Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A margem móvel da vida


Nosso pai era homem erradio, vagamundo, andejo; e sido assim desde mocinho, pois que alcançou as terras goiases fugido do cabresto do pai. Arribado que vinha dos Gerais, mal aportou no lugarejo de nome Buriti, nosso pai ganhou a alcunha de Zé Mineiro. Ali chegou, ali se enamorou de nossa mãe, ali casou. Era de crer que o casamento, os filhos, a vida correndo nas margens do esperado, fizessem nosso pai engaiolar a natureza indomada. Assim foi por alguns anos, no devagar depressa dos tempos. Logo se viu que nosso pai tinha se enraizado nos rasos do chão. Aí se deu que, certa noite, nosso pai não quis mais as rédeas conjugais e derrubou desembestado as cercas do casamento. O amanhecer de seu sumiço foi duro. A gente – eu, minha irmã, nossa mãe – teve de se acostumar com aquilo e moer no asp'ro a dor do abandono.

Nosso pai, ser-tão calado quando em casa, quase ensimesmudo, era homem alegre, boêmio, ridente, pelo que testemunhava a companheirama com quem se repartia nos longes de casa. Nossa mãe era quem regia no diário a vida da gente. Mas, descontente, desgostosa dos seguidos descabeceios do marido, deu pra dispor no ninho os espinhos da sua crescente insatisfação – até que nosso pai montou no quatrolho-quatralvo da liberdade e foi demandar outras paragens.

Na noite em que nosso pai esporeou o alazão do desnorteio, acho que nossa mãe não teve tempo de lhe sentenciar: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”. Nosso pai voltou, mais de ano depois, no devagar demorado de qualquer espera. E voltou como quem apenas tivesse ido cumprir o imperativo de exercitar as asas. Nem se soube a que partes nosso pai tinha ido. Nem importava. O coração de nossa mãe, de mistura ainda com a dor do abandono, voroçou-se alegre, reflor. Alegres da alegria de nossa mãe, eu e minha irmã nos alegramos também. A permanência de nosso pai durou pouco mais que o tempo de ele botar mais um ovo no ninho. Não demorou e as desassossegadas asas lá foram cumprir seu destino de voar sem ter parada. No ninho, agora, eu, minha irmã, meu irmão – e a força de nossa mãe de tudo fazendo para que o ninho resistisse ao tempo e ao vento. E resistiu.

De nosso pai nunca tive esquecimento, mesmo sendo tão pouco o que a memória desenhou dele nos oito anos que antecederam o primeiro vôo do ninho familiar. Depois disso, só pousos beija-flor que acendiam na mãe a esperança de que nosso pai daquela vez recolheria as asas – o que se deu apenas quando bateu asas para o derradeiro pouso.

Cresci. Crescemos. De nosso pai tínhamos quase nenhuma notícia. Ele ia, ele voltava conforme o comando das asas, nunca por um chamado nosso – que nem tínhamos como alcançá-lo no sem rumo de suas andanças. E por isso o espanto de nosso pai ter reaparecido justo quando eu, à beira de cavalgar os indomados dezoito anos e comandado pelo desejo de estudar mais, cogitava o galope para uma cidade maior. O reaparecimento do pai é daqueles acontecimentos feitos para confirmar que tudo é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. O pai, assim que ajudou a consumar minha mudança, de novo ganhou asas. E eu finquei os pés no chão, disposto a desenhar outras linhas para a minha vida, a da minha irmã, a do meu irmão, a da nossa mãe. E consegui. Aprovado num concurso que remunerava bastante bem, deixamos para trás toda uma trajetória de vida severina.

O pai? Vez em vez pousava beija-flor na varanda de nossas vidas, sem que a gente indargüisse de seus desrumos. Sabíamos, por alto, que ganhava a vida como encarregado de fazenda nos grotões dos brasis. Certa noite, lá dos confins do Mato Grosso, alcançou-nos a notícia de que nosso pai havia caído na tocaia de outro encarregado da fazenda em que trabalhava e com quem vinha de querelas não resolvidas.

Foi assim que nosso pai saiu das margens do tempo para um tempo sem margens. Eu, nossa mãe, meu irmão, minha irmã e os quatro netos que nosso pai não conheceu, permanecemos, moventes, na margem móvel da vida, cada qual cumprindo sua travessia no rio do tempo.

Carrego uma dor em aberto pelo modo como nosso pai, levado pelo rio do tempo, foi jogado para fora da margem da vida. Dói saber que nem nossa mãe e nem nenhum dos frutos de sua árvore puderam velar-lhe a passagem para o outro lado do mistério.

O que contei de nosso pai é só um abreviado de tudo. Não dá pra contar seguido, alinhavado, o que é dor costurada no fundo do peito – dor que dói cicatriz, tristriz.  





terça-feira, 27 de agosto de 2013

Obra coletiva: Audiolivro Colcha de Retalhos

Nos últimos meses, vem martelando em minha cabeça a ideia de produzir um audiolivro do Colcha de Retalhos, com o objetivo principal de promover a inclusão de pessoas com deficiência visual e/ou dificuldades para leitura.

Após organizar melhor as ideias sobre como produzir uma obra que seja interessante para os ouvintes e também compatível com a proposta do livro, pensei que a melhor forma seria abrir para o público, para que cada um colabore e ajude a formar um mosaico de vozes e interpretações distintas.

Sendo assim, está aqui publicado o edital de convocação para participação na construção desta obra coletiva que se inicia neste momento. Conto com a participação e, principalmente, com a colaboração de todos na divulgação deste projeto!











domingo, 25 de agosto de 2013

Lições

O canito não sabia nada de filosofia.

Sabia que lhe doía o pé, sabia que tinha sede, fome e frio, muito frio. O pé nem podia tocar no chão, trazia-o encolhido e coxeava desengonçado em três pernas mas o que realmente o desesperava nessa tarde era o frio.  O frio mordia com dentes aguçados.

Ao virar da esquina, parou de repente: no fim da rua vinha um humano pequeno ao seu encontro. Chegou-se à parede, a cauda encolhida entre as pernas, tremendo de ansiedade e receio. Antes de chegar ao pé de si, o humano virou-se para a parede e fez qualquer coisa. A porta abriu-se e a miúda, depois de olhar novamente para o canito, entrou.

O bicho arquejou de alívio, a rua estava deserta. Devagar, desconfiado, desencostou-se da parede, olhou melhor: não vinha ninguém. A cauda entre as pernas, coxeando, começou a andar devagar. O pé doía mais, a sede e a fome eram maiores, o frio, ah! O frio mordia com mais força! Tinha de encontrar um sítio protegido de humanos e cães e ratos, um sítio onde se pudesse deitar e esperar que passasse o frio.

Quando passou pela porta, esta abriu-se de repente e um braço possante e cabeludo agarrou-o pelo pescoço. Rosnou desesperado, esquecido da sede e do frio e da dor do pé, tentou por todos os meios libertar-se, os dentes jovens e aguçados em busca de algo para ferrar, a liberdade, a liberdade, a liberdade!

Ao braço cabeludo juntou-se o outro braço e facilmente foi torcido o pescoço ao pequeno cão. Fez um estalido – tric! – e o animal deixou de se debater, pendente mole da mão que segurava o pescoço, a língua saída da boca, esquecidas as dores, a fome, a sede, o frio.

-    Mafalda, não chores. Pois tu não vês que o pobre bicho estava a sofrer tanto? Agora já não sofre, está no céu dos cães, a brincar com borboletas e flores, todo contente.
-    Ó pa-a-a-a-i tu-u mata-ta-tas-te o cão-o-zi-i-i-nho!
-    O cão estava doente e nem eu nem tu podemos tomar conta dele. Querias que ficasse para aí a sofrer? Agora já nada lhe dói, está feliz no céu dos cães.

A miúda olhava para ele, já sem chorar mas com a cara brilhante das gordas lágrimas que tinham corrido.

-    O cãozinho está no céu?
-    Está. Lá não tem fome nem sede nem lhe dói nada, porque no céu somos felizes sempre, sempre, sempre.
-     E não tem pena de ter morrido?
-    Isso não sei, filha. Mas sei que é melhor para ele estar todo contente no céu dos cães que estar aqui cheio de dores e de frio.
-     E se ele tiver pena, papá?
-    Se tiver pena é porque é burro, Mafalda! Que é que tu preferias, estar doente e cheia de fome e frio ou estar toda contente no céu a brincar?!?

Mafalda não era burra. Tinha 22 anos quando, olhando para a triste solidão da sua vida, resolveu que era preferível ir para o céu brincar com o cãozito, as flores e as borboletas. Afinal, era mais velha que o canito e até tinha estudado filosofia.





A primeira refeição do dia

Joaquim Bispo



A primeira refeição do dia é a mais importante.
(Dos sites nutricionistas)

Acabei de chegar de umas férias em Budapeste. Cidade bonita – belos panoramas, excelentes museus –, mas do que não me esqueço é dos pequenos-almoços. Só de antever a primeira refeição do dia passava a noite em sonhos salivados. No hotel onde estive, serviam fiambres, presuntos, chouriços, queijos variados, tudo em cascatas de fatias finíssimas. E doces, frutas, bacon, ovos mexidos, pratos quentes.
Acho que havia hóspedes que só tinham ido a Budapeste pelos pequenos-almoços. Enchiam a chávena de café com leite, e o prato com queijo e carnes frias, iam para a mesa esvaziá-los, voltavam a recarregá-los, uma e outra vez. Abarrotavam tigelas com flocos de milho, de amêndoa, com fibras, com mel, chocolate e fruta. Juntavam leite, iogurte, café, sumos de frutas. Equilibravam pirâmides de fatias de Emmental, chaminés de Chèvre, com a ajuda de morros de Roquefort, acompanhados por arquipélagos de ovos quentes, salsichas fritas e barris de sumo de laranja para empurrar.
Filas de empregados afadigavam-se a repor as provisões nas mesas do bufete. Dezenas de pares de olhos espiavam a sua chegada à porta da copa. Hordas de pretensos esfomeados armados de pratos vazios, como se fossem escudos, preparavam-lhes emboscadas no primeiro ângulo de mesa. Homens da Michelin em banha lançavam-se sobre os acepipes, como gaivotas sobre sobras de peixe, engolindo fatias de salmão fumado enquanto bicavam os adversários mais próximos. Por vezes disputavam a mesma tira de “bacon” frito ou, em gesto rápido, surripiavam a tosta mista que o vizinho se atrasara a retirar da bateria de tosteiras. Rebatiam com saladas de tomate, de couve roxa, de beterraba. Ou com travessas de ananás, pêssego, melão e maçã. 
Ai do que não fosse ligeiro e audaz. Quando chegasse à mesa das carnes frias, já só encontrava um ou outro grão de pimenta; quando chegasse à mesa dos queijos já só sentia o cheiro. O seu empenho incidia então no desenvolvimento de táticas mais eficazes de captura de víveres no fornecimento seguinte.
Por fim, mitigavam a fraqueza com uns doces: potes de compotas, salvas de bolo-mármore, taças de tiramisu, tigelas de musse de chocolate, travessas de leite-creme.
Quando pareciam saciados, começava a fase de aprovisionamento, porque o dia de visitas turísticas na capital e arredores se adivinhava longo e desgastante. Fileiras de sanduíches recheadas de salpicão, queijo flamengo, pasta de atum, ovo mexido e picles – para desenjoar – alinhavam-se obedientes em camadas sobrepostas no fundo das malas de mão e das mochilas. Alguns convivas preparavam tantas que se esperava encontrá-los a vendê-las nos pontos turísticos mais frequentados, para pagar a viagem. As que sobrassem ainda deviam dar para acabar com a fome em algum país de África.
Budapeste é bonita, mas o melhor são os pequenos-almoços. Inolvidáveis. Ainda esta noite revivi, em sonhos, a manhã em que me alambazei com almôndegas à húngara que apanhava às mancheias. Acordei num grito, quando os três garfos me atingiram as costas da mão.





sábado, 24 de agosto de 2013

MINICONTOS DE UM CONCURSO – PARTE III

       Amigos, apresento os dois minicontos com os quais cheguei até a semifinal no I Concurso de Minicontos Autores S/A – um certame que teve mais de 747 participantes inscritos e eliminações semanais, e no qual tive a felicidade de obter a quinta posição. Ao longo do concurso, assinei os minicontos sob o pseudônimo Juliano Monterroso. Espero que gostem da leitura. Saudações literárias e até o próximo mês. 
Edweine Loureiro 

****

LIVRE-ARBÍTRIO

     Olhou com revolta para um quadro na parede, no qual se lia: Não matarás. E, enxugando as lágrimas, começou a pressionar o travesseiro contra o rosto da esposa que, havia cinco anos, encontrava-se em estado vegetativo.

***

NEUTRALIZADO

     Ídolo da torcida, entrou eufórico em campo, mas ao final tombou, vencido. No confronto com um implacável crack, não teve sequer a chance da prorrogação.

***





sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Amadurecer é passar de Álvaro campos a Ricardo Reis?

Tem muita coisa que eu pensava que sabia e que entendia quando cursava Letras na faculdade. Talvez algumas eu até soubesse, mas o tempo passa e hoje algumas de uma maneira diferente. Por exemplo, sempre pensei que os heterônimos de Fernando Pessoa eram uma maneira puramente estética que o poeta havia encontrado para expressar mais claramente uma modernidade que surgia com múltiplas perspectivas; expressa algo que a sociedade em seu modelo estrutural, binário e de herança positivista ainda não estava preparada, ou simplesmente, não conseguia entender. Hoje quando um amiga perguntou me: ‘Será que amadurecer é passar Álvaro de Campos a Ricardo Reis?’ tive uma epifania, percebi que algo tinha mudado.

Passado os anos, depois que deixei os livros de crítica literária nas estantes e ter andado de bar em bar, em busca de vida, em busca de algo em mim, penso que a vida trouxe-me uma nova leitura para os heterônimos de Pessoa. Em sentido estético, penso que eles tenham uma função mais universal do que apenas aquele pensamento que apresentei anteriormente. Acredito que o conjunto dos heterônimos,  ou pelo menos, os principais sejam mais para representar o homem, o “Eu em diferentes fases da vida, em diferentes contextos. O “eu” sem valor é os “eus”.

Talvez venha daí, desses “eus”, a minha insistência em ver Pessoa nos romances de Clarice. Depois de ler o poeta, passei a ler Clarice sempre como se ela estivesse completando-o ou continuando sua obra. Nunca entendi direito essa relação que eu estabelecia, mas o momento agora também não é para refletir sobre ela, mas sim sobre os “eus” do Fernando (perdoem-me a intimidade).

Entendo, esses heterônimos de Pessoa como uma tentativa incansável de gritar para o mundo as aflições humanas, entre elas a de que “eu existo”. E, como Benveniste já disse, o ‘eu’ só exerce valor no ato da enunciação, que o sujeito só existe a partir do momento que ele se enuncia na linguagem, a partir do momento em que o sujeito diz ‘eu’.  Então como ser alguém definido e estabelecido, se esse ‘eu’ é inconstante e mutável? Daí que vem os heterônimos para conseguir dar vazão a tantos papéis em nossa vida.

Álvares de Campos, neste aspecto, pode ser visto como um ‘eu’ que esta preso ao sentido estético da linguagem e grita ao mundo sua rebeldia. Em uma complexidade de momentos e estilos que vai mudando ao longo das fases de sua poesia. Mas talvez esconda do mundo seus verdadeiros desejos;. Sua obra pede ao mundo que entenda seu trabalho, que lhe deem atenção. Busca mudanças nos estilo porque carece de atenção; sua raiva nada mais é que o adolescente gritando e pedindo, do seu jeito, amor e atenção.

Não vejo Ricardo Reis tão diferente disso, mas penso que há nele uma consciência mais presente do fim da vida. Há nele o início da aceitação. Mas há, de certa maneira, o mesmo homem ou jovem Álvares, mas com uma linguagem mais rebuscada, mais formal, mas ainda assim vejo nele, uma preocupação em ser aceito por uma sociedade, por um tempo, por alguém. Uma busca por aceitação que vejo em um outro heterônimo: o mestre.

Há quem diga que quando envelhecemos voltamos a ser criança novamente, talvez exista alguma verdade nesse pensamento popular. Talvez, seja essa a razão que leva nos a considerar os idosos como mestres. Devido à essa relação de voltar a ser criança, mas ser velho. Não entendo ao certo se é essa relação que faz dos velhos alguém mais ingênuo ou se é graças a essa ingenuidade que eles se tornam mais sábios.

No caso da poesia de Caeiro, vejo algo que outros heterônimos almejam: liberdade de ser. Caeiro aceita quem ele é, aceita o mundo, aceita as coisas em sua complexidade e simplicidade; ele não se preocupa em ser um “eu”, algo fixo e imutável; ele aceita ser ateu e dizer que deus existe, ser velho e brincar como criança, ser alegre e ser triste. Aceita suas dúvidas, suas arrogantes verdades, o que ele não aceita é não ser. Aceita a contradição de ser.

Há Álvares, Ricardos, Pessoas, Pedros, Marias em todos nós; velhos, jovens, crianças, só precisamos abrir os olhos para que possamos vê-los. Vejo hoje que os heterônimos não são de Fernando Pessoa, mas fazem parte dele. Caeiro, de uma certa maneira, tenta ensinar isso aos outros. É mais ou menos como Clarice escreveu “Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo o entendimento”.






quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Dizem que quando a gente morre passa um filme

Dizem que quando a gente morre passa um filme. Mentira. Pelo menos comigo não foi assim. Tive para mim duas sequências que se alternaram durante longo tempo, uma à noite, outra de dia. Não sei precisar o quanto nem quantas vezes cada uma repetiu. Dentro disso eu perdi a noção de quase tudo, desaprendi as horas, a fome, a resistência, o meu nome, boa parte das sensações. Ainda me sabia mulher e dona daquele sobrado por onde vaguei até cansar do cansaço. Cada recomeço de cena me trouxe um detalhe novo e eu fui ficando, aconchegada, nesse movimento de carrossel.

Fazia uma noite quente, com vento que mal, mal sacodia a cortina da janela aberta. Eu mesma bordei as barras do tecido branco, escolhi o varão que o suspendeu e os arremates dourados. Estou no quarto onde vivi com meu marido madrugadas de sono pesado, roncos e algum amor. Minha cama cuidadosamente estendida, os lençóis bem passados e os travesseiros arrumados do jeito que eu gosto. Tenho a impressão de que faz muito tempo que não se dorme aqui. Vejo-me sentada sobre o baú de madeira que pintei de branco. Herança da família. Pensei que trocando a cor daria à peça a chance de pertencer ao quarto do casal, combinando com o resto da mobília. Ajoelho-me em frente ao baú e tento abri-lo, mas não tenho a chave do cadeado que o encerra. Quero ter meus livros nas mãos, rever meus recortes, botar meu perfume preferido, olhar as fotos do meu filho. Em vão. Chego a chorar e bater com os punhos sobre a tampa, peço ajuda, socorro, e ninguém vem. Sou apenas eu diante do baú no meio da noite.

Então muda e faz um entardecer alaranjado. Caminho devagar nos corredores do andar térreo. Na sala, o piano de cauda está no lugar onde deixei. Aproximo-me e toco as teclas, ensaio uma sonata, mas não produzo nenhum som. Não desisto. Circulo entre as poltronas e avisto nas paredes alguns retratos. Somos nós em quatro quadros: o clã ao redor do macho provedor, meu filho em seu terceiro aniversário, meu filho no colo dos avós, e eu, rosto e ombros. Gosto do meu penteado assim, em coque no alto da cabeça e a risca dividindo a cabeleira ao meio. Os brincos de ouro são meus preferidos. De repente passa rente às minhas pernas uma menina de uns dois anos, como se me atravessasse. Atrás dela uma jovem que não conheço solicitando disciplina e calma à criança. O que fazem essas pessoas na minha casa, me pergunto. Não demora, entra pela porta telada da cozinha um rapaz de calça caqui e camisa azul, carregando uma pasta marrom. Reconheço os cabelos lisos e castanhos muito escuros como os meus. Meu filho cresceu. Sinto um misto de orgulho e tristeza, quero me fazer presente e não consigo. Posso, no máximo, deslizar entre eles, observá-los de perto, esperar.

Um dia, a mulher ruiva interrompeu a sequência. Apareceu pela primeira vez de visita, com uma conversa mole sobre vida e satisfação pessoal, cigarro entre os dedos, meu filho atento, a jovem também, sentados ao redor da mesa da cozinha. Ela me percebeu. Me viu e passou a falar coisas olhando bem na minha direção. Fiquei irritada, mandei sair da minha casa. Somente ela ouviu. E ignorou. Voltou outras vezes até que conversamos diretamente. Perguntou se eu já tinha visto o jardim naquele dia. Que dia? - perguntei. Agora, já. Aproximou-se tanto que foi como se ocupássemos o mesmo lugar na cozinha. Ela e eu caminhamos, misturadas, até a porta telada. Ela disse que eu merecia cruzar a linha, vencer o limite. Abriu a porta, disse vai, e eu corri feito criança até a grama. Senti o capim sob os pés e o sol. O sol. Parece terrível assim, a repetição da repetição sem fim. E é. Mas o depois foi pior. Quando cessaram as sequências me ficou o nada. Eu fadada a ser ninguém na claridade.





quarta-feira, 21 de agosto de 2013

No Elevador

Voltar para casa o deprimia. A expectativa de, após um dia de trabalho ouvindo os berros animalescos de seu Djalma tratando-o como um reles vassalo; abrir a porta de casa e topar com a megera, estendida no sofá, devorando bombons e metida em um enorme robe cor-de-rosa era um desajuste para qualquer mortal. Fosse só isto, ele até que poderia tolerar, mas as cobranças, humilhações e o desprezo iam minando, dia após dia, o que ele e a esposa ainda fingiam ser um casamento.
         — Bancário! – exclamava a esposa carregando no desprezo, boca marrom de chocolate – Não passas de um medíocre e vil bancário! E pensar que eu podia estar casada com o Deputado! Que triste sina a minha!
No decorrer dos anos, passou  a ter nojo de chocolate. Bastava o cheiro para nauseá-lo.  
Sua angústia diária tinha início dentro do elevador do prédio onde morava. Acompanhava o lento passar da cabine pelo andares até chegar àquele palco seu tormento. “Lar, doce lar”, resmungava  em tom irônico.
Naquele final de tarde tudo parecia caminhar para a mesma rotina de achincalhes promovidos pela megera. Apertou o botão de chamada do elevador e esperou que ele chegasse até o térreo. Quando fechou a porta ouviu uma súplica.
              —   Sobe?
Era uma voz adocicada, mansa, suave, em tudo contrastante com o tom estridente e marcial de sua esposa. Curioso e gentil, segurou a porta do elevador. Ela sorriu para ele em sinal de agradecimento. Tratava-se não de uma mulher exuberante, mas alguém que estava elegantemente vestida e denotava alguma sofisticação. Seus gestos eram refinados e um leve perfume agradável exalava de sua pele. Saltou no décimo andar, sacudindo a cabeça em sinal de boa noite.
Desde aquela data, a curta viagem de elevador tornou-se o melhor momento do seu dia. A presença daquela mulher e os quase monossilábicos cumprimentos pareciam amenizar todo o peso do cotidiano desprezível de sua existência. Ansiava por aqueles minutos, chegava a fazer uma horinha no hall social do prédio esperando que ela chegasse, forçando a coincidência do encontro. Entristecia-se caso ela não aparecesse e renovava a suas esperanças  para o dia seguinte.
Numa tarde, enquanto esperava o elevador já desapontado pela ausência da sua admirada, ela surgiu no hall social. Chorava. As lágrimas inundavam seu rosto, umedecendo os olhos redondos. Não havia ainda prestado atenção na beleza dos seus olhos castanhos. Na verdade, o tempo da viagem era demasiadamente curto para se prender a detalhes.
               —     Posso ajudá-la, moça?
Sacudiu negativamente a cabeça.
Ele ofereceu um lenço, prontamente aceito. O elevador chegou.
               —    Sou feia?
               —    Não.. imagina...
               —     Pareço uma pessoa  sem atrativos?  Me visto como uma freira?
               —     Claro que não!
             —     Ele acha que sim – disse soluçando – que fazer amor comigo é como beber água. Algo sem gosto, sem graça.
                —    Ele deve ter dito isto da boca pra fora – disse ele enquanto entravam no elevador.
Assim que a porta fechou, ela inesperadamente o agarrou, beijando-o com volúpia. Entre o correr dos andares, amaram-se de pé, vestidos. Parcos minutos de prazer até o elevador alcançar o décimo andar.
Os encontros passaram a ser diários. Quando havia uma ou mais pessoas esperando o elevador, eles aguardavam a oportunidade de subirem sozinhos. Caso um ou outro estivesse com o seu companheiro, fingiam indiferença e desconhecimento, um tanto desapontados pela oportunidade perdida. Amavam-se dentro da cabina, respiração ofegante, um misto de prazer e medo de que os respectivos cônjuges pudessem estar do outro lado da porta, no andar seguinte. Arrumavam-se rapidamente ante a aproximação do andar onde ela morava. Era automático, sem preliminares, sem nomes, curiosidades sobre a vida de cada um. Nada os atrapalhava naqueles breves momentos de paixão. Somente o ato de amor os consumia. 
Um dia, um blecaute tomou conta do Rio de Janeiro. A cidade foi invadida por um breu no começo da noite. Tudo parou, inclusive o elevador onde os amantes estavam. Os bombeiros, ao abrirem a cabina, parada entre dois andares, os encontraram risonhos, nus e gargalhantes, suas roupas espalhadas por todo o elevador. Ela agora sabia que ele se chamava Mauro. Ela, Andréa. Tiveram tempo.







terça-feira, 20 de agosto de 2013

Manhãs

O sol mal começa a transpassar seus tons de rosa pelas frestas da janela fechada.
O celular inteligente e intrometido é o primeiro a acordar.

- Que barulho é esse, Afonso?
- I´ll be there. Homenagem do despertador a Michael Jackson.
- Desliga esse troço. Já estou acordando.
- Vai para ginástica, Taninha?
- Hummmm.
- Perguntei se vai pra ginástica.
- Você pergunta muito de manhã.
- Só quero saber se vai, para ver quem vai para o 
banheiro primeiro.
- Hummmm.Vai você. E levanta a tábua.
- Ah, adoro suas ordens a essa hora da manhã.
- Manhã, não. Madrugada.
- Você deixou a pasta de dente sem tampa. Endureceu tudo.
- Hummmmm.
- Já que você não se mexe, volto pro fundo do edredom.
-  Hummmmmm. Não faz marola, Afonso.
- Você vai perder a hora da ginástica.
- E você vai perder a mulher de tanto falar de manhã.
- Você e suas ameaças. De noite me cobre de carinho. A rainha das 
gostosuras. Inventa posições. Me suga, me engole, me exaure. 
Mas de manhã...
- Huuummmm. Já sei... de manhã uma megera.
- Sou mais delicado. Eu diria que dorme Afrodite e acorda bicho preguiça 
da Mata Atlântica.
- Huuuummmm. Em vez de me encher de metáforas, vai ver se o jornal chegou.
- No escuro não acho meu chinelo. 
- Como não acha? Você é tão metódico. O chinelo está sempre a trinta e dois 
centímetros do pé direito da cama. Não precisa acender a luz. 
- Preciso sim. Sempre saio no escuro com os pés trocados. O direito no esquerdo, 
o esquerdo no direito. E tenho que ouvir a Maria: “Seu Afonso, o senhor botou 
chinelo errado de novo.” E cai na gargalhada. A Maria me irrita.
- Hummmm. Tá, tá...vamos mandar a Maria embora, então.
- Já pensei nisso. Mas o custo da demissão agora é alto. 
Ela está aqui há cinco anos e com todos os períodos de férias acumulados. 
Com mais um terço de tudo isso, aviso prévio, décimo terceiro proporcional, 
imagine a grana da rescisão. Com esse dinheiro dá pra passar um fim de semana 
na serra, o sossego que para transformar nossas transas em algo fecundo. 
- Hummmm... não acredito que estou ouvindo isso a essa hora.
- Tudo bem, tudo bem....se você insistir que não está na hora de termos um filho, 
tudo bem, a gente pega essa grana e dá de entrada num carro novo. Até setembro, 
com isenção de IPI. Ou comprar uma televisão nova para sala, igual ao do Pedro 
e da Betina, um cinemão todas as noites. Ou também podemos trocar a geladeira, 
que por sinal, já deu o que tinha que dar. É só abrir que sai um cheiro de couve-flor 
passada. Parece flatulência, deus me livre.   
- Hummmm. Chinelo trocado. Rescisão. Fim de semana na serra. 
Ter ou não ter um filho. Carro novo. IPI, TV nova. Geladeira. Couve flor estragada. 
Gases fedorentos. Você não acha que é muita informação 
a essa hora da manhã, Afonso?
- Ué? Não era você que queria o jornal?
- Era para você ler e não me encher a paciência.
- Tá certo. Vou pegar o jornal. No escuro. Andando que nem ceguinho. 
Descalço.
 - Volta logo para me esquentar. E não abre a veneziana. Acende seu abajur 
baixinho. Deixa que eu cubro meu rosto com travesseiro.

Slept, splet, slept. Tchak. Plaft. Blufht. Slept, splet, sletp. Tchum.

- Voltei. 
- Percebi. Muita barulheira numa hora dessas.
- A chata da Maria disse que eu ia pegar friagem nos pés.
- Hummmm. 
- Olha que foto do Collor na primeira página do jornal! Aqueles olhos de 
diabo atormentado! Base aliada. Visão do inferno.
- Hummmmmm. Não me acorda com esses horrores não.
- Me lembra a sua mãe.
- O que minha mãe tem com isso?
- Ela adorava o Collor, lembra? Dizia que sentia calorões entre as pernas quando 
ele aparecia nos debates, passando a mão por aqueles cabelos lisos, balançando 
a cabeça como um garanhão de haras, dizendo ‘Minha gente, minha gente...”
- Hummmmmm. Que assunto desagradável. Minha mãe nem existe mais, coitada. 
Me deixa dormir só mais um pouquinho. 
- O time do seu irmão está caminhando para a segunda divisão.
- Hummmmmmm.
- Manifestante é preso com pedrinha portuguesa no bolso. 
- Hummmmmmm.
- Joaquim Barbosa faz mais uma grosseria. 
- Hummmmmm.
- A sena está acumulada. Imagine! O que a gente faria com tanto dinheiro?
- Hummmm. Comprava um apartamento com um quarto só para mim.
- Você é ingrata. Também não conto o que está escrito nas fofocas.
- Hummmmmm. Já que você não me deixa dormir, conta logo.
- O cara que faz sua sobrancelha se mudou para Nova York.
- O quê?!?!?! O Charlie?!?!!?
- O próprio. Vai casar com um maquiador do Village.
- Não acredito! Me dá esse jornal aqui!
- Resolveu acordar, é?
- Também com uma bomba dessas! Será que a Silvinha sabe disso? 
Me passa o telefone.
- Que é isso, vai acordar a Silvinha!
- Tá cedo, né?
- Não. Tá tarde para sua ginástica.
- Que saco, perdi a hora! Por que você não me acordou, Afonso? 
Já sei. Quer que eu fique bem gorda para nenhum homem olhar para mim. 
- Relaxa, meu amor. Você fica linda, danada da vida com essa carinha inchada, 
vestindo o leging ao contrário.
- Não zoa de mim. Onde está meu tênis?
- Aqui. Na minha mão. E aproveita para me dar um beijo com gosto de hortelã. 
Vem cá. Adoro seu mau humor matutino.
- Afonso! Afonso! Nâo estou de brincadeira!
- Nem eu.
- A-fon-so... fonsinho... fon fon... 
- Vem cá meu bafinho de onça sonolenta...
- Que nojo, covarde mentolado... sem beijo, sem beijo...
- Vai perder a ginástica... 
- Hummm... olha quem está aqui...  Voce já fez xixi hoje?
- Já. Todo pra voce... todos seu... ah, e levantei a tábua...
-  Menino obediente... adoro essa sua falação pelos cotovelos.  
você é a minha pilha... 
- Também adoro sua metamorfose: 
bicho preguiça virando Afrodite. Vai pra ginástica não.
- Hummmmm... começa tirando meu legging... isso, assim..., assim... 
sem beijo, sem beijo...  






segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Resenha: série 'Mundo em Caos'

Livros de ficção têm a intenção primeira de entreter, e sou defensora ferrenha do direito de mergulhar numa boa história simplesmente pelo prazer de passar horas e horas “viajando” por mundos, emoções e intrigas imaginários. Feito esse registro, é sempre uma grata surpresa quando uma obra lida apenas porque prometia ter uma boa história traz algo mais.

É o caso de uma série que acabei de ler recentemente. Não gosto muito de usar a palavra “trilogia”, pois nos últimos tempos ela se tornou lugar-comum, quase sinônimo de best-seller instantâneo, o que nem sempre é um elogio. Mas a série Mundo em Caos, do norte-americano Patrick Ness – não tão difundida aqui no Brasil, mas com mais de 1 milhão de cópias vendidas mundo afora –, destaca-se não apenas por contar uma boa história, mas por fazer pensar. E muito.

Os livros têm títulos simples: O Motivo, A Missão e A Guerra. No livro 1, somos apresentados a Todd Hewitt, um garoto prestes a completar 13 anos e, segundo a tradição local, tornar-se um homem. Ele vive em uma cidade em que todos escutam os pensamentos uns dos outros, num constante “ruído”. E aí vem a primeira reflexão: imagine como seria se você pudesse ouvir o que o colega ao lado pensa, o tempo todo, sem poder “desligar” isso. E como seria se os outros pudessem ouvir o que você pensa, inclusive deles? Quantas confusões, quantos desentendimentos ocorreriam?

Outra peculiaridade do mundo de Todd é que ele é formado só por homens. Sua mãe e todas as outras mulheres foram dizimadas pelo mesmo vírus que instalou o ruído nos homens. Ao menos foi nisso que ele sempre acreditou. Até que um dia, na floresta, ele encontra Viola, uma menina, e descobre que mesmo em seu mundo existem segredos. A partir daí, o ritmo da narrativa se acelera, mostrando que nada é o que parece e levando os dois protagonistas a situações (e decisões) extremas.

Claro que não posso contar aqui o que acontece, para não estragar a surpresa para quem quiser ler os livros. Porém, como o título do último volume entrega, haverá uma grande guerra, e nela muitos valores serão colocados à prova. Perpassando os três livros, muitos conflitos e questionamentos, como até que ponto pode ir a disputa pelo poder, a rivalidade entre homens e mulheres e o desejo de vingança, ou quais as consequências dos nossos atos. Tudo em meio ao calor da história, sem deslizes para o doutrinamento. Um texto que, embora construído para o público juvenil, vale a leitura também por adultos.





domingo, 18 de agosto de 2013

O PEQUENO BURMAN


Otávio Martins

    Muitas pessoas pelas calçadas paravam para ver a passagem da caravana circense que desfilava as principais atrações do Gran Circo Libertad, que acabara de chegar à cidade.
     As crianças acompanhavam o corso, junto aos leões, tigres e outros animais ferozes, sem que isso lhes provocasse algum medo; sentiam-se protegidas pela simples presença de três ou quatro palhaços, dando-lhes a sensação de segurança para que se aproximassem, caminhando lado a lado às enormes jaulas sobre rodas. Outros animais formavam o grande desfile apenas pela condução de seus amestradores, como os elefantes e os dois macacos; um deles andando sobre uma bicicleta, como se fosse uma pessoa. A pequena banda, com instrumentos de sopros e tambores, tinha os músicos vestidos em túnicas coloridas de galões e botões dourados, regidos pelo elegante maestro que, sobre um caminhãozinho, completava a animação por onde a caravana passasse.
   Máneman não poderia deixar de reconhecer a menina que ia à frente do corso com seus delicados movimentos, misto de bailarina e acrobata. De gestos graciosos, agitando as duas longas fitas coloridas - uma vermelha e a outra azul - deixando desenhos pelo ar. Quando as recolhia, exibia a sua arte ao ensaiar alguns passos de dança e a habilidade nos saltos ornamentais. Ele bem conhecia todos aqueles trejeitos para cada salto ou, até mesmo, os suaves movimentos do seu corpo para praticar aquela série de acrobacias e coreografias. Ali, ela se apresentava como baliza, em destaque, puxando o animado desfile.
   Enquanto atentava para os participantes do desfile, Máneman parecia ter o olhar perdido, ou, talvez, resignado. Aquela alegria em movimento, espalhada lá embaixo, por toda a rua, apresentava-se como imagens presas a um passado não muito distante. Ao alto do imponente palácio, numa vasta janela, de um largo parapeito, ele assistia a tudo, sem esboçar qualquer reação. Apenas olhava.
   Encerrando o desfile, um enorme trailer, completamente tomado por coloridos letreiros e desenhos, confirmando o que Máneman já sabia: O corso, que se dirigia à rua de cima, era do Gran Circo Libertad, do pai de Betina, a sua amiga bailarina e acrobata, dos tempos de colégio.
   O escolhido, não era exatamente uma autoridade que iria exercer o poder, mas, sim, a figura na qual, simbolicamente, estaria representada a identidade da nação e de sua gente. Quando Máneman completou nove anos de idade, o Grande Conselho o reconheceu como o novo Burman. A um Burman não necessitaria qualquer relação ou parentesco com algum membro de uma dinastia ou descendência nobre, coisas do tipo reis ou rainhas. Os membros do Grande Conselho, que também eram representantes de outros tantos conselhos, ao morrer um Burman, tinham, numa de suas funções, o dever de escolher – muito mais pelos valores interiores ou espirituais quem, dentre os cidadãos de toda a nação, passaria a ocupar o sagrado lugar do novo Burman.
   Tampouco existia uma idade pré-estabelecida para a pessoa sobre a qual recairia tal escolha. Apenas que, depois de escolhido, sua condição como tal, seria para sempre.
    Eram reverenciados por todos os membros de todos os conselhos e por todos os cidadãos pertencentes à nação, com tratamento extremamente respeitoso e, ainda mais, quase à maneira de um ritual litúrgico. Praticamente as pessoas não olhavam para o Burman, ao aproximarem-se dele, num gesto de profundo respeito – quase adoração – curvavam-se, baixando a cabeça quase até atingir o chão. Os cuidados, exagerados, dispensados a um Burman colocavam-no numa situação de alguém que vivesse, permanentemente, em uma redoma; mais do que protegido, inatingível. Por mais que alguém pudesse chegar perto de um Burman não se estabelecia qualquer outro tipo de aproximação. A adoração exercida sobre tal figura – imaginando-lhe, assim, sob uma espécie de auréola - a deixava, humanamente, cada vez mais, distante das pessoas comuns.
   Quando o Gran Circo Libertad, quatro ou cinco anos antes, passou pela cidade onde Máneman havia nascido e vivido até os seus nove anos de idade, Betina ficou por três meses – últimos do ano letivo - em que o circo permaneceu ali, como aluna temporária, na mesma classe de Máneman. Costumavam ir e voltar para a escola juntos. Ele tinha imenso orgulho de permanecer ao seu lado no trajeto de ida e volta para a escola. Betina era de percorrer o caminho fazendo as suas graciosas acrobacias, o que despertava um enorme desejo em Máneman de, um dia, ele também pudesse vir a ser um menino de circo e, até, quiçá, fazer uma dupla com Betina.
   Um mês antes de Betina completar o ano na escola – Depois o circo continuou o seu curso, se apresentando por outras cidades - coincidia com o acontecimento da escolha de Máneman, como a representação do novo Burman.





sábado, 17 de agosto de 2013

Eu tenho algo...



“...um dos muitos bandeirantes que haviam trilhado
a estrada da Serra Geral e
entrado nos campos do Continente...”

O Tempo e o Vento
Érico Veríssimo


            Eu tenho algo, como um punhal de prata. O infinito que admiro no objeto cotidiano...