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sábado, 29 de junho de 2019

Elogio do Amaranto


“mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou o joio no meio do trigo e retirou-se” Mateus 13: 24


            Vá um pesquisador estrangeiro buscar informações sobre o Mato Grosso do Sul na Internet e logo descobrirá que a área desse estado é maior que a Alemanha inteira, que foi desmembrado do Mato Grosso no dia 11 de outubro de 1977 e elevado à categoria de estado em 1º de janeiro de 1979. Isso depois de ter tentado emancipar-se de Mato Grosso durante a Revolução Constitucionalista de 1932, quando, entre julho e outubro, seus próceres criaram o efêmero estado de Maracaju. Caso ele queira ler as páginas dedicadas à Economia nos grandes jornais do país e nas revistas especializadas, aprenderá que o estado é um grande produtor de soja, e que essa produção é uma grande fonte de divisas para o nosso país, toneladas e toneladas que fazem grande diferença no equilíbrio e no saldo positivo da balança comercial brasileira. Mas se o tal pesquisador buscasse ouvir Gabriel Kaiowá, obteria dele informações nada ufanistas.
            Gabriel Kaiowá mora na comunidade do Pequizeiro que, há alguns anos atrás, era chamada de favela – quase nada mudou além do nome, porque ficou decidido que “favela” é um termo que pode ofender a autoestima dos moradores da área assim designada, e, logo, tantos os estudiosos das universidades quanto os jornalistas e os governantes aboliram o termo e o substituíram pela expressão “comunidade”, esquecendo-se que “comunidade” serve para designar também o conjunto de moradores de uma área nobre ou os praticantes de uma mesma fé que semanalmente se reúnem no mesmo templo. É essa, aliás, a grande utilidade dos eufemismos: disfarçar o que não queremos admitir, pois a chegada de uma nova designação para a área não veio acompanhada de água encanada, rede de esgoto, creches, postos de saúde, escolas, coleta de lixo e tantas outras intervenções do poder público necessárias à qualidade de vida de seus habitantes. A preocupação do Estado com a autoestima dos moradores do Pequizeiro não foi além da inauguração de um eufemismo.
            Mas, voltando a Gabriel Kaiowá, ele diria ao pesquisador que, onde hoje é a comunidade, que ninguém pode mais chamar de favela porque o Leviatã já permite ações por danos morais contra quem assim o fizer, havia uma aldeia habitada pela nação Guarani-Kaiowá, povo esse que tinha o pequi, fruta típica do Cerrado, como a base da sua alimentação. Contou-lhe seu avô, o pajé, que mora no mesmo barraco que ele, que, quando uma criança nascia, seu pai e seus avós plantavam cinquenta sementes de pequi, que cresceriam para se tornar árvores e garantir o sustento do recém-nascido. Ele mesmo plantara centenas de pequizeiros para sustentar os seus filhos, mas já não havia onde plantar quando nasceram Gabriel e seus outros netos, pois o homem branco já tinha se apossado das terras da tribo. As árvores plantadas em honra ao nascimento do pajé ainda estariam vivas e frutificando se o homem branco não as tivesse cortado para plantar soja para exportação. E se tivesse restado ao seu pai terras para plantar pequis para sustentar a ele e aos seus irmãos, Gabriel não teria que trabalhar tanto.
            O ano que passara fora bom para Gabriel, pois com o pouco de plantas nativas que ainda se encontram junto aos barracos da comunidade, conseguira produzir colares de sementes para vender aos peregrinos que, a caminho do Rio de Janeiro, para prestigiar a visita do recém-eleito papa Francisco, passavam pela cidade: não só gente do Paraguai e da Bolívia, mas até canadenses e japoneses em romaria se encantavam com seu artesanato. Na época da Jornada Mundial da Juventude – esse era o nome do evento do papa –, conseguira trabalhar menos, descansar e estudar mais e assim terminara com louvor o Ensino Médio.
            Depois da visita do papa, quando se foram os últimos peregrinos, voltara à rotina: acordar cedo para ir a pé até a escola, almoçar lá – não comer em casa é uma grande economia para a família – e procurar como arranjar dinheiro: engraxava sapatos, catava latinhas, vendia colares, pintava paredes, fazia todo tipo de trabalho braçal que encontrasse na cidade e, ao anoitecer, andava de volta até a comunidade. Foi nessa época que despontou seu carisma de líder: conseguiu persuadir quantos trabalhavam na comunidade para contribuírem para um fundo comum a fim de que se cavasse um poço artesiano para terem mais fácil acesso à agua. Depois, ensinou às mulheres a colocarem toda a água de que precisariam no dia seguinte em garrafas PET em cima de lonas pretas ao Sol: deixando assim o dia inteiro, o calor fazia a água ferver e matar quantas bactérias nocivas ali houvesse.
            No ano de 2014, ano eleitoral, Gabriel conseguiu um outro subemprego: cabo eleitoral. Passava todo o dia panfletando a candidatura de Naamã Felício a deputado federal e à noite dizia à comunidade para não votar em nenhum dos candidatos que pagavam aos jovens por seus serviços: os nababos que os assalariavam eram os mesmos que ocupavam as terras que antes tinham sido da tribo. Naamã prometia aos jovens que de tudo faria para gerar empregos na região e integrá-los ao mercado de trabalho, mas ele mesmo não fora prefeito sem nada fazer em prol dos indígenas? E se não houvesse tantos jovens desempregados, como exército de reserva, onde ele conseguiria quem aceitasse dinheiro para divulgar sua candidatura? Não, as ótimas notas de Gabriel nas aulas de Sociologia não lhe permitiam acreditar em Naamã ou em qualquer outro fazendeiro. As lembranças dessas aulas sempre o desafiavam a encontrar uma maneira de enfrentá-los, conjuntamente com os jovens da tribo. Mas, como, diante dos armamentos dos fazendeiros? – perguntava ele aos colegas, e as discussões terminavam com a turma cantando “Koangagua”, dos rappers indígenas da banda Brô MC’s, unânime referência na preservação da língua ancestral.
            A resposta para suas indagações veio uma tarde, quando ele e seus ex-colegas de escola, desempregados, conversavam na entrada da comunidade: um “gato” – capataz de fazendeiros, encarregado de procurar mão de obra barata para serviços esporádicos – propôs levá-los à fazenda de Naamã. O riquíssimo deputado, que valia-se de máquinas para semear e colher a soja em suas fazendas, gerando pouquíssimos empregos, agora precisava de muitas mãos para que adentrassem nas plantações e arrancassem, um a um, os pés de amaranto que ameaçavam a lavoura. O dinheiro oferecido era pouco mas a necessidade era maior, e assim Gabriel e os outros garotos da tribo aceitaram a oferta. O “gato” viria buscá-los num caminhão quando o Sol nascesse.
            A caminho da fazenda, Gabriel combinava com os amigos, em língua guarani:
 – Ouvi no rádio uma reportagem sobre essa planta invasora. Os fazendeiros creem que as primeiras sementes tenham chegado ao Brasil em máquinas de segunda mão que alguém comprou dos Estados Unidos. Essa planta é forte e resiste aos venenos que os fazendeiros usam contra outras plantas indesejáveis. No Tennessee, houve casos de fazendeiros que perderam toda a safra de soja porque a planta se alastrou, cresceu mais que os pés de soja e sugou a água e os nutrientes necessários à lavoura. Por isso, eles estão com medo que ela se espalhe pelo Brasil. Então, nós vamos lá arrancar essas plantas como eles mandaram, mas vamos esconder sementes delas nos nossos bolsos. E deixar cair algumas delas pelo caminho.
 – Por quê, Gabriel?
 – Josué, você lembra quando o professor de Sociologia exibia para a gente os filmes de Charles Chaplin?
 – Sim, a gente ria muito.
 – Lembra do filme “O Garoto”? Carlitos resolveu cuidar de um menino órfão. E para terem o que comer, o garoto jogava pedras nas vidraças e Carlitos chegava depois com os vidros para substituí-las. Do mesmo modo, não podemos deixar que o amaranto seja eliminado. Enquanto houver amaranto, eles terão que contratar gente para arrancá-lo das plantações, pois seus tratores e colheitadeiras não podem fazer isso sem destruir a soja. Enquanto houver amaranto, teremos trabalho a fazer.
De volta do trabalho, de posse das subversivas sementes, Gabriel decidiu que, no dia seguinte, iria à cidade pesquisar sobre a planta invasora. Todos os jovens passaram o dia esperando as novidades que ele lhes traria.
Ao cair da noite, Gabriel voltou e lhe deu as esperadas notícias:
 – Alvíssaras! O amaranto não é uma planta nociva nem venenosa. Aliás, é um alimento nutritivo. Era a base da alimentação dos incas. É como o caruru, aquela planta que os nordestinos usam na salada. Mas o agronegócio é burro demais para pensar nisso. Vamos plantar essas sementes junto aos nossos barracos, em nossa comunidade, e vamos usar suas folhas e seus grãos na nossa alimentação. E, de vez em quando, jogaremos sementes nas estradas, no pouco de mata que ainda resta. Nós não podemos invadir as fazendas para tomar de volta as terras que os fazendeiros roubaram do nosso povo, porque eles nos matariam com suas armas ou nos jogariam na cadeia. Mas onde nós não podemos entrar, o vento pode. Não há matador algum que atire no vento nem policial algum espancará as tempestades. O vento será nosso vingador. Quando o amaranto expulsar os fazendeiros daqui, entraremos lá e nos apossaremos das terras onde viveram nossos antepassados e novamente faremos grandes aldeias, e plantaremos cinquenta pequizeiros para cada criança que nascer.

(15 e 16 de janeiro de 2017)





terça-feira, 25 de junho de 2019

Na Praia do Osso da Baleia



Naquela altura, praticávamos geocaching, para tornar o exercício ciclista mais motivador. Ir à procura das caixinhas escondidas em locais aprazíveis, ou só curiosos, através da sua localização GPS, obrigava-nos a pedalar para chegar aos locais indicados no respetivo site da Internet, mas sem a carga de exercício físico obrigatório que o andar de bicicleta tinha tido até então. Isto, porque pedalávamos, quase diariamente, uma dezena de quilómetros, não tanto pelo gosto, mas para manter alguma forma física, aconselhável a um casal sexagenário.
Naqueles dias de férias, a nossa base era a Praia de Vieira de Leiria, uma localidade muito animada, em época de veraneio, mas que naquele meado de um setembro invulgarmente nebuloso, mesmo para aquelas paragens litorais, perdera parte do bulício habitual. No primeiro dia, fomos à procura de uma cache escondida junto ao parque de campismo da Praia de Pedrogão. Era um pequeno tupperware com um boneco pokemon e um caderninho minúsculo — coisa de miúdos. Assinámos: “Rolling biker 56” — o meu nickname — e “Fiftie Agnes” — o da minha companheira Inês.
No dia seguinte, fomos para sul, para encontrar, junto ao farol de São Pedro de Moel, num buraco da falésia em que pescadores amadores se empoleiram para lançar as linhas ao mar, uma caixa de VHS com três florinhas secas e um pequeno texto: «Este farol chamado “do Penedo da Saudade” foi construído no promontório onde, segundo a lenda, a duquesa D. Juliana Máxima de Faro, dona destas terras, vinha, através destas flores chamadas “Saudades” e que só aqui crescem, relembrar o marido, mandado executar pelo rei D. João IV, no século XVII.» Assinámos também o registo, conforme a norma.
No terceiro dia, rumámos a norte, para a zona da Lagoa da Ervedeira — zona bonita e ainda arborizada, felizmente poupada aos grandes incêndios de 2017. Não foi fácil encontrar a cache escondida num pinhal, uns quilómetros depois. Até aonde a vista alcançava, a paisagem, que acompanhava a ondulação arenosa do solo, era um mar lúgubre de pinheiros queimados, com os seus braços negros e nus pedindo clemência. Com eles, ardeu, provavelmente, a caixinha que procurávamos. Decidimos que só podia ser um resíduo plástico calcinado que encontrámos no local que as coordenadas GPS indicavam, junto a um tronco queimado. Como passava pouco das três da tarde, resolvemos continuar para uma cache escondida na Praia do Osso da Baleia, a uns doze quilómetros, segundo indicava o GPS.
Pedalar com um objetivo definido é bem mais fácil do que fazê-lo para cumprir um número de quilómetros definido. Como, além disso, as autarquias dotaram toda aquela zona costeira de ciclovias ao longo das estradas principais, o nosso exercício podia ser um passeio aprazível, apesar do céu nublado; infelizmente, o aspeto desolador da paisagem acabrunhava-nos. Os pinheiros, já de si retorcidos por ação dos ventos marítimos, assim reduzidos a troncos negros sugeriam formas espectrais inquietantes. Pedalávamos calados, de olhos no ecrã de GPS, lançando olhares apreensivos à multidão tétrica e torturada que nos envolvia.
Entretanto, lembrámo-nos do crime horrendo que aconteceu naquela mesma praia há uns trinta anos, em que um tipo, aparentemente normal e integrado, matou a mulher, a filha e mais cinco amigos com quem estava a confraternizar na praia. O que fará alguém enlouquecer de um momento para o outro? Que transtorno mental invadirá o cérebro de uma pessoa e a fará não reconhecer os seus próximos, ou, reconhecendo-os, odiá-los ao ponto de os matar à machadada? Ainda que incomodados com a evocação, decidimos que não havia, atualmente, nenhum motivo para evitar aquela praia e falhar o nosso objetivo.
A Praia do Osso da Baleia não tem uma povoação associada, não tem um restaurante nem um bar, nada. Pelos vistos, não passa daquela enorme extensão de areia, na altura, nevoenta, apoiada por um pequeno parque de estacionamento, então, deserto. O GPS fez-nos subir a duna baixa que nos separava da praia e caminhar uns trezentos metros para sul, mas nada havia ali, além de areia, naquela base de duna a cem metros da água. No entanto, o localizador por satélite era claro: «Chegou ao seu destino!».
Depois de uma inspeção mais atenta, descobri uma pequena ponta negra a emergir da areia. Ali comecei a escavar com o canivete suíço, que anda sempre comigo. Não tardou que embatesse em algo rígido, que retiniu. Parecia um antigo frasco de compota ou de azeitonas e estava enterrado no que poderiam ter sido os restos de uma fogueira. Olhámo-nos sem dizer nada, a apreensão no olhar.
O interior era visível e mostrava apenas o que parecia uma pequena placa óssea. Abrimos o frasco e percebemos que a placa estava esgrafitada. Consegui ler: «Nós que aqui estamos», de um lado e «por vós esperamos», do outro.
O choque destas palavras tão simples, mas tão simbólicas, que aparecem escritas em cemitérios e “alminhas” um pouco por todo o país, foi brutal. Naquele momento, por coincidência, correu uma brisa fria e pareceu-nos que o nevoeiro se adensou. A Inês recuou dois ou três passos, o olhar em pânico. Eu larguei aqueles objetos, como se queimassem, a tentar racionalizar. «Que raio! Quem teria feito uma maldade destas? Brincadeira estúpida!»
— Quero ir-me embora — articulou, por fim, Inês.
— Estúpidos! — resmunguei eu, enquanto pegava no braço dela e nos encaminhávamos para a estrada.
Na parte norte da praia, avistámos a vaga imagem de um grupo de seis ou sete pessoas, que pareciam sentadas e reunidas em círculo, talvez à volta do início de uma fogueira. Não as tínhamos visto ao chegar, mas aquela visão de normalidade reconfortou-nos. Ver membros da nossa espécie num local inóspito transmite-nos um sentimento de segurança, de solidariedade potencial. Passou-me pela cabeça, momentaneamente, a ideia de nos aquecermos um pouco, antes de partirmos, porque a temperatura tinha caído fortemente. Uns metros andados, pareceu-nos que olhavam para nós. Para quebrar o desconforto, acenei-lhes. Não responderam.
— Quero-me ir embora! — acentuou Inês.
— Tem calma!; está tudo bem — tentei eu sossegá-la, mas pouco convencido.
Nesse momento, levantaram-se dois ou três vultos e começaram a dirigir-se para nós.
— Calma! Não dês a entender que tens medo — disse eu, para travar a minha parceira que apressara muito o passo.
Entretanto, calculava distâncias, apesar do nevoeiro cada vez mais cerrado. Nós estaríamos a duzentos metros da passagem da duna, mais cinquenta até às bicicletas. Eles estariam a uns trezentos metros da passagem da duna. Com passo ligeiro chegaríamos antes deles, sem problema. Além disso, não tínhamos razões para temer ameaças vindas daquelas silhuetas, embora escuras. Era só uma questão de prudência. O homem pode ser a salvação de outro homem, mas também pode ser a sua perdição. E, em locais ermos, uma pequena diferença de força ou de número pode transformar os homens em predadores brutais. Impregnados de “selva”.
Nessa altura, levantou-se vento vindo de norte. Empurrava-os a eles e travava-nos a nós. Procurei conter o pânico, mas Inês já tentava correr, sem grande êxito. Chegámos à passagem, quando os três desconhecidos, com os outros mais atrás, já pareciam demasiado próximos, mas sem conseguirmos distinguir-lhes as feições. Então, já gesticulavam e gritavam. Ou assim parecia, por causa do vento.
Corremos para as bicicletas e arrancámos, desvairados, Inês à frente e eu, sem olhar para trás, concentrado na pedalada. Durante aqueles metros iniciais de inércia da bicicleta, ouvi distintamente as pancadas dos pés deles, em corrida, mesmo atrás de mim.
— Acelera, Inês — gritei, apavorado. — Se me apanharem, foge tu!
Eu sabia que lhe apetecia gritar e chorar, mas aguentou uma pedalada vigorosa, durante centenas de metros, demonstrando um sangue-frio notável. Aos poucos, para minha grande surpresa, as passadas pesadas dos nossos perseguidores deixaram de se notar. Ouvia-se só o som soprado do vento nos troncos calcinados, a abafar o ruído rastejante dos pneus no asfalto vermelho. Olhei, enfim, para trás, mas só discerni o trilho deserto da ciclovia. Talvez uma hora depois, estávamos no quarto do hotel.
Raramente voltámos a falar daquele anoitecer na Praia do Osso da Baleia. Não sabemos o que vimos ou o que pensámos que vimos. Não faço ideia do que veria, mas tenho para mim, que, se naqueles momentos iniciais da fuga me tivesse distraído um momento a olhar para trás, não estaria aqui para contar.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra (páginas 112 a 114) a coletânea MIRAGE — Miscelânea de Narrativas Irreais, do projeto “Delírios” do coletivo editor Coverge, Curitiba, Brasil:


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Imagem: Iberê Camargo, Ciclistas, 1989.
Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, Brasil.

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quinta-feira, 20 de junho de 2019

AMIGOS INVISÍVEIS

Marcelinho tinha dois amigos invisíveis.
Conversava com eles pela casa, reconhecia
os meninos atravessando a rua e acenava para o nada.
Brincava com eles na escola, não dormia sem antes
dar “boa noite” ao dois. Coisa de filho único.
Um se chamava Batuta. O outro se chamava Cagão.
- Meu filho, esse amigo é muito feio. Só o Batuta 
pode entrar aqui em casa. 
Mãe, pai, avôs, avós, padrinho, madrinha, tias solteironas,
todos zelosos pela educação de Marcelinho, estavam cada
vez mais preocupados.
- Esse menino está vendo coisas.
- Chama Dona Odete, aquela vizinha rezadeira.
- Vai ver que está chamando irmãozinho.
- Cala a boca, papai.
Mas preferiram convocar para uma reunião o Dr. Valdetaro,
o médico da família.
- Marcelinho está com um comportamento horrível, Doutor. 
Diz que tem dois amiguinhos que vivem entre nós. 
Um dos amiguinhos nem podemos declinar o nome.
Chegaram a uma conclusão.
Adotaram um cachorro. E antes que Marcelinho abrisse a boca,
deram o nome de Batuta ao animal.
Semana seguinte, Batuta teve uma diarreia canina.
Saltitante, sujou os sofás, as poltronas, as almofadas
das cadeiras, as colchas, as barras das cortinas,
o persa da sala de jantar. De tanto pular e abanar o rabo,
respingou o que pode nas paredes. Deixou um rastro no corredor.
Salpicou de marrom o retrato pintado a óleo da falecida bisavó
Evangelina, matriarca da família.
Marcelinho tentou consolar a mãe, que soluçava:
- Eu sabia, mamãe. Ele não era o Batuta.





segunda-feira, 17 de junho de 2019

Traços das pessoas












         Olhava para ela e via sua irmã, seus irmãos, seus pais. Os traços eram parecidos, o cabelo era escuro, o ângulo de suas colunas. Quando estava em companhia de sua família entendia a cor dos cabelos, as linhas de expressão e a posição de seus corpos perante as pessoas. Eu era um recém-agregado que apenas observava. Esses traços são as memórias dessas pessoas que conviveram comigo, naquelas tardes de domingo comendo pão de queijo, tomando refrigerante.

















domingo, 16 de junho de 2019

12h28

Ela está lá. Sentada. Esfinge deformada. As moscas pousando em cada ruga, em cada gota de suor, nos cabelos sujos de barro. Olhos baixos. Fixos num ponto exato daquele esparrame de lama. O vestido estampado de todos os dias. Grudado no corpo pela chuva fina que recomeçou, que recomeça toda hora. Sem trégua. Tanto faz. Ela não sabe mais nada dessas coisas de sol de chuva de fome de sono. Ela não dorme. Não precisa. Ela só quer ficar ali, perto daquele chão que também é teto. Para entender. Entender por que o peito doeu muito e o ar faltou. Naquele dia. Prenúncio. Foi o que lhe disseram.
Às 10h20, havia mais que pontadas. Ela podia ter calado a boca. Podia ter aguentado. Mas a náusea e a dor de cabeça não eram bons sinais. Palavras da tia ao telefone. Quando o carro velho do primo encostou na porta de casa, ela entrou, aliviada. 10h45, dizia o relógio da cozinha. Ainda. Os meninos na escola. Dava tempo de ir ao hospital e voltar. Para servir o almoço. Para recolher as mochilas largadas na grama do jardim acanhado plantado a pedido dela. Para servir o prato de Sebastião. Para enxergar nos olhos dele as promessas que seriam cumpridas mais à noite.
O relógio do hospital marcando 11h47. E um único médico. Ocupado. A pressão alta brincando de desobediência com os primeiros socorros. E de repente o nome dela. Chamado pela voz sem nuança de uma enfermeira com pressa. 11h51: o doutor ouvindo o que ela dizia, o que o peito dela dizia, o que o aparelho de pressão dizia. Ambos bem longe dali. Ele, em algum lugar lá fora. Algum lugar que raptava seus olhos castanhos. Ela, em casa, lavando a louça do almoço, ralhando com os filhos, limpando, passando, guardando roupa, sendo feliz quase de madrugada, depois que os meninos dormiam e Sebastião entrava nela, as coxas quentes e fortes se entrelaçando com as dela, retesadas. Às 12h15, o diagnóstico anotado na ficha: Crise hipertensiva.  Nem foi uma angina. Nem foi uma isquemia. Só um pique de pressão. Associado ao nervoso. Associado ao medo de estar tendo um enfarte. Palavras do doutor. O último remédio engolido às 12h27. Uns segundos depois de ler no celular a mensagem de Sebastião:

Que bom que não é nada sério, mulher. Eu não vou até aí porque preciso dar o almoço dos meninos. Pode deixar que eu cuido deles até você voltar. Não se preocupe. Se eu me atrasar, compenso no turno de amanhã. Se cuida. 

12h58. Mais nada. 
Caminho. Casa. Paredes. Teto. Muro. Horta. Cachorros. Filhos. Sebastião.
Mais nada. 
Tudo engolido pela lama quente e grossa. Sepulcro maldito. 
Ela está lá. Sentada. Em cima do vômito podre da terra. Abaixo dela a casa-caixão que se recusa a devolver as fotos de família, a bola, as bicicletas, o fogão, a cama de casal acostumada a ranger de amor todas as noites. 
Gentes, bichos, lembranças. Destroçados. Afetos transmudados em rejeitos. Restos. Ossos misturados aos pedaços de minério que a lama entregou de volta à natureza. Almas soterrados em ganância e indiferença.
Ela está lá. Sentada. Sem vida. Sem morte. Sem ressurreição. Guardiã do nada. Asfixiada pelo barro enlouquecedor da saudade.