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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

SOPRO


Não se lembrava de quantos anos tinha quando ganhou sua espingarda de chumbinho. O primeiro pássaro morto por suas mãos levou-o às lágrimas, constrangendo-o diante do severo olhar paterno. Mas, depois de muito lutar contra o próprio arbítrio, acostumou-se a caçar pardais e colibris incautos, estivessem eles em pleno voo ou zelando, no conforto de seus ninhos, pelas crias mal saídas dos delicados ovinhos.

Perdera ainda cedo a empatia pela vida das criaturas que não partilhavam de sua imagem e semelhança. Em seus ombros bubalinos feitos para transportar cadáveres, pendurava jovens raposas como mórbidos troféus. Também desaprendera a chorar e não conhecia mais o arrependimento.

Quando homem feito, matar pequenos animais acabou tornando-se uma tarefa molesta. Não. Não se tratava de piedade. Era mais uma sensação de pouco valer à pena tirar a vida de criaturas vulneráveis, incapazes de revidar. Muito cedo o pai dera-lhe a missão de manter o rebanho livre do ataque dos predadores. Nenhuma ovelha deveria ser trucidada caso se desgarrasse de suas iguais. Assim, passara a abater as onças da região. Era um caçador dos melhores. Mas, antes de tudo, um pastor. Sempre que os grandes felinos se aventuravam sobre o rebanho, mirava uma das pintas castanhas e, após o tiro fatal, divertia-se com a fuga desastrada e inútil através da mata que circundava o pasto onde as ovelhas se espremiam umas contra as outras, tolas, como toda vítima (Dia e noite, guardadas por um pastor incansável e de pontaria extraordinária, aquelas tolas ovelhas).

A dedicação daquele moço não se devia à fragilidade do rebanho e nem à busca por aprovação paterna. A bala fumegante nunca errava o destino porque seu trajeto orientava-se pela sanha mortal de um matador. Assistir à vida escoar do corpo de suas presas causava-lhe prazer sexual, sentia uma quentura libidinosa excitar seu sexo sempre que um grande felino tombava morto, a língua posta para fora da boca ensanguentada enquanto o abdome trabalhava para nada. A morte de um passarinho jamais entranharia em seu íntimo tão divina sensação de poder, de autoridade superior até mesmo àquela exercida por seu pai.

Um dia, despertando com olhos suplicantes de um sonho terrível, o velho implorou para que ele se tonasse um homem bom. Um homem bom. Bom em quê? Na caça? No pastoreio? Era bom em tudo o que fazia. Tudo. Mas, não era isso. Seu pai falava de outra bondade. Todavia, como ser bom? O que é ser bom? O que vem a ser essa coisa gasosa, sem forma, intangível, chamada bondade? Trata-se de uma condição do caráter? Será um hábito adquirido? Ou a bondade é um estado de espírito? Não. Não saberia ser bom. Como ser bom a despeito das coisas sombrias que sentia, apesar da falta de remorso a cada lobo-guará surpreendido por seu rifle, cada gato selvagem degolado por sua faca de caça? Sabia-se mau, sentia-se mau e acostumara-se a ser mau. Ser bom era um pedido impossível e uma aspiração irrealizável.

Mesmo assim, tentou fazer dormir o assassino e acordar dentro de si o melhor dos homens. Era tarde. Quanto mais desejava ser bom, maiores se moviam em sua direção as correntezas de sangue e vísceras, as carcaças esfoladas, as bocarras abertas, os ventres expostos. Jamais seria bom. Jamais. Não depois de ter zombado de toda a vida esmiuçada por suas mãos.

Enlouquecido, o rifle atravessado sobre as costas, largou o pai delirante sobre a cama e correu pelo pasto tropeçando nas ovelhas, fazendo-as correr como nunca haviam fugido nem mesmo do mais selvagem dos predadores.

Ao avistar o irmão roçando a lavoura que não saciava os apetites de um pai carnívoro, atirou-se aos pés fraternos.

O que há? Qual a razão desta correria? Abateu-se sobre ti alguma desgraça?

Anda, toma de minha arma. Esfacela-me o crânio que abriga um monstro!

Enlouqueceste? Por que eu ferir-te-ia?

Tu és meu irmão! Acaba de vez com minha angústia, senão carregarás por toda a vida o peso de meus crimes!

Teu crânio não abriga monstro algum, mas, decerto, também não acolhe mais a razão...

Faz!

Não! Percebe a gravidade do que pedes! Por que eu seria executor de meu próprio irmão?

Ai, ai, ai. Não posso ser bom. Não sei ser bom. E agora me parece a bondade a mais preciosa das coisas terrenas. Não quero viver sem experimentá-la. Tu és tão virtuoso. Lavras o campo e fazes a vida rebentar das sementes, enquanto atraiçoo os animais da selva. Anda, liberta-me com tua benevolência ou tornar-me-ei o carrasco do mundo!

O que direi ao pai quando ele perguntar por ti?

 Sem olhá-lo nos olhos, afirma que não me viste.

Mas, Abel...

Atira, Caim!


Emerson Braga






terça-feira, 26 de setembro de 2017

Cadê o meu aluno Leonardo?

Durante quatro ou cinco anos, logo depois de formada, lecionei Língua Portuguesa na rede pública de ensino do DF. Dei aulas de literatura, interpretação de texto, redação e gramática — tudo junto no currículo, teoria e prática — para alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio (que naquele tempo ainda se chamavam Primeiro e Segundo Graus), em escolas das queridas Taguaiorque e Ceilândia, metrópoles do Quadradinho.

Ainda me recordo com carinho de alguns dos meus meninos. Tenho até hoje guardados, num baú da saudade e da poeira, alguns bilhetinhos e redações que eles fizeram para mim, a meu pedido ou espontaneamente, inclusive homenagens pelo Dia do Professor e aniversário.

Foi um tempo difícil, de alergia respiratória e rouquidão constantes para esta professora, mas de sensibilidade manifesta e de grande aprendizado. Não se pode negar que a sala de aula é um laboratório incrível, tanto do humano quanto do desumano. Convive-se com o afeto sincero e a atenção, mas também com o desdém, a injustiça e a ineficácia.

Sempre me pareceu que o professor é um ser impotente em potencial, que às vezes, muito de vez em quando, acaba conseguindo transformar, incentivar, melhorar alguma criatura, alguma família. Interessante: cada classe se destaca por algum tipo de teimosia. E há tanto as birras boas, produtivas, engraçadinhas, encantadoras, quanto os caprichos que enervam e esterilizam. Há sempre alunos adoecendo e outros sarando os professores.

Mesmo não atuando mais como regente há tantos anos, continuo interessada no papel de alunos e mestres. As memórias da educação, minhas experiências no ensino não me largam. Fico imaginando como estão hoje aquelas crianças e adolescentes com quem convivi de forma tão próxima durante um bom tempo de nossas vidas. As criaturinhas tagarelas encontraram um caminho próspero? Ou, bem ao contrário, tomaram o rumo fácil da droga, do crime, da miséria? Experimentaram algum amor sincero? Constituíram família? Fizeram amizade com a leitura? Ainda estudam? Escreveram ou ainda hão de bordar suas próprias histórias? Vivenciaram algum sucesso nos estudos e na profissão? Como têm se saído diante de qualquer simples vitória e diante de toda crua derrota do dia a dia? Será que aqueles meninos e meninas de outrora estão saudáveis? Felizes? Será que ainda estão vivos, apesar de toda a morte que lhes tem sido oferecida amiúde?   

Em especial, queria saber de um aluno lá da 6ª Série C da Escola Classe 6 de Ceilândia que estudou comigo em 96 ou 97. Magro, alto, bigodinho escuro, ele já era moço, e não mais criança. Sentava-se sempre na última fileira, meio disfarçado sob o boné preto. Bi ou trirrepetente de ano. Escrevia errado, como a maior parte dos colegas; mas era diferente, muito diferente de todos os outros. Órfão de pai e mãe, mas a tia havia lhe apresentado uma grande biblioteca. Tinha muitos livros em casa. Era culto o menino. Aos 16 anos, já havia lido Machado de Assis e Augusto dos Anjos! Descria de tudo, principalmente do amor e da felicidade. Pessimista, quase niilista, dava um jeito próprio, em todas as redações, em todos os diálogos, de realçar o poder da morte, da desesperança, do suicídio, do fim, da falta de jeito. Escrevia histórias cabeludas com uma beleza desgraçada, de vocabulário rico e estilo singular. Aquele garoto que teimava em se achar um nada significava tanto pra mim! Eu elogiava sua inventividade e tentava reanimá-lo para o belo, mas ele preferia (só sabia) retratar o negativo, o horror. Naquela época não se falava em depressão; mas a melancolia profunda estava lá, ardendo em seus poemas e narrações, em sua vida. Acho que seu prenome era Leonardo, mas não garanto.

Durante muito tempo acreditei naquele garoto, roguei sua conversão. Pedi que ele não se calasse nunca e bradasse com palavra e corpo e atitude. Ainda penso nele, mas não me lembro de seu rosto. Sei que era uma bela e comovente face negra de abandono. Adoraria revê-lo ainda em vida para uma conversa cheia de riso e de lágrima. Iria com prazer ao lançamento de seu primeiro futuro best-seller. Era um poeta excepcional, e eu queria continuar ouvindo sua voz de lirismo sombrio que perturbava.

A vida é estranha. Apresenta muita presença para logo transformar em ausência. O professor vai se despindo de si para carregar estradas. Por preconceito, vaidade ou desejo de independência, diz que não pode se ligar totalmente aos alunos, mas vive juntinho, sofrendo a história de cada um deles. A cada ano, lamenta o conteúdo não cumprido, o corte abrupto, o ano mal-acabado, seus Leonardos necessitados de salvação, a saudade sem chave. Entristece por não acompanhar o porvir dos alunos. E é sempre a mesma dúvida que grita: Será que eu compartilhei com eles o meu melhor? O meu mais ou menos? O meu pior? A minha esperança neles resultou em quê?


Maria Amélia Elói





segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Os ardis de Amaltescher


Amaltescher é uma colónia penal alucinante — sei que dificilmente me vão entender. Na altura, eu pertencia à célula de Lisbuhan dos Albertianos — um movimento que tinha como referência os ensinamentos teóricos de Leon Battista Alberti e propugnava uma imaginária com a excelência representacional dos chamados pintores do século XV da era antiga. Éramos quase todos ex-estudantes de arquitetura que, por uma razão ou outra, nos tínhamos tornado representadores. «Com efeito, foi do pintor que o arquiteto tomou as arquitraves, os capitéis, as colunas e tudo o que faz o mérito dos edifícios» — argumentávamos a quem manifestasse estranheza pela opção que tomáramos. Usávamos quase sempre tecnologia eletrónica, mas, às vezes, preferíamos os métodos e os suportes analógicos, como adesão superlativa às práticas obsoletas dos criadores de imagens de há oitocentos anos, como Piero della Francesca ou Durer. A esta veneração interpúnhamos o filtro da naturalidade. Rejeitávamos as artificialidades, ainda que perspeticamente corretas, como os trompe l’oeil, mas abominávamos especialmente tudo o que indiciasse intenções de manipulação do espírito, como as deformações de El Greco, evidentes, ou as de Michelangelo, subtis.
Era esta recusa do artificialismo que nos levava a abdicar das representações holográficas, apesar da sua popularidade e da facilidade de criação que os equipamentos de última geração proporcionavam. Apenas a representação a duas dimensões perspeticamente inatacável, composicionalmente deleitosa e de matização venusta era o desafio que sempre procurávamos ultrapassar. E mensalmente fazíamos o nosso próprio certame expositivo — uma fila de ecrãs a todo o comprimento parietal de uma ala no centro discente, matizado com um ou outro suporte arcaico. Era a nossa vaidade e a nossa coragem. Percorríamos a exposição vezes sem conta em pequenos grupos a admirar e a criticar o que víamos. Os aspetos que nos mereciam apreço eram invariavelmente brindados com uma citação do De pictura, de Alberti, que quase todos sabíamos de cor: «O maior trabalho do pintor não é fazer um colosso, mas uma história.»; «Não vejo caminho mais seguro do que observar a Natureza.» Qualquer desatenção perspética, qualquer deformação ou incoerência detetada, era apontada de braço estendido e alvo de sarcasmos ruidosos, evocando aos gritos a norma hereticamente transgredida: «Esperamos que uma pintura pareça em relevo e que ela se assemelhe o mais possível aos corpos reais»; «Numa história, é preciso que todos os corpos se harmonizem pela estatura e pela função.» Quando o caso era grave, chegava-se frequentemente à execução sumária da obra e até a algumas vergastadas decididas pelo Coletivo Albertiano e aplicadas pelo Veteranus Albertianorum.
Só me alonguei nesta explicação para que percebam o contexto por detrás do que aconteceu e me deem razão no que fiz. Nessa noite tinha ido alimentar-me com dois colegas a um fornecedor alimentar, numa zona fora das nossas rotas habituais. A certa altura reparámos que havia umas quantas pinturas analógicas nas paredes, supostamente para as adornar. Levantei-me e fiz o giro de análise. O que vi não podia deixar-me mais irritado: eram umas pinturazinhas a tinta biótica, representando edifícios arcaicos das zonas reservadas, até com um apreciável tratamento lumino-cromático, mas… O ignorante que produzira aquilo nunca tinha ouvido falar em ponto de fuga — o rudimento dos rudimentos perspéticos. As linhas das cimalhas apontavam para uma zona do céu e as linhas dos lintéis das janelas e das portas apontavam para uma zona do piso a meio da rua. Chamei os meus colegas e, com a constatação daquela aberração representacional, começámos a lançar citações de Alberti: «Imaginar sempre uma linha transversal cortada por uma linha perpendicular, a fim de determinar na pintura uma posição fixa do ponto de vista.» A ira crescia dentro de nós. «Para um corpo retangular feito de ângulos retos, não se podem ver, com uma olhada, mais do que duas superfícies contíguas tocando o solo.» No auge da exaltação, peguei no forco da pasta proteica e desatei a esburacar aquelas indignidades. Logo um dos alimentários, um velho enrugado de cabelo pintado — que eu soube mais tarde que era o executante responsável — correu para mim, a tentar segurar-me os braços. Percebia-se que procurava defender aquela imundície. Não pensei ou talvez tenha pensado no que havia a fazer. Espetei-lhe o forco com força na lateral do pescoço. O que se seguiu nublou-se na minha memória, mas sei que senti uma grande serenidade, como quando se faz o que se espera de nós.
O processo judicial foi rápido e resultou num veredito cruel: ostracismo em Amalteia. O juiz devia ser um pós-picassiano: não teve em conta a atenuante de eu ter livrado a sociedade daquelas enormidades. Aliás, nem sequer proibiu o velho — que sobreviveu — de continuar a pintar. Tentou ainda dissolver a comunidade albertiana, mas isso não conseguiu. A ideia que a animava era mais intensa e íntima que a mera brandura conjuntural. Sei que o grupo continua a reunir-se, a espalhar os ensinamentos albertianos e a aprofundar a ligação entre os membros. Como tenho saudades do grupo e desses tempos! A vida em Amalteia era de uma crueldade sem nome, sobretudo para um homem com a minha preparação mental.
Amalteia ou Júpiter V é um dos satélites mais próximos de Júpiter. Minúsculo, é desde há uns quarenta anos usado como colónia de reeducação. Uma da dezena fora do planeta-mãe. O juiz não podia ter escolhido mais “acertadamente” o local de cumprimento da sanção. Claro que foi devido ao parecer do Conselho Normalizador que estudou o meu caso. Para me fazer sofrer. Tendo em conta o meu percurso de educação e de vida, as minhas escolhas, o meu pensamento, o que sou. Aquele mundo não fazia sentido. Depois de lá chegar, percebi muito bem por que há quem lhe chame Amaltescher, em referência ao alucinado criador de representações absurdas, irrealidades em imagem — Escher.
Com uma gravidade extremamente baixa, é um misto de anacronismos anatómicos, paradoxos geométricos e sobrepopulação. Tudo embebido num éter transparente, viscoso mas respirável, que deforma a perceção das formas. A fauna é variada, mas infinitamente metamorfoseável, quase fluida, resultado de evolução em condições de subgravidade. Como se percebe, é um mundo avesso a tudo em que acredito — rigidez, precisão, previsibilidade —, pelo que me era extremamente penoso viver ali. Era como se aquele mundo me estivesse continuamente a desmentir, a agredir, a humilhar. Nas primeiras semanas, eu e o grupo que chegou comigo, fomos obrigados a caminhar insensatamente numa espécie de sem-fins, para nos adaptarmos às condições singulares de gravidade e ilusão ótica. Durante horas incontáveis descíamos escadarias, sempre a descer, sempre a descer, mas não chegávamos a pisos inferiores — mantínhamo-nos no mesmo nível do edifício. Cruzavam-se connosco reeducandos de um grupo mais avançado, que subiam as mesmas escadas, interminavelmente. Mais tarde, passámos para um “nível” mais difícil: eram torres, edifícios, estruturas “impossíveis”, em que colunas da frontal do edifício sustentavam as traseiras do piso acima; em que cúpulas, a um tempo, eram abóbadas depois; em que escadas a ligar andares baixos e altos pareciam poder ser percorridas quer na sua parte de “gravidade normal”, como de “gravidade invertida” ou “lateralizada”, isto é, havia a ilusão de se poder caminhar tanto pelas paredes como pelos tetos.
Imaginem o que isso fazia à minha sanidade mental. Chamarem-lhe “reeducação” é de uma maldade obscena. Apetecia-me gritar: «Está bem, já percebi, estúpidos pós-naturalistas, já vi as vossas armadilhas surrealistas, mas não pensem que alteram a minha maneira de pensar. Na minha Terra é o rigor albertiano que explica a realidade. Isso é o que tenho de mais íntimo, de mais pessoal. Não se pode converter alguém que não queira. As inquisições descobriram-no pelo cansaço. Podem continuar com os paradoxos, que eu não abdicarei da minha certeza!»
Mais tarde passei para o “convívio” com outros seres. Chamar-lhes seres é arrojado. Pareciam-me mais materializações ilusórias de formas de seres do meu planeta, como se aquele satélite captasse o meu pensamento, o interpretasse e o representasse. De maneira totalmente “herética”, para usar a minha tão cara terminologia albertiana. Um sofrimento intelectual permanente. Uma tortura. Uma impiedade. Cruzavam-se uns com os outros num trânsito compacto e inextricável. Continuamente alteravam as formas de modo a cruzarem-se sem se tocar. Os seres que passavam como um grupo de tartarugas, mais à frente já eram lagartos e depois abelhas, borboletas, aves, peixes. Em sentido contrário deslizavam cavalos, aves, peixes, formigas. Mas nas transições passavam por formas desconhecidas para mim, embora me fizessem lembrar formas da Terra. A única regra parecia ser a de evitar espaços vazios. Alguma diferenciação de cor era o fugaz alívio percetivo, ao permitir distinguir a demarcação entre seres.
Descobri a vulnerabilidade do sistema, por acaso. Todas aquelas formas eram bastante paradoxais e incongruentes, mas eram neutras, inócuas, quase decorativas. Discorrendo, pensei que o tormento de lhes estar exposto só era penoso intelectualmente. Bem pior seria se, além de aberrantes, aquelas formas fossem assustadoras, como as de Bosch. Automaticamente, visualizei um pormenor de uma pintura dele: um homem com uma cobra enrolada às pernas a ser engolido por um enorme sapo com botas bicudas. A este pensamento inquietado, uma forte flutuação do fluido imersor transmitiu-se às formas imediatamente. Os peixinhos a metamorfosearem-se em aves mudaram para peixes monstruosos, de bocarras assustadoras cheias de dentes, em vias de devorar pássaros de aspeto jurássico; cavalos não apenas deformados ganharam desfigurações doentias, tumores e pústulas, enquanto escaravelhos repugnantes lhes devoravam o pus. De repente, todo o espaço que me circundava era uma representação alucinante e amedrontadora das Tentações de Santo Antão.
Suspeitando do que acontecera, rapidamente me controlei. Fora muito evidente que a perturbação se devera à influência do meu pensamento. Outras experiências com evocações de obras de De Chirico e Dali convenceram-me disso. Mais tarde, percebi que a chave não era apenas a evocação, mas alguma perturbação de medo ou inquietação, no meu espírito. O que não acontecia com outras emoções. O que havia a fazer? Como poderia aproveitar aquela singularidade ambiental em meu proveito? Talvez… A ideia fulgurou no meu espírito: treinar-me para sentir apreensão, receio, medo, mas por imagens que me agradassem.
Pensam que é fácil? Havia que evocar imagens como A Virgem dos rochedos, sugestionar-me para sentir medo delas e, quando o fluido imersor gerasse o universo sereno e deleitoso da imagem, conseguir manter um sentimento de medo, enquanto tentava fruir aquela paz. A ambivalência de sentimentos necessária tornava a experiência extenuante, devido à concentração exigida. A princípio, o fingimento não resultou, mas depois tornei-me eficaz a interiorizar medo no meu espírito. Quando o consegui, pude sentir a harmonia, o apaziguamento, em ambientes de Piero della Francesca ou de Da Vinci. E de vez em quando, permitia-me uma incursão em Botticelli. Mas era de mais. O medo construído começava a misturar-se com alguma aversão verdadeira. Então regressava a Ticiano, a Giorgione. Parecia que tinha conseguido escapar dos paradoxos e das aberrações. Parecia que conseguira burlar o sistema. Nada de mais errado.
Muito tempo depois, apercebi-me da armadilha. Cada vez era mais fácil recear as imagens de que gostava. O fingido ia passando a sentido. A certa altura, já sentia medo genuíno até da placidez de Bellini. E atrás da emoção incómoda de medo vinham sentimentos de desagrado, de asco, de rejeição. Sofria muito. Evocar uma imagem, mesmo a mais deleitosa, era equivalente a experimentar emoções de náusea e ódio. Paradoxo puro. Não tinha descanso. Não tinha para onde fugir. Nem daquele mundo nem de mim. Estava desesperado.
Certo dia, recebi uma ordem de transferência. Não sei por que motivo, tinham resolvido comutar-me a reeducação em Amalteia para guarda no Museu do Renascimento em Lisbuhan. Conclusões e decisões do Conselho Normalizador... Não sei se tenho razões para me alegrar. Deambulando pelas galerias repletas de obras de arte, tenho um só truque; não para burlar o sistema, mas para sobreviver: limito-me a caminhar de olhos no chão, para não vislumbrar sequer as obras expostas. Não posso ver, não posso espreitar, não posso permitir que o meu olhar caia sobre alguma. Não posso sequer imaginá-las. Tento manter vazio o espírito, sempre ameaçado pelos terrores e os paradoxos imagéticos de Amaltescher. Assim sobrevivo.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: M. C. Escher, Relatividade, 1953.

* * *





domingo, 24 de setembro de 2017

Microconto premiado - Concurso Escambau (CE)






quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A mais breve história de amor

           

Amo rabada suculenta,
javali e picanha sangrenta,
bucho, mocotó e dobradinha,
língua, isca de fígado bem cortadinha,
moela, torresmo, foie gras,
cassoulet, sarapatel, vatapá,
caruru, pato ao tucupi,
miolo à doré, magret de canard,
paella, sardinha e pirarucu,
miúdos graúdos no angú,
pied de couchon, caviar,
feijoada, cozido de Portugal,
einsbein, bratwurtsbacalhau,
vôngole, escargot à provençal
goulash, labskaus, vaca atolada,
ovas, salsicha na macarronada,
tutu, feijão tropeiro, porcheta,
churrasco e feijoada,
de cordeiro a crocante paleta,
matambre, cupim, galinhada,
de porco, pernil e joelho,
frango à passarinho, caçarola de coelho,
linguiça, chouriço, boudin,
cochinillo, coq au vin,
leitão à pururuca, assado de costela,
paio, kassler, alcatra de panela,
galeto ao primo canto, galinha de cabidela,
molhos pardo, carbonara, bolonhesa,
spaghetti ao ragu de calabresa,
alheiras caseiras, carne seca no pastel,
ovos com bacon, picadinho de quartel,
escalope à milanesa, T-Bone aqui na mesa,
bisteca florentina, parrillada argentina,
pão com mortadela, salaminho e carne assada,
ceviche, sushi, mariscada,
carne de sol em manteiga de garrafa,
siri, guaiamum, caranguejo de tarrafa,
torta capixaba, lula alentejana,
brachola e bife à parmegiana,
moqueca de cação, barbatana de tubarão,
vieiras, polvo, ostra, mexilhão,
lagosta, cavaquinha,
lagostim, camarão.

"Jantarzinho lá em casa?
Você escolhe, lindeza!".

Ela se sentiu ofendida.
Ilusão mais curta da vida
Me passou carraspana. Era vegana.

Melhor assim, já é passado.
Alface me faz mal danado.





domingo, 17 de setembro de 2017

O rochedo



Fonte: https://africannum.com/





O rochedo leva
o mar para o céu:
estrelas de sal.




















sábado, 16 de setembro de 2017

Dias de contagem



A morte, essa curiosidade. Que lambe devagar como amante tímido, como bicho de rua. Essa vontade de rostos que só a saudade traça. O medo nervoso das doenças ruins, dos acidentes ruins, da velhice ruim sendo ofuscado por uma euforia que se apresenta em convite. Um relembrar de fatos bobos, tristes, bons. A mãe das fotografias velhas, com roupas estranhas (tudo é estranho quando se é passado). O pai de uma tristeza encolhida, disfarçada, das que burlam o faro dos que pressentem, o dó dos que percebem. Um irmão mais novo, um gato escaminha, um avô caduco, uma amiga de infância, um homem bom, uma mulher desperdiçada. 
Tanta gente ida. A balança em desnível frenético. Mais um corpo, mais um corpo, mais um corpo, mais um copo. Cheio de aguardente e soluços. Despedidas. Abraços, palavras, terços recitados para a audiência ávida por ritos, para a plateia de olhos sujos, de inveja funda, de pouco sentimento. A amargura cavando um oco nas entranhas. Os dedos tesos amassando a fronha. O choro seco de quem aprendeu a se aguar só por dentro. 
A morte, esse lugar sem instruções. Onde estão as criaturas do meu afeto. A vida, esta passagem estreita, autofágica. Coleção de ausências. Eu, quarto semiesvaziado. Travando na garganta as faltas. Esfregando as carnes sem calor. Absorvendo o derredor desabitado que confunde e desampara. E a solidão desaforada que insinua crenças em visões de eternidade. 
Por hoje, vou procurar moedas. Limpar, polir. Que a paga de Caronte precisa estar sempre pronta. Para o dia que não sei. 







sexta-feira, 15 de setembro de 2017

mulheres


a mãe da gente,
dizia: assim que tenha esta roupa lavada, e nem sabia de quem eram as duas camisas de linho e os dois pares de ceroulas mais um lenço, tudo branco, tudo encardido e apenas o lenço com um riscado em volta num azul tinteiro, e era eu, ainda sem idade de ir à escola: tenho tanta fome, senhora, e o olhar dela escorregava, de lá, de onde lavava a roupa de um e outro, como lhe escorregaria o sabão sobre a pedra onde desencardia, esfregando as peles dela nas ceroulas e lençóis e cueiros de onde já tinha tirado os restos de caca. O olhar dela a correr para me dizer: espera e cala-te, rapariga, ou apanhas, e já eu a deixar silenciar o estômago e a escorregar-me pelo muro baixo, uma parede que segurava as águas do tanque naquele lavadouro público. Os olhos dela e, atiçando-os, o grito do costume: vai ver do teu irmão, Maria Thereza, cuida que não se perca por aí o menino.
e as outras,
as que eram capazes de carregar duas ou três arrobas; capazes disso e de não perder o equilíbrio na tábua estreita com que, balançando-se do balanço das ondas, descarregavam, disto e doutra coisa, os barcos que se chegavam a terra e ficavam quase encalhados na ribeira.
Load (Lavadeira), óleo por Honoré Daumier (1808-1879, France)
Mulheres robustas no rosto e nas ancas e nos braços, e no bucho das pernas que nem se adivinhava debaixo das saias a encimarem um tornozelo ossudo e uns pés sempre descalços. Pés achatados que numa vida inteira o mais que veriam seriam umas socas de cabedal destratado.
Mulheres de seio farto e cabeleiras longas. De vez em quando, saiam-lhes, de sob os lenços, madeixas muito negras. Varinas e ciganas, diziam delas, não fosse pelos olhos tão da cor do mar e da cor da ribeira, em dias de bonança. Uma cor tão do céu que se diria nem terem cor própria e apenas reflectirem a cor dominante daquilo em que poisavam.
umas e outras
pariam e, se lhes não morriam, carregavam os filhos 
e pela vida inteira os ouviam: tenho tanta fome, senhora.





terça-feira, 5 de setembro de 2017

mergulho



transito 
pela orla do teu íntimo
num ritmo 
que transcende o entendimento
navego 
pelas águas do teu leito
e o meu peito 
não segura o que há por dentro
mergulho 
no fundo de um plano lúdico
impudico 
não prendo a respiração
e então 
eu me afogo no teu gozo
e morro 
em alguma margem do teu corpo





sábado, 2 de setembro de 2017

TEMPERANÇA


Às vezes, meu caminho é de areia
Viscosa
Ardilosa
Movediça
Lodo que aprisiona quem tenta dele escapar.

Às vezes, eu pego a areia
Umedeço
Ajeito
Modelo
E construo um lindo castelo, banhado de espuma do mar.

Mas às vezes eu apenas a observo
Nas dunas
Nos lençóis
Nas tempestades
E deixo que ela escolha qual face vai me mostrar.