; que o “menino” estava tentando se dar bem, e que dessa vez parece que tinha se encontrado. Como fiquei com raiva de Porfírio! Disse a ele que nós, como irmãos, devíamos nos orientar pela honestidade; que o que estávamos fazendo com Flávio era inventar uma nova função para a roda: nenhuma; mais do mesmo. Porfírio emendou, com a cara amarrada, que eu não teria esse direito de desvirtuar o que poderia dar certo, de verdade; devíamos pagar para ver; que as pretensões de Flávio não eram crime, pelo contrário, ajudaria pessoas emocionalmente perturbadas, depois da pandemia, a descobrirem o seu caminho. “Jota, Flávio é um ‘menino’ de coração puro, humano, decente. Deixe-o ser feliz!”. Na saída, Porfírio quis me oferecer uma grana, porque sabia que eu estava passando por dificuldades – óbvio, está estampado na minha cara. Perguntei, sem pensar, se isso era para comprar o meu silêncio. De imediato, Porfírio se trancou, baixou as sobrancelhas – o que é bem típico quando fica furioso – e saiu, sem mais. No fim das contas, terei de suportar as venetas de Flávio e a bondade franciscana de Porfírio. O amor é mais importante que o amargor que estou sentindo.





domingo, 17 de julho de 2022

Crisálida - poema de Fernanda Estácio

 










Fernanda Estácio nasceu em São Paulo, em julho de 1983. Frequentou o curso de Letras entre 2002 e 2007 na Universidade de São Paulo e, atualmente, é professora de Língua Portuguesa, da rede privada. O poema faz parte do livro “Acordar”, da Editora Patuá.














sábado, 9 de julho de 2022

Sensatez


  

Era a conselheira afamada de todo aquele bosque. Começara modestamente, muitos anos antes, escutando e aconselhando apenas as muitas corujas que ali viviam. Mas aos poucos, à medida que a sua fama alastrava, começara a ser procurada por outras aves, até de locais bem distantes, e pelos pequenos animais que conseguiam trepar pelos ramos da vetusta árvore onde habitava.

O movimento era tal que a certa altura, e por consenso geral dos habitantes do bosque, fora convidada a mudar-se para uma abertura no tronco dessa mesma árvore, quase ao nível do solo, que diversos animais alargaram e ampliaram de modo a tornar-se um local confortável onde pudesse passar a receber todos os que dela necessitavam, fossem ou não voadores ou trepadores.

Foi ainda decretada a proibição de caçar num raio de 500 metros a partir do “consultório”, para impedir que predadores mais “espertos” ficassem simplesmente à espera de que fosse ou viesse da consulta. E para que se pudesse dedicar totalmente ao bem-estar dos outros animais, foi estabelecido um sistema de entrega de refeições – a cargo dos predadores – e de arranjo da clareira e da sua habitação – tarefa dos que não caçadores.

A vida prosseguiu calma e rotineira durante longos anos, sendo a nossa “Doutora” Coruja cada vez mais procurada. Como o interior do tronco era bastante escuro, podia receber durante algumas horas do dia animais diurnos, sem incómodo excessivo para os seus olhos adaptados à noite.

Sem necessidade de caçar e indolente por natureza, raras vezes se ausentava, limitando-se a um pequeno voo ao crepúsculo, para manter a saúde e a tonicidade das asas. Enfim, uma espécie de passeio higiénico.

Mas um dia ocorreu a uma das raposas do bosque que mais dia menos dia iriam ter problemas. Apesar de gozarem de vida longa, nenhuma coruja é eterna e quando a Doutora morresse, quem passaria a aconselhá-los?

Após muitas confabulações, foi decidido dar-lhe uma aprendiza, coruja, claro, que fosse aprendendo com a mestra e a pudesse um dia substituir.

Apesar do incentivo de comida certa e uma vida sem trabalhar, bom, pelo menos para sobreviver, não houve exatamente um enxame de candidatos. A escolhida teria de ser jovem – sim, de que serviria uma aluna idosa exceto causar a curto prazo o mesmo tipo de problemas? – mas não em demasia a ponto de ter a estouvadice da adolescência. E a ideia de passarem uma boa parte do dia e da noite enfiadas numa toca não era exatamente aliciante para aves novas que tinham prazer em voar e explorar o mundo à sua volta.

Houve de facto apenas uma candidata, um corujinha que ferira uma asa durante o seu primeiro voo e que mal conseguia sobreviver, alimentando-se muitas vezes de restos de outros animais, mas sempre à socapa por saber perfeitamente que era uma presa fácil.

A ideia de passar a comer bem e era um motivo mais do que suficiente, isto para além de se tornar inviolável, nem o predador mais esfaimado ousaria atacá-la. E ter de passar a maior parte do tempo no mesmo sítio não a perturbava, voar fazia-lhe doer as asas, pouco diferente seria.

Foi pois aceite pela comissão encarregue da escolha, sob a condição, claro, de ser aprovada pela Doutora.

Obtido o seu acordo, a corujinha instalou-se num canto da toca, de onde poderia ouvir e ver tudo, mas passando despercebida na escuridão que ali reinava. Poucos sabiam deste arranjo e, assim, os pacientes podiam continuar a expandir-se à vontade na convicção de que tudo ficaria apenas entre eles e a sábia coruja.

Sendo organizada por natureza, a corujinha arranjou um grande bloco e duas canetas de cores diferentes para ir tomando nota do que os pacientes diziam e das sábias respostas da Doutora, tudo com muitos sublinhados e espaço para as suas notas e opiniões pessoais. Tinha ainda um caderno onde planeava ir anotando os casos de acordo com o tema tratado, formando assim quase um compêndio de casos e tratamentos. Sim, a nossa corujinha tinha alma de académica!

Os meses foram passando e a corujinha, agora bem gordinha e lustrosa graças à boa alimentação servida a horas certas, lá ia anotando zelosamente tudo o que os pacientes diziam, indo já no seu sexto bloco. Mas as linhas destinadas às sábias palavras da Doutora continuavam totalmente em branco. Esta limitava-se a fechar um dos olhos, ou ambos, virava ligeiramente a cabeça, num ou outro caso extremo emitia um som impossível de reproduzir e que tanto podia ser assentimento, negação ou pergunta, mas, à parte os cumprimentos e despedidas da praxe, não abria a boca, por muito longa que fosse a consulta.

Depois de muito matutar, a nossa corujinha encheu-se finalmente de coragem e atreveu-se a questioná-la num belo dia em que estavam sozinhas:

- Mestre, não entendo a razão da sua fama. Nestes meses que passámos juntas nunca lhe ouvi uma palavra, uma frase, muito menos um conselho. Mas todos juram que foi graças a si que resolveram certos problemas ou que encontraram o caminho certo.

Após um curto silêncio, a sagaz coruja dignou-se esclarecê-la, mas não antes de a fazer jurar segredo eterno.

- Sabes, descobri há muito que os que me consultam não estão minimamente interessados na minha opinião. No fundo, já sabem muito bem o que têm de fazer. Mas pensar dá trabalho e é algo que a maior parte evita. E tomar decisões, sobretudo difíceis, exige um tipo de coragem que pouca gente tem. Virem aqui, exporem-me os seus problemas ou dúvidas, nada mais é do que dizerem em voz alta o que não ousam dizer a si mesmos, nem sequer mentalmente. Limito-me, pois, a fazer sinais ou a emitir sons ininteligíveis que interpretam como apoio ou não, consoante o que já pensavam antes de virem.

E continuou:

- A verdadeira sageza não está em dar bons conselhos ou orientar os seres para onde achamos que devem ir. Quem melhor do que eles sabe o que resulta para si mesmos? Não, a verdadeira sageza está em levá-los a fazerem o que já sabiam que tinham de fazer, o que sabem que é correto, por muito complicado que seja, mas deixando-os convencidos de que foram para aí levados por um ser superior, bem mais sensato do que eles.

Luísa Lopes





domingo, 3 de julho de 2022

CRÔNICA DE UM FRACASSO PRENUNCIADO


 

         

Eu hoje estive vendo uma galeria de pessoas derrotadas, mas com gritos de certeza numa espécie de vingança futura. Eu estava entre eles em pensamento e se eu estivesse lá de fato, certamente estaria gritando como eles as mesmas palavras-de-ordem, superando a derrota do dia e sufocando a sequência das derrotas diárias. Há 30 anos fazemos isto, ou seja, oscilamos entre o suicídio e o grito. Eu teria gritado, mas depois em casa eu pensaria no assunto, já com a ressaca moral das derrotas acumuladas.

Está cada vez mais difícil “arrancar alegria ao futuro”. Não sei, mas penso que se houvesse uma mudança ela seria, talvez, mais uma manchete nos jornais e a nossa vida prosseguiria, infelizmente, da mesma forma. Estamos ao largo das coisas do mundo e as alterações de percurso já não nos atingem pois estamos já fora do curso das coisas.

Hoje, depois de 10 anos, eu reconheço uma pessoa que conheci no afã estudantil. Bem no início da luta pela vida. Estávamos na mesma sala de espera, lutando por uma perspectiva melhor de vida. Enquanto esperávamos, cheguei a compor alguns versos banais enaltecendo a sua beleza e a sua calma, típica de quem vai, certamente, abarcar alguma coisa. Ela apertava os livros contra os seios e caminhava pelos corredores de espera. Seus cabelos esvoaçavam e eram longos e lisos. Dez anos depois eu a reconheço praticamente na mesma situação em que estávamos e em que estou ainda, quer dizer, nos corredores de espera. Apenas que agora somos pessoas adultas e já resignadas com a merda.

Será que nada mudou desde então? Alguma coisa sempre muda na periferia da vida. Ela hoje está de cabelos curtos e o corpo mais velho ainda lembra as antigas formas desafiantes ao mundo. Parece que o aspecto prático inundou tudo. Trabalha e vende roupas nos intervalos do expediente de trabalho. As calças jeans deram lugar aos moletons de malha que sempre me pareceram pijamas.

Ela não me reconheceu de imediato e mesmo eu tive uma certa dificuldade em reconhecê-la, pois a vida, às vezes, obscurece a vista. Seguimos por caminhos diversos que nos levariam, por uma série de coincidências e acasos fortuitos, ao mesmo ponto onde agora estamos, ou seja, na cela pública e comum onde nos debatemos. O que prova que a vida é cíclica. Cíclica sem sair do lugar de onde começou a rodar.

Não me apresentei. Não me identifiquei. Hoje eu me escondo atrás de uma grande barba e estou quase sempre indisponível para a vida. Muitos dos meus amigos já morreram, outros se afastaram e o fato comum de termos as nossas vidas destroçadas na verdade não têm muita importância. Apenas que temos os nossos filhos para criar e reconhecer esta pessoa hoje, 10 anos depois, despertou em mim uma súbita nostalgia de quem se aproxima do fim tendo como bagagem apenas a melancolia das malas vazias.

Revejo meus livros e meus (des)apontamentos e percebo que tenho, além das gavetas, uma cabeça abarrotada de tudo e com tendência ao vazio. O tempo é inexorável e dilui a beleza da existência, como de fato se diluiu em nós em nossa miséria funcional. Atualmente eu me sinto como um velho poeta de trinta e poucos anos enquanto que ela ainda é de certo modo bela, mas de uma beleza destituída de especificidade e de sonhos.

 

PS: Estou agora no meio das galerias de onde jogamos papéis picados sobre os nossos adversários. Queremos um pouco e precisamos ainda “arrancar alguma alegria ao futuro”, por isso rompemos às vezes o nosso silêncio e permitimo-nos um pouco de humanidade e ternura para conosco e para com os de nossa geração.