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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Decisão Difícil

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 14


Só quem nunca pensou chegou alguma vez a uma conclusão. Pensar é hesitar. Os homens de ação nunca pensam.

Fernando Pessoa (1888-1935)

Escritor português

 

Naci tomou a dianteira em direção ao pai, logo seguido por todos os outros, a mole de curiosos que se reunia em volta deles, abriu alas para que chegassem ao chefe.

Erem abraçou brevemente o filho e ouviu com atenção o relato nervoso do que acontecera, enquanto verificava que quase todos ostentavam ferimentos, a maioria ligeiros.

Nehir e Zia observaram o jovem que jazia desacordado na padiola a respirar curta e aflitivamente; tinha, como os outros, o cabelo escuro entrançado e decorado com esferas brilhantes, sobrancelhas espessas e o rosto pálido alongado, atravessado por um ferimento que sangrava abundantemente. Envergava uma túnica comprida castanha que lhe chegava aos joelhos e ostentava uma placa reluzente, marcada com traços, ao pescoço. Os pés e as pernas estavam envoltos em várias tiras de couro que seguravam uma mais grossa que lhe protegia a sola dos pés. A curandeira indicou que o levassem para a tenda dela, enquanto a mãe, ajudada por outras mulheres, começou a cuidar dos feridos menos graves.

Erem olhou com desconfiança para os seis altos e silenciosos guerreiros que seguiram o ferido para a tenda. Todos traziam o cabelo igual, com pequenas variantes, vestiam túnicas semelhantes e calçavam sandálias… tudo manufaturado com grande perfeição. Nem os melhores artesãos do clã conseguiriam reproduzir qualquer daquelas peças.

Naci fez tenção de os seguir, mas o pai tocou-lhe no braço e pediu-lhe que explicasse o que acontecera e quem eram os estranhos. Juntou-se de imediato grande parte do clã para escutar.

— Temos dois belos auroques para ir buscar. — Cemil aproximou-se também, sorrindo para o irmão, havia uma nódoa negra na face direita e um corte na testa que eram as suas mais recentes “medalhas” e os dentes avermelhados exibiam um espaço negro onde haviam desaparecido alguns. — Vamos é ter de os dividir com os nossos novos amigos.

— Mas que são eles? — Era evidente a suspeição de todos, verbalizada por Lemi, que, entretanto, se juntara para saber as novidades.

— Dizem que o seu povo se chama Hati e vivem numa grande povoação toda construída em pedra. Para nós, são o povo das cascatas que se localiza a cerca de dois dias subindo o rio. — Esclareceu Cemil limpando um fio de sangue que lhe escorria para a barba. — O povoado chama-se Hatiweik falam como nós, mas há muitas palavras que não entendemos.

— Estávamos escondidos a vigiar uma enorme manada de auroques, havia uma fêmea mais pequena que se distanciava lentamente dos outros. — Começou a contar Naci. — Esperávamos que estivesse longe o suficiente para o apanharmos sem que o resto da manada se apercebesse…

— … quando aqueles malucos apareceram vindos não sei de onde a atacar o animal que nós vigiávamos. — Continuou Cemil rindo com a sua boca vermelha. — Claro que um enorme macho, que estava por perto, investiu sobre eles assim que se mostraram.

— Num instante, a presa, os estrangeiros e o terrível macho corriam todos na nossa direção. — Naci arregalou os olhos e ergueu as mãos simulando as hastes do auroque.

— Aqui o teu filho, — Cemil colocou o braço sobre o filho do chefe —, sem deixar que o medo o vencesse, ergueu-se da vegetação e atirou a lança certeira sobre o pescoço da nossa presa. O pior é que já estavam todos em cima de nós e eu demorei muito a levantar-me.

— Foi uma enorme confusão. — Confirmou Naci rindo-se com vontade. — Assustaram-se todos connosco e o macho, que vinha logo atrás, começou a distribuir cornadas em todas as direções.

— Quando dei por mim, — acrescentou excitadamente Cemil, exibindo mais uma vez a falta de dentes na boca ensanguentada —, voava de cara contra uma pedra.

— Eu levei com um dos Hati em cima. — Continuou o filho do chefe. — Depois o auroque interessou-se por outro deles e ainda lhe deu umas boas pancadas, antes de nós todos juntos acabarmos com ele.

— Ainda bem que os deuses vos trouxeram a salvo a todos. — Erem suspirou de alívio, mas logo acrescentou, batendo nas costas do irmão e rindo: — A uns mais inteiros que outros.

Todos riram com gosto, mas logo o chefe acrescentou: — Falem com Lemi para terem dois grupos a sair às primeiras luzes e trazer as carcaças da vossa excelente caçada. Eu agora verei como está o estrangeiro.

A tenda de Nehir era invulgarmente grande; dava para estar em pé com uma criança às costas e cabiam três homens deitados ao comprido e quatro à largura. As peles de auroque, cozidas umas às outras, eram suportadas por enormes presas de mamute. Fora o primeiro lar de Erem e da família antes do chefe se decidir trocar por uma casa de pedra, mais pequena e logo mais fácil de aquecer. A filha não os quis acompanhar e continuou lá com o irmão Nuri, posteriormente assassinado pelos homens-macaco. Atualmente, aquele era o local onde todos os feridos e doentes recorriam, antes mesmo de ir pedir a Zia que intercedesse junto dos deuses.

Erem, acompanhado de Alim, que chegara, entretanto, informado do que se passara na caçada, aproximaram-se da entrada da tenda. Alguns membros do clã tentavam convencer os dois estrangeiros de que, se alguém podia salvar o seu companheiro, era aquela curandeira. Calaram-se ao avistar os recém-chegados.

O chefe aproveitou para deitar mais uma mirada ao vestuário dos dois jovens que lhe devolveram uma pequena, mas respeitosa inclinação de cabeça, enquanto franqueavam a entrada.

Toda a tenda estava na penumbra, apenas iluminada pela luz vermelha do braseiro ao centro e o pequeno recipiente de argila, com gordura, que ardia na mão da curandeira. O estrangeiro estava deitado no chão, sem a túnica, apenas com um pedaço de tecido embrulhado na cinta.

Nehir, de joelhos, já havia limpado o longo ferimento do rosto do paciente e observava-lhe o pescoço, enquanto ele respirava com dificuldade em inspirações curtas e rápidas. A pele das faces tornava-se azulada e por vezes abria muito os olhos, como um peixe fora de água. Os braços batiam no chão alternadamente e empurrava com os pés, como se quisesse afastar-se de alguma coisa.

A curandeira olhou com preocupação para o pai e depois para o doente.

— Escapa? — Quis saber Erem.

— Não sei. — Ela fez uma careta com os dentes cerrados. — Está muito mal. Não consegue que o ar entre nele e se continuar assim morrerá em pouco tempo.

— Mas não tem furos no peito nem nas costas. — Observou o chefe.

— Pois não. — A filha concordou, tornando a olhar para o estrangeiro que parecia cada vez mais aflito. — Mas tem o pescoço muito vermelho e parece que não o consegue mexer. Acho que o espírito zangado do auroque que eles mataram se agarrou ali e vai sufocá-lo.

Zia entrou na tenda no preciso momento em que estas palavras eram proferidas. Examinou o pescoço do paciente, afastando-lhe as mãos com que se debatia.

— Não podemos fazer uma oração para expulsar o mal? — Sugeriu Erem, torcendo a boca em desagrado. — Um sacrifício com o fígado do animal? O coração?

— Acho que morre antes disso. — Concluiu Zia para os outros dois, antes de se voltar para a filha: — Ainda te lembras, quando estávamos com Birol, de como Nida, a mulher do xamã Gokai salvou o teu tio depois do ataque do urso?

— Eu era pequena, mas lembro-me bem. — Nehir baixou os olhos. — Também já me lembrei disso, mas tenho medo de o fazer.

— Fez um sacrifício com a cabeça do urso e as pontas das lanças dos guerreiros que o mataram… — Erem recordava-se — … ao por do sol!

— Ele não aguenta até ao por do sol. — Sentenciou Zia. — Além disso, não foi só o sacrifício que Gokai fez…

Um gemido alto, apesar de sufocado, fez com que os companheiros do ferido entrassem alarmados.

— … Nida fez-lhe um buraco para entrar o ar. — Concluiu Nehir sem levantar os olhos.

— Um buraco? — Alarmou-se um dos estrangeiros?

— Não consegues salvar Tibaro? — Quase sussurrou o outro, abordando diretamente Nehir.

— Ele tem um mau espírito, possivelmente o auroque que mataram, no pescoço e não o deixa respirar. — Atirou Zia de chofre.

— E tu queres cortar-lhe o pescoço? — O primeiro dos estrangeiros indignou-se.

— Espera, Himono. — Tornou o outro, antes de questionar, desta vez, Zia. — Achas que o salvas? Que pensas fazer?

— Já vimos salvar um parente nosso com o mesmo problema há muito tempo. — Explicou a mulher do chefe. — Não sabemos se resulta, mas, se não fizermos nada, só poderemos confiar nas orações a Swol. Penso que não verá os primeiros alvores.

— Mas… — o chamado Himono continuava escandalizado —… cortar-lhe o pescoço? Estás louco Kiala? Temos de o levar para casa, para Mirsulo, ele saberá o que fazer.

— Não é cortar o pescoço, é apenas um buraco… — tentou esclarecer Nehir.

— Mirsulo é tão curandeiro como tu ou eu. — Sentenciou Kiala. — Teria de ser o curandeiro Savirio e não sei se aguentará até lá.

— São livres de partir quando quiserem, como eram livres quando chegaram cá. — Esclareceu Erem. — O vosso amigo está muito mal e se a minha mulher e filha dizem que não escapa se não se fizer nada, acredito que assim será. Se não quiserem fazer nada, nada faremos. Se quiserem levá-lo ao vosso curandeiro, enviarei alguns homens para vos acompanhar. De todas as formas, faremos um sacrifício no santuário, assim que formos buscar a cabeça e as mãos do auroque, para que Swol ajude a libertar os ares para o vosso amigo.

— São precisos dois dias para chegar lá, com todos saudáveis. Com ele assim, levaremos mais de três. Mandamos dois dos nossos avisar Mirsulo do sucedido com o filho, mas serão dois dias para lá e outros dois para cá. — Concluiu o chamado Kiala. — Também compreendo que ele não aguentará de nenhuma forma. — Baixou os olhos pensativamente.

— O sacrifício deve ser realizado ao nascer do dia ou ao cair da noite. — Explicou Zia. — Não podemos falhar. Se aparecer um pouquinho do sol nas montanhas do nascente antes de começarmos, terá de ser adiado para o por-do-sol. Se, nessa altura, já não houver luz nas montanhas de poente, não se poderá começar e adia-se para o dia seguinte…

Por fim, Kiala exclamou, decidido: — Iremos buscar a cabeça e as mãos da besta. Com a tua autorização, pedirei a ajuda de Naci e mais alguns.

— Podes dispor de tudo o que é nosso para salvar este homem. — Acedeu Erem.

— Sei que Mirsulo ficará furioso, se Tibaro estiver morto quando ele chegar, mas mais furioso ficará se souber que nada fizemos para o salvar. — Kiala falou diretamente para o companheiro. — Agora deixemos os curandeiros trabalhar.

 

Manuel Amaro Mendonça

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 13 - O Cativo

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Na Madrugada dos Tempos
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quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Fátuo


 





segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Férias para que vos quero

 

Agosto estava aí; Elísio sentia que precisava de ir de férias, embora lhe parecesse uma redundância: de férias estava ele havia 20 anos. No entanto, a rotina do dolce far niente tornara-se demasiado monótona. Estava farto da mesmice, em que ele se esparramava sempre no centro. Tinha de afastar-se das rotinas, era imperioso; afastar-se de si era mais problemático.

Recordou-se de outros momentos em que tinha sentido grande necessidade de se afastar. Quando começou a trabalhar, o desmame da boa-vida foi penoso. Sonhava largar tudo, arranjar um cavalo e um cão e partir Europa fora, por caminhos rurais (embora nunca se imaginasse para lá de Espanha). A nostalgia da ruralidade, a que a vida urbana não dava resposta, estava acesa. Nem pensava em como arranjar comida. Quanto a dormir, qualquer manta bastaria.

Pouco depois, num momento de fragilidade de saúde e leitura de “Assim falava Zaratustra”, imaginou-se asceta e frugal, vivendo num recanto aprazível duma encosta de serra, apoiado por uma cabra e uma horta minúscula, que uma fonte alimentava. Do alto, sobranceiro ao mundo, elaboraria pensamentos de vida sã, física e mental.

Ainda antes, no período de férias do primeiro verão de tropa, foi sozinho na motoreta do pai, até meia encosta da Gardunha. Ao lado do caminho serrano, escolheu uma laje de onde se avistava toda a planura até Castelo Branco, ainda sem o espelho de água da barragem. Ali ceou assistindo ao pôr-do-sol. Na altura cultivava umas leituras zen e new age. Ali se enrolou num cobertor leve, sobre a dureza da rocha. A meio da noite, acordou com um ruído próximo e uma certeza de presença canídea ou outra mamífera. Endireitou-se, em alerta, sem nada descortinar. Depois de um bocado, com o coração acelerado e nenhum ruído ouvir, voltou a enrolar-se no cobertor, tentando acreditar que fora uma raposinha curiosa.

Mas agora? O que fazer, depois de todas as utopias falharem? Ou de não servirem? Como escapar da rotina? Como escapar de si?

Pensou que seria interessante visitar todas as redações de jornais regionais, da quase dezena que já iam aceitando os seus contos. Podia começar pelo Alto Minho e ir descendo até ao Algarve, por todas as vilas e cidades que lhe davam guarida literária. Mas não iria às Ilhas. Matava vários coelhos de uma cajadada: dava-se a conhecer pessoalmente, tomava consciência das preocupações editoriais de cada jornal, fazia turismo na região, com as suas vertentes mais aprazíveis, a começar pela gastronómica.

Mas era cedo. Convinha deixar passar um ano, senão podia parecer prosápia.

Caramba, continuava muito focado em si próprio.

Podia visitar uma série de pessoas e centrar-se nos relatos delas, nas preocupações delas. Havia aquele velhote que caçara com o seu pai e tinha milhentas histórias. Mas lá vinha o fiscal moral: «quero visitá-lo por ele ou pelo que ele pode dar?»

Decidiu-se. Iria “em trabalho”. Tentaria completar uma série de pesquisas que tinham ido ficando sempre para depois. Começaria pela pesquisa, nos arquivos municipais da imprensa regional, de um caso de “justiça” popular aldeã que já pusera num conto, mas sem conseguir situá-lo no tempo. E tentaria reviver várias experiências que tinham sido impressivas em tempos juvenis, como aquela de entrar, ligeiramente curvado, numa mina de água de uma dúzia de metros de comprimento, com água pelo meio da canela, tomar consciência de estar debaixo de terra e sentir a alteração do ambiente sonoro. Eventualmente, fazer despertar um ou outro morcego.

Logo no primeiro dia de província, apesar do calor tórrido, sentou-se compenetrado à frente do Beira Baixa de 1958 e, uma hora depois, do de 1959. Nada. Só uns apontamentos curiosos de desgraças e misérias perdidas no tempo. Como a daquele morgado que vinha declarar que, ao contrário do que os maledicentes espalhavam, ele não era apoiante do general Humberto Delgado. No dia seguinte, já não teve coragem de voltar à pesquisa jornalística. E o calor fê-lo ficar no escuro da velha casa paterna, para não deixar entrar nem a radiação, esparramado no sofá, a assistir a um dos 6 canais ativos da TDT.

Lembrou-se de como, em adolescente, tinha “descoberto” o fenómeno da camara oscura, de que mais tarde lhe falaram Da Vinci e Vermeer, quando, ali mesmo, no quarto instalado onde tinha sido uma tulha, via refletidas na parede, mas invertidas, as imagens de quem passava na rua, devido à passagem da luz pelo buraco da fechadura.

Foi por essa altura das recordações que percebeu que, mais do que das rotinas, do que precisava mais era de afastar-se de si. E não era fechando-se em atividades individuais e egocêntricas que o ia conseguir. O outro era a resposta. Lidar com o outro, estar com ele, ouvi-lo, ajudá-lo. Mas com quem e como?

De repente, lembrou-se do voluntariado. Era a palavra mágica. Era a atenção ao outro, por excelência. Não precisava de inventar experiências especiais para cumprir a viragem para o outro. Havia organizações de voluntariado que já tinham atividades estruturadas e programadas.

Na Internet, havia dezenas de ofertas/pedidos de voluntariado, de atividades específicas e bem delimitadas. Foi percorrendo a lista com um sentimento de entusiasmo, na perspetiva extra de aventura. Enfim, uma que juntava a proximidade geográfica, com a temporal e em contexto aprazível: limpar as margens da Barragem de Sant’Águeda de lixo e de espécies invasoras, ali a dez quilómetros. Daí a cinco minutos, tinha feito a inscrição para o domingo seguinte.

O bando que compareceu era deveras heterogéneo. Tinha desde cotas como ele a jovens imberbes. Havia pais que traziam os filhos, em lições práticas de cidadania. E a organização tratou de os enquadrar todos nas tarefas que ali os trouxera. A interação foi fácil, quase natural. Parecia que todos sentiam que pertenciam a um grupo ético e moral especial — um que se preocupa com o planeta de todos.

A quantidade de lixo não era grande, mas qualquer garrafa ou carica era uma agressão ambiental e visual. Elísio calculou que apanhou uns bons três quilos à sua conta. Depois veio a operação mais especializada e minuciosa de controlo das plantas invasoras, sobretudo “penachos” e mimosas. E uns entrançados aquáticos de que não conseguiu decorar o nome. A carrinha de caixa aberta que levou dali sacos de lixarada, montões de aquáticas, de ramagens e de cascas retiradas às árvores mais grossas ia cheia. Havia sorrisos em todos os rostos, e uma certa contenção verbal inicial transformara-se em muitas conversas cruzadas. No almoço de piquenique partilhado que desfrutaram à sombra de carvalhos, à beira de água, com a serra em fundo percebia-se um sentimento de dever cumprido e de bem consigo e com os outros. Elísio estava a começar a gozar as férias que tinha ambicionado.

Descobriu que um dos cotas tinha sido seu colega no Liceu, já lá iam cinquenta e muitos anos. Um outro, jovem de menos de trinta, sabia muito de ornitologia e era um gosto ouvi-lo. Uma rapariga estava a dar os primeiros passos na escrita e foi gratificante trocarem opiniões e sonhos literários. Um casal tinha planeado uma caminhada noturna por caminhos rurais, na lua cheia seguinte. Elísio aderiu naturalmente.

Andar de noite é fantástico. Ao medo e à sensação iniciais de não se ver o suficiente, advém uma perceção completa de tudo o que nos rodeia, depois de os olhos se adaptarem ao escuro. Se for noite de lua cheia, ganha-se confiança como se fosse de dia. Elísio nega que o pé que torceu na noite da caminhada se deveu a excesso de confiança.

— Aconteceu. Podia ter sido de dia.

O gesso dava para um mês. Voltou a Lisboa. Sempre era preferível estar onde tinha Internet e televisão por cabo. Quando se preparava para tirar o gesso, a temperatura baixou. Havia rolos de nuvens brancas no céu e um dia por outro chuviscou. Gostava muito deste tempo. Tinham sido umas férias curtas e gostosas, mas agora estava de regresso ao que gostava: o conforto da casa e a rotina. Mas tinha apanhado o bichinho do voluntariado. Duas das atividades que entrevira estavam prestes a fazê-lo voltar a sair do sofá: dar apoio na confeção de doces no Convento dos Cardaes e ajudar a plantar 1600 árvores e 40 000 arbustos no recém-criado parque adjacente às margens renovadas do Trancão.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Georges Seurat, Um Banho em Asnières, 1884.

National Gallery, Londres.

* * *





quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Oração

 



Tantas sensações contidas, nesse corpo-fármaco, comprimidos. Todo dia penso que será o último. Não me agarro a uma ilusão de esperança. Somos todos instantes. Breves silhuetas no tempo – que bonito! Breves traços que se apagarão. Você, por exemplo, sabe o nome do seu tataravô materno? Não sabe e não tem vontade de saber, a não ser se for preciso para constar em prova de pedido de cidadania em um país europeu – eu sei porque o fiz. Imortalidade é uma ficção da ingênua e volátil cognição humana. A fatalidade é ser normal, nesse mundo insano, onde as pessoas se comem, roem mutuamente os ossos por dinheiro – sim, há quem diga que é normal! Com cinquenta e dois anos, acho que tenho algum parâmetro. Trabalhei em uma dezena de empresas. Todas com a mesma equação: “Trabalhe (morra), para que eu goze e cuspa na sua cara, depois – bem depois –, quando tiver dado as suas contas, seu inseto indigente”. Isso eu li na testa de um chefe que se pintava magnânimo, mas que me olhava dos pés à cabeça com desprezo, como sendo um objeto servível aos seus interesses. E fui. Reificação. Era preciso trabalhar dopado e, mais tarde, triplicar na dose para dormir. Dizem que perdi o meu casamento por isso. “Você foi egoísta, Inácio… Não pensou na carência de sua mulher?”. Lembro da voz de Diógenes, meu irmão, um sábio capitalista dos trópicos, dessa vassala republiqueta. Mandei-o à merda depois. O casamento entrou numa espiral de desconfiança e cobrança. Despachei-a, com delicadeza, pensando em cortar os pulsos logo após a sua saída. Ela me deixou com uns farrapos. Mas não me importava, porque prontamente estaria morto. Fui covarde. Não dei início ao sacrifício. Deveria entregar o meu corpo às divindades coprófagas. Morro e morro a cada dia, iludido com o fim premente, com a expectativa de redenção (da vida) ou simplesmente de apagamento. “Nunca passei por essa terra imunda”. Que os porcos se saciem com as suas lavagens. Que os políticos sejam depurados e santificados pelo fio da navalha, como antigamente. Que os poderosos sejam comidos por dentro, numa infestação lenta, espetacular, de bichinhos necrófagos. Que eu possa saudar o meu fim. Que meus pais e meus filhos, que nunca existiram, tenham piedade de mim. Que seja crível a decrepitude da alma. E que, de modo especial, o fim seja o começo da extinção de tudo que está e que eu sei conscientemente.






domingo, 17 de setembro de 2023

Era bom em consertar as coisas

 




                                    Meu avô era bom em consertar as coisas. Qualquer que fosse o problema, ele ia lá, consertava, emendava, parafusava, dava jeito. Mesmo anos depois de seu falecimento, meu tio e minha avó ainda encontram seus consertos pela casa. Quando tudo já não tinha mais saída, a não ser a porta da rua e o recomeço em um bairro desconhecido, ele esteve presente, consertando, emendando, parafusando.









sábado, 9 de setembro de 2023

Interlúdio



Sentia-se lassa, mais de espírito que de corpo, após mais um dia de trabalho rotineiro, que nem sequer fora particularmente difícil. Como nunca o era, aliás, podia-se até dizer que poderia executar as suas tarefas meia a dormir, como parecia até acontecer-lhe cada vez mais frequentemente. E a perspetiva de voltar para o seu pequeno apartamento, escolhido mais pela zona do que pelo espaço e comodidade, também não era muito aliciante. Pensando bem, talvez fosse melhor comer qualquer coisa antes. É que entre a despensa e o frigorífico mais vazios do que cheios e a falta de energia de que sofria há semanas, o mais provável era voltar a jantar uma simples torrada, isso se ainda tivesse pão...

Por sorte, estava pertíssimo de um snack que até nem tinha mau aspeto. Decidiu, pois, entrar, sempre seria melhor do que o nada ou quase nada que a esperava. Estava cheiíssimo, mesmo àquela hora nem carne nem peixe do final da tarde. Atendendo a que não era uma zona turística, havia boas probabilidades de sair dali satisfeita, pelo menos no respeitante à qualidade da comida.

Nunca fora particularmente fã de se sentar a balcões, atendendo à sua pouca altura, mesmo de saltos, subir para os bancos era quase como escalar o K2. Mas as mesas estavam mais do que ocupadas e, mesmo assim, só conseguiu lugar porque teve a sorte de vagar naquele preciso momento um lugarzinho no braço curto do longo balcão em L, no extremo mais afastado da porta.

Depois da ginástica usual, lá conseguiu sentar-se mais ou menos comodamente e consultou o menu curto, montado em placas de acrílico e disposto regularmente ao longo da longa superfície do balcão, uma solução eficiente se este tipo de casa cheia fosse o habitual. As opções não eram muitas, mas pareciam apelativas, pediu pois um dos vários combinados e puxou do telemóvel para ler um pouco enquanto esperava, coisa que fazia sempre quando comia sozinha.

Mas, sem saber bem porquê, um casal que estava sentado no extremo da parte longa do balcão, perto da porta, chamou-lhe a atenção. Dando por si a olhar repetidas vezes naquela direção, acabou por desistir da leitura, que também não era assim tão interessante, e dedicar-se mais a observá-los.

Nada tinham de especial, à primeira vista. Ele, normalíssimo de aspeto e visual, pouco ou nada dizia, limitando-se a comer uma ou outra garfada no intervalo de repetidos goles na enorme caneca de cerveja. Quanto a ela, bom, nunca a escolheria como fazendo parte daquele par, demasiado arranjada para a hora e o local e com atitudes e trejeitos mimalhas de uma mulher de 30 e muitos a caminho dos 7. Falava sem parar, esbracejando o mais que o aperto em que estavam o permitia, sem parecer reparar na pouca ou nenhuma atenção que o  seu companheiro lhe prestava.

A comida veio, simples, mas surpreendentemente boa. E enquanto comia foi continuando a observar, o mais discretamente possível, aquele casal improvável.

De repente, os seus olhos cruzaram-se com os dele no momento exato em que ela parecia dizer algo particularmente idiota, a fazer fé na muito breve careta que lhe aflorou a expressão. E trocaram um sorrisinho cúmplice.

Foi quanto bastou para se tornar, durante o resto da refeição, um membro mudo – e distante – de toda aquela cena a três. Ela, afastada e muda, a outra, com amuos, risadinhas e trejeitos mimalhas, ele com ar distante. E eles os dois, a trocarem olhares cúmplices e meios sorrisos.

Saiu antes deles, sentindo-se bem animada e cheia de energia. Adorava estas cenas sem continuação, viver em pleno uma quase sedução sem a menor intenção de a levar ao nível seguinte. Infelizmente eram raras as oportunidades para o fazer, com um homem sozinho não era muito aconselhável, 99 vezes em 100 o seu “interesse” era mal interpretado, e os casais nem sempre se punham a jeito para isso.

Sabia ser uma raridade, a única vez que tentara explicar tudo isto à que era então a sua melhor amiga a sua confissão fora recebida com tanta incredulidade que nunca mais se voltara a confessar. Mas muito francamente nunca entendera porque tinha de haver sempre uma continuação, uma sedução a sério. Não era bem melhor deixar as coisas assim, no ar? Não converter um interesse mais do que passageiro num início de romance? Não, isso não era para ela.

E foi assim, totalmente revigorada, que fez a passo alargado o regresso ao lar, que já não lhe parecia tão opressivo.

O flirt faz bem à alma!

 

Luísa Lopes

Imagem criada com QuickWrite





domingo, 3 de setembro de 2023

AUTORRETRATO II

Eu sou aquele

que teve que vender

a alma ao diabo

para se ver publicado.

Eu sou aquele

que teve que vomitar

o próprio sangue

para se fazer aceitável.

Eu sou aquele

que teve que buscar

entre os malditos

um convívio possível.

Eu sou aquele

que teve que sufocar

o hálito rebelde

para poder sobreviver.

Eu sou aquele

que teve que invocar

o sarcasmo irônico

para se vingar dos homens.

Eu sou aquele

que se vestiu de palhaço

e depois do espetáculo

matou toda a platéia.

Eu sou aquele

que amou sozinho

a impossibilidade

do amor compartilhado.

Eu sou aquele                                                         

que engoliu todos os sapos

e os digeriu com álcool.

Eu sou aquele

Fausto egocêntrico de Goethe

que mesmo vendendo a alma ao sucesso

ainda assim morreu inédito.