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sábado, 28 de fevereiro de 2015

EPITÁFIO




         Puxado por um carro de boi, abria caminho diante do cortejo o ataúde de seu Tomás Fuleiro. O vento quente e poeirento das tardes de agosto levantava as saias das carpideiras e arrancava os chapéus dos homens que seguiam ao lado da pobre carroça. Cantigas lamuriosas, intercaladas por orações cristãs, enfezavam ainda mais as crianças que iam sem vontade ao lado de suas mães sonolentas e ocupadas na enfadonha tarefa de espantar moscas. Dois urubus e uma matilha de cães vadios escoltavam a multidão como se buscassem entender o propósito daquele passeio de sonâmbulos, sob o molestador sol das onze horas de um domingo sem riso.

         Guardado por um esquife de madeira bruta, que sequer fora lixado ou vira mão de verniz, descansava o corpo do velho que só vivera para fazer troça de qualquer circunstância ou cidadão. Pouco importava ao caçoísta se perderia amizades ou arranjaria declarados inimigos. Vivia somente para contar piadas e atribuir alcunhas, mesmo diante da pior das secas ou da mais dolorosa desgraça.

Por tratar-se de figura quase folclórica na região, a notícia da morte de Tomás Fuleiro confundiu as emoções daqueles que o conheciam, pois não sabiam discernir se o acontecimento fúnebre era razão para tristeza ou alívio. Independente do sentimento que os movia naquele arrastar-se lutuoso, todos se fizeram presentes, até mesmo aqueles que mais lhe rogaram terríveis pragas e, por toda a vida, desejaram ao falecido a pior das mortes: Chica Macarrão, Paulo Tetinha, Liduína Galope, Lalá Boqueira, Brito Pinguelo e até o Afrânio Mãozinha, que havia prometido ao povo de Banabuiú que, se eleito fosse, expulsaria seu Tomás do Sertão Central. A simpatia popular pela folgazona promessa de campanha rendeu-lhe o cargo que ainda hoje ocupa no principal assento da prefeitura.

         Após algumas palavras do padre Carmo Papudinho; Rubem Gilete e Osmar Tremelique depositaram cuidadosamente o caixão dentro da cova aberta na terra seca. A primeira pá de areia foi jogada para dentro da sepultura por Zico Pereba, acompanhada de uma delicada papoula que uma chorosa Jandira Pau Quente arremessou.

         Houve consternação. Todavia, uma vez diante do epitáfio inscrito na humilde lápide, a dor de toda a gente dissipou-se. O povaréu não encontrou recursos capazes de represar a própria inflamação, quando Dorival Calango irrompeu em uma gargalhada, enquanto lia o enunciado gravado no túmulo:


         “Aqui jaz um homem sério”. 


Emerson Braga





sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Colcha de Retalhos #6

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


CONTRA O TEMPO

Explicou ao filho as coisas da vida e do tempo. Para facilitar, usou o relógio de exemplo:
- Aquele é o tempo, passando.
- Ele fica dando voltas?
- Nem sempre, às vezes passa correndo e nunca mais volta, por isso precisamos correr atrás do tempo.
No dia seguinte, após observar o relógio por horas enquanto o pai corria de um lado para o outro, o garoto retrucou:
- Você disse que a gente tem que correr atrás do tempo porque o tempo corre. Mas, ele tem uma perna bem maior que a outra, nem consegue correr. A gente é que tem que andar com mais calma, para não deixar ele para trás.




INSATISFEITO

Nasceu para ser
Viveu para ter
E morreu, sem nem ver




INJUSTO

Vivem vidas de condenados
Os que dormem o sono dos inocentes




DOMADOR DE DEMÔNIOS

Deito em minha cama e milhares de pequenos demônios infestam-me as idéias, o travesseiro e o canto escuro do quarto.
Ando cautelosamente até o som, ligo-o e volto para a cama.
Com a música, pelo menos, eles dançam.






quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Sem cabimento

Era um amor que ofendia.

Incomum, genuíno, esdrúxulo, amoroso demais. Insultava porque ninguém, até então, pudera vivenciá-lo. Nem houvera quem sonhasse experimentar algo assim.

Quem acreditaria num amor daquele jeito, que aceitava carinho amizade conversa carícia atenção cumplicidade respeito amor bem-querer harmonia alegria esperança, sem traição, ruptura, nem desejo de fim? Quem creria naquele absurdo de amor?

Só podia ser farsa! Tal espécie de sentimento — se existisse mesmo — não moraria naquelas redondezas. Não ali, bairro de desamados, órfãos, viúvos, analfabetos desmatriculados na escola do gostar. Não ali, onde os pares não combinavam. Não ali, onde namoro, noivado, casamento e divórcio eram desencanto e só tendiam a ofensa, miséria, negligência, fracasso, desgraça. Não ali, onde as famílias se desmanchavam num estalo, sem nunca haverem de fato se constituído. Não ali, onde as mulheres apanhavam dia a dia, às claras, e sempre serviam aos homens; e esses machos, também mal-amados, alimentavam-se de seu próprio prazer egoísta que nunca saciava. Não ali, onde as crianças nasciam da violação e, sobreviventes, iam se nutrindo da falta de zelo, dos maus-tratos humanos e da misericórdia divina.

Mas era um amor que teimava.

João, 32, e Aline, 34, simplesmente decidiram apostar na loucura. Um homem e uma mulher que resolveram se despojar da realidade que conheciam para fundar um amor destemido, sem cobrança de resultados. Caminheiros de mãos embaraçadas, comparsas nas tarefas domésticas, beijavam-se nas despedidas e reencontros diários, olhavam-se, reparavam um no outro, abraçavam-se em público, namoravam com profundidade.

João aceitou o enteado como filho e lhe dedicou caridade. Perdoou Aline pelo passado infeliz do qual ela fora vítima. Afastou-se das mulheres todas com quem se deitara, até mesmo das ex-esposas. Aline acolheu sogra e marido da sogra, ajudou no tratamento da esclerose e do Alzheimer senis, suportou a falta de dinheiro, o lazer quase nulo, o transporte coletivo de cada dia, confiou na palavra de João.
Foram solidários nos desempregos e abortos espontâneos, nos despejos residenciais, nas derrotas esportivas, enchentes, incêndios, batidas policiais, falta d’água, apagões e silêncios. Juntos, livraram-se da cana e da coca. Esforçaram-se pelo interesse mútuo, pelo diálogo e harmonia familiar. Ajoelharam várias vezes, em oração contrita. Adotaram três crianças e se empenharam em educá-las com atenção e amor. Formaram um lar em que eram felizes, em que a individualidade era estimada, assim como o bem comum. E não deixaram vizinhança nem familiares interferirem na engrenagem de seu amor. Usaram até mesmo o tempo em seu benefício. Envelheceram juntos e — mais que fiéis — leais à história que construíram. Inauguraram uma nova era, vencendo o desamor que imperava. Sem humilhações nem lisonjas.

Tendo assombrado no começo, aquele amor — estranho, de tão verdadeiro — passou a contagiar. Ano a ano, década a década, foi inspirando vários relacionamentos. Pretendentes a namorados se propunham, esperançosos: “Vamos amar como João e Aline?”. Muitos ousaram acreditar e fazer bonito em suas relações sentimentais.

Era um amor que arrastava.

Quando João se foi, de infarto, neste fevereiro, aos 73 anos, a comunidade se uniu para chorar com Aline. Ninguém acreditava que um amor assim, tão poderosamente revolucionário e transformador, pudesse chegar ao fim.

Mas é um amor que não morre.

No velório, Aline acarinhou o rosto do companheiro como sempre fizera e segurou as mãos dele com a mesma certeza de que se reencontrariam em breve. Guardou seu próximo beijo para a eternidade.

Maria Amélia Elói





quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Querida mãezinha!




Embora compreenda quem se lamenta da sua triste sina e não para de tecer teorias da conspiração sobre a própria sogra, eu não tenho razões de queixa. Mal vejo a minha.
É claro que antes sofri muito. Nos primeiros meses de casado, perdi dez quilos. Dormia mal, tinha pesadelos em que era atacado por matronas rotundas armadas de panelões de feijoada, que tocavam à porta às seis da manhã e me lambuzavam a cara de batom encarnado. Fiz terapia, voltei a frequentar a igreja, mas só o estudo me salvou — um mestrado em Estudos Militares.
Uma das disciplinas parecia delineada especialmente para o meu caso: “Como evitar dar o flanco e recuperar a iniciativa”. Textos obrigatórios: os de Maquiavel e “A Arte da Guerra” de Sun Tzu. Percebi rapidamente que qualquer dos autores transmite ensinamentos muito úteis para a sobrevivência de um genro, bastando substituir, em qualquer dos aforismos, a palavra “inimigo” por “sogra”. Acho que a atual versão militar de Sun Tzu é um aproveitamento de um tratado que, inicialmente, ele terá escrito, após convencer-se de que conseguia sobreviver à própria sogra. Vejamos alguns exemplos:
“O guerreiro superior ataca enquanto o inimigo está projetando os seus planos.” Isto é, quando perceberes que a tua sogra está a pensar ir lá a casa mostrar os álbuns de fotografias das férias, deves ligar-lhe anunciando quão pesaroso ficas por não poderes recebê-la, porque vais em serviço para a Austrália.
“Sê completamente misterioso e confidencial, até ao ponto de seres silencioso.” Isto é, não dês qualquer pista à tua sogra sobre os teus passos, os teus trabalhos, os teus horários. Se fores encurralado, finge que perdeste a voz ou transmite informações falsas, de modo que “o adversário não pode combater contigo porque lhe dás uma falsa pista.”
“Faz algo por ele, para lhe captares a atenção, de maneira que possas atraí-lo, descobrir os seus hábitos de comportamento, de ataque e de defesa.” Isto é, se quiseres viver em paz, procura conhecer a tua sogra, como costuma atacar, o que pode desencorajar esses ataques; faz com que ela confie em ti, e mantém-na constantemente sob vigilância.
Um dos grandes problemas das sogras é sentirem-se isoladas e inúteis. Arranja-lhe atividades que a entretenham: apresenta-a a um grupo de canasta; matricula-a em aulas de hidroginástica; convence-a a ser escritora e a enviar textos para concursos literários. Se, mesmo assim, lhe sobrar tempo para azucrinar a tua vida, interessa-a em projetos relevantes de grande fôlego, daqueles que ocupam uma vida inteira: acabar com a fome no mundo, descobrir a cura da estupidez; encontrar um sistema político sem governantes corruptos. É praticamente impossível? Eu sei — é essa a ideia.
Eu, felizmente, após muitas diligências pouco frutuosas, encontrei a solução, o que me trouxe, outra vez, calma e esperança no futuro: inscrevi-a em vários sites de corações solitários, com o nome “Gostosa carente”. Quando eu já desesperava e acreditava que o coração dela estava irremediavelmente empedernido, apaixonou-se por um idoso folgazão, e já não quer saber da filha nem do genro para nada. Anda alegre como um passarinho.
Agora, fiquem bem, que tenho uma genuína gostosa à minha espera, para uma batalha sem quartel, sem medo de sermos interrompidos por invasões de panelões de feijoada.

Joaquim Bispo

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77


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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

TROVA - EDWEINE LOUREIRO

Amigos, a partir deste mês, publico uma série de trovas. Começo com o tema “Vento”. E o responsável por esta linda concepção visual  é meu querido e talentoso poeta-amigo Geraldo Trombin. Espero que curtam a leitura e até o próximo mês!

Abraços poéticos.

Edweine Loureiro








domingo, 22 de fevereiro de 2015

Casquinha de bebê

Mãe de segunda viagem, a Mariana sabia exatamente o que era parir, mas estava apreensiva com a filha mais velha, nascida cinco anos e três meses antes. A caçula chegaria em alguns dias, bolsa do bebê organizada e o quarto amarelo pronto para o retorno da maternidade. Não sabia ainda quem cuidaria da Roberta durante a maratona do hospital. Queria sua mãe do lado, do pronto socorro à observação, do marido fazia questão, com o pai e os sogros, falecidos, só poderia contar mentalmente. Sem parentes próximos, antes de recorrer à amiga do peito e a babás o cunhado precisava ser opção.

Um cara muito legal, o Luis. Finalmente permaneceu em um trabalho decente e há bom tempo largou as noitadas de segunda a segunda, e dizia andar calmo com a mulherada. Queria se ajeitar e fazer família, como manda o figurino. Antes de conhecer o marido a Mariana se encantou pelo Luis num barzinho. Quando lembra disso, ela sabe que convém manter uma distância formal do cunhado, aquele querido. Pois o Luis tinha uma folga longa para tirar e seria um prazer ficar com a Roberta enquanto o resto da família esperava, in loco, a Clarissa vir à luz. Fica sossegada, cunhada. Robertinha e eu nos damos muito bem. Tem iogurte na geladeira, folhas em branco e lápis de cor, devedê da Galinha Pintadinha. Vai dar tudo certo. Mariana aliviada.

Contrações e estrelas de dor. Mariana chegou ao hospital quase meio-dia de uma quinta-feira e saiu no fim da tarde de terça. Previa parto normal, recuperação rápida, e as filhas juntinhas em dois tempos. Destino atravessado, o bebê veio de cesariana depois de quase um dia de força feita pelos corredores. Veio. Rosada e cheia de cabelos. Ainda bem. Já em casa, as máximas em 30 graus na região, dizia a moça da previsão do tempo, a mãe preparava o banho da pequena com a ajuda da Roberta. Filha, olha bem a maninha, não deixa que ela role na cama, vou buscar a toalha e já volto, tá? Tá. O bebê remexia as pernas no ar e tinha ainda no corpo resquícios da camada esbranquiçada e gordurosa dos que acabam de nascer.

Custou a acreditar no que viu quando voltou ao quarto. Roberta, estás beliscando a tua irmã? Eu não, mãe. Tô tirando a casquinha. Como assim, filha? Isso é da pele da maninha, não se tira, porque dói. Some sozinho, com o passar dos dias, conforme o bebê vai crescendo e tomando banho. Tira, sim. O tio Luis explicou que é carinho. Mas acho que ele tava fazendo errado. Intrigada, Mariana quis saber. Como assim, Rô? É, assim, mãe. Ele me ensinou essa brincadeira, de tirar casquinha, mas eu não tinha casquinha nenhuma, então ele me esfregava e me ensinava a fazer esse carinho diferente. Depois era a minha vez de tirar a casquinha dele, só que ele também não tinha casquinha. Daí eu fazia igual: esfregava. Dá calor, mãe. É bom. Tu já brincou de casquinha? Pasma, Mariana buscou detalhes. E ele te esfregava onde, Rô? Como? Assim, mãe, aqui ó, mostrava a filha apontando o fundilho das calças. Vou ensinar o tio Luis a fazer direito, mãe. Da maninha ele vai conseguir tirar a casquinha.





sábado, 21 de fevereiro de 2015

Somos Todos Capadócios

— Boa tarde, delegado.
— Boa…
— Sabe o que me traz a sua honrada delegacia?
— Certamente, doutor advogado. Veio ver o assassino.
— Preferia chamá-lo de injustamente acusado.
— Como quiser.
— Delegado, não há dúvida que o meu cliente é inocente.
O delegado espantou-se com a notícia.
— Seu cliente?
— Exatamente. A Cúria contratou os meus serviços.
— Era só o que faltava! Doutor, sejamos sensatos!
— Sensatos, delegado? Chama isto de sensatez?
Alojado em frente a sua mesa já carcomida pelos anos de uso, o delegado direcionou o olhar para a única e apertada cela daquela cadeia do interior. Evitou cruzar vistas com o assassino ou, como preferia o advogado, o injustamente acusado. Percebia-se no semblante o desconforto diante da situação.
— Doutor advogado, acredita que somos todos iguais perante a lei?
— Mas é claro. Tal afirmativa é a base da justiça.
— Contudo, alguns são mais iguais que os outros…
— Isto é uma balela, delegado!
— O que o senhor sabe a respeito do caso?
— Que se trata de um lamentável acidente. Todo o povo que assistia a procissão é testemunha.
— Para o povo, foi assassinato, doutor advogado.
O suspiro do delegado poderia ser ouvido até do lado de fora da delegacia, tão minúsculo era o prédio que a abrigava. Recomposto, encarou o advogado.
— Lutero, nós somos amigos de longa data, jogamos truco toda semana no bar do Fulgêncio e você me deu a honra de batizar seu filho. Tenho assim você em alta estima e consideração. Fico constrangido com tudo isso, mas encontro-me de mãos atadas. O que posso fazer?
O advogado levantou-se da cadeira e circulou em volta do limitado espaço que compunha a delegacia. Também não teve coragem de encarar o prisioneiro por detrás das grades enferrujadas. Parecia escolher as palavras para continuar o diálogo com o seu compadre.
— Juventino, meu amigo. Conte-me exatamente o ocorrido, sem esconder detalhes. Juntos, talvez, encontremos uma saída para este caso.
Sabendo poder confiar de olhos fechados no amigo, o delegado pitou seu cigarro de palha e começou a desfiar a verdadeira história.
— Bom, Lutero. Você conhecia a vítima?
— O Geninho? E quem não o conhecia por estas bandas, compadre? Bom menino, estudioso, temente a Deus até as entranhas…
— Pois é compadre, pois é…
— E o que o nosso amigo ali engaiolado tem a ver com isso? Foi vontade de Deus, por acaso? Continuo botando na conta de um infeliz acidente.
Juventino desembuchou os fatos.
— Geninho era tudo isso que você disse e algo mais, compadre. Ótimo filho, trabalhador, prestativo, caridoso. Já foi até anjinho em outras procissões, mas todo mundo tem um fraco nessa vida e o do Geninho foi uma mulher.
— Difícil acreditar, compadre. Ele era tão tímido e católico. Nunca o vi nos braços das meninas lá na casa de diversões de dona Eudóxia.
— Eu não disse mulheres no plural, compadre e sim uma em especial. O menino meteu-se com uma senhora casada aqui mesmo da cidade. Dizem que foi ela que o tentou, afinal, o rapaz tinha lá os seus atrativos e a dita senhora um furor por debaixo das saias. Tanto perseguiu o Geninho que ele caiu nos seus encantos. Provou dos chamegos da dona e gostou. Pois bem, o caso foi levado em segredo por alguns meses até que o marido chegou mais cedo do trabalho, só não pegando o casalzinho em pleno ato porque o pobre finado conseguiu fugir pela janela do quarto sem ser identificado. O marido pôde distinguir apenas um vulto vestindo calças laranja correndo desembestado pelo seu quintal.
— Mas, afinal, Juventino, quem era o galhudo?
O delegado respondeu de modo quase inaudível.
— Doutor Haroldo Fontes.
Lutero por pouco não caiu da cadeira.
— O prefeito?
— E existe outro Haroldo Fontes na cidade, Lutero?
O espanto do advogado não cabia dentro da pequena delegacia.
— Agora, eu entendo tudo.
— Pois é, compadre. Doutor Haroldo Fontes deixou a vingança adormecida por umas semanas para fazer com que ela despertasse justo no dia da procissão do padroeiro. Mas o prefeito me garantiu não ter sido vingança tramada e comida pelas beiradas. Ele disse que até já havia perdoado a primeira-dama pela escapada, afinal, ninguém soubera do acontecido e ele precisava manter as aparências. Acontece que Geninho caiu na besteira de ir à procissão com a mesma calça laranja que usava no dia do quase flagrante.
— Menino burro esse Geninho.
— Também acho, mas como ele poderia imaginar que o prefeito tivesse guardado o detalhe da vestimenta do seu rival?
— Se ainda fosse uma calça azul, ou preta, compadre, vá lá. Todo homem tem uma calça nestas cores, mas laranja? Foi muita bandeira.
— O resto da história você já sabe, Lutero. Vinha o prefeito todo compenetrado na procissão, ombro esquerdo sustentando a parte dianteira do andor quando deu de cara com Geninho dentro da sua calça laranja. A cena deve ter despertado os miolos traídos do homem e deu no que deu. Ele deixou escorregar o andor de seu ombro e a imagem de São Jorge caiu justamente em cima do pobre menino. A lança atravessou o coração do garoto que morreu na hora. O que parecia um mero acidente, como até tu, meu caro, acreditava, foi o despertar de uma vingança adormecida. O próprio Doutor Haroldo Fontes me confirmou em seu gabinete na prefeitura.
Lutero sacou do bolso um lenço e enxugou a testa gotejada de suores causados pela surpreendente revelação de Juventino.
— Por que cargas d’água o prefeito confessou, compadre?
— Remorsos, meu amigo, remorsos. Não pelo Geninho, mas pelo prisioneiro que eu e a brigada fomos obrigados a recolher ao xadrez. Você viu como o povo ficou revoltado com o acontecido, exigindo justiça. Por isso tive que tomar esta decisão para preservar sua integridade.
Os dois olharam em sintonia para o prisioneiro. O delegado acendeu novo cigarro enquanto dizia:
— Nunca imaginei que o Geninho fosse tão venerado na cidade. Quase um santo. Se o povo soubesse a verdade…
— Preferiram um santo de mentirinha ao de verdade, compadre.
— É, amigo Lutero, o povo nunca tem razão. E os poderosos sempre escapam justamente por serem poderosos. Por estas e outras é que não vou acusar o prefeito. Quanto ao seu cliente, não se preocupe. Com o tempo o povo se acalma, esquece o Geninho e eu o libero. Na procissão do próximo ano ninguém vai lembrar de nada e a Cúria fica satisfeita. Estamos acordados, Lutero?
Dentro da cela, a imagem de madeira maciça em tamanho natural de São Jorge montado em seu cavalo parecia lamentar o acordo espúrio firmado entre o delegado e o advogado cujo cínico aperto de mãos ele era única testemunha. Juventino ainda pitou pela derradeira vez o seu cigarro de palha antes de filosofar:
— Na verdade, compadre, somos todos uns capadócios, sem exceção.
O advogado assentiu, flexionando a cabeça.





sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O nó de Marieta

Marieta fazia de nossas manhãs um ritual quase litúrgico.
Digo "quase" porque a celebração era íntima e desprovida de devoções a santos,
orixás, entidades, veneráveis virtuosos ou encarnações do tinhoso.
E digo "litúrgico", porque o ciúme de Marieta era uma fé religiosamente cultivada,
algo transcendental que conduzia nossa vida matrimonial com desígnios, dogmas,
superstições e atitudes que beiravam a beatice fundamentalista.

Marieta carregava como uma cruz a crença de que eu, Eleutério Moreira,
alto funcionário público, pai de três filhos, avô de dois netos e 34 anos de um
casamento imaculado, seria um patife vespertino, prevaricador contumaz, um sonso cafajeste.
Sim, sonso, cínico, já que à noite, toda noite, trocava minha fatiota de funcionário exemplar
pelo pijamão com monograma e pantufas restauradoras.

Para blindar o marido - para ela, um safado dissimulado -  aproveitava-se de uma fraqueza
secreta e vexatória, que carrego com rubores na face: eu não sabia dar nó de gravata.
Nunca soube, nem tenho idade e paciência para aprender.

Ardilosa Marieta. A cada desjejum, ao terminar a média com pão em canoinhas
na manteiga e metade de um caqui ou uma banana prata amassada com aveia,
era conduzido por ela ao armário do nosso quarto, onde dezenas de gravatas
perfilavam-se dependuradas na parte interior da porta. Marieta tinha o cuidado
de retirar aquela que combinasse com o dia lá fora. Cada cor, cada padronagem,
cada tom e cada textura não eram escolhidas ao acaso.
Dependiam da lua, das nuvens, da climatologia, do horóscopo,
dos perrengues da menopausa, de seus próprios impulsos hormonais, dos comandos
do seu ciúme patológico, suponho, pois o tempo gasto para eleger a tal gravata me fazia
um enfastiado a imaginar por que diabo tanto cuidado com a harmonização de um pedaço
de pano com sei lá o quê, já que a camisa era sempre branca e o terno um cinza soturno?

E dava-se início à cerimônia.
Com meu pescoço entregue como um condenado ao patíbulo, cruzava ela a parte larga
da gravata sobre a parte estreita. Seguia o cruzamento numa cambalhota de dedos como se desenhasse arabescos, formando um nó frouxo, por onde mergulhava e descia espremida
a parte larga, até encontrar a centímetros do cinto lá embaixo, a ponta mais fina.
Com as mãos firmes, subia o nó triangular até o botão que fechava o colarinho
- sempre engomado e rijo -, deixando equidistante as duas metades, a larga e a estreita,
centralizando pelos limites das costelas direita e esquerda, sobrepostas por uma camisa
da mais fina cambraia.
Ela ainda operava a última conferida, contemplando, apertando e segurando com orgulho
de um Leonardo da Vinci, sua obra máster: seu nó de criação própria - nenhum marinheiro
de várias viagens ou escoteiro das melhores ações seriam capazes de reconhecê-lo em
manuais, muito menos desatá-lo.
Um alfinete perolado era espetado no ponto central da gravata, como uma cereja no chantilly,
como um lacre de uma masmorra.

Não encerrava aí.
Marieta surgia com uma fita métrica para assegurar que as medidas estariam dentro dos
padrões da elegância de um alto funcionário público de uma repartição do Distrito Federal.
Conversa fiada. Ela media tudo para se certificar que os centímetros da manhã
seriam rigorosamente os mesmos do entardecer, quando chagasse do trabalho, confirmando,
assim, que eu não teria tirado a gravata no afã de me embrenhar por alguma amante.

Eu não tinha amante coisa nenhuma.
Mas também não suportava ser santo. Andava atormentado pelo cárcere sexual em que
fui metido. Marieta já não emanava desejos nem futucava os meus. Mesmo que eu quisesse
fantasiar muito, imaginando a avó balzaquiana autoritária sensualizando os quadris,
vestida de odalisca, véu e abundancias desnudas.

Um dia, tomei coragem, seria o que Deus quisesse, ousei trocar a hora do almoço por uma
hora relaxante na casa de Tia Aurita, domadora das mais belas e ferozes fêmeas do amor
contratado, travestidas de meigas namoradinhas, daquelas que, não fossem de vida insuspeita,
seriam pequenas de se levar ao cinema e tomar sorvete na leiteria.
Foi um quase desastre.

- Venha, tio garboso...
- Não me puxe a gravata, minha filha...
- Como não? Quero lhe fazer de meu cachorrinho na coleira, doido para me cheirar e me lamber todinha...
- Largue a gravata, minha filha...
- Mas como fazer a coleira de meu Totó?
- Largue a coleira, então, minha filha. Deixa como está. Seu cachorrinho obedece os comandos
da bela dona, sem que se toque na gravata, por favor, digo, na coleira.

E assim nos entregamos a lambeções diversas, esfregas infinitas e imersão em corpos quase nus.
Digo "quase", porque por prudência, não despi a camisa, muito menos arrisquei desatar a gravata,
fazendo as delícias de um amor transgressor, com o decoro de um alto funcionário público
e uma ondulante progressiva bunda de fora.

O desastre quase se deu, quando tentando fazer a moça parar de rir depois das funções,
tive ímpetos de mandar lhe uma bofeteada. Cheguei a levantar a mão, a moça gritou e a zelosa
Tia Aurita adentrou à alcova com a chave mestra. Perplexa, nada pode fazer, a não ser impedir
com o olhar meu gesto insano e compartilhar com sua funcionária um ataque de riso nervoso.

As gargalhadas foram contagiantes. Sorrindo frouxo e amarelo, ajeitando a glostora do
topete diante do espelho, confessei às duas meu problema doméstico, certificando que a
gravata e seu nó continuavam intactos. Compreensivas, lançaram olhares de compaixão
e afeto, ofereceram ombros amigos e carinhosos, ainda ajudaram a me vestir e tirar
mínimos vestígios de uma gravata - e uma tarde -  fora do lugar.
Resultado: dobrei o maço de notas combinado, depositado gentilmente na penteadeira.

À volta para casa, a hora tensa da revista da fita métrica. Prendi a respiração. Fui submetido
à conferência padrão. O corpo em posição de sentido, nariz ao alto, olhos atraídos pelo lustre,
o gogó tremelicando como o de um frango às vésperas do molho pardo.
Um arroio de suor me brotava atrás da orelha. Marieta me apalpava e me examinava
com seus óculos rigorosos.
As distâncias, o nó, a pérola, o buraco do cinto, tudo foi checado. E tudo estava como antes
e como sempre. Nenhum cheiro estrangeiro no seu território, nenhum amassado na cambraia,
nenhum fio de cabelo de glostora fora de posição.

Marieta me deu um beijo e disse que havia preparado macarronada para o jantar.
Suspirei, suspirei fundo, sorri por dentro e me senti mais que aliviado: feliz como nunca.

Meu casamento estava a salvo.
E Tia Aurita ganhava seu cliente mais assíduo e generoso.









Pelos fundilhos do leitor

Na última onomatopeia, meus dedos travaram. Não sei explicar direito, talvez, ou ainda, de alguma maneira, altivo, vi com os velhos olhos acometidos pelos anos, a presença que agora as minhas retinas infantis presenciam.
O convívio com os anos se tornou uma prática que venho diariamente encontrando nas caminhadas pela orla. Tão diferentes daquelas mesmas pernas brancas embutidas no bonde, vejo um desfiladeiro de Botafogo, Tijuca, Centro, Ipanema e Paquetá. Isto é o Rio de Janeiro, nem precisa da rima com primeiro mês do ano.
Outro dia, ouvi meu nome, não foi um anjo torto, mas a voz de um amigo deformada pelas oscilações dos paredões rochosos dos condomínios fechados. Raimundo me chamou para ver o ornamentado jardim de flores que organizou no quintal de casa. Em todos estes anos na cidade maravilhosa, não deixei desaparecer o sotaque mineiro. No inicio alguns esqueceram as críticas no meio do caminho, para me dizer que não demoraria mais que o amanhecer da entrega do leite e meu sotaque fechadim desapareceria. Já passaram mais de meio século de homens partidos e continuo itabirano com o suor da parteira preso nos tornozelos.
Olhando as flores em silêncio, escutava Raimundo em uma sinfonia de falas e menções sobre o tempo que foi e não é mais. Os ombros suportam o mundo, mas eu ainda tenho esperança de um dia ver o mundo suportar os ombros. Acostumei enxergar o inverso das coisas, passados tantos poemas, tenho a terrível inquietude de ver a lata de lixo ser considerada a melhor amiga do poeta. Posso revoltar-me, mas as conversas de Raimundo são prosaicas demais, isso me rememora os homens de chapéu e cantigas em tons menores durante as obras da reforma do Colégio Arnaldo, que tiravam a atenção para crescimento de Belo Horizonte. Há sempre uma resposta que não gostaríamos de ter.
Em todos estes anos de poeta, tenho perambulado muito pelo Rio, principalmente pelas proximidades dos colégios. Tão antigos em suas construções e em suas classes de português . Nas conversas na saída de aula, ouvi certa vez, alguns estudantes secundaristas discutindo que Lili foi a única com um destino feliz. Nunca tinha me perturbado com tal afirmativa, nem as noites passadas em frente o datilografo traduzindo Balzac, Proust, Lorca, escrevendo crônicas para o Correio da Manhã tiveram um peso tão imenso sobre minha poética. Sem necessitar da identidade, estrada ou bonde, voltei aos bancos escolares do Colégio Anchieta e principalmente para a aula de gramática. Percebo a minha primeira briga com a linguagem acadêmica, valendo a minha expulsão. Insubordinação, palavra que me persegue por largas décadas. Somente o meu nascimento em Itabira tem um aspecto mais remoto.
A poesia, uma insubordinação, perante a existência dos homens, que chega sem avisos prévios, exigindo apenas o dedilhar dos dedos cansados, nem sempre formando onomatopeias, ficando apenas com os versos. Me pergunto, e agora? Tantos Joses na cidade, qual deles é a essência do retrato? Nas vezes que encontro pela janela do sólido edifício o mar, ele não responde da forma como imaginei quando menino lá em Itabira. Depoisem Belo Horizonte, despertava para outros interesses e o mar continuava a ser uma linha de imensidão que ecoava em meus pensamentos, sem as águas tranquilas com marinheiros fiéis.
A verdade nasceu com a pena tinteira que herdei do meu avô materno, para anos depois ser usada nas assinaturas dos prontuários farmacêuticos, que se afastou definitivamente da minha mão antes mesmo do buço endurecer.
Nesta natureza involuntária da vida, Carlos de Paulo Andrade e Julieta Augusta Drummond, que aprendi ao longo da timidez itabirana a chamar de pais. Depois Pedro Nava, Milton Campos, Oswald e Mário de Andrade, Manuel Bandeira, ajudaram a formar gerúndios faltantes, ardendo em fagulhas quando me deparo com suas obras em prateleiras empoeiradas de livrarias. Ultimamente até mesmo as correspondências arquivei, mas nenhum arquivo é pior que os passos lentos dos meus oitenta anos.
Quem bater na porta do 701 do edifício da Conselheiro Lafayette número 60, não vai encontrar o sorriso mais recluso de Copacabana, mas quem sabe o mais gauche. Elas se estivessem aqui, diriam mais poético. Dolores e Maria Angélica, duas mulheres que a vida se responsabilizou em fazer o vão não ser mais que palavra, e amor, mais que qualquer definição. Herdei delas esse jeito, nenhum poema, nem mesmo em todas as antologias que coloquei o Carlos rompendo definitivamente com o eu lírico, conseguiu valer o verso – mais vasto é meu coração.
Sempre no meu sempre a mesma ausência, caro leitor, podes estranhar, essas voltas e idas, mas acostumei-me a viver assim.
Desta vez desconfio que não escrevi um poema.






quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Histórias de sonhos

Para Diva

Eu a conheci num lançamento de livro. A música que tocava era diferente de quase tudo que estamos habituados. Música contemporânea experimental, creio que era este o nome. Enquanto muitos pareciam estranhar, ela demonstrava prazer e alegria. Logo soube que tinha a ver com seu neto, que foi morar nos Estados Unidos justamente para estudar esse tipo de música. 
Da música e do neto passamos a falar de outros assuntos, e ela começou a contar episódios de sua vida. A neta bailarina e estudante de Jornalismo, que sofreu por ficar em segundo lugar num processo seletivo de uma companhia francesa de balé. Suas comunicações com o neto via Skype, que pede conselhos a ela, não aos pais.
Até que falou de sua recente viuvez, surpreendendo-me. Até então, era toda risos e brilho nos olhos, inclusive no esquerdo que, cego, nada azulando à deriva em seu globo. Perdeu o marido há onze meses. Estava tudo preparado para a comemoração, era o aniversário dele, 18 de março. Salgados, doces, doces dietéticos, refrigerantes, sucos, cerveja. Todos estavam chegando quando uma das noras, médica, reconheceu algo estranho no rosto de Jorginho (era chamado assim desde criança). Pediu licença à sogra para levá-lo ao pronto-socorro, coisa breve, só pra dar uma garantida de que estava tudo certo. Não estava. O que era para ser uma ida rápida foi consumindo o tempo até a festa ser desmontada, a comida e a bebida doadas para um asilo vizinho. Ninguém queria mais comer, seu Jorginho fora internado. A diabetes, que o acompanhava há quarenta anos, complicara.
Seu Jorginho não saiu mais do hospital. A mulher o visitava diariamente, sem sentir a densidade do real que surgia sem gentilezas. Uma sobrinha, psiquiatra, orientou os filhos a administrarem ansiolíticos em meio aos remédios muitos que ela também tomava. Não percebia que o marido morria.
Sem que o casal desconfiasse, os filhos os filmaram caminhando pelos corredores do hospital, captando, eternizando a doçura com que aquelas mãos se tocavam, o sorriso no rosto dele, que lhe dizia Você é tão linda, meu amor, e eu te amo tanto, tanto. E ela então respondia Eu também, eu também. E os dois riam, porque era assim há sessenta anos.
Depois de dez dias Jorginho morreu. De início levaram-na para os filhos, ficou uns meses longe de sua própria casa, viajou bastante, mas estava de volta.
Onze meses para ter o primeiro sonho com o marido. Deitara-se pouco depois das onze, uma amiga fazendo companhia. A voz foi vindo de muito longe. Te amo, meu amor, te amo, te amo. Falando, falando, até ela acordar assustada – enternecida, mas assustada, devia ter dormido muito, ele a chamava, os remédios, ela tinha que tomar o antibiótico às sete. Sentou-se na cama para enxergar o rádio-relógio, apenas uma da manhã.
Quando finalmente amanheceu contou o sonho para a amiga, que opinou fosse algo que Jorginho ainda lhe precisasse reforçar. Nessa parte da história minha amiga tem os olhos transbordando, ainda mais azuis. Porém logo sorri e diz que eu não poderia imaginar, mas uma das netas, a mais namoradeira, completou pela primeira vez um ano ininterrupto de namoro e veio falar que gostaria de lhe apresentar o rapaz, só pedia que não se assustasse. Pensou em tudo: tatuagens, piercings, até drogas.
Nada disso, o moço parece bonzinho que só. Tem o mesmo nome e apelido do avô, Jorginho. Minha amiga esclarece que é muito católica, não acredita em reencarnação nem nada parecido, mas a coincidência a divertiu. Ela que só conheceu Jorginho, ambos com catorze anos, fala, sorridente e de novo serena, que nunca foi namoradeira, mas o marido sim. Adorava dançar e namorou várias, mas sempre lhe dizia É com você que quero casar. E casou. Ela não gostava de bailes, ele parou de ir. Ele gostava de falar de futebol e política, ela não. Eram bem diferentes nessas coisas, por isso ela sorri ainda mais e me joga a pergunta Não dizem que os opostos se atraem? Então, é verdade, responde a própria indagação de imediato. Nessa hora a música para e levantamos, é hora de comprar o livro, pegar autógrafos, tirar fotos.






terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Você pode ser um leitor-nada - poema de Leonardo Mathias






“– você pode ser um leitor-nada e,
se realmente não acreditar em nada,
ainda pode ler um livro sobre isso:

você pode ser mulher,
e isso não é nada,
como nada é ser homem, afinal,
você terá de raspar os pelos
e isso também não faz diferença:

– a vida está cheia de nada
e, ainda assim,
tensiona as coisas –

e por isso seguimos insistindo, mesmo
[por nada]”



do livro (...) ou reticênciasentreparênteses, Editora Patuá.





segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Depoimento de uma mulher que apanha


De tudo o que nos incrimina, o que nos condena é a mudez.
(cinthia kriemler)

Eu fico olhando ele dormir toda noite. Ele não faz um ruído, sabia? É uma coisa assustadora. Não ronca, não respira alto. Parece alguém em coma; um semimorto. Como é possível? Isso não é justo. Não está certo ele dormir assim enquanto eu passo a noite cuidando do meu corpo cheio de dor. Cada tapa, cada soco, cada pontapé me deixa toda marcada, está vendo? A minha pele está toda roxa. Tem uns lugares em que os hematomas nem saem mais. Está vendo a minha coxa? É o lugar que ele mais chuta. Acho que é porque essa parte do corpo está sempre coberta e ninguém vê as marcas. Eu nunca mais vesti um short. Nunca mais fui à praia, acredita? Mas as coxas não me preocupam. Na hora em que ele começa a bater eu só me lembro de usar as mãos e os braços para proteger a cabeça. Faço uma espécie de redoma, de escudo. Assim, está vendo? Mas tem hora que ele me pega desprevenida. Eu morro de medo que ele machuque os meus olhos. Ou a minha cabeça. Fico imaginando como seria ficar em cima de uma cama. Dependendo dos outros; dependendo dele. Imagina o que mais ele faria comigo. 
Eu ainda choro. Por que será que eu ainda choro? Não é mais choro de revolta nem de medo, sabe? É uma coisa boa. Que me dá alívio. Andei pensando sobre isso. Eu acho que eu choro porque talvez seja a única coisa em mim que ele não pode tocar: as lágrimas. Ele não pode puxar, apertar, sacudir, espancar as minhas lágrimas. Como faz com o meu corpo. Também não pode manipular, nem controlar, nem abusar delas. Como faz com a minha cabeça. Com a minha vida.
Não, isso não é vida. Eu sei. Eu já estive aqui antes. Já conversei com a psicóloga. Foi bom. Ela me fez pensar. E eu já tinha parado de pensar fazia um tempo. Mas pensar não adianta muito, sabe? A gente se sente pra baixo de novo. Pensando em tudo o que não consegue fazer. E sofre outra vez.
Eu nem sei por que é que eu apanho tanto. Só sei que a coisa vem, e quando vem nunca é pouca. Primeiro ele me olha. É um jeito de olhar que fala. Eu não sei explicar direito. Mas é como se ele estivesse sempre me culpando por alguma coisa que eu não fiz. Como se estivesse procurando uma desculpa para me arrebentar toda. Qualquer coisa serve. Qualquer coisa mesmo. O cabelo solto, a saia curta, a calça comprida justa, o riso, a unha grande, o decote, o jeito de pendurar a roupa no varal, a máquina ligada muito cedo, a camisa passada do jeito errado, o banheiro ocupado. 
A psicóloga me disse que ele é um abusador. Que ele faz eu me sentir culpada de propósito. Porque é isso que um abusador faz. É verdade. Toda vez que ele me bate fica repetindo que a culpa é minha, que eu mereço apanhar. Não mereço, não. Já tem tempo que eu sei que não mereço castigo. 
Eu casei muito cedo. E ele não me deixou trabalhar nem estudar. Tinha ciúme até da minha mãe. No começo, eu achei graça. Não vou negar que eu gostei daquela vida de não trabalhar. Só depois de um tempo é que eu percebi que era tudo uma armadilha. Eu não tinha diploma, não tinha emprego, não tinha mais amigos e me afastei da minha família. Eles nunca entenderam o porquê. Nunca aceitaram eu ter parado de falar com eles: minha mãe, meu pai, meus irmãos. A minha irmã mais nova me disse que é benfeito tudo o que me acontece. Porque eu sou burra, covarde, fraca. Eu entendo. Entendo, sim.
Eu não tenho filhos. Não pude ter. Fiquei triste por muito tempo. Porque eu imaginava que se eu tivesse filhos ele não ia mais me bater. Mas depois eu andei lendo sobre uns casos parecidos com o meu e vi a sorte que eu dei. Eu e essas crianças que nunca nasceram. Só que, por causa disso, ele passou a me bater mais ainda. Batia e me xingava. Sua inútil! Sua vaca! Não presta nem pra me dar um filho! 
Foi nessa época que eu pensei em cair fora pela primeira vez. Sem filhos, ele não tinha como me ameaçar. Sem filhos, eu não me importava de não ter estudo nem emprego. E aí eu vim aqui e prestei queixa. Conversei com a psicóloga e ela me disse para eu parar de pensar no que tinha a perder, e começar a pensar em tudo o que eu tinha a ganhar. Foi uma conversa boa. Imaginei tanta coisa. Cheguei a procurar a minha mãe e perguntar se ela me aceitava de volta em casa. Imagina que ridículo! Mulher feita voltando para a casa da mamãe. Mas ela aceitou feliz. Os meus planos é que duraram pouco. Um dia depois ele foi trazido aqui, nesta delegacia, prestou depoimento e foi mandado de volta para casa. Em 2005, ainda não existia a Lei Maria da Penha. Foi aprovada só no ano seguinte. Tarde demais. Na noite em que ele foi liberado pela polícia, me fez uma ameaça. Que se eu viesse aqui de novo ele matava meus pais e meus irmãos. E logo em seguida me deu uma surra tão grande que me quebrou um dente. Esses nove anos foram um inferno.
Mas as coisas mudam. Por isso eu resolvi prestar queixa de novo. Dessa vez, sem volta. Meu pai morreu tem quatro anos. Mas ainda tinha a minha mãe para o desgraçado ameaçar. Agora, ela também morreu. Faz um mês e meio. Antes, eu dei um jeito de ir até o hospital e ficar um pouco com ela. Pedi perdão. Sabe o que ela me disse? Que eu precisava pedir perdão era a mim mesma. Aquilo doeu. E doeu mais ainda quando eu fiquei sabendo que ela deixou a casa para mim de herança. E que os meus irmãos abriram mão da parte deles por mim. Para que eu pudesse ter para onde ir se eu decidisse me separar. Aí eu pensei: é agora ou nunca; não tem mais pai nem mãe pra esse filho da puta ameaçar. Eu conversei com os meus irmãos. Contei tudo para eles. E eles me disseram para não me preocupar que eles se garantem. Acho que a única covarde sou eu mesma.
Hoje, quando eu estava saindo de casa, ele veio atrás de mim. Adivinhou o que eu ia fazer. E me ameaçou, revólver na mão. Eu continuei caminhando, sem me virar. Pensando que o tiro não podia me matar mais do que eu já estou morta. Mas não era para ser. Não, não era para eu terminar em silêncio. 






sábado, 14 de fevereiro de 2015

se um dia...antes


Apeteceu-lhe ir escorregando por uma rua sem fim, uma rua muito inclinada e muito, muito, sem término nem que fosse em pensamento. Uma rua imensa, mas nem lisa, um piso com altos e baixos de modo que, de onde em onde, pelo percurso, lhe pulasse o corpo, fosse este torturado, os ossos a furarem a pele e ela a caminho de coisíssima nenhuma, ela apenas fugindo de nunca ter sabido.
Ela a correr de ali para fora.
Ela a sair da sala e a querer sair de si mesma, ir para longe, muito longe.
Ir numa tábua com rodízios à falta de um daqueles carrinhos de ladeira que os meninos, os meninos de antes, faziam por não terem outras brincadeiras, e os de hoje fazem para que brinquem sem estar diante dos monitores, desejam assim os pais, alguns pais, que a maioria até já foi educado com aipedes e aipodes e adormece os filhos, não cantando, não embalando, não pegando no colo para que aconchegue, mas colocando entre as mãos do anjinho um desses aparelhos, funcionando.
E depois, lá muito, muito longe, derramar-se-ia, desfalecida, num mar ou num terreno vindo de arar, ou ela acabaria numa mina: a terra esventrada em busca da almejada pepita, um pedacinho de oiro, e os homens esburacando o solo e nenhum deles teria nunca sabido do que está escrito mais do que a carta que lhe vinha, rara, de alguém que ainda se lembrasse dele, menino de colo ou menino de escola, ou moço de ter assentado praça, ou seria carta de esposa ou namorada que o homem leria sentado numa pedra, as mãos fedendo e negras tal e qual o rosto, que as lágrimas seriam a única água que ali, mourejando, lhe lavaria a face esquálida, um buço ralo e mal se vendo traços de ter sido um belo homem.
Ou ela, correndo naquele andarilho, no final de uma descida alucinante, no final duma fuga para o nada, cairia no telhado de uma casa, telhas novas que, assim, suportariam o seu peso que era o peso do seu corpo magro, mas era, sobretudo, o peso da imensa solidão, da imensa frustração de uma vida lendo e folheando, e lendo mais e mais, tardes inteiras sem um passeio, uma ida às fontes, ao mar ali tão perto, e ela lendo, lendo, lendo, que antes tivesse bordado entremeios de lençóis, desenhado muitos desenhos ou apenas se tivesse sentado, hirta, olhos fechados a apanhar o sol do fim de tarde e nem um pensamento, nada mais que o gozo, ou nem isso, que gozo é conceito literário, tão apenas a serenidade de sentir o calor do sol quase raso no horizonte.
Um pé atrás do pé seguinte, e ela dando passos.
O corpo a afastar-se e, com ele, iria ela mesma, inteira, espírito e intelecto, ou alma, ou o que fosse que, dizem, é o que dá sentido a isto de ser gente. Ela andando para fora daquele sítio, a sala forrada de estantes e as estantes cheiinhas de livros. Ela a querer fugir daquele ter-se apercebido de quanto fora tudo tão inglório, tão em vão.
E nisso de ir ela de uma sala a outra, a casa nem assim tão grande, e ela afastando-se o que bastasse e nem conseguindo, que o peso da constatação vinha-lhe agarrada como sarna, e seria assim, ainda que ela fosse pela imaginada rampa e caísse num mar calmo, o mar sossegado de uma enseada, e um barco bordejando o loiro de uma praia – o Paraíso em que nunca acreditara.
Antes o carrinho a largasse na cova esventrada que a Terra lhe tinha destinado. Sete-palmos, como diz o poeta. Uma cova geométrica como o paralelepípedo que aprendera no liceu, ou teria aprendido na primária, ou terá repetido para acrescentar o estudo da soma dos ângulos internos. A cova tal e qual o poliedro: quatro faces rectangulares e duas bases, e estaria uma face exposta a mostrar o oco lá de dentro, uma face sem matéria que não fosse o ar que ocupa tudo.

Uma cova aberta onde ela, apenas ela cairia que, por inércia, a tábua havia de seguir adiante até que uma força demovesse o objecto de correr sem o fito de levá-la para longe da sala forrada de estantes e estas forradas de livros, a sala onde acabara de aprender a verdade, dolorosa e crua, de que afinal nada aproveitara, e nem os netos, nascidos como são na época do digital, quer seja para leituras ou para comprar bilhetes para o teatro ou para o futebol. 





ÚLTIMO POEMA


                   ÚLTIMO POEMA

Cecília Maria De Luca
                                                                     
- Que se danem as dores do mundo, não fui eu que o criei, nem me chamo Raimundo. De nada adiantou escrever, protestar, chorar, gritar. De nada adiantou tentar ajudar. O mundo, meu caro, é um celeiro de desigualdades. Os filhos da miséria, do preconceito, da violência, proliferam feito praga. Cansei de dar murros em ponta de faca. É ingenuidade pensar que a arte, a literatura podem mudar as coisas. Nada muda e nunca mudará. E nem é o sistema, não há sistema ou regime que resista à vaidade humana. O que não invalida que se continue tentando. Gerações futuras saberão que pelo menos alguns tentaram, denunciaram, gritaram, puseram o dedo na ferida. Mas, penso eu e repito, não adianta. O projeto humano fracassou. Quanto a mim, cansei de ser protagonista ou coadjuvante, hoje sou mera expectadora desse filme de horror. E assim caminha a humanidade, meu amigo, em círculo vicioso.

Dito isso, a velha senhora olhou-o de esguelha, esperando uma reação que não veio. Sacudiu ligeiramente os ombros frágeis e mudou de assunto: - Mas não foi por isso que o chamei aqui - Encheu as duas taças de vinho, notando o tremor de suas mãos enrugadas e resolveu que não se preocuparia com aquilo, não hoje, não agora. Tentou e conseguiu por um tom alegre na voz:

– Vamos, façamos um brinde ao nosso reencontro. Há anos, desde a morte de Gilberto que o espero com esta taça vazia, esta garrafa de vinho e uma flor fresca no jarro. Não, não me olhe com essa cara, por favor, você bem sabe que não podia abandonar as crianças, tão pequenas ainda! E depois tinha o Gilberto. Gilberto, coitado, tão bonzinho! Morreu me amando, mesmo sabendo, lá no fundo, que não era correspondido. Mas, quer saber? No frigir dos ovos, penso que foi feliz. Esperava tão pouco da vida, o Gilberto! Não era um homem para quem eu pudesse dizer: “Olha que lua! Olha que mar!”. Não, poesia não era com ele. Nossas conversas giravam em torno de assuntos mais prosaicos: “Pagou o cartão de crédito? Marcou o dentista? Não vá esquecer a reunião de pais e mestres hoje na escola” Coisas assim... Por isso escrevia, tinha que refrigerar o caldeirão de ideias que fervilhava na alma. Um dia, sem que eu percebesse, a poesia me abandonou e parei de escrever. É, eu sei... Também acho uma pena, mas me dei conta de que não tinha mais nada a dizer. As crianças? Bem, as crianças cresceram, casaram, me deram netos, os netos cresceram... Enfim, Gilbertinho mora no Canadá, Adriana na Alemanha.  Fernando, o caçula, mora aqui. Este não tem filhos, não quis. Não... Eu quase não os vejo, nem mesmo Fernando. Filhos e netos crescidos são sempre muito ocupados, sabe como é, não sabe? Ah, é verdade, você não se casou... Há seis meses me propuseram morar numa casa de repouso. Lá eu teria companhia, assistência médica, deixaria de ser uma preocupação constante. Queriam também que eu vendesse a casa. Topei o lar dos velhos, mas vender a casa, nem pensar... Só topei, com a condição de voltar pra cá se não aguentasse. E foi o que aconteceu. Não aguentei sequer dois meses. As acompanhantes me enlouqueciam com seus diminutivos definitivamente irritantes: “Me dá sua mãozinha, põe seu pezinho aqui... Tome a sopinha, vamos, só uma colherzinha”... Também não suportei aqueles espelhos à minha frente, fazendo-me antever o futuro quase imediato. Os olhares vazios, a decrepitude, o cheiro da velhice, a dependência, tudo aquilo me deprimia demais... Bem, no final das contas, o saldo foi positivo porque, ali,  decidi o que fazer. 

A velha senhora fez uma pausa e desviou o olhar para a janela aberta, para o azul infinito, para o desenho de uma nuvem que se desmanchava. Desde que se entendia por gente, adorava seguir o movimentos das nuvens. Fez um esforço para se concentrar, pigarreou e prosseguiu, não sem antes encher sua taça novamente:

- Você acredita em Deus, meu amigo? Não? Ah, que pena! Não, por favor, não me venha com essa bobagem de que Deus está morto. Pode ter envelhecido, talvez com alzheimer, mas morto não está.  Sabe o que penso? Penso que, depois de ter criado o mundo, Deus foi dormir. Ou então, o que é mais provável, lavou as mãos e foi cuidar de coisas mais importantes como sustentar o universo, por exemplo. E deve ter razão, porque cuidar do equilíbrio dos astros deve ser mais interessante, mais prazeroso que ouvir tanto chororô, tantos pedidos e agradecimentos, aquelas orações repetidas interminavelmente, sem falar daqueles conselhos, tipo “segure na mão de Deus e confie”. Convenhamos, nem o saco divino, que presumo todo poderoso e onipotente, aguentaria. Você ri? Tá bem, falo sério agora. No fundo, no fundo, invejo essas pessoas que têm uma fé inabalável, absoluta, sem questionamentos. Ah, quem me dera crer assim! Deve ser uma âncora e tanto em fases tempestuosas, não é mesmo? Nunca pude contar com essa muleta porque tenho cá minhas dúvidas, e muitas, sobre a existência de Deus. Sim... Por outro lado, como você diz, a dúvida é sempre mais saudável. A propósito, existe uma expressão interessante de São João da Cruz: “O que podemos conhecer de Deus são as pegadas de sua ausência”. E é verdade. São as pegadas de Deus, os sinais, e apenas os sinais, que nos movem, que nos provocam, que nos fazem prosseguir investigando, refletindo. Sim, é isso... Você disse bem, é instigante. É instigante e belo. Penso que a beleza da vida reside exatamente aí, nos vestígios da ausência. Bem, seja como for, se existe, ele há de entender minha atitude... Espere que já explico.
  
Ela tornou a encher sua taça, despejando sobre o vinho um pó que chamou de mágico. Esboçou um sorriso que pretendeu matreiro, mas toda sua expressão era pura melancolia. - Outro dia li em algum lugar que não há poema mais bonito que um gesto de amor. Achei bonito isso. Gestos de amor.. Poemas! Pensei em todos meus gestos de amor... – Olhou-o, diretamente, com imensa ternura, e disse com voz firme - Um deles foi ter deixado você para continuar com Gilberto e as crianças. Imagine, deixei o amor da minha vida por um gesto de amor, é mole? Sei lá se isso foi bonito ou estupidez. Só sei que filhos sempre têm que vir em primeiro lugar. Agora, com essa doença que avança cruel e inexorável, eu resolvi aliviá-los, tanto da minha presença incômoda quanto dos aspectos práticos. Um belo gesto de amor, você há de concordar, não é? Semana passada, sem que soubessem, vendi a casa. Deixei tudo com Dr. Eduardo para dividir igualmente entre os três. Liguei hoje pro Fernando pedindo que viesse aqui, disse que era urgente. Daqui a pouco deve chegar. Ficará feliz com a notícia... 

A velha senhora recostou a cabeça no espaldar da cadeira, cruzou as mãos sobre o colo e olhou novamente para o céu, seguindo uma ou outra nuvem que se desmanchava. Suas lembranças iam e vinham, espumas que se desmanchavam em sua mente. Pensou na beleza e na precariedade da vida, tão fugaz, tão semelhante às nuvens nos dias claros de sol. De repente, sua expressão se alterou e sentiu-se extremamente cansada. Puxou o ar com força para responder. E respondeu quase num sopro: – O que fiz? Não entendeu meu amigo? Justo você que fez a mesma coisa, há tão pouco tempo? Ah, meu querido, meu amado, meu amigo, você mais do que ninguém deveria entender esse gesto! Acabo de escrever meu último poema.

Por alguns segundos, seu olhar continuou seguindo as nuvens até que se perdeu no nada. Naquele exato instante o filho chegou. Aturdido, viu, num relance, o olhar vidrado da mãe voltado para o céu, a garrafa, as taças, a flor que murchara e o vidro de remédio vazio. Então compreendeu. Só não conseguiu processar, de pronto, a razão daquela segunda taça cheia até a borda, intacta. 
                                        





quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Sacro Ofício



Por Lohan Lage Pignone

A poesia causa dor lacerante
Na folha de papel
Que vê ceifada a sua pureza
Quando tocada pelo cabo úmido
De uma pena, com sutileza.

Desvirginada, a folha antes casta
Agora de sua essência se afasta
Cedendo todas as suas margens
Às invasoras que se dizem marginais.

Outros seres a possuem
Sem permissão.
Objetos pontiagudos,
Nas mãos de homens mudos
Que só dizem em poesia
Maculando a honra daquela
Cuja dor lhes é de serventia.

Poetas,
Réus sempre absolvidos
Pela absorção das palavras!
Bate o martelo:
Toda letra fere,
Mas toda palavra cura
Justifica-se em juízo
A dor e a desonra causada àquela que outrora
Era pura.
Diz-se que é ofício sagrado,
Desta mulher mariana, que recebe em teu ventre
Um filho nunca rogado.

À folha, resta o sangue
Azul, negro, vermelho
Que discorre poeticamente
Pelo alvo corpo passivo
Causa marca, permanente:
Território do (minado).

A poesia adoece a folha
Quando o verso dilacera ferida
Aberta às moscas,
Carne crua, fétida.
A violência se faz vã
Poeta condenado, e o rasgo
No coração, nos membros,
Súplica dolorida!
De cada canto,
De cada fibra,
Arrancaram-lhe a vida.
Corpo esquartejado
Relegado ao vento
Espalha-se pela eternidade
Como folhas de outono
Em plena invernia
Poética.

E, de vida própria, nunca se resta nada:
Mais uma página virada.