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sábado, 28 de novembro de 2015

A PRIMEIRA VEZ



         Há tempos ele não se sentia tão bem. Saltou da cama feito um felino e se arrastou preguiçoso até a cozinha. A mãe cantarolava Alcione enquanto amanteigava torradas dormidas e vigiava o café sobre a única boca que ainda acendia.

Sentou-se à mesa meio acordado e esfregou a cara. Sorriu com seus novos dentes de domingo e perguntou se ainda havia Nescau.

Satisfeita do próprio talento em realizar pequenos desejos, a mulher retirou o achocolatado de um esconderijo sob a pia e misturou-o a leite em um copo grande e largo.

         ― Toma ― disse ela, deslizando a bebida sobre a mesa.

         ― Tu é a melhor, dona coisinha!

         ― Gosto de te ver assim, faceiro como quem acabou de chegar do circo ― alegrou-se beijando a testa do filho que nunca sorria, sempre sisudo e arredio, distante. Pensou em perguntar a razão do contentamento, mas preferiu preservar a intimidade do garoto.

         Enquanto comia, encarava o vazio como se admirasse o rosto de uma pessoa amada. Havia paixão em seu semblante, algo maravilhoso de se ver refletido no rosto de um filho, mesmo que a razão da euforia seja um mistério.

         Finalmente se tornaria homem. Todos os detalhes já estavam arranjados desde sábado à noite quando, sorrateiro, aproveitara a ausência dos pais ― que haviam ido a um baile no clube dos sargentos ― e invadira o quarto do casal.

         ― Isso aqui vai servir pra eu não fazer feio. Ela vai adorar ― comemorou, após revirar a gaveta do pai. Aquele domingo seria inesquecível, relembraria dele por muitos anos.

         Não queria parecer ridículo. A oportunidade faria cair por terra os dias de constrangimento. Imaginava como seria cada instante, a sensação mágica de alegria, o prazer elevado ao mesmo patamar que o experimentado pelos deuses. Vacilar não era uma opção, pois chance mais perfeita não aconteceria.

         ― Os pais dela viajaram e só voltam na segunda. Ela tá sozinha! Será demais! ― comemorou contente, lambendo o bigode de Nescau que havia se formado sobre o buço.

         Após o café da manhã, tomou um banho demorado. Cantou todas as músicas que conhecia e brincou de fazer penteados de espuma. Antes de desligar o chuveiro, foi ninja, agente secreto, mago, super-herói. Escovou os dentes e penteou irritado os cabelos sem jeito. Precisava estar apresentável, impecável. A ocasião solicitava esmero, preparação. Vestiu a melhor roupa que tinha e mirou seu reflexo como quem se despede da infância.

         ― Hoje, eu não sou estranho. Hoje, eu não sou feio. Hoje, eu sou o cara ― repetia o mantra enquanto, desengonçado, imitava poses de fisiculturistas. Antes de deixar o quarto fez uma rápida oração, recolheu da cama a mochila e ganhou a rua.

         Um repentino frenesi tomou conta de seu corpo: primeiro sentiu como se levitasse, depois as pernas pareceram-lhe tal qual chumbo. Dois quarteirões antes de chegar à casa da menina que lhe umedecia os sonhos, recostou-se a um poste e fumou pensativo. Quis desistir, mas a vontade de provar que não era nenhum pobre coitado fora mais forte. Com a ponta do tênis esmagou a guimba ainda em brasa e seguiu caminho.

         ― A partir de hoje minha vida será diferente. As garotas do colégio me respeitarão. Vou ser o cara. O cara! ― com esse pensamento afastou os receios e criou novo ânimo.

         A rua estava vazia. Apenas dois ou três carros estacionados rente às calçadas e alguns cães que perseguiam uma cadela no cio. Festejou contido. Seria melhor que ninguém o visse entrar na casa. Forçou o portão, que estava trancado, e resolveu pular o muro.

         ― Vou pegar ela de surpresa! Quero ver só a cara que vai fazer... ― riu para si mesmo, excitado, enquanto escalava o poste e saltava para dentro do jardim. Em pouco tempo chegou à sala. Na televisão, um comercial sobre um shake milagroso exibia mulheres extremamente magras distraídas à borda de uma piscina.

         ― Como você entrou aqui, seu retardado?! ― perguntou ela com surpresa e desprezo antes de receber um tiro certeiro no peito.



Emerson Braga





sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Colcha de Retalhos #15

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


VIVER E RECORDAR

Depois de muito tempo, descobriu-se que, na verdade, os responsáveis pelas famosas pinturas nas cavernas não foram os homens, mas sim os antílopes, mamutes, tigres e gnus. Cada espécie havia feito suas pinturas em homenagem a seus mortos durante as batalhas do dia a dia. Somente após terem encontrado estes registros é que os homens começaram a fazer os seus também.
Atualmente, os homens são os únicos a manter registros além das marcas no corpo e na alma. Os outros animais não têm dúvida de que o homem ainda vai demorar muito a perceber que é melhor viver do que recordar.




OS CAMINHOS

Na direção contrária ao fluxo
Não tem carona
Mas tem sempre alguém para andar ao lado




MEMÓRIAS

Desde aquele dia, virei um fantasma
uma sombra, um vulto

Aquele reflexo no espelho
no qual você não se reconheceu
aquele era eu




E POR AÍ?

A vida por aqui anda meio conto
Nada de poesia
Mas pelo menos não está crônica






quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Minha Mensagem de Natal

Penso que o Natal nos abre perspectivas de viver a vida plena. De repente, a gente se vê praticando solidariedade, irmanados em boas ações, desejando votos de paz e alegria, agindo como Deus aconselha... Acredito que, justo no Natal, algumas cenas impensadas em outros tempos teimam em acontecer, por exemplo:

— O pai que havia abandonado o lar há anos de repente volta a casa para abraçar a esposa e os filhos;

— A mulher infértil recebe um filho em adoção;

— O colega mais mal-humorado da empresa abre um sorriso;

— O marido se oferece para lavar toda a louça suja do almoço;

— A esposa resolve vestir aquela camisola vermelha;

— O adolescente chatinho aceita receber um abraço da mãe;

— O menino carente recebe uma bicicleta de algum Papai Noel inesperado;

— O artista plástico vê seu trabalho reconhecido por público e crítica;

— O professor de Matemática recebe um muito obrigado do aluno que o atormentou durante todo o ano letivo;

— O escritor recebe um elogio de um leitor que efetivamente leu seu livro;

— O pároco recebe uma casula nova de presente dos fiéis;

— A empregada doméstica acerta no tempero do chester; 

— A unha do dedão não encrava;

— O serviço de marcenaria na casa é terminado dentro do prazo e a contento;

— O filho mais novo encontra emprego em sua área de atuação;

— O trânsito flui livremente no horário da volta pra casa;

— Todos os membros da família jantam unidos, à mesa — com TVs, celulares, computadores e todos os outros trecos eletrônicos desligados — e conseguem papear sobre tudo, tudinho, sem briga;

— Os amigos do Facebook resolvem se reunir para celebrar um Natal de carne e osso.

Cada um certamente imagina sua própria cena natalina ideal, a realização de um sonho dentro de casa, na carreira, nas finanças, no casamento, na saúde... Cada um quer montar, com criatividade, um presépio dentro de casa e autenticá-lo à imagem e semelhança do presépio original. E você? Também acredita que todos os desejos são passíveis de realização no Natal?

Maria Amélia Elói





quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A Guerra da Crísia


Arrebatamentos de potência e invencibilidade dominavam a mente de Jorge Fontoura naquela manhã, depois de mais um negócio bem-sucedido com investidores chineses. Fizera bem ao aceitar o convite desta imobiliária discreta, mas de perfil vencedor! Agora, havia que pôr a gorda e saborosa comissão a trabalhar. Resolveu colocá-la em aplicações financeiras agressivas, em vez de a deixar a marcar passo em obrigações públicas ou em ações empresariais, cujo único incentivo era um raquítico dividendo anual. O seu gestor de conta, que já em outras ocasiões o tinha incitado a adquirir produtos de ponta, recebeu-o de imediato:
Tenho justamente o que lhe vai agradar, senhor Fontoura — atacou o gestor. — Já ouviu falar em SEP? São produtos de exposição suprema, na sigla em inglês. Não lhe vou mentir; como o nome sugere, são aplicações de risco máximo, em que o investidor pode perder tudo de um dia para o outro, mas, se correr bem, como sucede quase sempre, o senhor Fontoura pode ver triplicado ou quintuplicado o seu investimento em um ano, ou até em poucos dias. Quem não arrisca não petisca, lá diz o ditado.
Ótimo; mas de que se trata: ações, futuros, o quê?
Uma espécie de ações. Ou antes, unidades de conquista e predação, como eu gosto de lhes chamar. Cada ação é como um soldado que invade o território inimigo, mata quantos encontra e regressa com os despojos. Ou então mantém-se a ocupar o território, a assegurar um fluxo contínuo de riqueza para os acionistas. Para o seu bolso, senhor Fontoura.
Não estou a entender nada. Já percebi que são aplicações agressivas, mas apresentá-las como soldados a invadir território inimigo será uma metáfora exagerada, não?
De modo algum! É mesmo disso que se trata. O que lhe proponho, senhor Fontoura, são ações da Guerra da Crísia. Sim, aquela que começou há quinze dias — reforçava o gestor bancário, perante o rosto incrédulo de Fontoura. — É o produto que está na berra. Aproveite agora, enquanto estão baratas, porque quando o conflito ganhar dimensão, quando, como se espera, os rebeldes adquirirem mísseis terra-ar e derem luta às forças governamentais, de igual para igual, aí, senhor Fontoura, pode ser tarde. Aí, podem já estar ao preço das ações da Guerra da Síria, que ainda é um bom produto, sempre a jorrar dividendos, mas a que já não se pode chegar. Agora, só os grandes bancos e os conglomerados financeiros dos países ricos as podem comprar. Aliás, nem sequer aparecem.
Fontoura parecia em choque. Pressionado pela pausa do gestor, acabou por murmurar:
Guerra?
Sim, claro; tudo o que dá dinheiro é bom para investir…
Refere-se a empresas de armamento, não?
Também; mas a gestão por objetivos obrigou a que se separassem as áreas de aplicação — Guerra do Iraque, Guerra da Síria, Guerra da Ucrânia —, cada uma com o seu fluxo de capitais e o seu retorno, por um lado, e a junção de várias empresas no mesmo esforço de produção. Um mesmo objetivo engloba, certamente, empresas de armamento, mas também empresas de reconstrução, empresas de segurança, até empresas de comunicação social, todas unidas no mesmo esforço de manter a guerra em atividade. O pior que pode acontecer é, sem se esperar, os contendores fazerem as pazes. Essa é a única situação em que os investidores podem perder grande parte ou todo o capital, porque as ações vêm por aí abaixo.
Mas, isso é horrível! — reagia, finalmente, Fontoura, acompanhando as palavras com uma expressão de repugnância.
Bem, realmente há algumas associações de intervenção social que chamam Stinky Ethics Products aos SEP, como quem diz Produtos de Ética Pestilenta, mas a pessoa quando entra no mundo financeiro é melhor nem saber em que é aplicado o seu dinheiro. É como os frangos — gostamos do sabor, mas não queremos saber como são criados.
Diga-me uma coisa: isso é legal? É que estou a ver que, se alguma coisa correr mal, posso ser preso e julgado, acusado de me tornar cúmplice de destruições e matanças, não?
Ó senhor Fontoura, eu nem estou a acreditar no que estou a ouvir — impacientava-se o gestor. — O senhor desculpe, mas já viu algum vencedor ser julgado? Nós estamos do lado dos vencedores, senhor Fontoura! Agora, e por muito tempo. Mais depressa condenam algum negociador de paz do que simples acionistas que não querem fazer mal a ninguém e que apenas querem aplicar honradamente algumas poupanças que conseguiram com o seu trabalho. Não é o senhor que vai lá dar tiros…
Está bem, está bem! — contemporizava Fontoura, derrotado. — Crísia… A Crísia até parecia um país sossegado. Lá tinham as suas manias, como os outros, mas nada fazia prever isto. Eu cheguei a pensar ir lá de férias. E, de repente, aquele obus na escola… E o governo a dizer que tinham sido os rebeldes e eles a acusar o governo...
Não fui eu que disse, mas com certeza que às vezes é preciso dar um empurrãozinho... Repare, os outros conflitos estiveram um bocado parados e assim ninguém ganha dinheiro. Felizmente, parece que as coisas estão a melhorar na Líbia. No Iraque, então…; as ações estão outra vez a subir em flecha. Aliás, se o senhor Fontoura não quiser investir na Guerra da Crísia, compre Iraque. Estou convencido de que ainda vão subir muito mais.
Não, não; Crísia está bem. Gosto do país, gosto do povo. É pena irem destruir aquilo tudo. Paciência!

Joaquim Bispo
* * *





terça-feira, 24 de novembro de 2015

SÉRIE: TROVAS PREMIADAS (II)






domingo, 22 de novembro de 2015

Melodia

ir
vir
si
viagem é ameaça:
a terceira corda
arrebentada
do violão
para quem
não cabe
fora do som
da rotina
e desafina
e não sabe
subir o tom
do acorde.





sábado, 21 de novembro de 2015

Pagliaccio

Trata-se de uma deslavada inverdade que eu deteste palhaços. Um equívoco, desconhecimento dos fatos. Gosto inclusive de assistir suas estripulias em programas de televisão e é constante pegar-me em estridentes gargalhadas ao interagir com eles da plateia de um espetáculo circense. Nada contra estes respeitáveis artistas, dignos, a despeito da cara pintada e roupas coloridas. A imprensa exagera a esse respeito. Apenas não quero fazer parte do seu mundo, ser um deles, tenho lá os meus motivos.
Meu incômodo em relação a palhaços iniciou-se no dia em que a Tia Sônia, casmurra professora da turma do jardim de infância, resolveu dividir entre seus pequenos alunos os papéis que cada um desempenharia na festa de encerramento do ano letivo. Eu queira por demais representar um sapo no número musical ambientado em uma floresta, porém, Tia Sônia, mais sorumbática do que nunca, decidiu colocar-me no grupo dos Palhacinhos Dengosos. Reclamei com uma surpreendente polidez para os meus parcos cinco anos e como não consegui convencê-la, terminei por resignar-me, achando que ao explicar o caso à minha mãe tudo ficaria resolvido.
Mamãe já se acostumara com o meu comportamento maduro para a idade. Ela acreditava ser eu um “espírito antigo” desde que fora consultar um pai-de-santo para livrar-me de uma bronquite que nenhum médico da Terra conseguia curar. O pai-de-santo, incorporado por uma entidade que afirmava se chamar “Doutor Marcolini”, médico italiano que habitara Veneza no ápice da Renascença, ao dar de cara comigo abriu um largo sorriso e exclamou.
—  Oh! Você por aqui? Que grande alegria! – e virando para minha mãe disse: — Este já sabe de tudo. Deixe-o tomar as rédeas de sua própria vida. É um espírito muito antigo… Muito antigo…
E receitou um preparado à base de xarope de ameixa e uma série de ervas que em dois tempos deu por encerrada a persistente bronquite que me acompanhava.
Sendo espírito antigo, mamãe deduziu que eu trazia de outras vidas aquele comportamento adulto que eventualmente desabrochava, como no episódio do palhaço. Seria comum na minha idade espernear, armar um berreiro, mas qual? De dentro de minha roupinha vermelha do jardim de infância, tão somente dizia que não queria fazer “papel de palhaço na frente de todo mundo”. Preocupada, a mãe foi ter com a professora.
— Não posso mudar o Marquinhos de grupo agora, Dona Veridiana – protestou a casmurra – Como as outras crianças reagirão? Além do mais, os coleguinhas dele estão adorando a ideia de se fantasiarem de palhaços. Não entendo porque só o seu filho está com esta história. Vamos fazer o seguinte: o Marquinhos ensaia e a senhora diz que ele não vai se apresentar. No dia, lá no teatro, vestido de Palhacinho Dengoso, eu tenho certeza de que ele vai adorar e se divertir como todos os outros. E a senhora vai ficar orgulhosa com os aplausos.
Tia Sônia apelou ainda para o conceito de disciplina e que seria bom para o menino aprender desde cedo que na vida nem sempre podemos fazer tudo o que desejamos.
Mamãe achava que deveria seguir as orientações do “Doutor Marcolini” e deixar-me “tomar as rédeas da própria vida”, mas preferiu não se confrontar com Tia Sônia, lembrando-se que meses atrás eu já havia entrado em contenda com minha primeira mestra ao teimar em não tocar “coquinhos” na banda mirim da escola. Sentia-me ridículo batendo duas meias-esferas de casca de coco seco e sempre que o ensaio se iniciava, pegava na caixa de instrumentos um triângulo de aço. Diante da minha firmeza em não ser um mero tocador de coco, Tia Sônia na oportunidade se deixou dominar pela insubordinação de um moleque de cinco anos, mas desta vez seria diferente. Uma maçã podre dentro de uma caixa poderia contaminar todos os frutos e para tia Sônia não perder o leme de sua turma, eu seria um palhaço.
Os primeiros ensaios revelaram que, mesmo sentindo-me desconfortável, eu era o melhor entre os oito Palhacinhos Dengosos selecionados. Ao som da música tema…
O Palhacinho Dengoso,
Dá três pulinhos assim!
O Palhacinho Dengoso,
Vira os olhinhos assim!
…lá estava eu, virando os meus olhinhos infantis com aplicação espartana, dando três pulinhos e cambalhotas com maestria de um palhaço profissional. Tia Sônia, encantada, decidiu que eu me apresentaria na primeira fila, no centro do palco. Desconfiado, afirmei só estar ensaiando e não iria participar do espetáculo. A professora, livrando-se momentaneamente da sua natureza carrancuda, afagou meus cabelos ruivos e disse:
— Como quiser, meu anjo. Você não vai participar…
A traição rondava a minha própria casa, invadia os corredores, transitava pelos cômodos até chegar ao quarto da minha irmã Natália, dez anos mais velha do que eu e cúmplice do plano de mamãe e Tia Sônia em fazerem de mim um palhaço. Foi de Natália a ideia de comprar uns dois metros de uma imitação de cetim branco com motivos em forma de losangos vermelhos e verdes. Pano não muito caro, contudo de efeito arrebatador. “Maninho vai brilhar no meio daqueles remelentos” – declarava triunfante.
Certo dia, ao chegar do colégio, deparei-me com mamãe e Natália num frenético trabalho de preparo da minha vestimenta de palhaço. Em meio aos seus gritos de entusiasmo diante da obra-prima que julgavam confeccionar, pude, pela primeira vez, ver aquela roupa que iria perseguir-me em pesadelos por anos. Era um simples macacão, parecido com os dos pilotos de corrida, porém com losangos verdes e vermelhos espalhados por todo o seu espaço, tendo o branco como cor predominante ao fundo. As mangas, compridas, eram acompanhadas em toda a sua extensão por uma fileira de guizos que tilintavam enquanto as duas davam os últimos retoques na fantasia. Surpreendidas pela minha chegada, ainda tentaram esconder a roupa. Magoado, resmunguei:
— Já disse que eu não vou me vestir de palhaço!
— Mas a roupa não é para você, Marquinhos,  —  mentiu mamãe. É para o Rogério. A mãe dele não sabe costurar e pediu para eu fazer.
— O Marquinhos tem o mesmo tamanho do Rogério, mãe. Vamos medir a fantasia nele para ver como fica? — perguntou Natália.
E sem que me dessem oportunidade, mediram em mim a roupa que eu ainda guardava pálidas esperanças em realmente pertencer ao Rogério.
No dia da apresentação, um calor infernal assombrou a cidade. Dirigimo-nos, os três, para o teatro onde seria o espetáculo. No táxi eu ainda protestei, dizendo mais uma vez que não iria participar. Mamãe, sorrindo, tranquilizou-me, afirmando que só iríamos assistir, mas a bolsa que minha irmã levava no colo pelo volume denunciava que eu não teria escapatória.
Dentro do camarim, várias crianças eram aprontadas por suas mães, cuidando de suas fantasias como escudeiros zelavam pelas armaduras dos seus cavaleiros. Sem opor resistência, deixei-me vestir e ser maquiado. Na cabeça, recebi uma peruca improvisada com uma meia feminina cujos cabelos em lã vermelha só aumentaram o calor. Nos lábios, um batom que tornou imprestável o sabor do refrigerante a mim oferecido minutos antes da apresentação. Estava vencido, domado, obrigado pela primeira vez em minha curta existência a fazer algo que eu não desejava.
Fomos chamados ao palco. Palmas nos receberam. As cortinas foram abertas. Resignado, encarei o público. Temia a vergonha de me expor diante daqueles desconhecidos, ser ridicularizado pela minha condição, ainda que temporária, de palhaço. Porém, aquele bando de pais e parentes que compunham a audiência pareceu-me amistoso, quase encorajador. Mamãe e maninha, sentadas na primeira fila, aplaudiram freneticamente a nossa entrada.
Um tanto encabulado, corri os olhos pelos meus sete companheiros de jornada. Todos pareciam deslumbrados com a oportunidade de estarem ali. Por um momento pensei ser apenas eu a criatura destoante da atmosfera de alegria a envolver o teatro. De súbito, a introdução da melodia já tão íntima explodiu nos alto-falantes.
O Palhacinho Dengoso, dá três pulinhos assim!
Desviei os olhos da plateia e procurei executar a coreografia ensaiada da melhor maneira possível. O calor por debaixo da vestimenta incomodava, as gostas de suor banhavam o meu rosto e misturavam-se com as rodelas de ruge que circundavam as bochechas. Uma sensação de total abandono me consumia.
O Palhacinho Dengoso, vira os olhinhos assim!
Esta era a parte do número que eu mais detestava. Tínhamos que nos posicionar de frente para o público, pôr as mãos nos joelhos e ao mesmo tempo arregalar nossos olhos e revirá-los. Tia Sônia havia ensaiado aquele momento até a nossa quase exaustão.  Creio que nossa atuação deva ter causado um efeito arrebatador a julgar o “oh” de entusiasmo emitido pelo público. Percebi, em um canto do palco, Tia Sônia com uma expressão de alegria construída no semblante costumeiramente tão sisudo. Em vez de me sentir recompensado, desejei que os minutos corressem, e que tudo aquilo se encaminhasse para o fim.
O Palhacinho Dengoso, dá piruetas assim!
Meus guizos emitiram um estridente som, fruto das minhas piruetas, executadas com maestria. Deus! Como eu queria ir embora!
Por um momento tudo pareceu distante. Já não era eu que ali estava. Meus pensamentos cavalgavam no cérebro desconexos, enquanto o corpo, vazio de emoções, executava o mecânico bailar. Vieram à minha mente as figuras de mamãe e Natália. “Traidoras”, rosnei. O desejo de chorar apoderou-se de mim, contudo, finou-se, sendo substituído por uma poderosa sensação de alívio ao perceber que a apresentação terminara.
Foi então que algo surpreendente aconteceu, moldando para sempre os rumos da minha existência.
Aplausos pipocaram de várias partes do auditório. Longe de serem polidos, levavam consigo a marca do entusiasmo verdadeiro. A plateia havia amado nossa apresentação. Agradecemos com o conhecido aceno que os artistas fazem ao final do espetáculo, mãos dadas, reverência conjunta. A cortina cerrou-se e o público continuou sua manifestação de agrado. Surpreso, eu e meus colegas presenciamos as cortinas serem reabertas e os espectadores levantando-se para aplaudirem de pé! Sugiram os primeiros pedidos de “bis”, que pouco a pouco cambiaram para o desejo quase unânime da plateia. Os acordes de “O Palhacinho Dengoso” foram novamente executados e, quando dei por mim, já estávamos em plena encenação do nosso número sob palmas frenéticas. E eu estava adorando tudo aquilo!
Décadas consumidas por estas lembranças de infância, sentado diante do espelho do meu camarim, chego a rir refletindo sobre as ironias da vida. Não fosse o Palhacinho Dengoso, meu début nos palcos, eu hoje não seria o aclamado cantor lírico Marcos Marcolini, tenor brasileiro de sucesso na Europa. O sobrenome artístico eu tomei emprestado do espírito que mamãe consultara. Em idas posteriores ao centro de umbanda, o próprio Doutor Marcolini revelara ter sido eu um cantor de operetas, seu contemporâneo em Veneza. Afirmava ele que estivéramos juntos “na experiência da carne”. Segundo o médico do outro mundo, eu voltara com o encargo de brilhar através da arte, incumbência que fracassara na vida anterior. Já Marcolini se viu obrigado a dar consultas por séculos até o resgate de suas dívidas contraídas em outras existências. Ainda que duvidasse das crendices cultivadas por mamãe, não desmerecia a boa vontade do médium pelo qual o doutor renascentista se manifestava e considerei justo homenageá-lo usando seu nome.
Apenas um detalhe intrigava os amantes da ópera e a crítica especializada: por que o grande Marcos Marcolini nunca havia interpretado Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo? Diante da dúvida, eu sorria sempre que tal questão brotava em alguma entrevista e, brincando, dizia não estar à altura de representar o personagem imortalizado pelo mito Enrico Caruso para, em seguida, invariavelmente brindar o meu interlocutor com um tostão da famosa ária: “No! Pagliaccio non son, se il viso è pallido, è di vergogna…”





sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM HOMEM FORTE

(Este conto está no meu livro A Primeira Noite de Melissa e já foi postado na Samizdat. 
Mas diante do retrocesso que tramita e mira a todos nós, acho que vale a pena ler 
- e refletir - de novo.)


Altas horas night adentro. Marcel dança no meio da pista com recém conhecida Paloma,
que levanta os braços, joga a cabeça pra lá e pra cá, seus cabelos dourados esvoaçam,
formando esculturas estroboscópias que piscam ensandecidas. Paloma atraca em Marcel
de costas. Sobem, descem, descem, sobem, esfregam-se glúteos, dorsos e lombares.
Braços tentam se encontrar em reverso, quase se tangem produzindo centelhas.
O DJ liga o turbo. Paloma gira de repente, Marcel acusa o golpe, que delícia mais doida,
tocam-se mãos ao alto, ela roça seu corpo contra o dele, ele oferece a cara máscula,
ela aceita, caminha com os lábios pelo rosto grego do homem forte e sarado,  mordisca um
lóbulo da orelha direita, desce a ponta da língua em riste percorrendo o contorno de uma
barba rente e bem feita.  O baticum contagia. Os narizes colidem levemente, ensaiam um beijo,
que desacontece: ela afasta a boca, sorri carrasca, olhos sádicos contra olhos mendigos,
ela finge que vai mas não vai, faz tremer o epicentro do rapaz, e cai na dança novamente,
deixando Marcel um cachorro curvado que copula o ar em plena pista de luzes lisérgicas.
O som alto rege os instintos. Tudo cresce no corpo e na alma dos dois, até que Paloma
sonsa volta à carga e passeia suas mãos bem feitas pelas costas de Marcel,
como se trouxesse para si a propriedade que acabara de tomar posse.
Ele retribui o carinho com mesmo passeio pelas suas coxas, quadris e  polpas, verso e frente,
ousando levantar o vestido justo e imiscuindo os dedos pelos entrepernas aveludado,
que se entrega úmido, morno e receptivo. Dane-se se alguém parou para ver.
O que cabe neste momento é um beijo explosivo, devido, entranhado. Nada os detém.
Paloma dedilha a perna de Marcel e encontra algo volumoso abaixo da cintura, caindo enviesado
e rijo pela esquerda. E esfrega a mão excitada, olhos fechados, bocas com bocas,
até que de repente, para e se afasta no meio da pista.
- Que é isso, meu tigre?

Ele a traz para mais perto, pega pelos braços e cochicha no seu ouvido.
- Isso se chama tesão. 

Ela segue passando a mão no volume.
- Tesão que me dá tesão. 

Ele sorri maroto.
- Você gosta disso? Tem medo não?

Ela se derrete:
- Não. Adoro. Isso me enlouquece.

Ruazinha bucólica, apartamento charmoso de Paloma. Adentra o casal sôfrego e
agarrado, uma matéria só, átomos em fusão. Ele tira a camisa, ela tira o vestido por
cima, fica só de calcinha, já que o sutiã foi junto. O minueto frenético ficou na boate.
O som imaginário agora é um "Je t'aime, moi nos plus", calmo e pulsante, que dita uma
câmera lenta eterna de gestos e tremores.  Ela se ajoelha de frente para ele, abre o cinto
e vê o que quer ver. Na cintura, entre o jeans e a cueca Calvin Klein, emerge uma
pistola Glock 9mm preta e provocante. Paloma geme. Segura no cano
como se fosse uma guloseima. Alisa, alisa, fecha os olhos, leva aos lábios e chupa.
- Tesão, tesão, tesão.

Marcel pega a arma e afasta de sua boca.
- Tem coisa melhor para você, isso é muito perigoso. 

Ela treme.
- Quero tudo... duas armas... que homem é esse, meu deus? 

Os dois se jogam no sofá. Marcel passeia a pistola pelos meandros secretos do
corpo de Paloma. Rasga a calcinha com a alça de mira, ela morde os lábios.
Ele se coloca entre suas pernas receptivas, que bailam em movimentos ondulantes,
sincronizados, crescentes, vigorosos, meigos e ferozes ao mesmo tempo.
Ela goza com a pistola no rosto, passando a língua na coronha, beijando Marcel
e dando graças aos deuses por acoitar um macho tão forte, de calibre duplo
e sensações múltiplas.

Nus na cama, pausa para repouso. Ela molenga refestelada sobre o peitoral atlético
do parceiro, que aponta a pistola para o alto e admira o brinquedo:
- Glock 9mm automática de repetição. Se quiser tem silenciador. 

Ela é debochada:
-Vai me matar sem ninguém ouvir? 

Ele é fofo:
- Que é isso, gata? Isso aqui nunca matou ninguém, só defesa. Às vezes, um 
sustinho em quem se mete a besta comigo. No trânsito, na night, na vizinhança.

Ela é curiosa:
- Você tem porte de arma?  

Ele explica:
-  É do meu pai. Quando saio, ele me empresta. Ninguém tira onda pra cima de mim. 

Ela monta súbita sobre ele. Vai cavalgar.
E ronrona gostoso:
- Você disse que é Glock 9mm de repetição... então, tá na hora de repetir.

Fim do intervalo. Os dois riem, se grudam e partem para o segundo, terceiro, quarto atos.

Marcel deixa o apartamento sozinho antes do sol raiar. Sonolento, exaurido, cheirando
à Paloma entre os dedos, caminha levitando em direção ao seu Cherokee. Aperta o
controle da chave do jipão e não se dá conta que tem companhia.
-Perdeu, playboy!  
-Entra no banco de trás sem chilique. 
- Mas antes, vamos apalpar esse corpinho macho. 

Três vozes sinistras. Três armas apontadas a uma mesma cabeça. Três rostos escondidos
sob bonés e óculos escuros em pleno breu. Marcel petrificado com as mãos sobre o carro
se deixa revistar. Um dos bandidos tira tudo dos seus bolsos: carteira, celular, dinheiro,
chave e um surpreendente e maravilhoso bônus.
- Olha isso aqui, mano!. 
- Uma Glock novinha, chefia!"  

Marcel leva um cachação.
- Você é policial ou é otário mesmo? 

Marcel nada diz.
- Só pode ser federal, mano. Filhinho de papai não anda com uma dessas. 

A ruazinha bucólica deserta e a escuridão favorecem à movimentação relâmpago. Marcel
apaga com um cruzado de direita e duas coronhadas.  É jogado no porta malas,
dois dos bandidos montam com os joelhos sobre ele. O terceiro zarpa com o carro
pelas ruas fantasmas. Sem serem incomodados pelas patrulhas indolentes, chegam,
enfim, a um descampado baldio. Nem um grilo, nem um sapo, nem um barulho de vento.
- Tá vivo, mano?  
- Tá respirando, chefia. 

No chão, entre duas árvores secas, Marcel é despido de bruços, com solenidade e requinte.
A camisa Armani amarra seus braços pelas costas. O jeans e o cintos Diesel prendem seu pés,
um em cada tronco, fazendo da vítima um Y em decúbito dorsal. A cueca Calvin Klein é
embolada garganta a dentro, vai que ele acorda e grita. O chefe manda.
- Traz o kit felicidade. 

Marcel ameaça gemer. Tenta levantar a cabeça, abre uma fresta de olhar e vê o mundo invertido.
O chefe é compreensivo.
- Tá vivo, federal? Então presta atenção. Isso aqui é um negócio. 
- Você trocou sua Glock 9mm das Forças Armadas por esta arma aqui, ó, ó, olha o 
que está escrito: Manufatura de Brinquedos Estrela. 

Um comparsa é piedoso:
- Repara só, fedegoso, raspamos a alça de mira para não machucar você. 

O outro comparsa é benevolente:
- A gente é legal com policial ou com otário. Tanto faz.

O chefe prossegue:
- E vamos botar essa camisinha lubrificada com KY no cano também 
pra não machucar você. Não vai doer nada, são só 12 centímetros até o tambor. 

A providência divina faz Marcel desmaiar.
O sol já está a pino, a brisa sopra quente, as varejeiras rodeiam assanhadas e
os urubus revoam em tocaia, quando Marcel começa recobrar os sentidos.
Confuso, atordoado, sedento, imobilizado, com a cara de perfil grego na terra batida,
gosto de sangue seco na boca, dormente, doído, ardido. Ouve um burburinho
de vozes curiosas, histéricas, apavoradas, perplexas em sua volta. Tenta gritar
por água e socorro, mas só consegue um choro fino e baixinho.
Pensa em Paloma. Pensa que ela nunca pode saber disso.





quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Dois

















Moça com chapéu

o mundo das cabeças e corpos.
quero o sol vindo, as águas baixando
e meu corpo reaparecendo na areia.
essa areia tão molhada.

meu corpo afundado e a ausência de tato.
os olhos baços, a falta de ar
o sol lá em cima e a chuva que começa a cair.
vem pra na minha boca.

é salgada a água, sente? é do mar.
ou é do meu corpo, que resolveu vir?
serão dele essas águas salgadas?
mas as pontas dos dedos estão frias.

há uma concha na sola do meu pé.
ela é bonita, vê? cor-de-rosa.
é assim que quero, uma concha que dê a certeza do corpo
do ser, da vida.
uma concha.

vagando em terra firme queria navegar e me achar
no fosso no caule no leme dos navegantes.
mas apareceu uma mulher,
            uma mulher de chapéu.

olhos claros, perfume doce, acenos discretossuaves,
ela cantarola baixinho uma canção,
é em espanhol
e não a conheço.

longe há um cavalo que rompe em desassossego,
ele também canta em suas cavalgadas
ele sofre, sofre.

as patas encostam no chão, uma quase junto da outra,
e as duas vão cantando, enquanto o sono vem,
o menino dorme
e o fogo canta.
era assim no mar.

era assim numa esquina, o luau que nunca fizemos,
as barracas de acampamento
elas só existiram nos meus sonhos.

a prainha, as pessoas hipnotizadas,
todas cantavam e não viam mais nada.        
e a moça

se jogou ao mar.


Vagas

Se amanhã eu perder o meu corpo,
será possível que o mar venha, cubra minha alma
teça meu vestido de estrelas e me deixe toda nua?
(não sei).

Não sei, não faço a menor ideia,
mas se perder o meu corpo, acho possível ele saia em busca
uma vida, algo que se esqueça e mesmo outra cabeça
(a minha está muito cansada).

Se eu perder o corpo,
acho que ele faz festa promessa e talvez até dê liga
outro corpo tecido outras flores praças.
(diz que fui por aí).

Se perder o corpo, ele volta pra casa,
cansado do mundo asfalto árvores
e com saudades, apenas saudades
do meu ser meu jeito meu medo minha calma
(até da prisão da minha mente).

Mas se meu corpo morrer,
não sei se é possível que ainda venha
a dor do meu segredo,
nem que ela surja e exploda
em vazão intensa
(e extensa.) 





terça-feira, 17 de novembro de 2015

Poemas - Fabio Riggi

mochileira –

amor


bem-aventurados os que encontram a morte
e nas doces chagas veneram vidas breves

amor amor amor e glória amém
amanheceu amantes morrem cedo

a selva assume a forma de um bezerro
o erro afasta o afoito a fim de tê-lo

alguém chame por ele antes que venha
tarde amor que não vem outro desterro

alguém alguém alguém que não tem zelo
azedo azedo azedo a glória andén



***



fade out, protagonista –

nostalgia


esta não é uma casa para ser coerente
filho sequer imprevisível ou atraente
não há tempo
só não entendo

por que as coisas ainda necessitam das mãos
por que a gravidade não arremeda o peso
por que flutuamos sobre nossos pressupostos
como sobre nuvens

e
como nos sonhos
na realidade não caímos
o real é surreal e não acordamos

a existência de uma realidade
a noção de realidade
absurdos
e mesmo assim cá estamos



***



nuvem –

blogosfera


criamos infernos e                             paraísos
neles jogamos zilhões de                    absurdos
pequeninas constelações ou                mandantes
resto de comida aos                           políticos
cães                                                  paraísos
criamos bíblias                                  impressionáveis
invisíveis histórias o                          de às musas
cultas de linhagens conde                   corarem
nadas                                                paraísos
gostamos de comer en                       sacados
quanto                                              alimento
vivo                                                  com sabor
está em nossa natureza                       artificial
como um destino                               paraíso
sermos bondosos com o inimigo         que nutre
e machucarmos quem amamos            nossos úteros
a ocasião faz o caráter                        e seus filhos
sim pois somos zilhões e                    o mundo
estamos certos des                              pirando
cremos certo por                                filhas
linhas muito muito                              por ele
tortas                                                 educadas
ressaca moral de zilênios                    mercantes
mortes                                              paraísos
como lâmpadas que apagam                empregos
vidas como sacrifícios                        humanos
para o sol                                           das 8 às 8
em escalas do tempo                          e o trânsito
frequências talvez eternas                   eterno



***


protagonista –

reencontro


luther, a cada dia o sol se joga
em direção à noite sem saber
se volta expõe-se ao flanco como quem
se arrisca como se o flanco tomasse
do sol à força aquilo que ali vive
aquilo que suicida como se
a estrela rompesse essa lateral
com uma labareda no horizonte
em queda livre além do seu calor
além de si mesma e se alimentasse
de sua própria chama agarrando a noite
com as mãos sujas de luz e coerência





segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Bonecas

Sentada na beira da cama, inexpressiva, ela deixa que ele a vista com o vestido azul brilhante.  O batom vermelho e os cabelos arrumados como os de uma boneca importada são detalhes que ele ajeita com meticulosidade assustadora. Com as mãos trêmulas, ele prossegue, tirando do bolso da camisa um par de brincos pingentes. São caros e já foram usados. Ela não é a primeira. Longe disso. É de meninas como ela que ele sobrevive faz tempo. Muito tempo. Meninas compradas por algum dinheiro, meninas que ninguém quer. Ele quer. Com a obscenidade dos monstros. 
Não sente culpa. São elas as culpadas. Os demônios que o fazem desejar e obter. São elas, e seus olhos ainda sem história, e seus corpos ainda sem forma, que o atraem para o pecado. Por isso ele as odeia. Criaturas malignas. Feitas para lançar no inferno homens como ele, que não resistem à pureza. 
É um vício caro. Porque ele não repete nenhuma delas. Uma vez tocadas, não servem mais. Mas de onde vem uma, vêm todas. Histórias e histórias que se repetem nas ruas e nas periferias miseráveis. Todos os dias. Meninas oferecidas por pais e parentes em troca de pouco dinheiro. Ou espalhadas por avenidas e portas de cinemas, de teatros, de igrejas, em bandos barulhentos. Ninguém sabe delas. Ninguém quer saber. Ele quer. 
Geralmente, o cafetão as entrega num quarto de motel. Mas acontece de ele mesmo ir buscá-las, quando os instintos se descontrolam em urgência. As roupas, no entanto, ele faz questão de escolher. Cada vestido, cada sapato, cada colar ou brinco. Os batons e a maquilagem dos olhos são baratos. Comprados sempre em lojas diferentes, mas com a mesma desculpa: presentes para a esposa. Como se a dele usasse batom barato, maquilagem barata. Como se a dele não fosse tratada a coisas caras. Como se a dele se prestasse às imundícies que ele comete nos motéis. A cadela de luxo que não quer lhe dar filhos. Ela jura que não pode, mas ele sabe que é mentira. Logo ele não é pai. Ele que quer tanto as suas próprias crianças para ninar e pôr para dormir. Para serem só suas.
Faltam apenas as sandálias. Mas ela continua sentada na beira da cama. Esperando. Indefesa como todos os impotentes. Pensando que nas ruas estaria dormindo no chão duro, sem ter o que comer. Que estaria fugindo do cafetão que bate em todas as meninas como ela. Que estaria com frio. Apenas por isso, e por tudo isso, ela acredita que tem sorte de ter sido escolhida. E olha a boneca bonita e sorridente que ele lhe deu. A boneca que é mais cara do que ela. Mais limpa. Mais feliz. 
Ele a toca. E ela pensa que talvez seja melhor dormir na rua, com fome, sobre o chão duro forrado com pedaços de papelão das caixas de supermercado, agarrando-se às outras meninas para não sentir frio. Mas também pensa em tudo o que mais quer: a boneca. Tão bonita, tão limpa, tão feliz. 
Então, ela se lembra do pequeno presente que as meninas mais velhas lhe deram. Confere, cuidadosamente, sob a língua desacostumada, o aço da gilete. Ele se ajoelha para lhe calçar as sandálias douradas, de salto alto. Assim, os dois na mesma altura, ele lhe parece apenas o que é: um bicho pronto a dar o bote. Um bicho que agora esguicha sangue no vestido azul.
Lentamente, ela começa a tirar aquela roupa suja, mas sempre olhando para ele. Para as mãos que pararam de tocá-la e que agora tentam estancar o sangue que jorra do pescoço. Para os olhos que se desesperam, esbugalhados. Para o corpo que se contorce grotescamente. E os sons da besta em agonia estranhamente a alegram.
Ela não chora. Não pode. A boneca bonita, toda suja de sangue, precisa dela. Coitadinha.