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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Hino menino

Já faz muitos anos, mais de dez, quase quinze. Eu não era nem mãe ainda. Meu pai comentou que a escola fundada por ele não tinha hino, que a escola precisava de um hino. Entendi aquilo como um convite apelo e tomei pra mim o desafio de rabiscar num caderninho um refrão e mais duas estrofes.

Para o campo semântico, escolhi termos que sempre foram caros àquele educador apaixonado: paz, liberdade, abertura, respeito, aprendizado, criatividade, expressão, amizade, cooperação... Não demorou muito e, depois de alguns cortes e substituições de palavras para ajustar métrica e rimas, a letra ficou pronta. 

Tentei fazer a melodia também, mas não prestou. Passei, então, a tarefa para o meu irmão mais novo, que rapidinho solucionou o problema, ajeitando ritmo e cifras. Botou inclusive uma pausa bem oportuna, que virou o charme da música.

Já faz alguns anos que a letra do hino vem impressa na agenda dos alunos da escola, mas eu nunca tinha visto as crianças cantando os meus versinhos. Depois de tanta história, finalmente eu tive o prazer de assistir à apresentação do hino pela criançada. Foi na solenidade de aniversário dos 14 anos da escola, que concentrou na quadra mais de 400 alunos de educação infantil e ensino fundamental. As turmas de 3º, 4º e 5º anos, uniformizadas e regidas pela professora de música, fizeram o coro: “Atual é a vontade de aprender. Atual é o desejo de ser feliz...”.

Eu ouvia a harmonia do conjunto, mas meus olhos se fixavam mesmo era numa moreninha do 3º ano: minha caçula, muito tímida, mas demonstrando orgulho de estudar na escola que o vovô e a vovó construíram (hoje administrada com zelo e dedicação pela vovó, pelo tio e pela tia). A minha primogênita também estava participando, toda prosa, lá na plateia.

Quanta emoção! E quanta saudade do meu pai, que estaria hoje com 74 anos. “Quero um mundo criativo e bem aberto (...) Muita paz e muito amor eu vou plantar.”

Maria Amélia Elói





segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Uma pedra no sapato de ténis



Casimiro Lopes começou a suspeitar de que qualquer coisa não estava bem quando, pela terceira vez, o seu parceiro habitual de ténis, Francisco Torrinha, deu uma desculpa para não fazerem a partida habitual. Não jogavam com muita regularidade — talvez de três em três semanas, muito longe das duas vezes semanais de uns anos atrás, quando ambos ainda estavam ao serviço da empresa —, mas era o suficiente para manterem a ilusão e a imagem de jogadores de ténis. Nem sequer eram grandes praticantes, apesar de jogarem juntos havia uns vinte anos. O ténis, agora, não passava de um pretexto para mexerem um pouco as articulações, calcificadas por tanto sedentarismo, e atualizarem o contacto.
Se, na primeira “nega”, Casimiro achou normal que o amigo não pudesse jogar por “ter de levar o carro à inspeção” e na segunda não pudesse, por andar “com uma dor lombar”, na terceira achou que as “compras no supermercado” bem podiam ser adiadas. Entre o surpreendido e o magoado, resolveu que não desafiava mais o amigo. Ele que telefonasse! Se a questão fosse circunstancial, Francisco haveria de arranjar um bocado da tarde para jogarem.
Passou-se um, passaram-se três meses e o telefone não cantou nenhum convite do amigo. Paciência! Casimiro é que não queria humilhar-se mais. Podia bem passar sem jogar ténis.
Quis o fado ou o diabo que Casimiro encontrasse um ex-colega da tropa, o Henriques, e chegassem à conclusão de que eram ambos jogadores de ténis a ressacar. E logo ali combinaram uma partida para o dia seguinte. Aziago dia esse!
Eram umas dez e meia, quando desceram dos balneários do Jamor para os campos de terra batida. O Henriques parecia jogar bastante melhor do que Casimiro, pelo que este se preparou para uma bela tareia. Na verdade, meia hora bastou para levar 6–2, na primeira partida.
Estavam a iniciar a segunda, com Casimiro a servir, quando este ouviu uma voz, seguida de uma risada, que muito bem conhecia. Estacou um momento, a determinar de onde vinha o som, e percebeu que vinha de um campo próximo, mas encoberto pelos arbustos de separação. Serviu, mas fez dupla falta. A seguir, meteu a bola na zona própria, mas um petardo do outro lado fê-lo ir buscá-la ao fundo do campo. Enquanto a apanhava, conseguiu espreitar por entre os arbustos e confirmar o que temia: Francisco Torrinha jogava ténis alegremente com outro tipo. E como se isso não bastasse, o outro era o Renato, o nojento Renato, o ex-colega de ambos que tinha das posturas mais irritantes na empresa. Irritante, manhoso e arrogante. Uma víbora com pernas.
O resto da partida correu ainda pior do que a primeira, se isso era possível. O sol queimava, a terra batida vermelha cegava, os olhos não conseguiam ver com precisão a trajetória das bolas. Quando a partida acabou com 6–0, Casimiro desculpou-se com o calor e voltaram aos balneários. Mais do que o calor, Casimiro já não aguentava a alegria que adivinhava no outro campo. Com o Renato!
O resto do dia não foi nada repousante para Casimiro. Pensou em mil e uma coisas que podia fazer, das mais vingativas às mais conciliadoras. A mais sensata, que acabou por prevalecer, quando, pelas três da manhã, o cansaço já se sobrepunha à raiva, foi a de confrontar Francisco com aquela facada nas costas.
No dia seguinte, foi esperá-lo à porta do infantário, aonde sabia que Francisco levava todos os dias a neta. Este não podia ter ficado mais surpreendido com a visita, mas pareceu a Casimiro que ele tentava disfarçar um ar comprometido:
Por aqui a esta hora? Pensei que a manhã era sagrada para ti!
Isso é um sarcasmo dos mais reles que já ouvi. Mais reles que isso é teres ido jogar ténis com o Renato — descarregou Casimiro, sem conseguir evitar o fel.
Mas o que é que estás a dizer? — ripostou Francisco, à defesa. — Quem é que te disse isso?
És capaz de negar na minha cara? Vá, diz; és? — faiscava Casimiro.
Sim, fui — admitia Francisco, vendo que não adiantava negar. — E daí? Qual é o problema?
O problema é que somos parceiros há vinte anos e ultimamente tens andado a evitar-me. E para quê? Para ires jogar com o mete-nojo do Renato! Com o Renato… Como é que foste capaz?
O que é que tem? Calhou! Encontrei-o no supermercado…
«Encontrei-o no supermercado» — repetiu Casimiro com voz de falsete. — Se te aparecesse o “Doninha” do Contencioso, também ias jogar ténis com ele, não? Agora vais com qualquer um? Não me admirava!
Ó Casimiro, qual é a tua? — aborrecia-se Francisco. — Mas então não posso ir jogar ténis com quem me apetecer? Era só o que faltava!
Pois, podes ir com quem te apetece, mas baldaste-te três vezes, quando te convidei. O que é que os outros têm a mais que eu não tenho?
Olha, por exemplo, estão dispostos a ir jogar de manhã, enquanto que tu…
Eu, quê? Se for o único período livre, posso ir de manhã. Ainda ontem fui — descaiu-se Casimiro — Tu é que nunca insististe!
Ah, tu podes jogar com outros e eu não posso! É essa a tua ideia de fidelidade?
Só fui porque tu nunca mais me ligaste. Assim, não! Também tenho sentimentos.
Ó Casimiro, não sejas assim! Não tem dado, mas podemos ir jogar um dia destes.
Amanhã? — apressou Casimiro, pela perspetiva de voltar a jogar com o amigo.
Eh, pá, amanhã não posso; tenho uma consulta no Centro de Saúde.
Eu não acredito que estava a ir na tua cantiga! — desesperou Casimiro. — Já percebi. Percebo até bem de mais. Sabes o que te digo? Vai-te catar! Eu não preciso de ti para nada. Se eu quiser jogar ténis tenho muito com quem.
Casimiro saiu de ao pé do amigo mais fulo do que nunca. «Falso!» — pensava para si. «Tu vais ver o que é bom...»
Daí a uns dias, tendo contactado um outro ex-colega que sempre conhecera como jogador de golfe, Casimiro deu as primeiras tacadas num campo de 9 buracos, num esplêndido espaço dos arredores. Saboreando o imenso relvado tratado e a cavaqueira com este amigo que já não via há algum tempo, comprazia-se sobretudo na vingança que estava a aplicar ao traiçoeiro Francisco.
«Bem fria é que ela sabe bem!» — confirmou ainda nesse dia, ao publicar no facebook uma selfie com o amigo golfista: tacos na mão, um esplêndido relvado e um lago em fundo, felizes.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Pintura mural no interior do restaurante anexo ao “court” central do Jamor, c. 1945 (?).
* * *






quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

ALONZANFÃ

Zé Bumbo está animado para o carnaval. 
Zé Bumbo toda noite vai para o ensaio da escola.  
Zé Bumbo avisou à Adriane que até quarta-feira de cinzas 
vai varar madrugada na quadra.  
Adriane não gostou. Fez drama, disse que tinha 
aquelazinha de nome Janeide, madrinha de bateria, nesse angu. 
Adriane falou que não era boba, avisou que ia aprontar barraco na escola. 
Brigaram feio. 
Zé Bumbo ameaçou dar com a baqueta do bumbo na cabeça dela. 
Adriane disse que ia botar Zé Bumbo na cadeia. Debochou, riu na cara dele.  
Gritou “Lei Maria da Penha!” duas vezes. Ele perguntou quem era Penha. 
Adriane chamou Zé Bumbo de sonso e burro. 
Zé Bumbo não sabia o que era sonso, mas burro sabia. 
Lembrou da mãe e das professoras da escola primária pela metade.
Baixou a cabeça, esfregou a testa, sossegou o frege. 
Pensou no carnaval, na escola, na alegria com hora marcada. 
Zé Bumbo pediu desculpas. Não por Janeide, que só existia no enredo 
de Adriane. Nem pela tal de Penha, que nunca a viu mais gorda. 
Mas pela vontade que deu de dar com a baqueta na cabeça de Adriane. 
Adriane aceitou. Viu que ele estava fora de si. Viu que ela mesma estava 
rodopiando de ciúmes. 
Aquietaram-se. Choraram juntos. Beijaram-se. Abraçaram-se. Treparam. 
Noite inteira. Bum, bum, bum, bum, bum. Até que Zé Bumbo e Adriane 
perderam a hora. 
Chegaram os dois atrasados, cada um no seu serviço. 
Levaram descompostura dos seus chefes. 
Zé Bumbo engoliu sapo. 
Adriane tinha cabelinho nas ventas, disse poucas e boas à patroa. 
Largou vassoura, pano de chão, balde e Veja Lavanda no meio da sala. 
Zé Bumbo mais ajuizado. Pegou a pá e foi remexer cimento em silêncio. 
Só bumbo toca dentro dele. Zé Bumbo só tem o carnaval dentro dele. 
Não cabe mais nada. Apagou tudo que lhe aperreou. 
Lama tóxica. Chuvarada. Desabamento. Matança na comunidade. 
Os meninos que voaram do ninho para o Céu. 
Estranhou não estar ouvindo a voz familiar no rádio todas as manhãs, 
que sempre falava coisas indignadas que não entendia, 
mas ria do jeitão da voz. 
Zé Bumbo não ri mais. Zé Bumbo chora nada, vive nada. Só o Carnaval 
que está para chegar. 
Zé Bumbo não sente saudade de pai, mãe, irmãos, filho, de tudo que a 
vida levou pela enxurrada, pelos traficantes, pela polícia ou pelos 
milicianos que dizem donos da porra toda. 
Ano passado mandaram Zé Bumbo votar. Em qualquer coisa, mas votar. 
Pois votou em qualquer coisa. Diz que foi para acabar com a ladroagem. 
E com a sem-vergonhice também. 
Zé Bumbo não conversa com os colegas da obra. 
Zé Bumbo trabalha, toca bumbo e trepa com Adriane como se não houvesse
ninguém, nem nada mais em volta dele. 
Uma cimentada aqui, uma alisada ali, o tempo passando no muro que sobe. 
Zé Bumbo contempla a obra que chegou na metade.  
Lembra feliz que é dia de provar a fantasia na costureira.  
Uma fantasia a viver.  
Zé Bumbo vai ser soldado de Napoleão. Ensaia toda noite o samba enredo 
“ Alonzanfã. E se a França tivesse colonizado o Brasil? ”. 
Zé Bumbo não sabe o que o que é França Antártica. Acha que é cerveja. 
Também não sabe quem é Villegagnon do refrão do samba:  
“Villegagnon, Villegagnon, 
Se não perdesse a guerra, 
O Brasil era outra terra
Alonzanfã seria o hino
Mas Deus é quem manda no destino”
Zé Bumbo entende nada do enredo, sabe nada do que cantam.  
Não sabe o que é liberté, egalité, fraternité, sivuplé, merci,
(rendevu ouviu falar) e bom suar. 
Pensa que bom suar é trabalhar para levantar muro. 
Zé Bumbo só sabe a hora de bater o bumbo. 
Na certa nem sabe o que é França. Talvez nem sabe o que é Brasil. 
Vai ver que sabe sim: Brasil é seu bumbo, seu mundo é seu bumbo, 
seu bumbo é seu mundo. 
O resto que se foda. 
Zé Bumbo está animado para o carnaval. 





domingo, 17 de fevereiro de 2019

Velhos talheres












                               Voltei a usar os talheres que trouxe de São Paulo. Não deveria tê-los trazido, mas vieram. Anos depois de aqui chegarem, estão em uso novamente. Minha vida anterior, meus sentimentos de antes, meu antigo jeito de ser. Como se outra pessoa retornasse, se sentasse à mesa para tomar um café comigo, em uma infinita conversa sobre os anos que virão...












sábado, 16 de fevereiro de 2019

Carma


Dezoito anos sem um teto. Dezoito. Ela gosta dos números pares. Duas meias de lã, duas luvas de lã, dois sapatos, dois brincos de argola vagabundos. Escondidos no carrinho de supermercado parado ao lado da barraca improvisada com panos velhos. Na rua, nada está a salvo. Tem roubo. Tem porrada. Tem sangue pingando na calçada. Por causa de um barbante, de um jornal velho, de meia garrafa de pinga, de um papelão rasgado. Na rua, morre-se por um par. De luvas, de meias, de sapatos. Com a garganta cortada. Durante o sono pesado do porre de cada noite; de todas as noites. Na rua, dormir é luxo. Coisa de bêbado burro.
Ela se levanta às seis da manhã. Todo dia. Abre o saco de aniagem que ganhou na padaria. Confere cada item. Calça, uma a uma, um a um, luvas, meias e sapatos, e enrola no pescoço o cachecol comprido que encontrou no lixo faz alguns anos. Ela tem sorte. Sempre encontra o melhor descarte. E ainda ganha coisas boas das pessoas. Ela tem jeito de gente honesta. Não incomoda. Não toca no braço. Não cerca. Não insiste. Não grita. Não rouba. Já roubou. Muito. Mas não rouba mais. Pede. Troca latinhas e garrafas. Recebe pão, esmola, roupa velha, cobertor, sorriso. Trocas. Já roubou, sim. E já fez outras coisas.  Não interessa. Agora, ela só faz o que quer. 
Dezoito anos que fugiu das porradas da mãe drogada. Surra após surra. Porque não vendia todas as balas. Porque o dinheiro não dava para comprar outra pedra de crack. Porque se recusava a ser estuprada pelos homens para quem a mãe a oferecia. Não adiantou de nada. Destino é foda. Carma. Palavra forte. Ouviu de uma mulher que pastoreava carros no estacionamento do teatro. Carma. Carma. Carma. Carma. O dela era bem ruim. 
Quando fugiu de casa, carregou três coisas. O retrato de um artista americano recortado de uma revista antiga (dizia para si mesma que era o pai que não tinha conhecido); uma fé tão ingênua que era quase esperança; e a virgindade, intacta graças ao facão que encostava no meio das pernas dos homens que tentavam trepar com ela. 
Perdeu as três coisas no primeiro mês. O retrato, encharcado durante uma tempestade. A virgindade, na curra de quatro bêbados que ainda por cima bateram muito nela. A fé, destruída por cada caralho imundo que se enfiou dentro dela. Naquela noite e em muitas outras. Chorou no dia da curra. E sangrou. Depois que o choro e o sangue secaram, sentiu alívio. Perder tudo assim, de uma vez. Restar mais nada. Apenas realidade, essa ferida que só dói no primeiro corte. Sorte dela aprender assim tão rápido, tão de uma vez. 
Fez a vida nas ruas. Trepou, fodeu. Abriu as pernas para qualquer um que pagasse ou lhe desse alguma coisa. Dinheiro, droga, boneca, casaco, comida, batom. Trepou em beco, em mato, em ferrovia, embaixo de ponte. Entrou em carro para fazer boquete. Em carro. Um deslumbre. Aquele cheiro bom que vinha dos bancos. Os vidros parecendo uma vitrine; separando dois mundos. Queria ter um carro. Ia morar dentro dele, pensou, enquanto chupava o pau nojento do homem que gemia e puxava os cabelos dela como se fossem rédeas. 
Pegou barriga três vezes. Tirou dois. Um vingou. Descuido. Só percebeu quando não tinha mais o que fazer. Ninguém quis fazer. Ela tentou sozinha. Não deu certo. Sangrou tanto que foi levada para o hospital pelas mulheres da caridade que passavam uma vez por semana. Ninguém desconfiou dela. Ou sei lá. Desconfiou. Médico sabe. Mas achou melhor fingir que o sangramento era natural. A enfermeira lhe deu um remédio e a pôs numa maca suja e estreita no corredor. Dormiu feliz. Pensando em como era bom dormir numa cama. Esquecida de que a criança ainda estava dentro dela, viva. 
Acordou mãe. Convicta. Ia ter a cria, ia lutar por ela. Um pedaço de carne que tinha forças para sobreviver a tanto pau espetado no útero merecia viver. Nem faltava muito. Três meses. E ela começando a imaginar coisas demais. Pensando na cara do menino. Na cor do menino. Eram tantas as cores dos homens com quem trepava. Pensando no nome do menino. 
Nasceu menina. Magra, calada, parecida com ela. Não, menina não! Que pesadelo da porra! Ela não ia criar carne para nenhum fodido estuprar. Preferiu não dar nome para a criança calada. Fez bem. Não ia viver mesmo a infeliz. Ela sem leite, a caridade deixando alguma coisa uma vez por semana. Ela sem poder fazer a vida. 
Tem tempo. Mas ela ainda se lembra. Da menina arroxeando numa madrugada gelada. Do cobertor fino, cinza, enrolado no corpinho pequeno. Da morte feito passarinho, sem soltar um som. Teve inveja de uma passagem tão bonita. Queria morrer igual. Sem piar. E ficou lá muito tempo, olhando aquele rosto sem nome. Depois, aconchegou a menina nos braços, como gente viva. Caminhou muito tempo. Com pressa. Precisava chegar a um lugar antes que fosse de manhã. 
Quando deitou o corpo miúdo da criança na escadaria da igreja, faltava pouco para a primeira missa começar. Às sete horas, algumas pessoas chegariam. Algumas delas veriam o cobertor e se aproximariam. Um susto, um grito, um choro. Olhos procurando ao redor, tentando achar a filha da puta que tinha deixado a menina morrer. Ela já estaria longe. De volta para o seu canto sem igreja, sem hospital, sem cobertor. A pequenina ia ganhar solo sagrado no dia seguinte. Em cova rasa, como qualquer pobre fodido. Mas ia. Que esse povo de igreja não deixa ninguém sem enterro, sem reza. 
Porra! Não é para ficar lembrando a cria morta. As coisas que o tempo leva pertencem ao tempo. Carma. Carma. Carma. 
Duas meias de lã, duas luvas de lã. Guardadas porque o dia esquentou. Dois sapatos de homem de tamanho grande. Calçados para proteger os pés do asfalto quente e das calçadas imundas. Sapatos de pedir esmola. Encontrados no lixo. Tão novos que deveriam ser de gente que morreu. Falta pendurar nas orelhas pretas de sujeira os dois brincos de argola vagabundos. Ela gosta de números pares. E de pensar na morte dos passarinhos.