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domingo, 27 de março de 2016

Colcha de Retalhos #19

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


CAPACIDADE

Desde que o tempo é tempo, as pessoas desejam ter a capacidade de enxergar através das outras. Sensações, senti¬mentos e os mais profundos pensamentos. E a essa capacidade, deu-se o nome de compreensão.
Nos tempos atuais, caminhando pela rua, percebe-se que as pessoas têm a capacidade de enxergar através das outras. E a essa capacidade, dá-se o nome de indiferença.




INCAPACIDADE

Eram feitos um para o outro.
Ela muda. Ele cego.
Ela muda. Ele surdo.
Cansada de mudar sem ser vista ou ouvida, ela fez um enorme discurso de despedida.
Ele mudo.




IDADE DAS TREVAS

Foi-se, há muito tempo, o tempo em que a felicidade era compartilhada e a tristeza comovia.
Nestes novos tempos, a felicidade dos outros incomoda. E a tristeza, a tristeza é alheia.




JARDIM DE INVERNO

Mãe e filho aguardavam pela consulta na sala de espera.
Ela estava entretida com uma revista, lendo sobre a vida daqueles que menos se importam com a vida alheia. Enquanto isso, ele se divertia com a cara grudada no vidro. Desenhando na parte embaçada pelo próprio bafo, criando estórias e aventuras envolvendo a pequena selva que o enca¬rava através do vidro.
Depois de um tempo, entediado, o garoto decidiu que queria explorar os territórios além-vidro, e questionou a mãe:
— Mãe, eu posso brincar neste quintalzinho?
— Não é um quintalzinho, filho, é um jardim de inverno. E não pode brincar nele, jardim de inverno é só para ver.
O garoto, ainda parado de frente para o vidro, pensou um pouco e respondeu:
— Eu quero ter um desses em casa.
— Não dá, meu filho, só gente com muito dinheiro con¬segue ter um desses em casa.
O garoto entendeu a lição.
Muitos anos depois, ele parou com o rosto colado no vi¬dro da vitrine de uma das lojas mais caras da cidade. Desta vez, ele é que foi questionado:
— Papai, o que é que você está olhando?
— Jardins de inverno.
E seguiram em frente. Não dava para brincar além do vidro.






sábado, 26 de março de 2016

Taramela

A morte não é definitiva; a saudade, sim.

Depois daquela quarta invernal, ficou proibido sorrir lá em casa. Eu tinha nove anos, só nove, quando mamãe subitamente vetou as cambalhotas de fim de noite na cama dela. Punição deveras grave para a meninota que amava viravoltar de meia e pijama, misturando as pernas curtas às dos irmãos, mais compridas.

A comida do dia a dia foi ultrajada com força — sabor e variedades sofrendo prejuízo. Iogurtes de morango, sorvetes de flocos e bifes grossos não mais se viram na geladeira. A mesa retangular sonegou os copos coloridos. Até os super-heróis dos pratos desbotaram de repente, desapoderando o apetite.

Os bolinhos de arroz do sábado, sagradorados, retiraram-se de cena. Pensei que fosse situação temporária, que os coradinhos fritos voltariam logo ao cardápio. Até que um pedinte deu na nossa campainha e minha mãe foi à cozinha apanhar a máquina de moer.

— Pra que isso, dona Célia? — agarramo-nos todos ao trambolho que tanto nos alegrara.

— Mãe, não dá a máquina do bolinho — implorei, chorando.

— Não tenho força pra moer a mistura — ela disse, seca, sem brinco e sem batom. E entregou o aparelho, com manivela e tudo, ao mendigo, que certamente não sabia nem pra que aquele treco servia.

Só então percebi que a esperança não funcionava mais, que o luto não cessaria. Mamãe empacou, teimando em não se recuperar. Foi se despedaçando aos poucos, sem querer se montar de novo. Concluí que não merecia perdão.

Lembro quando meu irmão mais velho alteou a voz e a encarou, num domingo de Páscoa, quase uma década depois do óbito: — Mãe, você devia ao menos se esforçar. Grite. Brinque. Viva. Você não ama a gente? Estamos órfãos de mãe também.

Ela só se tremeu um pouco, mas continuou com os olhos embaçados cadentes. Suas carnes cheiravam a aquário sem peixe desde a partida. As unhas se esfacelaram tais quais cinzas de crematório. Esmalte nenhum pegava naquele casco. Hidratante nenhum tirava o ressentimento da pele. Os cabelos se embaraçaram tanto, que trincaram o rosto da mulher sombra com quem convivíamos. Ela morreu muito mais que o meu pai. Renegou o destino e desdenhou da própria sina.

Achávamos tudo isso uma bobagem, porque chorar não leva ao céu, lamentar não paga conta. Se dona Célia tinha salário e pensão, por que não se dava a prazeres, nem deixava a gente curtir a infância? Era uma ladainha contínua: ela ruminava a doença repentina do meu pai, narrava cada detalhe dos dias no hospital e o fim sem jeito. Teve tanta chance, mas não ressuscitou.

A verdade é que, quando perdi o pai, sofri mais saudade da mãe que eu tinha que do pai que eu não tinha. Ele continuou acessível aos filhos.

Inflexível e fechada a afetos, sempre pronta a repreender nossos divertimentos, minha mãe cortou comédias e perfumes, cores e abraços. Até o jardim foi secando com a dor dela. Os tomates da horta encheram de bicho e nunca mais adoçaram, os antúrios brotavam num rosa pálido, quase branco.
Sem falar nos piolhos, que tomaram conta das cabeças da família. Assim que minha mãe desistiu de nós, os parasitas nos adotaram.

Antes da fatalidade, minha vida foi chocolate. Nós nos lambrecávamos dessa alegria, e era tudo muito espontâneo, como pular no colo de Deus todo dia, como flutuar em piscina morna.

Fazíamos festa até quando alguém destaramelava pum na sala! Assim como os bocejos, nossos flatos contagiavam: dentro em pouco, um ritual de riso e peido se instalava. Uma vez, ganhei o prêmio de Princesa Espingarda. Rimos tanto da condecoração, que até borrei as calças.

Os soluços do papai também nos divertiam. Ele só conseguia parar depois de cravar oitenta e dois pinotes. Nem um a menos, nem um a mais. O cinquentão balançava o barril e se tremia todo a cada ic sucessivo! Era uma farra. Eu e meus irmãos contávamos alto desde o número um, até ele completar a sequência graciosa de espasmos. Minha mãe engrossava o coro com espirros agudos e afinados, enquanto Roberto arrotava grosso. Gozávamos desses poucos luxos e éramos felizes, completos como quê.

Não sei por que a orquestra se desfez. Depois da prematura passagem de seu querido Carlito, minha mãe proibiu qualquer graça, qualquer canção. Isso desencantou a gente, que era tão afeita a ventos e rabiolas. O tempo foi passando, e ela nunca mais se pôs a pino. Foi ficando um lar insuportável, porque ninguém atura a morte por tanta quarentena.

Amanhã vou me casar com o Daniel. Insisti pra minha mãe comprar um vestido vermelho, mas ela não quis. Vai com o mesmo cinza usado no matrimônio do meu primo Geraldo. Fiquei triste, porque ele já está separado há cinco anos, e eu quero viver com o Daniel pra sempre.

O primeiro documento que assinamos, antes até de ficarmos noivos, foi uma Certidão de Vida Enquanto Estivermos Vivos, algo como “Prometemos que o luto terá prazo de validade, em caso de viuvez. Prometemos estimular o sorriso nos nossos filhos. Se morrermos, que a morte seja definitiva, mas não desesperadora”.

Mostrei o atestado pra dona Célia, e ela zombou de mim, com toda aquela mágoa atualizada: “Vá pensando que alguém tem poder sobre a saudade”.

Mas algo me diz que, na hora da festa do casório, a mãe da noiva irá pra cozinha fritar uns bolinhos de arroz.



Maria Amélia Elói





sexta-feira, 25 de março de 2016

O outro pai de "O Nascimento de Vénus"



O mistério da arte renascentista

É sempre com espanto que se toma consciência do tremendo salto da arte do Renascimento, tanto em termos formais, como temáticos. Se certas descobertas, como a perspetiva, explicam alguma excelência formal, e o uso do óleo o brilho cromático e o rigor do pormenor, outras vertentes deve ter havido — alguma teoria de base — para o surgimento dos reconhecidos paradigmas da arte da Renascença. Há autores que apontam o neoplatonismo emanado de Florença, como a diferença que produziu uma atmosfera propícia na sociedade e nos artistas.
Marsilio Ficino (1433–1499) foi o testa-de-ponte desse movimento. Encabeçando uma academia filosófica em Florença, teve o privilégio de ter acesso a muitos textos manuscritos no grego de origem. Traduziu a obra integral de Platão para latim, o que permitiu que o Ocidente conhecesse um filósofo só acessível, até aí, a quem soubesse grego. Traduziu outros autores que se inscreviam na linha filosófica neoplatónica, além de textos de astrologia e de magia. Toda esta amálgama de novos conhecimentos e influências levou-o a teorizar uma nova religião que fazia a síntese entre os antigos ensinamentos pagãos e o cristianismo. Entendia que aquelas ideias, expressas naqueles textos da antiguidade, representavam uma continuidade coerente que desembocava em Cristo. Encontrou identidade entre os conceitos do platonismo e os do cristianismo e deu especial ênfase ao conceito de amor, expresso em O Banquete de Platão que associou ao amor cristão de S. Paulo.
Este “amor platónico”, todo contemplação das coisas divinas, mesclado com a mitologia greco-romana e as especulações astrológicas, foi uma inspiração para muitos artistas que, pela primeira vez desde os tempos clássicos, se atreveram a representar temas pagãos com formas pagãs e a nudez do corpo feminino, aplicada a ninfas ou deusas, lida como beleza celestial. Botticelli é o precursor dessa formulação. Em O Nascimento de Vénus, trata um tema marcadamente pagão e expõe um corpo feminino nu, mas com tal candura e imaculada beleza que, neste contexto neoplatónico, poder-se-ia pensar tratar-se de uma virgem ou santa da imaginária cristã.

Uma Academia platónica em Florença

A Florença dos Médicis recebeu, entre 1439 e 1445, o Concílio de Ferrara-Florença, que intentava ultrapassar a divisão das igrejas grega e latina. Falhada a aproximação, Cosme convenceu um filósofo neoplatónico da comitiva grega, Plethon, a deixar em Florença mestres que ensinassem a língua e a literatura gregas. Ficino — filho do médico cirurgião de Cosme de Médicis — tornou-se um dos alunos em 1456. Em 1462, por ideia de Plethon, Cosme, decidiu criar uma academia que pretendia imitar a que fora criada por Platão em Atenas, à frente da qual colocou Ficino, que se tinha distinguido no conhecimento do Grego, e no entusiasmo pelas especulações metafísicas.
Ficino traduziu, para latim, toda a obra de Platão, que o Ocidente só conhecia por traduções a partir do árabe, além de obras de autores neoplatónicos como Plotino, Porfírio e Jâmblico. Fornecer à Europa a possibilidade de conhecer esta importante e ignorada fatia do pensamento filosófico foi um feito de importância nunca demais realçada.
Ainda antes de traduzir Platão, Cosme pediu-lhe que traduzisse uma cópia que adquirira do Corpus Hermeticum, isto é, os textos atribuídos a Hermes Trimegisto, figura lendária sobreposta ao deus egípcio Toth, que se supunha conter os principais ensinamentos dos antigos Egípcios.
Outros textos das tradições da antiguidade — Zoroastro, Orfeu, Pitágoras — mais o convenceram de que Deus falava aos Homens desde o princípio dos tempos e de que todas estas tradições constituíam uma e a mesma mensagem de Deus para os Homens. Para Ficino, estas teologias e filosofias antiquíssimas inspiraram Platão e os seus discípulos e sabia que «o platonismo teve seguidores entre os antigos escritores latinos, os autores eclesiásticos primitivos e os filósofos medievais árabes e latinos».

Uma religião pura

Ficino percebeu a semelhança existente entre os relatos sobre Osíris e sobre Cristo. Declarou que Hermes foi um profeta pagão que previu a vinda de Cristo. Pressentiu que o cristianismo era uma variante do Corpus Hermeticum. Muitas passagens dos textos herméticos lembravam passagens do Evangelho de S. João, e Plethon e a sua escola sabiam que o cristianismo não era tão “original” como a Igreja pensava. Com o Corpus Hermeticum, a Academia florentina recebia a “verdadeira bíblia”.
A ideia de que Deus tinha feito revelações a todas as culturas, ao longo dos tempos, constituiu o grande êxito do hermetismo. Cada religião expressava essas revelações, mas num conhecimento fragmentário. Havia que criar uma religião de concórdia de todas, uma religião pura que harmonizasse os ensinamentos de Moisés, Platão e Cristo. Acreditava que a verdadeira religião — o cristianismo — e a verdadeira filosofia — o platonismo — estavam em harmonia uma com a outra, pelo que defendia que Platão devia ser lido nas igrejas.
A ideia de uma comunhão profunda de todas as crenças, de todas as revelações, era consoladora. A sua “nova religião” pretendia apenas devolver o cristianismo às suas origens. Provinda do antiquíssimo Egito e concordando com as tradições pitagórica, platónica, estoica, neoplatónica e outras mostrava sinais seguros de conter um saber assente em fundamentos sólidos.
A religião cristã refundada seria o culminar daquelas revelações contínuas de Deus, mas havia que encontrar a síntese de todas elas e promover uma paz religiosa de todos os cultos. Esta ambição vinha ao encontro dos sentimentos do círculo erudito dos Médicis que não via com bons olhos os dogmas desatualizados da Igreja. Num mundo ávido dos conhecimentos clássicos, que estava a colocar o Homem no centro do mundo e a tomar nas mãos a sua modificação, os conhecimentos que Ficino trazia à luz do tempo eram encarados quase como revelações.

Do amor platónico

Mais importante para este estudo é a doutrina de Ficino sobre o amor. Como nas outras suas doutrinas, Ficino combinou nesta fontes diversas: foi buscar o amor da teoria platónica, expressa em O Banquete, identificou-o com o amor cristão (charitas), bebido em S. Paulo, e terá juntado teorias antigas da amizade e mesmo laivos do amor cortês medieval. Desenvolveu-o no seu comentário a O Banquete, intitulado De amor. Chamou-lhe amor platónico e terá tido uma influência extraordinária nos círculos eruditos da época.
A doutrina do amor constituía o tema inesgotável da Academia e a fonte da influência exercida por esta na vida intelectual, na literatura e nas artes plásticas do Quattrocento. Muitos dos grandes artistas do Renascimento viram na teoria do amor de Ficino grande compatibilidade com as suas visões básicas, mas, mais importante, encontraram nela o segredo da sua própria criação artística. «A enigmática dupla natureza do artista, a sua dedicação ao mundo da aparência sensível e a sua contínua» busca para além de si, pareciam ser compreendidas e justificadas pela primeira vez. Como a do amor, a tarefa do artista consiste sempre «em unir coisas que estão separadas» e são opostas: procura o invisível no visível, o inteligível no sensível. O artista sente a oposição dos elementos do ser e sente-se um mediador. O fenómeno da beleza, como o do amor, só pode emergir quando a mente se retira das formas externas da imagem. «A beleza é um certo esplendor que arrebata até si a alma humana.»
Para Ficino, a realidade é ordem e beleza, mas expressa-se por símbolos, imagens, figuras. A “nova religião” de Ficino usava amuletos e talismãs com intentos mágicos, como no antigo Egito. Ficino escreveu extensamente sobre estas técnicas e, em consequência, as pinturas começaram a ser vistas como talismãs complexos, passíveis de aplicação mágica. Alguma evidência da influência hermética em Da Vinci pode ser suspeitada na disposição dos discípulos em A Última Ceia. Agrupados em quatro grupos de três, podem corresponder ao Zodíaco dividido nos quatro elementos. Alguns autores acham que não há nenhum artista da Renascença que não tenha sido influenciado por Ficino e as suas doutrinas. Sabe-se que, pelo menos, para A Primavera, Botticelli consultou diretamente Ficino.
Sandro Botticelli foi acusado pela fação anti-herética e moralizadora do frade dominicano Savonarola de incorporar nas suas pinturas as doutrinas de Ficino e de ser discípulo dele. As obras Minerva e o Centauro, A Primavera, e O Nascimento de Vénus lidariam com temas ocultos e representariam práticas mágicas de obter influências planetárias pelas imagens.

O Nascimento de Vénus

Os seres mitológicos clássicos tinham uma graça otimista vital, um colorido de peripécias humano, pelo que os artistas encontravam neles um filão atrativo. Juntamente com as entidades mitológicas ancestrais, vinham os conceitos, que, harmonicamente se sobrepunham. Para Panofsky, o sentido pleno da palavra «renascença» só se concretiza quando as antigas ideias, expressas nas figuras dos deuses e heróis, são reunidas com as suas antigas formas. A fusão total de ambas terá sido atingida, pela primeira vez na arte florentina, com O Nascimento de Vénus.
Segundo a mitologia greco-romana, Vénus nasce da espuma do mar, mar para onde Cronos lançara os genitais cortados ao pai, o deus Urano. A cena parece representar o momento desse nascimento. Vénus sustenta-se sobre uma enorme concha, símbolo sempre associado a nascimento, vulva, regeneração, batismo. A concha desliza sobre a rebentação e é empurrada para a praia pelo sopro dos ventos: Zéfiro, vento morno de Oeste; e Clóris, sua esposa, ninfa da brisa. É recebida pela Primavera que tenta cobrir-lhe a nudez com um manto de flores e folhas, ato que, aparentemente, os ventos tentam impedir.
A inefabilidade da imagem impede de ver luxúria nesta representação de um corpo feminino nu. Na realidade, não é uma mulher, é uma deusa, a deusa da beleza. No enquadramento neoplatónico da atmosfera que se vivia em Florença, podemos intuir que se trata da Vénus celestial, residente unicamente na esfera do espírito — «que nasceu só do céu, sem a intervenção de nenhuma mãe», como diz Ficino — gémea da Vénus vulgar do amor humano. Emana uma beleza quase intangível, etérea, de entidade “concebida sem pecado” e intocada pela corrupção terrena. Na síntese platónico-cristã que Ficino idealizou, não é improvável que, em certos círculos, possa ter sido associada à Virgem Maria. Aliás, esta era uma obra de palácio, a que só um círculo restrito da corte dos Médicis teve acesso. A arte para as massas estava nas igrejas.

Uma especulação

As boas obras têm a virtude frequente de permitirem diversas leituras. Perscrutando a posição “impossível” das pernas de Clóris (e andando às voltas com os textos de Ficino), vem à ideia o mito da separação dos sexos, expressa em O Banquete de Platão e comentado em De Amor de Ficino:

Em tempos recuados, «houve três géneros de homens, não só varão e fêmea; também um terceiro género formado por uma mistura de ambos. A forma de qualquer homem era inteira (…) tinha quatro mãos e quatro pernas; também dois rostos colocados sobre o redondo pescoço». Como eram de ânimo soberbo e corpo robusto, quiseram combater os deuses e subir ao céu. «Por isso, Júpiter cortou ao meio cada um deles em sentido longitudinal, e de um fez dois». «Desde o momento em que a natureza humana foi dividida, cada um desejava recuperar a sua outra metade (…) Daqui nasceu o Amor recíproco entre os homens, conciliador da sua antiga natureza (…) Cada homem busca a sua metade, e quando a encontra (…) não suporta nem um momento separar-se dela.» — Marsilio Ficino, De amor, disc. IV, cap. I.

Este mito explicava em Platão, e em Ficino, o sentimento de incompletude e o desatino de procura de parceiro e de intransigente posse, no amor entre os homens. É evidente a defesa da compossessão deste casal de ventos, apesar da “ligação imperfeita”. E é percetível alguma irritação, mas muita curiosidade por aquele ser possuidor da perfeição primordial. Ao procurarem evitar que seja tapado, os ventos comprazem também a curiosidade do espectador e transmitem a mensagem de que é maior a beleza se não se cobrir a nudez na arte, nudez na arte que os inimigos de Ficino combatiam.

Crê-se que na obra são visíveis as influências, quer nos temas, quer nas personagens, quer na conceção geral, das várias teorizações que Ficino produziu. Pode-se dizer que, não sendo um outro pai físico, foi certamente um pai espiritual.


Bibliografia principal:

CHASTEL, André, Marsile Ficin et l’Art, Genève, Librairie E. Droz, 1954.
FICINO, Marsilio, et al, Humanismo y Renacimiento, Madrid, Alianza Editorial, cop. 1986.
KRISTELLER, Paul Oskar, Il Pensiero Filosofico de Marsilio Ficino, Firenze, Le Lettere, 1988.
LÉVIS-GODECHOT, Nicole, «La "Primavera" et la "Naissance de Venus" de Botticelli ou Le Cheminement da l’Âme selon Platon», in Gazette des beaux-arts, nº 1491, Paris, 1993, pp. 167–180.

Joaquim Bispo

Imagem: Sandro Botticelli, O Nascimento de Vénus, 1485.

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quinta-feira, 24 de março de 2016

SÉRIE: TROVAS PREMIADAS (VI)






terça-feira, 22 de março de 2016

Dois nacos

Nas últimas noites estive no deserto: sozinha no vento, comendo areia com colher de sopa, olhos piscos para um sol laranja, e uma pergunta queimando a garganta: esse sonho outra vez, para quê? Acordo seca. De energia, de vontades, de ideias, de afetos. Quero nada, nem ir nem ficar. Passo o resto do dia embalando a sensação de que se fizer barulho nenhum acabo invisível e com dois nacos de paz no bolso. Dois nacos. Dois nacos é pouco, quase não dá para passar no pão. Preciso de mais, um quilo, pelo menos, dia sim, dia também. E não tem.

Disseram que há quilos e quilos perecendo nas caçambas. Disseram que não era carga viva e por isso não poderia furar o bloqueio da estrada e passar, que aguardasse até o fim do manifesto para seguir viagem e finalmente ganhar a distribuição devida. Mas disseram também que o manifesto não vai acabar. Nunca mais. Dois nacos de paz no pão terminam e o café ainda está quente na xícara. A escassez é uma tristeza.

Nessas andanças no deserto enxergo – e que alegria me dão esses meus óculos novos e de lentes ajustadas à minha miopia – um arbusto de cerca de trinta centímetros, distante à esquerda, azul de folhas e convidativo. Corro para ele, sabendo que suas raízes saudáveis dão mil nacos da paz mais pura. Ajoelho e cavo com a minha colher de comer areia. Fundo, fundo, fundo. Fundo mesmo, a colher roçando e ferindo o caule que parece engrossar e se enterrar conforme sente meus golpes. Escorre ciano e eu não alcanço a maldita ponta da planta, o começo, a raiz. Perco a paciência: é muito injusto não ter uma pá. Toda pessoa no deserto tem uma pá de escavar profundo. Eu tinha uma colher. De comer areia. 

Reparei que a cada tentativa minha, inútil, brotava um arbusto azul ao redor. Em pouco tempo estava cercada de folhagens recém-nascidas. Desisti das raízes da mãe e fui nas das mudas, provavelmente com raízes ainda na superfície. Um a um, os arbustinhos repetiam a planta primeira, espirravam ciano, engrossavam e se enterravam e geravam outros, cobrindo de céu a pele do deserto. A paz, de raiz, não podia ser colhida. Estava pertinho, mas não era para a minha colher. Eu tinha as mãos tingidas e o rosto salpicado de azul e nenhum naco nos bolsos. Eu só tinha a minha fome.

Deitei no céu, corpo inteiro esticado, e vi o chão pelo avesso. Era o deserto que estava lá em cima. Do lado de dentro todos os desertos são os mesmos: caminho, terra de migrar, passagem, rota de fuga. Levam os céus nas costas. Eu. Eu, deserto. Eu deserto, o abandono. Eu deserto, o abandono, o desencanto, a incompreensão. Eu ninguém, olhos piscos para um sol garganta, e uma pergunta queimando, laranja: esse sonho outra vez, para quê? Para que, se tudo o que tenho é uma colher e areia de comer?





segunda-feira, 21 de março de 2016

O Sacrifício

Perdido naquele inóspito lugar, ele se debatia procurando livrar a cabeça que ficara presa entre os galhos de um arbusto um tanto ressecado pela aridez da região. Nervoso ante o fracasso das tentativas e temendo pela possível asfixia, berrou por alguns minutos, na vã esperança que o seu pastor o encontrasse, cordeiro desgarrado e rebelde, fugitivo na intenção de conhecer o mundo que ele desconfiava não estar restrito ao rebanho do qual pertencia. Empenhara fuga sorrateira, escalando aquele monte ausente de qualquer pasto ou água com a qual pudesse acalmar a sede provocada pela ansiedade da aventura. Quanto mais se afastava do nível do mar mais as sensações de privação de fluidos e alimentos provocavam o seu corpo, até que, diante de um solitário arbusto esquecido no meio da imensidão de pedras e terra ressequida, os cuidados foram deixados de lado e, por consequência ali ele se encontrou aprisionado a própria sorte.
Fazia horas que o incidente ocorrera e o cansaço já começa a abatê-lo. As pernas doíam, assim como o pescoço apertado entre os galhos do arbusto. Sentiu arrependimento pela ousadia da fuga. Melhor faria se fosse obediente como os outros cordeiros e se mantivesse cortês, servil à família de pastores zeladora do rebanho. Porém, temia o sacrifício e a morte que tantas vezes presenciara. Nem só de lã e leite eles cordeiros tinham serventia. Eventualmente, um ou outro era abatido em rituais estranhos ou mesmo para a carne fornecer alimento aos pastores e aquilo o revoltava.  Tanto bem eles cordeiros faziam à família, dando o sustento necessário para a sua sobrevivência e, como prêmio alguns recebiam a degola na ponta da faca. Sua vontade em desbravar o mundo aliada ao temor da morte, para ele injusta, reforçaram a decisão da fuga.
Estava quase desistindo, aceitando passivamente o seu fim quando percebeu duas figuras humanas aproximando-se.  Imaginou que talvez fosse o pastor com um dos seus filhos que seguira o seu rastro marcado no chão infértil daquele monte e seu coração encheu-se de esperança pela salvação. Pensou em berrar para que a dupla o localizasse, mas, á medida em que os dois humanos se aproximavam, não distingiu em nenhum deles alguém conhecido, e preferiu, assim, exercer a prudência. Tratava-se de um homem já entrado na velhice, acompanhado de um jovem imberbe. O rapaz trazia entre os ombros um pesado feixe de lenha que o encurvava a cada passo. Um pouco a frente, apoiado em um cajado, vinha o ancião, levando um cutelo na mão esquerda.
Pararam cerca de 100 metros do arbusto que mantinha o cordeiro aprisionado. Descarregaram seus pertences e iniciaram desanimada confabulação. Seguindo as ordens do mais velho, o jovem começou a recolher pedras de tamanhos medianos e dispô-las de modo a formar uma mesa retangular. De onde se encontrava, o cordeiro atinou que a construção lembrava os altares onde seus companheiros de rebanho eram eventualmente sacrificados naqueles inexplicáveis rituais de fogo que ele tanto temia e, assustado, procurou ocultar-se ainda mais no arbusto que, antes carcereiro, agora lhe servia como protetor.
Foi quando o tom da conversa entre os homens pareceu sofrer certa transmutação. O cordeiro divisou no semblante outrora sereno do ancião sinais de desespero enquanto o rapaz metamorfoseava em sua face a obediência decepcionada. Não compreendeu o cordeiro a atitude do menino quando se deixou de modo resignado que o velho o amarrasse. Os dois caminharam para o altar improvisado e o jovem pousou sua cabeça sobre imitação de távola. Agora, o cordeiro observava que os dois choravam. Parecia também que os céus cairiam em pranto visto o tom pesado das nuvens cinza-chumbo que o vento carregava para o monte. O velho rezava. O jovem também parecia em oração. O cordeiro, prisioneiro em seu esconderijo, esperava curioso, o desenrolar dos acontecimentos.
Viu o cordeiro o braço direito do velho tomar o cutelo e posiciona-lo à altura do pescoço do rapaz. Misto de dúvida e horror passeou por sua mente. Acaso os homens sacrificavam-se entre si? Resoluto, o ancião levantou o cutelo e mirou a cervical do jovem, pronto para o golpe final. O terror tomou-lhe de assalto e o animal deixou escapar um berro que se espalhou pelo lugar através do vento que preludiava uma tempestade.
O velho então estancou a pancada derradeira e descobriu o cordeiro preso a armadilha natural do arbusto. Uma alegria incontida tomou o seu ser, deixando o animal ainda mais desnorteado com os acontecimentos que presenciava. Enquanto chorava, levantando em conjunto as mãos para os céus em agradecimento, dirigiu-se para o altar de sacrifícios no intuito de libertar o rapazinho trêmulo diante da morte que em segundos se fizera vida em razão de um golpe abortado. Os dois se abraçaram e encararam o animal. O cordeiro sentiu-se aliviado. Por algum motivo, ele havia feito o ancião mudar de ideia e não sacrificar o jovenzinho e, em contrapartida, seria ele libertado como prêmio.

Os dois homens cuidadosamente separam os galhos, livrando o animal da incomoda prisão mas, ao invés da liberdade, o cordeiro foi surpreendido pelas cordas amarrando suas patas. Compreendia agora o que iria se suceder enquanto era levado para o altar. Berrava em desespero diante do pavor pela morte que se aproximava. Bando de malditos, raça vil a humana, bradava mentalmente. Amaldiçoou aqueles homens e seu olhar, longe do perdão, denotava o mais extremo ódio quando o cutelo atingiu seu pescoço. Sentiu o sangue molhar o pelo alvo a ainda teve tempo de perceber e o cheiro nauseabundo das suas carnes começando a serem consumidas pelo fogo antes de perder por completo a razão.





domingo, 20 de março de 2016

BOAS BOBAGENS

Os amigos que se dão ao trabalho de me ler sabem que não sou dado a crônicas,
mas a histórias ficcionais, onde criaturas e situações são filhas das invencionices
com a pretensão de criar algo que pareça real ou surreal. Mas diante da conjuntura
que se esfrega ao nosso nariz, impossível não a inalar tal fumaça, correndo o risco
de ser percebido alienado e tolo como afrodescendente com transtornos mentais daquele
samba imortal. Falei certo? Politicamente correto? Sigamos. As certezas, dúvidas e
incertezas, os fatos e contra fatos, os caminhos e descaminhos do Brasil atual
são tantos e variados que fica difícil se manter num prumo equilibrado imune às
emoções e razões. Claro que tenho minhas preferências conscientes, muitos sabem, já me
manifestei em palavras próprias, compartilhando pensamentos com os quais me identifico
e tomando sol e chuvisco na cabeça. O balanço que faço da corda bamba que atravessa
esse desfiladeiro de geleia fervendo lá embaixo, são as expressões do bom humor que
começam a surgir aqui e acolá, nas esquinas, nas mesas de bar, nas redes sociais,
em contraponto às agressões e defesas insanas e mal-educadas de pontos de vista de
todos os lados. Bom sinal. É preciso seguir a vida. A paralisia da política e da economia
não pode estatuar o brasileiro, no que ele tem de mais criativo e jeitoso para enfrentar
adversidades. Melhor assim. Seja como o Brasil vai se desmeter do que se meteu,
torço sempre pelo bom humor como construção de cultura e expressão pacífica.
A saber o que andei pinçando:
“Fulana está tão malvestida, deselegante como uma conversa
grampeada do Lula. ”
Sobre a mesma Fulana:
“Ela está desesperada porque acha que sua Bolsa Louis Vitton Família está ameaçada. ”
Sobre panelas:
“A única indústria próspera no Brasil é a de panelas”.
Ainda sobre o panelaço:
“A ex Primeira Dama, tão discreta, resolveu revelar onde se deve guardar panela. ”
Outra: “Felação Premiada é instrumento da Operação Leva-Jato”.
Há muitas bobagens boas voando por aí e provoco o leitor a inventar ou registrar também.
Mas uma me parece imbatível:
“Meu temor por uma guerra civil é que nossa Guernica será pintada pelo Romero Britto”.
Medo. E assim me despeço.





Os amigos que se dão ao trabalho de me ler sabem que não sou dado a crônicas,
mas histórias ficcionais, onde criaturas e situações são filhas das invencionices
com a pretensão de criar algo que pareça real ou surreal. Mas diante da conjuntura
que se esfrega ao nosso nariz, impossível não a inalar tal fumaça, correndo o risco
de ser percebido alienado e tolo como afrodescendente com transtornos mentais daquele
samba imortal. Falei certo? Politicamente correto? Sigamos. As certezas, dúvidas e
incertezas, os fatos e contra fatos, os caminhos e descaminhos do Brasil atual
são tantos e variados que fica difícil se manter num prumo equilibrado imune às
emoções e razões. Claro que tenho minhas preferências conscientes, muitos sabem, já me
manifestei em palavras próprias, compartilhando pensamentos com os quais me identifico
e tomando sol e chuvisco na cabeça. O balanço que faço da corda bamba que atravessa
esse desfiladeiro de geleia fervendo lá embaixo, são as expressões do bom humor que
começam a surgir aqui e acolá, nas esquinas, nas mesas de bar, nas redes sociais,
em contraponto às agressões e defesas insanas e mal-educadas de pontos de vista de
todos os lados. Bom sinal. É preciso seguir a vida. A paralisia da política e da economia
não pode estatuar o brasileiro, no que ele tem de mais criativo e jeitoso para enfrentar
adversidades. Melhor assim. Seja como o Brasil vai se desmeter do que se meteu,
torço sempre pelo bom humor como construção de cultura e expressão pacífica.
A saber o que andei pinçando: “Fulana está tão malvestida, deselegante como uma conversa
grampeada do Lula. ” Sobre a mesma Fulana: “Ela está desesperada por que acha que sua Bolsa
Louis Vitton Família está ameaçada. ” “A única indústria próspera no Brasil é a de panelas”.
Ainda sobre o panelaço: “A ex Primeira Dama, tão discreta, resolveu revelar onde se
deve guardar panela. ” Outra: “Felação Premiada é instrumento da Operação Leva-Jato”.
Há muitas bobagens boas voando por aí e provoco o leitor a inventar ou registrar também.
Mas uma me parece imbatível:
“Meu temor por uma guerra civil é que nossa Guernica seja pintada pelo Romero Britto”.
Medo. E assim me despeço.





sexta-feira, 18 de março de 2016

ESTRANHAMENTOS



          Continua, vai fazendo a caneta passar por cima destas páginas brancas, é tão bonito vê-la deslizar, ela escorre, gostosa, joga a tinta e recobre o branco, dá forma, deixa tudo bonito também. Eu não estou tão mal assim, consigo ver o azul em cima do branco, vejo tudo nítido agora, vou poder contar, vou contar e colocar tudo entre os meus guardados, na arca maior aqui do quarto, debaixo do cobertor azul que tricotei faz tanto tempo, quando achei que Felipe fosse me pedir em casamento, Felipe tão lindo, todo meigo, doce, nunca me tocou, eu dizia que não podia, me guardava intacta, e ele sempre foi respeitoso. Ninguém vai achar este caderno, e se encontrarem estarei bem longe destes móveis de madeira escura, esta colcha de piquê sobre a cama, o piano que Lúcia tocou por uns anos e que depois eu também tentei tocar, só para ter a certeza do meu fracasso. Estarei longe das xícaras de mamãe, inda intactas mesmo com ela morta há sei lá quantos anos, e longe de Múri, meu cachorrinho, velho como eu.

          Preciso dar um jeito, uma autorização especial para poder levá-lo, ele vai sucumbir se ficar aqui, sozinho, e talvez ele me proteja também. Estou com medo de todo mundo que vou encontrar por lá, na clínica, a verdade é essa, medo do que posso fazer, medo da semiconsciência em que ficarei com os remédios que irão me lançar estômago adentro, e só peço que sejam todos feios, médicos, médicas, enfermeiras, enfermeiros, todos bem horríveis, assim não haverá perigo. Eu sei, a feiura não é garantia de nada, mas pode ajudar, sempre ajuda, se forem bem horripilantes eu não farei nada, serei boa e logo voltarei ao normal, já passei da idade de fazer coisa feia, de pensar coisa feia, de querer coisa feia, mas, ah, um dia foi macio, quente, úmido, só que meu aniversário está chegando, vou completar 75 anos, minha vida está no fim, eu sei que falta pouco.

          Era feio e bom. Prima Mirtes, morta há uns anos de câncer no intestino e a quem nunca mais vi, desde o casamento de outra prima nossa, como chamava mesmo? Acho que Vânia. Naquele dia na igreja mal a cumprimentei, não quis ficar ao lado dela durante a missa, mesmo ela se enfiando entre mim e tia Dorita, pedi licença para procurar um banheiro e ao voltar fui para o outro lado da nave, perto de vó Cleide, em sua cadeira de rodas e quase nenhuma consciência. A gente era nova ainda, naquela época. Depois Mirtes casou, teve uma filha, logo o marido trocou por outra e ela criou a menina sem pai e quase sem dinheiro. Nunca estudou, acabou ganhando uns trocados como vendedora, a filha virou vendedora também. Houve época em que andavam praticamente na miséria, mas eu nunca quis dar nada, ia parecer paga ou criar mau costume, nessas coisas tem que ser frio, não pode muita pena senão estraga tudo, a pessoa acostuma e nunca mais procura se virar. Meu pai sempre dizia isso no caso da tia Zefa, eu lembro. Mamãe achava absurdo, como um homem que tinha dinheiro feito ele deixava a irmã passar fome? Mas papai era implacável: Zefa casou com o bêbado e inútil daquele marido dela, gastou todo o dinheiro que recebemos de nosso pai, agora tem que se virar. Se não vai arrumar homem que bote dinheiro na casa, que vá ela inventar um jeito. E ria sua risada grossa que era quase um sacrilégio, mas eu achava linda, mamãe só fazia o sinal da cruz e saía da sala, mas isso foi no tempo do antes, quando ele ainda vivia com a gente, depois morreu, como falaram, ou foi morar com a outra família, como eu acho até hoje.

          Se papai tivesse ficado conosco, minha vida tinha sido outra, não tinha começado do avesso, como começou, pra depois nunca mais se arrumar. Se papai tivesse escolhido nossa família – mamãe, Lúcia, eu, Joca –, eu teria me casado com Felipe, teria tido filhos e não sentiria o ventre seco e inútil me comendo por dentro. Lúcia teria tido o meu sobrinho, mas não daquele modo escondido. Teria levado sua gravidez ao sol, sem medo nenhum, teria ficado noiva, casado, hoje talvez estivesse viúva. E Joca não teria ido embora de nossa casa mal a gente chegou na cidade, procurando tão pouco mamãe ao longo dos anos que ela foi minguando até desaparecer, no céu sem estrelas daquela noite chuvosa em que seus passos foram pra outro rumo.

          Mas papai se foi e com ele viemos para cá, esta cidade cada vez mais feia e cheia de gente que me dá medo. Eu me assustei tanto, não tinha quintal, não tinha árvore, não tinha nada, mamãe deixou apenas que trouxesse a gata Zefina e proibiu-nos de falar o nome do papai. Eu tinha uns cinco anos e ele estava morto, devia de ter feito algo bem ruim, e foi com o tempo que eu percebi que essa minha podridão só pode ter vindo dele. Mamãe agora trabalhava o dia inteiro e não tinha tempo para nada. Joca também não, ficava pelas ruas e eu mal o via. Só Lúcia ainda ficava um pouco comigo, mas logo saía, ela sempre foi muito mais velha, mais livre, mais tudo, e eu ficava à solta pela casa depois que terminava minha lição e não queria mais minhas bonecas, Zefina roncando no sofá sem querer brincar também.

          Se Lúcia nunca tivesse tido a ideia, minha vida não teria sido esta. Eu era difícil de fazer amizade com as outras crianças, mas com carinho talvez pudesse ter levado uma vida igual à de todo mundo e não ouvisse tudo isso aqui dentro, na cabeça. Só que um dia, deve ter sido em 1950, 51, por aí, ela falou que eu ia a uma prima, para distrair, brincar um pouco, eu ia gostar. Eu tinha visto prima Mirtes poucas vezes até então, nos Natais, e fazia um tempo que nem isso. Morria de medo da prima perguntar por que a gente tinha vindo para a cidade, ou de que o nosso pai tinha morrido, por que a nossa casa agora era tão pequena, e eu não sabia o que responder para nenhuma dessas coisas, acabaria inventando tudo e dava medo a prima não acreditar. Ela era um ano e pouco mais velha, devia ter uns seis anos e meio, mas para mim parecia muito mais velha. Lúcia falou que tia Sônia fazia questão que eu dormisse lá, assim poderíamos brincar à vontade sem que ninguém precisasse sacrificar o final da tarde para me buscar. No dia seguinte, ela ou Joca viria me pegar. Deu quase pânico saber que ia dormir em uma casa estranha sozinha, mas procurei me acalmar lembrando as palavras de mamãe, que sempre dizia que eu precisava ser uma mulher corajosa, que não podia ter tanto pavor da vida como ela, que era preciso enfrentar o mundo, ser bem valente e não depender de homem nenhum para nada.
          Lúcia preparou uma bolsinha para mim, com roupas e o pijama, e logo a campainha tocou, era tia Sônia. Na ida para a casa delas, o que predominou por muito tempo no trólebus foi um clima desagradável, minha tia tentando forjar o entrosamento entre duas crianças tímidas que não se viam com frequência. Ao chegar, fizemos um lanche e eu procurei comer tudo para não fazer feio. Depois desse lanche, é cada vez mais difícil ordenar as coisas, na minha cabeça, minha lembrança. O cheiro de goiaba pela cozinha fazendo que eu sonhasse com um mundo cheio delas, ou então que existisse um perfume de goiaba, pra gente passar no pescoço e ficar sempre cheirando doce, que nem na fazenda, antes. E o sorriso na cara magra da tia, que deixava suas gengivas à mostra, seus dentes feios, tortos, procurando fazer uma cara amigável, mas vindo com aquela proposta que me assustou.
          Iríamos a um centro espírita. Eu não tinha a menor ideia do que isso significava, só que o nome preocupava, parecia coisa bem errada. Titia falou que era um lugar bonito e tranquilo, mas eu ficava pensando se mamãe sabia, se ela deixaria, se ficaria brava. Fomos. O lugar não era grande e tudo era branco. As pessoas estavam vestidas de branco, as toalhas nas mesas eram brancas e eu não entendia nada do que falavam. Não era como o padre na missa, eram umas vozes enroladas, baixas, os olhos pareciam não olhar pra lugar algum, giravam desordenados. Minha tia quis que eu me aproximasse de uma das mesas e falasse com as pessoas, mas não consegui falar nada, só olhar para o chão, que era escuro quase preto, e escutei dizerem coisas, não compreendi. Depois fomos embora, o medo diminuindo, até um orgulho de ter ido em um lugar que mamãe não conhecia, ter enfrentado uma coisa estranha.
          Não lembro se houve banho, tampouco do jantar ou das brincadeiras, nem mesmo da hora de dormir, o boa-noite da tia Sônia, ou a chegada de tio Alfredo, seu bigode já grisalho e muito grosso. Nada disso. Também não sei se estávamos dormindo mesmo, no profundo, ou apenas começando a adormecer, mas não deve ter sido em plena vigília, talvez naquele primeiro estágio do sono, ainda muito leve, que já é sono mas não parece. Muitas vezes, nestes anos, procurei lembrar de forma precisa a disposição dos móveis do quarto, mas as imagens foram cada vez sumindo mais. Dormíamos em duas caminhas, ou uma caminha e um colchão no chão? O engraçado é que nunca deixei de me lembrar de um ângulo de mirada para o quarto, a partir da porta de entrada, à direita, em que as camas (ou a caminha e o colchão) ficavam à esquerda, os móveis de madeira muito clara, havia um criado-mudo também, e uma luz alaranjada que devia vir do abajur em cima desse criado-mudo. Não sei se o abajur ficava sempre aceso, ou se tia Sônia tinha acendido por minha causa, para que eu não tivesse medo.
          Fosse na cama ou no colchão, de alguma maneira as coisas começaram. Era quente, molhado e bom, mas o tempo todo, sentindo nos dedos e junto a mim, sabia que estava fazendo algo muito feio. Prima Mirtes mexia em mim, eu nela, e uma se encostava e sentia na outra, esquentando, um calorzinho bom e que eu sentia vez em quando sozinha, mas em duas parecia melhor. Era suave, vagaroso, úmido, e não dava para parar enquanto não acabasse por si, do jeito que tinha começado, do nada. Mas enquanto acontecia, mesmo sentindo o gostoso que era, eu ficava imaginando se Mirtes sabia o que estava fazendo, por ser mais velha, se ela sabia que aquilo era muito ruim, ou se não tinha ideia de nada. Mais de uma vez mamãe tinha me pegado sozinha, debaixo das cobertas, e disse que aquilo não prestava, não era coisa de menina boazinha. Desde então segurava ao máximo e só escapava às vezes, assim, no banho. Aquilo, com a prima, devia ser um pecado imenso, que aquela luz alaranjada fazia ganhar ares infernais.
          Em algum momento acabou, voltamos para nossos lugares e dormimos. No dia seguinte mal conseguia olhar para Mirtes, que irritantemente agia como se nada houvesse ocorrido. Tampouco suportava o sorriso de tia Sônia perguntando se a noite tinha sido boa, se eu dormi bem, se não tive medo nem nada parecido. Agradeci mentalmente por Lúcia vir cedo me buscar e fui embora sem conseguir dar um beijo no rosto da prima. Minha irmã achou falta de educação, já ia implicando, mas titia falou deixa para lá, coisa de criança, tinham se dado tão bem, era preciso repetir a dose, promover a união familiar.
          Ao chegar, minha culpa era tão grande que eu precisava contar alguma coisa para mamãe. Quando ela voltou do trabalho, na impossibilidade de contar o todo, contei a parte: o centro espírita. Ela me aliviou, para eu ficar sossegada, não tinha sido nada demais, ela não sabia que iríamos, éramos católicos, mas aquilo não faria mal, eu podia ficar tranquila. Meu resto seria mesmo com Deus. Rezei bastante durante o banho, esfregando-me com força e certa violência, pedindo perdão pelo que eu não sabia ao certo que tinha feito, e à noite rezei mais. Precisei de muitos dias para tirar aquilo da cabeça, ir apagando aos poucos – mas não para sempre, como sempre soube.
          Queria ter fé completa, e não arremedo de fé, para me jogar nos degraus do confessionário, dizer tudo ao padre, ouvir o que tenho a cumprir e então me sentir liberta, não só desse primeiro, mas de todos os estranhamentos que seguiram, mas minha fé é só um pedaço de fé, falsa como sinto que estou sempre sendo toda falsa, não adianta padre, nem médico, nem psicólogo, terapeuta disso e daquilo. Eu sou feita desse jeito, ninguém consegue me aliviar, os remédios só fazem diminuir um pouco, mas as coisas nunca somem, elas só arrefecem, e inda por cima mal e mal.
          Meu sobrinho agora está chegando, desde moleque que ele bate a porta do carro parecendo ter ódio do mundo, eu posso ouvi-lo daqui de cima, Lúcia pediu que ele me leve, não pode mais ficar comigo, sua diabetes está alta, ela precisa de um ambiente tranquilo, parece que vai viver com ele e os netos. Está certo, tudo certo, ela merece a vida boa que teria tido se papai não tivesse ido embora e se eu não tivesse virado esse troço inútil que virei. Eu olho para as moças na rua e vejo que não tem tanto problema assim. Talvez, se fosse hoje, eu fosse uma pessoa como qualquer outra, eu só era um pouco diferente. Mas naquele tempo, e é isso que Dr. Joaquim precisa entender, naquele tempo não era, dava um medo imenso, um terror quase tão grande como o que sinto agora, sabendo que vou encontrá-lo de novo, Dr. Joaquim é sempre simpático, ele vem e me examina de pertinho, pergunta se voltei a escrever, quer saber o que estou fazendo, esse tipo de coisa perigosa, ele puxa meus olhos para baixo e para isso sinto seus dedos da mão quentes no meu rosto, meu coração fica rápido e eu tenho medo de ele perceber o meu medo, o que pode ser ainda pior, não vou parar de tomar remédio nunca, e se ao menos os remédios fizessem efeito, me permitissem esquecer de tudo, sumissem as falas aqui dentro, e mais o sangue que saiu há dois meses, quando fui fazer pela primeira vez um exame que tem um nome horrendo. Ultrassonografia trans-va-gi-nal. Rompeu, rompeu aí, e a médica que segurava o aparelho ficou sem graça, chamou uma assistente, uma olhava para a cara da outra e não sabia como podia ser verdade, eu não tinha assinalado o X da virgindade no papel e não podia ser verdade, mas era, eu perdi ali, naquele utensílio eletrônico, bege, forrado por uma vergonha de plástico que saiu ensanguentada, que nojo, como sou imunda, e logo minha cabeça não parava de ouvir as reprimendas, até mamãe me falava da vergonha que tinha de mim, para sempre, eu nunca a deixava descansar direito, por Deus, que culpa ela tinha de ter me parido desse jeito, eu não via que era eu a errada?
          Preciso aprender a me comportar, mesmo que já seja tarde demais, tenho que conseguir conversar com Dr. Joaquim, mesmo com os olhos doces dele. Ele não vai me fazer mal e eu não vou fazer mal a ele, não posso mais fazer mal a ninguém, não é? Não posso, não posso, falta pouco para acabar tudo, meu Deus, me perdoa, por favor. Meu sobrinho está subindo as escadas, iremos agora, a única coisa que não posso deixar de escrever aqui é que descobri numa revista que existe uma espécie de distúrbio do sono, um troço que foi diagnosticado há pouco tempo, chama “sexsomnia”, acho que é esse o nome. A pessoa faz sexo dormindo. Pode ser isso que eu tenho, que eu tive, sei lá, pode ser isso que acabou causando todo o resto que veio depois, as vozes, as pessoas todas aqui dentro. É feio falar, mas quem sabe Dr. Joaquim não confirma que é isso e me dá os remédios certos, se atacarmos a origem de tudo eu devo ficar boa, ainda deve dar tempo.
          Por Deus, que dê, é só o que peço.







quinta-feira, 17 de março de 2016

Haiku - Cassio Carvalheiro


Hokusai - Trovoada Abaixo do Cume



Não tiro da mesa 
As migalhas de pão
Resta a formiga.


Pra lá e pra cá
Gente apressada
Mas o ipê em flor não desiste.


Mosca corajosa
Nem mão nem pano
Afastam-na do bolo.


Viagem ao campo
Dormir até tarde...
Mas a cigarra é pontual.


Maldoso mosquito
Se aproveita de mim
Enquanto medito.


Na despensa, nada
Viemos em vão
Eu e a barata.


Aqui e ali
Fissuras no asfalto:
O verde da grama.


Depois da chuva
Na poça d'água
Formigas afogadas. 


Como sou amado!
Mal saio de casa
Já me espera a lua.


Galho seco
Torna-se espada
Mão de menino.


Intolerável calor:
Parece quente
A luz da lua.


A casa da aranha
Corre perigo:
Dia de faxina.


Dia de varão:
Pipa e menino
Aguardam o vento.








quarta-feira, 16 de março de 2016

Onde devem estar os gritos


Sempre guardou segredos. Aprendeu a ser silêncios desde pequena. A ser apenas gritos internos. Quantos anos tinha? Quatro, cinco? Memórias incertas. A babá se perfumando com os frascos caros da penteadeira da mãe. A babá ajeitando os ca- belos no espelho oval do corredor. A babá encostando a língua na língua do moço que entregava as compras. Aquele passear de mãos pelo corpo inteiro; por cima e por dentro do uniforme. Os apertões, os tapas. Gemidos de dor quase não gemidos. Entrecortados, semitonados. E o rosto contorcido, exausto. Coitadinha. Não gostava do moço que fazia a babá gemer. E estranhava aquela dor que não pedia socorro. Quis respostas. Perguntou. Arrependeu-se. Você quer que a babá vá embora? Quer? Você quer ver a babá chorar? Não queria. Calou-se. Descobriu que o nome desse não contar era segredo. E que calar era um jeito de não perder as pessoas. Gostou de ser segredos. Cresceu silêncios.
Além dos gemidos e gritos, aprendeu como escoar para dentro também os risos de deboche que recebia na escola. A limpar pacientemente a terra jogada nos cabelos longos pelas meninas no recreio. A encapar os livros duas vezes, para protegê-los melhor das poças d’água nas quais eram jogados uma, duas vezes por semana. Silêncios.
Quando ouviu as meninas falando sobre o príncipe encantado que chegaria no meio da noite para levá-las na garupa de um cavalo branco, pensou em lhes contar que não havia cavalo nenhum. Que o príncipe suado viria do quarto ao lado e se deitaria sobre elas e passearia as mãos sobre seu corpo e lhes cobriria a boca com a mão pesada, repetindo em seus ouvidos: minha princesinha, minha princesinha. Contar-lhes sobre a invasão negociada a promessas de brinquedos e viagens. Sobre a verdade impedida por manipulações traiçoeiras. Se mamãe souber vai ficar triste com você. Você quer que a mamãe vá embora? Quer fazer a mamãe chorar? Mas não disse nada. Ela guardava segredos.
Aprendeu como limpar o sangue escuro que saía do sexo pequeno sem gemer a agonia das feridas. As dores na barriga, os calafrios, a tontura. Tudo fluindo para dentro. Sem voz. Sem alarde. Até que os seios fartos e as ancas redondas lhe disseram que era tempo de basta. Criou coragem de mulher. Contou à mãe sobre as noites de princesa. Arrependeu-se. Mentirosa! Você quer que seu pai vá embora? Que ele me deixe sozinha? Quer? Você sempre teve ciúme do seu pai comigo. Cala essa boca e some daqui.
Descobriu que falar era um jeito de afastar as pessoas. As piores pessoas. Que falar tinha sabor de alívio. Transbordou. Vomitou segredos e silêncios. Jogou tudo para fora. Para fora, onde devem estar os gritos.





terça-feira, 15 de março de 2016

memórias


Não tinha ido despedir-se e, se lhe tivessem perguntado, teria dito: foi um acaso, uma conjuntura, tudo a dispor-se para que não fosse e o relógio que não me despertou.
Margarida a justificar não ter estado no cais, ela que nunca ficou a acenar lenços senão, muito criança, dependurada na janela de um comboio, a mão de um a despegar-se da mão do outro, a humidade cálida escorrendo, e depois irem-se esfumando os rostos e os corpos e a paisagem: cada vez mais longe e, a crescer no peito, a espraiar-se pelo corpo, os primeiros sinais da solidão e da saudade.
Margarida nunca viu mães e esposas e irmãs, tias, amigas, namoradas, os xailes e os lenços e os saltos altos e as saias acima do joelho ou o saia-casaco de bom corte, mulheres irmanadas num mesmo desgosto tartamudeado em frases tontas e unhas roídas até ao sabugo.
Mães e noivas e namoradas e esposas. Mulheres anónimas a chorarem filhos que partiam e filhos que tinham ficado apenas um projecto ou com um pai que nunca iria conhece-los.
Margarida nunca foi esperar nem despedir-se dos soldados.
Nem nunca esteve, o sol ardendo-lhe o pescoço, numa daquelas cerimónias. Nunca viu a medalha ser colocada no embargo vertical dum pai de filho morto, espetada na lapela dum fato emprestado, negro como convinha à cerimónia e ao luto, ou no xaile muito preto duma mulher com rosto de menina.
Margarida nunca presenciou.
O que soube, viu nos documentários a preto e branco que passavam nos cinemas, antes de correr o filme.
Tivesse sido de outro modo, se Margarida tivesse vivido, podia afirmar: no dia em que fui despedir-me, chovia na capital do império.
Ou podia dizer que o sol escaldava.
Ou nem diria nada, que os desgostos remetem a uma mudez a semelhar o patológico, mesmo quando embebidos em rios de lágrimas.
Os soldados partiam.
Margarida só os conheceu namoriscando: a cerveja rolando de um a outro e o fresco da sala de cinema e a música troando numa matiné dançante e a certeza de que partir era ainda futuro.
Se tivesse estado num cais, poderia afirmar que a chuva, quando caía, ensopava os que acenavam lenços muito alvos, alguns com barras coloridas, e nenhum dos que acenava, e nem nenhum dos outros, nem aquelas duas abraçadas num choro, nenhum deles saberia localizar o seu José, o seu Fernando, o seu Manuel, na confusão que era o navio repleto de homens que atulhavam a amurada, e até os barcos salva-vidas, como se pode ver em fotografias da altura.
 – Será este? Olha, é aquele!
E apontavam a tentar adivinhar, cada um acenando no desespero de, muito em breve, não poder repetir o gesto.
Margarida nunca esteve a ver o navio desatracar devagarinho, e depois ir, muito lentamente, pelo Tejo adiante, e ficar apenas um pontinho, apenas a ideia de navio, e nem navio nem soldados na neblina que entretanto se formava, e as mulheres lancinando aflitas: Henrique, Matias. Elas a chamarem os nomes de maridos e filhos e outros parentescos ou apenas vizinhos; elas a virem despedir-se e clamando se nunca mais voltariam a vê-los.
Margarida nunca veio embrulhada na mole de gente, o cais a ser abandonado e ela a estranhar-se dum sentimento de impotência semelhante ao que tinha sentido num dia em que, menina ainda, tinha visto prenderem os cães numa carroça e ela, colada à parede do passeio estreitinho, sem um grito, um choro, um nada mais que a descoberta daqueles sentimentos: impotência e injustiça enrolados um no outro, e teria sido preciso decorrer um tempo para que Margarida soubesse dar-lhes nome.
Ela nunca foi ver o navio perder-se lá ao fundo onde o rio já não é senão água salgada e o farol parece uma tartaruga com apenas um olho que viesse nadando para entrar na capital do império e nunca mais chegasse.
Não viu os passos dos que tinham vindo despedir-se a descolarem-se muito lentos e cada um ainda querendo olhar o filho, o marido, o noivo, o irmão. O primo.
Margarida apenas viu nos documentários e ouviu contarem-lhe.
Namoradas e mães, e nenhuma sabia de futuros que já estavam inscritos no destino que começava, ali no cais, a ser tecido, devagarinho.
Um dia, poderiam vir dizer-lhes: morreu numa emboscada; desfez-se no rebentamento de uma mina; não sabemos ainda quando chega o corpo.
Tivessem-lhe dado tal notícia, e Margarida recordaria o cemitério dos coelhinhos que a coelha desmamara, uma cruz de cana em cada cova; e lembraria as cachaçadas certeiras no pescoço dos coelhos adultos, tal e qual as granadas que teriam rebentado sob as viaturas.
E nem havia de traçar o sinal da cruz  por nunca ter sido esse o seu hábito, mas releria as cartas que lhe tivessem escrito, folhas muito finas, muito levezinhas, cada folha escrita na frente e no verso. Cartas enormes, cada recanto da folha recoberto com palavras escritas com letra miudinha para que coubesse e, ainda assim, ficara tanto por dizer.
Mas Margarida não teve soldado de quem lesse folhas imensas recobertas de letras, linhas e mais linhas de tinta que escorreria se ela chorasse. Palavras dolorosas. Uma, duas, muitas folhas, e era quase certo que houvesse, a cair de entre todas, a metade rasgada de uma outra.