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terça-feira, 29 de outubro de 2013

SAMIZDAT 38 - O Mestre Machado


Por que Samizdat? Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
David Dephy Gogibedashvili

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA
A Cartomante, Machado de Assis
Luzia, Trindade Coelho

AUTOR CONVIDADO
ELA, Sérgio Tavares

CONTO

A Estátua sem Rosto, Joaquim Bispo
Eu sou o amor, dele..., Rafael F. Carvalho
Uma Vida, Rodrigo Zafra
A História da Aurora, Japone Arijuane
Rebeca, Alive Viana
Ela, despindo-se na noite, Carlos Eduardo Paulino Murta Café
Vai tricô e vem meia, Cinthia Kriemler
A Salvação da Lavoura, Zulmar Lopes
Perfume de Mulher, Lionel Mota

TRADUÇÃO
Queda que as mulheres têm para os tolos, Victor Hénaux

ARTIGO
O Mito do Bestseller Brasileiro, Henry Alfred Bugalho

TEORIA LITERÁRIA
O Sonho de Lancelot: Presságio da Derrocada dos Valores Medievais, Rafael Geraldo Vianney Peres

POESIA
Consiste em prendê-lo em cola, Danilo Augusto de Athayde Fraga
Borboleta Esquecida, Fernanda Azevedo de Morais
Viagem Eterna, Fernanda Azevedo de Morais
angustura, Rodrigo Uriartt
O ato de nomear, Lilian da Silva Ney
Story 7, Luiz da Franca
Envoltório, Nathan Sousa
Labirinto, Victor Faria
Antes de partir, Vanessa Regina

CONCURSOS LITERÁRIOS
Novembro 2013

Leia a SAMIZDAT 38
Scribd - http://www.scribd.com/doc/179882775/SAMIZDAT-38-O-Mestre-Machado
Calaméo - http://en.calameo.com/read/000002238f093f64c5060





segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Pelos olhos de um homenino


Sou um homenino que não abre mão de manter residência fixa na infância. Meus olhos são duas polaróides prontas a captar o efêmero. Depois cuido de guardar na película das palavras o que pousou beija-flor diante dos meus olhos. A seguir, três instantâneos clicados pela minha lente de homenino.

Costumo passar duas vezes ao dia (depois do café e depois do almoço) numa banca de revistas próxima ao local de trabalho. Pois lá estou à cata de novidades – a novidade do dia foi uma edição especial da revista Superinteressante. Já de saída, reparei num garotinho de uns cinco anos perguntando à Almira, dona da revistaria, o que dava para comprar com a moeda que ele lhe entregou. A Almira respondeu, de modo afetuoso, que não dava pra nada. Presumi que o menino, uniformizado, fosse filho de alguma trabalhadora das imediações. E de trabalhadora que certamente ganhava muito pouco. O menino ficou desapontado quando ouviu da Almira que sua moeda não dava pra nada. Que menino não ficaria? Na mesma hora tirei R$ 2,00 do bolso e entreguei à Almira, não ao menino, dizendo a ela que desse ao menino o possível com aqueles R$ 2,00. O menino nada entendeu, até que a Almira lhe dissesse É o tio que tá dando. Tão inocente o menino! Tão sem jeito o homenino que sou! O menino agradeceu, ainda sem entender. O homenino saiu da banca contente de si, mesmo com a falta de jeito na aproximação com o menino. Talvez o menino tenha sido vítima de um espanto parecido com o que também tive em criança. Estava num bar da cidade vendo TV. Um cliente, do nada, resolveu oferecer picolés e sorvetes para as crianças que viam TV no bar. Era só escolher. Eu, entre o susto da generosidade e o receio de me aproveitar dela, escolhi, a custo, o mais barato dos picolés. Ah, tanta saudade de uma certa inocência – inocência que vi ainda intocada no menino da banca de revistas!

* * *

Fim de domingo banal, estou num shopping para o café da tarde. De repente vejo uma mãe tentando controlar, sem sucesso, uma criança aos berros. A criança é um garotinho de uns três anos que parecia indomável. Solta-se dos braços da mãe e continua aos berros. Apesar do incômodo com os gritos, não antipatizei com a criança. Antes me enterneci com o que aconteceu logo em seguida. O pai, que estava comprando um lanche, se aproxima, se agacha para ficar na altura do filho, abraça-o e começa a conversar. O pai quer saber o que há. A criança diz. O pai ouve com toda a atenção. E a criança já não tem mais nada da fúria de momentos antes. O pai pega a criança no colo e vai para o balcão – bem ao meu lado – esperar pelo lanche. É quando ele começa a dizer para o filho que é muito feio fazer o que ele fez; que não pode gritar com a mamãe; e muita coisa mais que não memorizei. Tudo foi dito num tom de voz calmo, afetuoso... E já não havia mais sinal da criança indócil de há pouco. Tive vontade de aplaudir aquele pai e sua perícia em pôr em prática a pedagogia do afeto, intuito que a mãe, certamente não menos afetuosa, não tinha conseguido. Fiquei encantado. O flagrante só confirmou aquilo em que sempre acreditei: só com a linguagem do afeto se consegue algo de alguém – estou falando do que se consegue de forma espontânea, porque a linguagem do poder consegue o que quer pela via do medo. Não era o caso ali – ali só havia amor. Lindo!

* * *


Por conta da homenagem a uma colega recém-aposentada, tive de ir a um shopping aonde quase nunca vou. Feita a compra, fui para a parada de ônibus. Passava pouco das 18h e lá havia três crianças uniformizadas – duas meninas e um menino. Sou péssimo de cálculo de idade, mas penso que elas tinham não mais que dez anos. Todas traziam no olhar aquela curiosidade acesa que se encanta com qualquer mínimo acontecimento. E conversavam, e riam, e brincavam... Entretidos entre si, não deixaram de perceber um professor passando pela parada. E uma das garotas disse, animada e surpresa: “Oi, professor fulano!”. Mais conversas, mais risos... De repente o garoto se lembra que só tinha um passe escolar. E pelo desenrolar da conversa, descobri que iam todos para a rodoviária e de lá pegariam outro ônibus. O bacana foi a desenvoltura do garoto ao decidir ir a pé para a rodoviária. Antes, houve toda uma combinação de onde iriam se encontrar na rodoviária, já que o garoto deixaria a mochila com as garotas. Todo animado com a aventura da caminhada (uns vinte minutos), o garoto saiu correndo a passos velozes como se corresse para uma missão muito importante – e não tive dúvidas de que fosse. Fiquei enternecido com essa cena tão rápida. E me lembrei desses versos de uma canção do Caetano: “Eu vi um menino correndo / Eu vi o tempo / Brincando ao redor do caminho daquele menino”. O meu olhar para aquele menino era um olhar para o menino que fui – e senti saudades.  





domingo, 27 de outubro de 2013

Aspirações


Ela era da época em que se espalhava a sujeira pela casa com o espanador, tarefa árdua e que não resolvia o problema do pó, mas que, ao menos, ao dispersá-lo, tornava-o quase imperceptível, ignorável. Tal como o espanador, em relação aos outros problemas da casa e da família, bases às quais se resumia sua vida, dispersava as nuvens espessas com pensamentos e tarefas aleatórias, como testar uma nova receita, cuidar do jardim ou aprender as técnicas de ponto e cruz da revista que comprava sempre que ia ao mercado, um dos poucos pequenos prazeres aos quais ela se permitia.
Nos trinta e cinco anos de casada, abriu mão de quase todas as suas aspirações. Desistiu da faculdade, da carreira de psicóloga, dos passeios pela praça aos domingos (incluindo o almoço fora e o sorvete, sem obrigação de cozinhar ou lavar louça), das viagens ao Pantanal e ao Nordeste, do cachorro, dos dois gatos e de muitos outros planos e desejos, todos dissipados. Além disso, fazia vista grossa às grosserias, ao excesso de trabalho e aos caprichos do marido, o senhor Leopoldo Guimarães, sujeito mais sovina da cidade. Diziam que ele passava metade do dia preocupando-se em ganhar mais dinheiro e a outra metade preocupando-se em não gastá-lo; com exceção dos domingos, que o velho respeitava como se por força de lei. A maioria fazia piadas e zombarias com ele, mas quem sofria mesmo era ela, privando-se, presa naquela casa com nuvens espessas de pó.
Naquela manhã de domingo, por ser aniversário dela, o marido deixou-a dormir até mais tarde, foi até o jardim, arrancou de lá algumas das rosas de que ela mais cuidava, amarrou-as com um pedaço da hera que subia pelo muro da rua e tentou surpreendê-la com o buquê improvisado e com uma xícara de café na cama. Não teve sucesso na surpresa, assim como não havia tido em todos os outros aniversários múltiplos de cinco, em que ele fazia exatamente a mesma coisa - intercalando com o cartão de próprio punho que entregava nos aniversários dos entremeios. Ainda que decepcionada, ela lembrou-se de como sorriu no ano anterior e estampou no rosto aquele mesmo sorriso insosso, agradeceu de cabeça baixa e foi preparar um chá; Detestava café.
Pouco mais tarde, naquele mesmo dia, o filho mais velho foi visitá-la. Aquele que trabalhava fora, na cidade vizinha, porque o mais novo não ia até a casa dos pais havia mais de cinco anos, desde que o pai o expulsara de lá, alegando que os gastos com telefone estavam muito altos e que havia chegado a hora dele andar com as próprias pernas. Ela permaneceu em silêncio durante a discussão e a partida; E arrependeu-se, depois, da inércia. No entanto, mantinha contato com o filho por cartas que ela deixava para uma amiga em comum, a caixa do mercado. O primogênito, que apareceu com um grande pacote e um sorriso maior ainda, havia fugido de casa cedo porque sabia que, enquanto morasse lá, continuaria brigando com o pai, em defesa da mãe e do caçula. Quando o senhor Leopoldo apareceu na sala de entrada, atraído pelos ruídos de visita recém-chegada, em uma das raras excursões além da poltrona no domingo, cumprimentou-o com um aperto de mão e um tapinha nas costas; Para o velho, aquilo era sinal de muito respeito, adquirido por enfrentar o mundo lá fora e, de quebra, reduzir as despesas da casa. Após o cumprimento, o filho pouco disse e logo despediu-se; Não se sentia bem ali, nunca conseguiu dissipar os traumas.
Pouco interessado pelo filho, pela esposa ou pelo pacote, Leopoldo voltou a recostar-se na poltrona da sala de televisão. Enquanto isso, ela abriu o pacote, primeiro tentando as beiradas e depois, ansiosa, o rasgando em pedaços com as unhas. Leu na embalagem: aspirador de polvo. Riu um pouco da tradução em espanhol ao imaginar o pobre molusco sendo sugado por aquele equipamento da foto, coitado, com os tentáculos ainda para fora, debatendo-se. Ao retirá-lo da caixa, conferiu o manual, montou todos os tubos e foi em busca de um local propício para o primeiro teste.
Chegando à biblioteca - que não tinha nenhum livro novo porque Leopoldo dizia que livro novo era um gasto desnecessário, uma vez que todos se acabariam no alfarrabista da praça central - ela ligou o aparelho na tomada e, de repente, viu-se fazendo desaparecer as nuvens espessas de pó. Camada por camada, retirava o pó de cada prateleira, cada coleção incompleta de enciclopédias (era muito difícil completar alguma comprando apenas as descartadas) e, também, do chão, do ar, de todo o lugar. Quando desligou o aspirador, viu-se em um novo ambiente, verdadeiramente limpo, leve.
Tomada por um novo ânimo, com um brilho incomum nos olhos, partiu para o quarto do casal e ligou novamente o aspirador. Retirou todo o pó do chão, do ventilador de teto, da cabeceira e da penteadeira. Quando foi tirar o pó do criado mudo, uma foto mal presa no porta-retratos acabou puxada para a boca do aparelho. Assustada, após duas tentativas com o pé, abaixou-se, desligou o aspirador e a foto caiu. Ao ver que se tratava de uma foto do marido na viagem de negócios que fez sozinho a São Luis e Salvador, programou o aparelho para a força média e mirou o tubo novamente para a foto. Esta dobrou-se, estalando, e rebateu sonoramente em cada curva do cano até pousar silenciosamente em algum lugar distante.
Surpresa com a potência do aspirador, ela abriu mais ainda os olhos brilhantes, sorriu e apontou a boca do tubo para o enxoval que jazia sobre a cama - com as iniciais dele e dela bordadas em ponto e cruz. Sugou toda a roupa de cama, incluindo os travesseiros. Depois, entre uma gargalhada e outra, aspirou todos os porta-retratos do criado mudo e as roupas e sapatos do armário. Seguindo para o banheiro, aspirou as escovas de dentes, as toalhas de banho - igualmente bordadas – e, por fim, os óleos de banho e perfumes que ele nunca passou nela ou por ela.
Do banheiro ela seguiu para a cozinha, ainda mais animada – quase pecando pelo excesso - e absorveu primeiro os eletrodomésticos, depois o jogo de talheres em prata - presente de casamento, ainda na caixa, as taças de vinho - que nunca foram utilizadas porque vinho era muito mais caro do que cerveja - e os velhos copos de requeijão. No entanto, quando ela virou o tubo em direção aos pratos, aquele que estava no topo da pilha passou por cima dos outros e espatifou-se no chão. Atraído pelo barulho, o velho Leopoldo levantou-se da poltrona e foi até a cozinha; Deu de cara com ela, com aqueles olhos brilhantes e esbugalhados, assustadora e excessivamente animada.
Quando os policiais chegaram, convocados pelos vizinhos que estranharam a barulheira naquela casa costumeiramente silenciosa, encontraram-na sorrindo, de olhos bem abertos, realizada e sentada em um canto da casa vazia - de móveis e traumas. Os braços e pernas do velho Leopoldo, todo desconjuntado, ainda debatiam-se em um último esforço.








sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A Estátua sem Rosto

Joaquim Bispo



 O que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus pés era apenas:

(…) omingo, 5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…).


Foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a proximidade de eleições e algum conhecimento do que acontece em tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos, apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam inaugurações.
Ribeira de Canas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do avesso havia dois meses. Máquinas e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento, repavimentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido anunciadas, uma das quais a implantação de uma estátua do rei D. Moniz – de que falava o folheto – na praça com o nome do monarca. Este rei, que viveu nos séculos XIII–XIV, está sepultado no mosteiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Canas, o que constitui um motivo de orgulho para a cidade.
Alertado pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local, assim que ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia de inauguração, estava presente uma representação da Câmara Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano e ao que ele representou para Ribeira de Canas. A seguir, falou a presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça ali instalada, após o que destapou uma escultura em bronze, de uns dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.
Imediatamente, alguém, que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem alta: «Senhora presidente, o povo não está contente; o rei D. Moniz não tem cara nem nariz»  o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso, estava relativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.
A situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do autor, mas este manteve-se impávido. A vereadora, sentindo-se, talvez, em xeque, ou achando boa a oportunidade para um esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz, e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o manto majestático; a cruz da ordem de Cristo, por si fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e trinta poemas; além duma mata estilizada a seus pés, reconhecida a sua importância na instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.
A cerimónia terminou pouco depois, altura em que os repórteres dos jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista. Aproximei-me, também, e ouvi este diálogo:
– Mestre Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?
– Tem um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora – explicou o escultor. – Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito da estilização. Para lhe fazer as feições, tinha de, também, aplicar os outros elementos semelhantes aos naturais, mas, se vir a minha obra, não é esse o meu estilo. As minhas peças procuram captar a essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou temas que, muitas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que representam. Não sei se me fiz entender.
– A opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de não existirem imagens do rei? – insistiu o repórter.
– Não – continuou o artista –, há imagens que, sem serem da época, são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e os homens têm maneiras diferentes de encarar os mesmos assuntos. Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adjudicada a estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente de um escultor que fez parte do júri de seleção dos vários projetos apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha do projeto de João Cutileiro. Em confronto, estava um projeto que retratava D. Sebastião, tal qual aparece na obra do pintor Cristóvão de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador da arte que fez a defesa do projeto advogou veementemente a representação realista, dizendo qualquer coisa como: «Aquilo que admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação naturalista está sempre a reaparecer na história da arte, mesmo quando pensamos que está morta, extinta, e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados, como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Então, não interessava o real, terreno, mas sim o divino, supraterreno. A imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na Renascença, reapareceu a “mimesis”, qual Fénix inextinguível, a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A sua exposição, que pretendia demonstrar que a representação realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida pelas pessoas – como parece que as vossas reticências ilustram – cavou fundo no grupo de decisão.
– Mas, afinal, ganhou? – interveio o repórter.
– Não ganhou porque o meu mestre fez uma exposição não menos brilhante, em que defendeu que o realismo genuíno não existe, que mesmo o celebrado David de Miguel Ângelo tem proporções alteradas para realçar certos simbolismos – uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para liquidar Golias – e que vivemos rodeados de significantes, desde a linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de pedra rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino ingénuo e sonhador – que é o que na verdade foi – do que o combatente que a desmedida armadura e o enorme elmo a seus pés podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar, talvez, em repetir os feitos heroicos de um David, derrubando filisteus, desta vez os mouros de Marrocos. Não podia ser mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.
– Então, quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o carateriza está representado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?
– Exatamente! Estes são os carateres com que se enuncia "el-rei D. Moniz".
Não sei se os repórteres ficaram convencidos, mas isso também não se lhes exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iriam escrever e se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao grosso da população que não tinha estado presente.
Na verdade, na manhã seguinte, não encontrei qualquer jornal local no café que frequento, mas surpreendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho que, por ter estado também na inauguração, tinha formado uma opinião sobre o assunto.
– Mas você diz que aquilo está bem feito? – protestava agastado o Sr. Albano.
– Um espetáculo! Veja bem, Sr. Albano, o rei D. Moniz está como está porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores. Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus, os que lhe estavam sempre a atirar flechas. Foram derrotados, mesmo tendo do lado deles a Félix, que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por “pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi a manápula do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr. Albano?

***

(Nota: Ainda que baseada em esculturas reais, esta é uma obra de ficção.)






quinta-feira, 24 de outubro de 2013

CRÔNICAS LONDRINAS – PARTE I

AEROPORTO HEATHROW

    ― Qual o propósito de sua vinda à Inglaterra?
    ― Uma conferência.
    ― Conferência de quê?
    ― Escritores.
   Nisto a funcionária da Imigração olhou-me desconfiada. Com toda a razão. Escritores reunidos? Perigosíssimo. Risco de bomba, até. E para certificar-se de que eu não representava nenhuma ameaça ao bem-estar do povo britânico, exigiu:
    ― Mostre-me alguma prova de que o senhor é realmente escritor.
   Temi. Uma vez que pertencemos a um grupo de seres inclassificáveis, não me ocorreu, de imediato, nenhuma resposta plausível a essa pergunta. Ainda assim, resolvi arriscar:
    ― Tenho... um livro... aqui, comigo... mas...
    ― Mas o quê? – falou-me num tom intimidador.
    ― Está em Português.
   E logo percebi que fora um erro mencionar o idioma. Isso aumentou-lhe a irritação. Português? Não havia uma língua, digamos, mais economicamente desenvolvida para escrever? – ela deve ter pensado no momento. Não obstante, decidiu ser complacente:
    ― Tem sua foto no livro?
    ― Tem.
    ― É sobre o quê?
    ― Contos curtos.
    ― Não é romance?
    ― Infelizmente, não...
  Mostrei-lhe, então, minha singela obra. Ela folheou com um ar de desdém e, em seguida, devolvendo-ma, continuou o interrogatório:
   ― Pretende ficar aqui quantos dias?
   Dessa vez, senti-me um pouco mais aliviado. Se ela já estava me perguntando sobre o período de estada no país era porque, pelo menos, eu poderia entrar. E, sorrindo, respondi: 
   ― Quatro. No sábado, retorno.
   Outro erro. Não se deve sorrir para um funcionário de Imigração. 
   ― Por que o sorriso, senhor?
   ― Nada, não, senhora... – disse-lhe balbuciante. – Só estou feliz, pois sempre sonhei visitar a Inglaterra...
   Ela permaneceu olhando-me, séria. E, por fim, torcendo o nariz, liberou-me; não sem antes atirar-me esta:
   ― Espero que da próxima vez o senhor traga um romance... em inglês! Bem-vindo, senhor. – e, devolvendo-me o passaporte carimbado, fez sinal para que eu caminhasse rápido.
  Obedeci, claro, querendo livrar-me logo daquilo e retirar minha bagagem. E, enquanto caminhava, juro, ainda olhei para trás, temeroso de estar sendo seguido.
   Sei lá... E se existisse alguma lei inglesa proibindo a entrada de microcontistas e a polícia já havia sido acionada?
    Da próxima vez – disse comigo, enquanto acelerava o passo –, levaria um romance publicado. Em inglês.

***





quarta-feira, 23 de outubro de 2013

À luz do passado

Ele olha distante. A porta esta aberta. Olha através dos óculos velhos, com seus olhos cansados. Olha para aquele espaço aberto, mas enxerga além. A luz do sol invade o ambiente, mas não chega até ele. Ele esta sentado em sua cadeira, a luz do sol não os alcança. Esse sujeito gosta buscar o sol, de olhar para fora, de olhar para aquele mundo que ainda pode ser descoberto. Aquela luz é como uma esperança. A espera que algo aconteça, que as coisas voltem a ser como antigamente, que voltem ao normal. O tempo é curto. Daqui a pouco, a noite chega. Junto com o sol, a esperança se despedirá. A noite não é mais um lugar de sonhos. Há anos que não tem sonhos enquanto dorme. Apenas pesadelos, medos e suas angustias lhe visitam a noite. 

Talvez seja por isso que acorda cedo. Entre quatro horas e quatro e meia, ele sai da cama. Parece querer esconder-se na penumbra da madrugada, mas não é nada disso. O que deseja mesmo é prolongar os dias, prolongar o brilho do sol. Ou simplesmente lembrar de quando tudo era do jeito dele. De quando, acordava as quatro da madrugada, disposto, para trabalhar. ‘Levantar cedo é sinal de saúde, sinal de força’ repete para si mesmo todos os dias. Além disso, é durante o dia que pode sonhar e revisitar seus sonhos sem os temores da noite. 

Ele tem 65 anos e tudo aconteceu tão depressa. Hoje, entende quando seu pai lhe dizia que a vida passava rápido. Só lamenta não ter percebido antes. Demorou tanto para entender que a vida se vive, enquanto acontece, e não quando o dia chegar. Não há dia para se viver, não há dia para ser feliz. 

Há dez anos, sofreu um derrame. Esta lúcido, mas seu corpo não é o mesmo. Escuta pouco, fala bem e se movimenta com dificuldades. O derrame deixou suas marcas na mão e na perna esquerda,  as quais ele não consegue comandá-las. Mas as cicatrizes maiores estão onde ninguém pode vê-las. Todo dia é uma vitória: todo dia precisa provar para si e para os outros que ainda é gente, que ainda é capaz de ser independente, mesmo sabendo que não é. Para algumas coisas é tão dependente quanto a sua esposa, que morreu há 15 anos. 

Ela sofria. Ele a via sofrendo, gritando de dores. Ele sofria por ser incapaz de fazer qualquer coisa para aliviar a dor dela. Ele a amava e esse sentimento aumentava o sofrimento, aumenta a dor de ambos. No final ela não conseguia se alimentar, se vestir ou se banhar sozinha. Tiveram que contratar alguém para alimentá-la, vesti-la e banhá-la. Às vezes, ele a banhava, lhe alimentava e lhe vestia, mas não gostava de fazer essas coisas. Não gostava de ver nela aquele olhar. Um olhar de derrota, um olhar de vergonha. Um olhar de algo mais que antes não conseguia entender. Ela tinha perdido tudo, apenas vivia para entender e perceber tudo que tinha perdido. Mas não se tratava apenas de perda. Ele se pergunta se ficará também como ela, dependente dos outros, dependente de tudo. 

Ele gosta mesmo é de sentar-se perto da porta da casa. Aquela porta tão diferente de quando a esposa, seu grande amor, ainda era viva. Ela não vira as últimas mudanças na casa. Ele não queria mudar, mas os filhos insistiram. Ele aceitou. ‘Mas para que, todas essas mudanças?’. Diziam que era para ter mais conforto na vida. Ele não queria mais conforto, ele queria ter novamente aqueles domingos, quando fazia churrasco e bebia com a esposa e com os filhos. Naquele tempo, quando a casa não tinha churrasqueira. Faziam o churrasco com algumas pilhas de tijolos para posicionar os espetos. Naquela tempo, a familia não bebia cerveja. Não tinham dinheiro. Cerveja era muito luxo, bebiam caipira. A cachaça era mais barata e podiam misturá-la com água. Os limões eles pegavam da árvore do vizinho. Não tinham nada, mas tinham um ao outro. Eles tinha tudo. 

Agora, ele já não tinha mais ninguém. Vivia com uma pessoa estranha para que arrumasse a casa e cuidasse de algumas coisas para ele. Ninguém mais aparecia. Ele aprenderá a ser só, a viver naquele mundo de lembranças. A sonhar acordado. Olhar o sol lhe dá forças, parece que enxerga mais na claridade. Enxerga a luz. E lembra de quando fazia sol e ele se divertia. Não tem muitas lembranças dos filhos, apenas dos churrascos de domingo. Eles tiveram três meninos. Nunca soubera direito como se relacionar com os filhos. A mãe deles é que cuidava da educação. Ela sempre cuidara de tudo e de todos. E no final, não tinha ninguém para cuidar dela. 

Às vezes parece que é mais dor para ele viver agora, do que era para ela, quando estava dependente. Talvez o olhar dela não significasse apenas vergonha e derrota, talvez fosse também de gratitude por ele estar ao lado dela. E talvez, quem sabe, o sofrimento dela era resistência para ficar um pouco mais ao lado daquele que ela amara tanto; talvez ela quisesse mostrar-lhe que não estava derrotada, estava, de certa maneira, feliz, apesar do sofrimento. Ela tinha o grande amor da sua vida ao seu lado. Quando tem essas lembranças, ele quer chorar. Se ninguém esta olhando, ele deixa uma ou outra lágrima escorrer pelo rosto e lembra-se do seu amor sem culpa. Se alguém esta presente, ele segura o choro e coça o olho. 

Os dias de sol são os dias bons. Os dias frios são nublados e os dias de chuva não tem sol. Não há esperança que alguém venha lhe visitar ou que ele possa tentar caminhar um pouco pelo rua. Tudo fica estranho e é como se a morte estivesse próxima. Sente mais frio agora do que quando era novo. Nesses dias as coisas são piores. Nesses dias ele sente mais ódio e raiva do que nos outros. 'Por que se faz frio se é verão?' Não entende as mudanças no mundo, as mudanças na vida. 'Por que as coisas tinham que mudar? Éramos tão felizes'. Ele quer chorar, mas o empregado esta por perto. ‘Homem não chora’. Então se recolhe no quarto. 


No quarto, deixa rolar uma ou duas lágrimas. Algumas pelo sofrimento, outras por vergonha, de ser homem e estar chorando. Ele está mais só do que nunca agora, está em seu mundo, com suas angustias e seus fantasmas. Ele não quer ser um estorvo para ninguém e aquele choro vem novamente. E sente mais vergonha por querer chorar. Não consegue entender como as coisas mudaram tanto, em tão pouco tempo. Ele sente falta dos filhos, mas não liga para eles. Não quer atrapalhar. Ele não entende por que eles lhe abandonaram. As vezes fica meses sem saber notícias deles. 'É triste ficar velho e perceber que ninguém se importa consigo'. 'é triste ficar velho e sozinho'. Para minimizar a dor, ele abre a janela e olha para o sol. Então ele se busca na memória aqueles domingos. Lembra do seu amor, lembra de sua juventude.  

Ele tinha força, ele era forte, mas hoje não, mal consegue levantar-se da cadeira. Nos dias bons, caminha como um tartaruga, mas sem a sua sabedoria; nos outros arrasta-se como uma lesma. Mas no passado ele corria sob duas rodas, mais do que esse jovens de hoje correm. Relembra coisas, como naquela vez, em que percorreu 100Km de bicicleta apenas para visitar a casa de uma menina. Ele amava aquela moça. Conta até hoje essa história para quem quiser escutar, embora ninguém queira escutá-lo. Ele voava de uma cidade para outro, apenas para ver a sua amada. Não tinha essas modernidades de celulares e computadores. Ele gostava do jeito que o mundo era. Não gosta do jeito que o mundo é. É tudo tão triste hoje. Não gosta do jeito como as pessoas são sós. Não gosta como ele é sozinho. 


Esperava uma outra vida, esperava, na aposentadoria viajar com a esposa, mas agora não tem esposa e nem força para viajar. Todos os sonhos guardados em uma gaveta do coração. E já é tarde, tarde demais para sonhos. Na rua o sol se põem, seu brilho se esconde com uma rapidez. É a noite que se aproxima. E não há sonhos na noite. 





terça-feira, 22 de outubro de 2013

A revolta de Maria

Qualquer semelhança com um clássico do cinema não será coincidência.

Maria é uma mulher real, com dilemas comuns e sonhos, um punhado de sonhos, simples, fáceis de concretizar. Maria quer o básico: ser feliz. Maria quer o básico através da tríade convencional: casar, ter filhos e estabilidade (financeira, leia-se). Em momento de ousadia onírica, Maria detalhou para si perspectivas: queria casar com um homem moreno-forte-bonito, ter dois filhos, um casal, o menino primeiro, e uma casa arejada, com suíte e churrasqueira, um carro de quatro portas, e grana suficiente para viajar para Camboriú no mínimo uma vez por ano, a renovar lua de mel. Maria também queria parecer com atrizes de novela: ora ter cabelo liso, longo e louro, ora crespo graúdo, castanho mel e Chanel médio, ora usar dourado e pedrarias, ora usar prateado e pingentes solitários, e ser magra. Sempre. Não precisava ser, assim, muuuuito magra, só o suficiente para entrar no jeans 36 da adolescência, que terminou faz pouco.

Digamos que Maria tenha conseguido realizar em parte o punhado de sonhos simples que tinha e segue tendo. Maria namorou, noivou e casou com Charleson, que é demais da conta: tão moreno que no verão dá para desenhar à unha em sua pele bronzeada, tão forte que concentra energia na região do abdome e tão bonito que sobra formosura nas fotos do casal. Pois Charleson é comerciante, autônomo, de sucesso. Vende por sua conta lenços, meias de lã, cedês e devedês copiados, calculadoras, relógios de pulso digitais, bolsas, carteiras, canetas, baralhos e mais um monte de coisas importadas. O dinheiro chega. A renda de Charleson paga o essencial da família e os luxos da esposa, normalmente na lojinha de acessórios preço-único. E eles já têm o primeiro filho, o Ricardinho, com três anos de pura traquinagem, cheio de saúde e gosto por futebol.

Maria preferiu dedicar-se à casa, ao marido e ao filho, trabalhando diária e incansavelmente pela concretização do sonho simples de ser feliz e estava praticamente lá. A irmã para Ricardinho já está encomendada para daqui cinco anos, os passeios para o Rio de Janeiro e a Bahia, além de Camboriú no fim do ano estão marcados, para onde vão no carro próprio zero quilômetros, não falta nada, pensa. Maria enumera, faz listas, risca itens e seu cálculo não fecha. Falta ela. Obesa, cabelos oleosos com três tons de cor, chinelo e meia, meia barra de chocolate na mão esquerda, um cesto de roupas para estender na corda, outro para dobrar e guardar nos armários.

Maria investe em si, mira e atira, mas erra a pontaria: escolhe o exemplo feminino a seguir na novela das oito, assiste Bem Estar e o quadro Medida Certa do Fantástico para aprender a lidar com as estrias, as gorduras localizadas, os joanetes e o cocô, consome livros de maquiagem como se a decoração do rosto fosse acontecer pela leitura, compra roupas na seção teen e estoca alimentos integrais na promessa de voltar ao peso ideal do corpo antigo. Faz dieta da proteína, do carboidrato, do iogurte, da sopa, do sol e da lua e se flagra comendo pão com mortadela de madrugada, escondida do mundo, em quem bota a culpa quando não consegue perseverar.

Maria é uma perseguida. Todo mundo acha que ela é gorda porque tem bochechas no quadril, acha que ela é feia porque tem o nariz de batata e cachos indefinidos, acha que ela não é boa mãe porque deixa o Ricardinho ver a Barbie na tevê, acha que ela é uma infeliz porque não tem profissão. Só falta a Maria parecer com a protagonista da novela para a felicidade estar completa, mas para o mundo todo, não. E quando o mundo todo diz que Maria não consegue, não tem, não pode, não é, aí é que ela se enfurece e se entristece para valer. Então Maria come. Porque comer alivia, acalma, devolve Maria à Maria.

Foi em meio a mais um intenso período de restrição alimentar que a revolta de Maria se deu. Ventava como nunca na varanda, naquele entardecer, fazendo os cachos indefinidos de Maria soltarem do coque frouxo e enredarem-se uns nos outros, misturados aos restos de capim cortados por Charleson, pela manhã. Algo subindo por dentro aquecia o ventre de Maria, que rumava para a horta familiar, cheia de alfaces, couves e rúculas verdinhas. Não era mais a qualquer a quem todo mundo inquiria, a Maria era um gigante em batalha, uma lança em curso, um rifle pronto ao disparo. Estava a dois passos do cercado quando decidira, por fim, tomar na mão a própria vida e mudar de rumo, mudar de sonho, mudar seu mundo. Maria atirou-se de joelhos sobre as couves e arrancou molho por molho, puxou salsinhas, cenouras, rabanetes e nabos pelos talos. O quente da barriga saiu pela boca, num urro ardido e prolongado:

- Por Deus eu juro! Por Deus, eu juro, eles não vão acabar comigo e quando terminar, jamais sentirei fome de novo. Nem eu nem minha família. Mesmo tendo que matar, mentir, roubar ou trair, eu juro por Deus, jamais sentirei fome novamente!

Suja de terra, semblante fechado, Maria juntou o resultado da colheita intempestiva e foi para a cozinha. Haveria um banquete – de saladas – para o jantar.






segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Jennifer

Não sei manejar bem as palavras, seu moço. Sou de origem humilde, minhoca da terra, lá de Campos, o moço conhece? Zona rural, uma desgraceira só. Foi a mãe do seu Benito que me trouxe pra cá. Prometeu estudo, salário, quase vida de princesa. Eu só tinha em troca que cuidar dos netos dela. Babá. Tudo mentira da grossa. Trabalhei que nem moura. Seu Benito me disse uma vez que a mãe pagou quinhentos contos pros meus pais na intenção de me levar. Uma coisa, comprada feito uma galinha de fundo de quintal. Ninharia, né? Idade? Eu tinha quinze, foi há algum tempinho sim. Cheguei aqui, cidade grande, aqueles prédios arranhando os céus, depois eu soube que o povo daqui chamava assim mesmo: arranha-céu. Bonito, não? Fiquei encantada e achei tudo uma festa. Tava pensando em progredir, terminar a escola, fazer curso de computação, qual! Mal botei meus pés nessa terra e já começou a exploração. Dona Paula, mulher do seu Benito, não queria nada com a lida. Vivia de academia, a malandra. Ficou com um corpo lindo, a danada. Esculpida. Parecia uma estátua dessas de mármore que a gente vê nos museus. Não, eu nunca entrei em um. Já vi em filmes na TV e nos filmes os museus são cheios de estátuas com o corpo da dona Paula. Eu cuidava das crianças. Duas pestes, sem um pingo de educação. A mãe não deu, não tinha tempo, tinha que “malhar”. Lá em Campos a gente só malha Judas em Sábado de Aleluia. Tá rindo? Você é engraçado, seu moço. Mas, como eu tava te falando, se fosse só tomar conta das pestes eu até que aguentava, mas dona Paula me colocava pra arrumar casa, cozinhar, levar o cachorro pra passear, dar banho, fazer mercado. E ela na malhação. Salário? Cinquenta pratas por mês, um cala boca. Folga? Vez por outra, quando dava na telha deles.
Quando eu tava com um ano de casa e ia levando a vida do jeito que Deus queria, o seu Benito começou com umas ideias estranhas pra cima de mim. Começou quando ele perdeu o emprego e passou a ficar mais em casa. Sempre que dona Paula ia malhar e eu tava na cozinha ele achava uma desculpa para entrar lá e como a cozinha era apertada, engraçado né, os arranha-céus são tão grandes por fora e uns ovo por dentro, na roça a gente vivia em casa grandona, como a cozinha era apertada ele passava e se encostava em mim, com umas más intenções que o moço já sabe. Eu fugia do cabra feito diabo da cruz. Diabo tem medo de alho também, sabia? Vi num filme. É Vampiro? Mas eu escapava. Ele disse que eu tava fazendo doce, que mais dia, menos dia, alguém ia me arrancar os tampos mesmo e que fosse com um cara perfumado como ele.

Pois é, moço. Aturei quase dois anos esse negócio. Se dona Paula desconfiava eu não sei. Só sei que ela tinha outro, ouvi uma vez ela toda se derretendo no telefone, pedindo pra voz do outro lado chamar ela de cadela. Seu Benito devia saber, o corno manso. E acho que ele queria se vingar de dona Paula comigo. Ela era bonitona e eu esta porcaria que você tá vendo. Sou não, me acho feia, mas fico agradecida. O moço além de engraçado é gentil. Mas deixa eu te dizer como foi que aconteceu. No dia que eu fiz dezoito anos e virei dona do meu nariz, piquei a mula e fui embora. Só de vingança, levei o cachorro pra passear, deixei ele fugir e botei pé no mundo também. Seu Benito gostava mais do Frank, era o nome do cachorro, do que dos filhos dele. Então eu soltei o Frank e vim direto pra cá. Já tinha visto o anúncio no jornal e só não vim antes porque era de menor. Madame Paula, é, o mesmo nome da minha ex-patroa, me recebeu muito bem e me deu um banho de loja. Leiloou o meu cabaço por quinhentos contos. Não ria não, seu moço, recebi metade na empreitada. Tô no lucro. Seu Benito ia me comer de graça, não é verdade? Agora eu tô aqui. Ao menos eu me divirto e ganho um bom dinheirinho. Meu nome? Jennifer. Claro que é de guerra mas, agora que o moço provou dos meus chamegos e, pela cara parece que gostou, quem sabe volta pra repetir, vira cliente e eu digo o nome que tá na certidão de nascimento?





domingo, 20 de outubro de 2013

Falta de sensibilidade

Viviane chegou tarde no flat do namorado, ou namorido, ou eterno noivo, sei lá,
esses nomes que classificam relações que se arrastam, semissérias e semi “vai levando”,
onde os casais moram em casa separadas e vivem para lá e para cá com sacolas entulhadas
de mudas de roupas ligeiras e pertences utilitários, dependendo do que se vai fazer à noite.

E naquela noite, mochila a tiracolo, cabelos soltos ainda cheirando a xampu de maçã,
vestidão de verão, sandália rasteira em seus pezinhos bem feitos e animados,
Vivi tinha saído às pressas de uma happy hour com o pessoal da academia,
onde à terceira caipivodka de frutas vermelhas percebeu que era hora de ir embora.
Pobre caipivodka. Levou uma culpa que não era sua.

Na verdade, o encontro tinha sido perturbador e Vivi precisava sair antes que uma surpresa
acontecesse, mesmo que inconscientemente muito bem vinda. Estava esbaforida e encalorada.
Ao enfiar a chave na porta, percebeu um silêncio no apartamento. Nada de música alta ou televisão
ligada, indícios de que Lourenço já estaria dormindo ou teria saído não se sabe para onde.

Tirou as sandálias, entrou pé ante pé. Fez uma varredura pela sala e supôs, pelas latas de cerveja
na beira do sofá, que o namorado, ou namorido ou eterno noivo estaria derrubado. E assim
o encontrou de bruços na cama, short largo e sem camisa, exibindo a meia luz seu dorso seminu,
onde suas escápulas abertas e alinhadas suscitavam uma massagem relaxante e consequente.

Vivi levantou o vestidão e tirou a calcinha. Abriu as pernas, montou na lombar de Lourenço,
descendo seu tórax como uma bailarina agradecida, beijando a nunca do namorado,
roçando contra aqueles quadris morenos a pelúcia suave do seu sexo úmido de bordas e
detalhes intumescidos, pincelando seus seios de bicos rijos e delicados sobre as costas
másculas ali dispostas, dedilhando a mão direita em direção ao interior do short,
bem na parte encostada nos lençóis. Encontrou o que queria.

Os movimentos de mão e pélvis se aceleraram progressivamente, Lourenço soltou um gemido
ressonante. Embora dormisse e continuasse de bruços, sua anatomia reagiu ao estímulo
como por instinto. E Vivi prosseguiu o passeio, ocupando sua mão com um calor cada vez
mais pulsante e receptivo, até que - surpresa fora de hora - sentiu um transbordar quente,
espesso e melado entre os dedos, seguindo de um suspiro derradeiro.

- Pô, Lourenço. Por que você não me esperou?
- Esperou o quê, Vivi? Estava com sono. Aliás, estou com sono. 

Viviane virou-se na cama, mal enxugou a mão no lençol e mirou o teto.
O lustre estava apagado, mas as luzes dos carros esparsos na rua entravam pelas frestas
da persiana produzindo um desenho animado de sombras que não a deixava dormir.
Pobres luzes, pobres frestas, pobres sombras, pobre desenho animado. Levaram uma culpa injusta.
Na verdade, Vivi estava perturbada com a mistura de sensações ocorridas no happy hour,
muito além das frutas vermelhas espremidas na vodka. E de olho pregado no teto, tomou coragem,
cutucou Lourenço.

- Lourenço, acorda. Precisamos conversar.
- Hummmmpf.
- Lourenço, é sério, é importante.
- Hummmmpf.
- Lourenço, me ouve: está acontecendo uma coisa comigo. 
Começou como brincadeira, a coisa foi tomando jeito e hoje eu percebi que não é brincadeira não.
- Hummmmpf.
- Cheguei cheia de tesão, tentando espairecer, mas confundi tudo, acho que tentei usar você, 
mas não consigo pensar em outra coisa…

Lourenço sentou-se na cama. Passou a mão nos cabelos desgrenhados,
esfregou olhos e testa como uma esponja numa superfície encrostada.

- Vivi, que falta de sensibilidade! O Campeonato Brasileiro pegando fogo, 
meu time à beira do rebaixamento e você numa semana dessas querendo discutir a relação?

Viviane respirou fundo. Vestiu a calcinha, o vestidão de verão, calçou a sandália rasteira.
Foi ao banheiro, lavou mãos ainda com resquícios grudentos, passou sabonete no rosto e um batom.
Paralisou um instante diante do espelho, ajeitou o cabelo e gostou do que viu.
Pegou a mochila, deu a última espiada no apartamento. Despediu-se da sala, do quarto em penumbras,
do dorso de Lourenço, que voltou a dormir de bruços, e das escápulas sem mais sentido.
Simbolicamente deixou a chave na mesinha ao lado do sofá. E saiu pela madrugada cor de rosa,
pensando, sentindo, com vontade de chorar, com vontade de ligar para as amigas.
Não sabia direito se estava triste com a certeza de um fim. Ou feliz pelos caminhos que se abriam.





sexta-feira, 18 de outubro de 2013

FÁBRICA DE SONHOS (A propaganda é a alma do negócio)

Otávio Martins

Cada sonho! Claro que era o Carretinha. “Os olhos são cruéis”, disse certa vez o educador e escritor brasileiro Rubem Alves. Os olhos do Carretinha não os são. Do jeito que o Carretinha apareceu no meu sonho, acho estranho; eu mesmo, estranho, dono de um circo às vésperas de sua estréia. Ele, como vendedor de material de propaganda, exclusivamente, para circos. Aquele olhar faiscante, incisivo. Nunca escancara o seu sorriso, talvez por medo de perder a embocadura. Conheci o Carreta tocando flauta doce. Agora, parece, é só transversal.
   Custei a entender foram os cartazes, os quais estavam acomodados na extensão de um caibro de madeira, dobradinhos; ao modo dos vendedores de frutas. Já prontos; vários.
   O “vendedor” explicava, detalhadamente, ao que se destinavam cada um deles. Cartaz pra tudo que era ocasião. Sem compreender direito, argumentei e, a seguir, fui fazendo-lhe algumas perguntas tipo o circo nem estreou, como que eu iria aproveitar aqueles cartazes que ele oferecia já impressos?
   - Olha, no mundo do circo existem coisas que são definitivas e, mais, ainda, obrigatórias.
   Fui escolhendo alguns e logo já avisando: Ainda nem tenho dinheiro para pagá-los... Não se preocupe, interrompeu-me o vendedor (pra mim, o Carretinha), depois a gente acerta. Sinceramente, deu-me a impressão que ele nem se importava com o resultado financeiro; queria, sim, pareceu-me, me convencer da necessidade de que eu usasse os seus cartazes ou que seguisse os seus conselhos. Nada mais.
   Na noite da estreia, dez, somente dez pessoas na plateia. Fui direto ao assunto, precisava desabafar, mais, reclamar. Sua resposta veio de pronto:
   - Você tem ideia, de quem sejam aquelas pessoas do seu público desta noite? Seu César e a sua filha, a Maria Antonieta, já viu a carrocinha de pipocas deles? É linda! A perfeição, delicadeza e destreza com que a Maria Antonieta trata e ensaca as pipocas, só vendo, é de se tirar o chapéu. O seu César é tido como o maior pipoqueiro de todos os circos. São aqueles toques mágicos da Maria Antonieta que deixam as pessoas com água na boca. Mesmo sem querer, a gente consome um saquinho pequeno, nem que seja só pra provar. As pipocas saltam, dançam, quase voam à frente dos fregueses. As pipoqueiras do seu César são incríveis!
   Continuava o meu interlocutor: A dona Lindalva é uma artesã de mão cheia. Os colares, embora simples, tipo havaianos e aqueles chapeuzinhos de papelão, no formato de cone, todos se sentem importantes quando os estão usando. E, olhe, ela é uma artista. Você reparou como ela assistia entusiasmada ao show do seu elenco? Sabe muito bem que o espetáculo do seu circo é ótimo. O que será para ela, também. Os reco-recos são o Tonico, seu marido, quem cria e os confecciona. Sujeito habilidoso em trabalhos manuais; principalmente em madeira. Aí estão, dois objetos simples, mas que irão ajudar a dar vida aos espetáculos do seu circo; Seu Chico sabe como ninguém, organizar verdadeiros “exércitos” de baleiros. Seus integrantes sobem e descem as arquibancadas com especial desenvoltura. Vendem muito mais guloseimas que quaisquer outros. Doces, chocolate caseiro, chicletes, confeite, rapadurinhas, balas de goma coloridas. A maior parte daqueles doces é feita pela sua mulher, a prestigiada doceira aqui dessas bandas, a dona Lucinda;
   Você já deve ter visto, nalgum show por aí, aqueles isqueirinhos. Não é chama, não, são pequenas luzes de tudo quanto é cor, tornando os espetáculos possuídos pela magia da dança. Transformam o ambiente, desde as arquibancadas, num verdadeiro balé. Aquela cara de satisfeito do Dias será que é de graça?
   E eu, pensa que eu não entendo de circo? A sua equilibrista, aquela do arame armado no meio do picadeiro, como na música do João Bosco e Aldir Blanc, sabe, perfeitamente, que o show tem que continuar. Impecável!;
   Os palhaços, além de muito engraçados, bolaram uns números completamente novos nessa modalidade. Ainda, por cima, com música e dança. Envolventes. As crianças – e os adultos, também – irão adorar;
   O maestro, que perfeição! A sua competência e alegria, dá pra se notar, passa pra toda a banda. Por isso é que dá vontade de dançar. E, cada vez estará melhor, mais afinada e mais entrosada. Além do que a música é infinita. Não há como mensurá-la;
   E o estalar do chicote da domadora, é único. Só ela sabe fazer aquilo. Até os animais mais ferozes se tornam calmos, mansos e dóceis. Viu aquela senhora de preto, sozinha, de vestido longo? Ela confecciona e vende pequenos chicotes e, normalmente, imitando os dos domadores. Estava, visivelmente, encantada. Certamente vislumbra bons negócios. Assim como a domadora, aquela senhora procura fazer com que o chicote valha ou sirva mais pelo seu estalar, do que se poderia imaginar no papel e ação de um elemento corretivo;
   Eles é que dirão por aí que o seu circo é ótimo. O Maior Espetáculo da Terra, talvez vão dizer. Além desse boca a boca, meus cartazes falarão por mim. Então, você será reconhecido como um importante dono de circo. É só esperar e confiar no que estou lhe dizendo. E não precisa agradecer, não, o mérito é todo seu.
   E nem citou os malabaristas, os acrobatas e trapezistas. Tampouco o Globo da Morte do circo dos meus sonhos.
   Tudo invencionice, ou mentira, como diria o poeta Manoel de Barros. O meu circo foi um desastre. Não tinha pipoqueiro algum. A minha imaginação foi quem transformou aquela mulher que fazia ponto nas portas dos circos que passaram por ali, numa artesã de mão cheia. A domadora e seu chicote, ou o estalar do seu chicote, nunca existiram; nenhum animal ou fera a ser domada. No Globo da Morte, as motos não decolaram, ficaram naquele vai e não vai nervoso da partida. Quase aconteceu um incêndio na noite de estréia do meu circo. Sabem o que os palhaços fizeram? Sorriram. Ficaram, simplesmente, alegres. Que banda, que nada. Som mecânico foi o que eu pude conseguir para animar a estreia do elenco.
   Até a imagem que eu criara, a partir de uma estrofe, parece que o nome do compositor é Batatinha, lá da Bahia, que o meu primo, Octacílio Amaral – violonista – cantarola, às vezes: “todo mundo vai ao circo/menos eu, menos eu/como pagar ingresso/se eu não tenho nada/fico de fora, escutando a gargalhada...”, perdeu o seu sentido. Pelo menos depois daquela estréia.
   O sonho, a meu ver, é quase como uma grande mentira, a qual desejamos transformá-la em realidade.
   Foi a última vez que encontrei com o Carreta.





quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Galo





                         Havia no sítio um grande galo que me acordava todas as manhãs. Seu canto era forte que ecoava por todos os lados. Não somente seu canto era forte, era um belo galo. Eu não sentia preocupação ao vê-lo por perto, sabia que se ele estava por perto, eu estava bem guardado. Até que uma raposa entrou no galinheiro, sorrateira. Ela matou e comeu várias galinhas e pintinhos. O galo acordou e travou uma luta feroz com a raposa. Assustado com tamanha algazarra, levantei e fui ver o que estava acontecendo. O que vi era desolador. Um galo e uma raposa brigavam furiosamente em meio à penas e aves mortas. Ao chegar perto da raposa, o galo avançou contra mim, como se dissesse que aquela luta não era minha. Peguei a raposa e expulsei-a do sítio, mas o estrago era maior. Todas as galinhas foram mortas. O galo olhou para mim com raiva. Então, passou a cantar cada vez mais tarde. Comecei a sofrer atrasos, a acordar tarde sem o canto do galo. Comprei mais galinhas para que tudo voltasse a ser como era. Mas antes ele deixou bem claro: eu jamais deveria entrar no galinheiro novamente. No dia seguinte a raposa apareceu morta na porta do galinheiro. O galo agora canta tão alto que o sol parece sentir medo quando nasce por cima da colina, ao longe.





quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Vez em quando

Um cheiro de saudade cruza por mim. Um perfume, talvez um aroma de pele. Não dá mais tempo de impedir a memória, nem de punir a sentinela da razão que se atrasou por uns segundos. Já estou impregnada desse vento de passado que me força companhia.
O cheiro de café torrado insiste em fazer cócegas no meu cérebro, dizendo que não vai ser fácil me livrar da sua lembrança. Pois que seja. Não sou mais alguém em agonia. Depois de você, tornei-me matéria sólida, como as lajes e os granitos. Sem os rompantes, sem a histeria da partida. Nenhum sofrimento à superfície, nenhuma tristeza deslocada. Apenas o suficiente para prosseguir humana.
Não consigo fixar seu rosto no meu pensamento. Foi assim também na primeira vez em que nos encontramos. As pessoas eram sempre pontos distorcidos em minhas fugas de álcool fácil e carnes esquecíveis. E você estava lá, numa daquelas noites que terminavam só depois da madrugada.
Além do prazer, dois hábitos me acompanhavam fielmente: eu nunca dormia fora da minha própria cama, nem chegava em casa sem uma boa xícara de café forte. Na verdade, eu sempre tive medo de acordar em camas estranhas. Como se olhar em volta e não reconhecer os objetos me impedisse de saber para onde ir embora. Eu pertencia a todas as camas, mas deitava meu sono em meu próprio colchão, repleto de mim. O café forte era um ritual de purificação. Nada que cortasse o efeito da bebida ou o sono, somente um amuleto de dignidade que me deixava voltar para casa sem contaminar de embriaguez o ar.
Quando nos encontramos pela primeira vez, sua boca exalava café torrado. Por trás do balcão, uma mistura de amargos e doces flutuava abaixo de uma placa esnobe, onde se lia: Chez Fernand.
— Um café?
— Forte, por favor. 
— Alguma coisa para comer?
— Não.
− Um croissant fresquinho? É a especialidade da família.
Fiz que não com a cabeça, enquanto afastava a sensação de náusea que me vinha por pensar em comida. Mas achei gentil a insistência. E tive certeza de que voltaria ali quando estivesse sóbria.
Voltei, duas semanas depois, numa madrugada de chuva. Nenhum álcool naquela noite, nenhuma cama de onde tivesse saltado. Fui para enxergar o rosto ao qual pertencia aquela boca de café torrado. Atrás do balcão, dois rapazes se ocupavam dos expressos e dos chocolates. Ninguém que eu pudesse associar à voz modulada e cheirosa que tinha agradado aos meus instintos. Eu já me preparava para me levantar sem pedir nada, quando o mais alto dos dois se aproximou de mim:
— Como vai? Que bom que você voltou! Um café?
Era ele! A boca de café torrado, os dentes claros, benfeitos. Um menino! Quantos anos? Uns 24, no máximo 25.
— Um chocolate com creme, por favor — respondi depressa, subitamente sem jeito para incluir um licor no pedido.
— Chuva forte, hein? — perguntou com delicadeza, enquanto colocava a bebida.
Não respondi. Homens mais jovens não faziam parte dos meus vícios. Minha ânsia de afeto sempre fora aplacada por gente como eu, descartável, invisível, desraizada. E pelo álcool que me permitia tudo o que eu quisesse. E pelo sexo que me fazia atravessar a madrugada insone. Nada de amor, essa coisa estranha que se oferece em desencontro. Não, nada de homens jovens. Eles têm o péssimo vício de amar.
— Eu sou Fernand. O da placa — revelou, vaidoso. — Como é o seu nome?
— Aimée.
— Aimée! Amada... Significa amada, em francês, você sabia? Minha família é de origem francesa. Que coincidência! É um nome lindo.
Pedi a Deus que me tirasse de lá, porque meus pés não ofereciam essa opção. O rapaz estava flertando comigo, se exibindo para mim. E, mesmo assim, o que ele dizia entrava em meus ouvidos como uma escala afinada. Esperei realmente por um pequeno empurrão, uma lucidez acanhada. Mas tudo falhou. A divindade, os pés, a vontade. E eu mesma derrubei as cercas, deslembrada de que as cercas existem para guardar ou impedir. Fiz como o predador que fareja carne tenra: desprezei as armadilhas, até ser colhido pela dor das estacas.
Fernand e eu fomos felizes por duas chuvas. Ele se fez caber por inteiro em meus espaços vazios. Afastou minhas urgências, ofereceu-me outras. Emprestou-me o riso, o colo, os olhos brilhantes. E eu me completei dele. Ganhei abraços de tirar o fôlego, brinquei sem pressa sobre a cama desfeita, escrevi palavras bobas, sem sentido, em bilhetes e vidros embaçados de chuveiro. Fiz passeios de mãos dadas, desconcertei olhares. Dei gargalhadas no cinema, fiz sexo na escada e me senti bonita de cara lavada.
Então, numa data sem aviso, antes que a terceira chuva pudesse me trazer mais um ano, tomou conta de mim uma antiga sensação de ausências. Não sei se foi um gesto diferente, um jeito de respirar acelerado, uma desatenção proposital. Sei que os fogos de artifício se tornaram, de repente, fósforos usados.
Talvez, se Fernand tivesse morrido, talvez se ele tivesse amado alguém mais jovem que eu, com menos caminhadas, eu teria podido me agarrar ao consolo do plausível. Mas não foi assim. Fernand só queria mesmo ir embora.
Eu ainda não estava pronta para me encontrar com a mulher vazia que morava dentro de mim, mas a solidão me alcançou inflexível numa noite sem forças. E eu me cedi a ela. Com o tempo, acertamos uma trégua. Vez em quando, colho nas ruas um cheiro de saudade. Apenas o suficiente para prosseguir humana.





terça-feira, 15 de outubro de 2013

dois poemas dançados e um desenho



Quando um dia eu dançar,
nesse dia ficarei livre.
Nesse dia, abandonarei
a menina de saia abaixo do joelho.

Terça-feira e eu dançando. 
Uma polca
Um tango
Uma valsa
Um  fox trote
Twiste que seja ou mesmo rock.
Um dois três, um dois, três
Ritmos lentos ou ritmos infernais.
Um dia, antes que morra,
antes que fique manietada de velhice,
dançarei.


A bailar descalça 
rodopia
tal e qual andorinhas cirandando loucas 
um carrocel de rampa
uma coisa doida.
Ou ela nem baila 
ela apenas anda naquele chão de cacos. 
Ela descalça pelo chão de vidros
cacos muito antigos.

(garrafas bojudas ou das outras
ar apenas
e em cada uma um papelinho 
nada mais que uma palavra que estivesse escrita)

Os pés desnudos e ela dançando. 

Ou ela tão só anda:
um dedo aqui outro mais adiante
a fugir dos cacos
a fugir dos sonhos.





sábado, 12 de outubro de 2013

O Futuro de Presente


Hoje, para homenagear todas as crianças (sobretudo aquelas que habitam o coração dos ditos adultos), um singelo texto de cunho infanto-juvenil, o qual escrevi, aproximadamente,
 há uns dois anos. 
Boa leitura e feliz dia das crianças!



Por Lohan Lage Pignone

O que você vai ser quando crescer? Essa pergunta sempre martelou na cabeça da pequena Julieta. Aquele seu tio bigodudo não se cansava de perguntar isso. Vinha lá da cidade grande, cheio de idéias grandes, e de pança grande. Seu perfume era de fumaça. “A fumaça da Maria-Fumaça”, ele dizia, com seu sorriso amarelo.
            Julieta aprendeu o significado de passado com o seu avô. Do presente, ela não sabia. Às vezes, seus pais conversavam às escondidas, com portas fechadas. Julieta sabia que falavam do presente. Das dívidas, do cardápio, da escola, do casamento. Julieta observava sua mãe picando os tomates. Aquele era o presente do tomate, coitado. Mortinho da silva sobre a tábua. Que presente de grego, esse. Mas ela não sabia nem o que era grego. O avô só falava dos tempos de outrora, mas Julieta também não sabia o que era outrora, então, isso pouco importava para ela. Sentado no banco da praça, olhando fotografias amareladas, o patriarca dizia que era preciso recordar para viver. Julieta deitava-se em sua cama e ficava horas a fio tentando recordar. Não conseguia se lembrar de nada ou não tinha nada para lembrar. O que uma menina pode recordar tendo vivido sete primaveras? Tudo cheirava a novo, não era amarelado como os dentes do tio bigodudo, e nem tinha poeira. Aquelas lembranças não podiam ser do passado só porque tinham passado. Passado é coisa de museu, ou um senhor sentado no banco de uma praça...
            Julieta, então, concluiu que não vivia.
O pai ainda veio dizendo que o Papai Noel estava resfriado e não viria no Natal. Também pudera aquele monte de neve, de gelo... Ele não se agasalhou direito. Julieta tentava se consolar com aquela notícia. A menina descobriu da forma mais triste o que era presente. Presente era o aviso de que não haveria presente. Sofrer no presente, agora, era o seu maior dilema. Já não vivia porque não recordava. Abriu o berreiro, sufocando-o com a almofada. O seu pensamento pulou por cima da cabeça de muitas semanas. Caiu estatelada na noite de Natal e viu o bom velhinho espirrar. Julieta lhe desejou saúde de presente e pediu que melhorasse logo, pois, queria aprender a andar de bicicleta.
            Tempo, tempo... Julieta estava confusa com tanto tempo na cabeça. E ainda ouvia seus pais reclamarem pela falta dele! Triste com o presente, Julieta descobriu o futuro e, todos os dias, sonhando acordada, ela se transportava para lá. Mil maravilhas estavam à sua espera. Bonecas imensas, muitos carrosséis, gramas para pisar, livros para ler de cabo a rabo, bichinhos para cuidar. Pronto, era isso: ela queria brincar de médica com muitos bichinhos. E quando o tio bigodudo voltou da cidade grande, ainda mais pançudo, pegou a menina no colo e perguntou o que ela queria ser quando crescesse, Julieta respondeu, pela primeira vez, com a certeza mais utópica e adorável que somente as crianças têm: “Quero ser médica de bichinhos!”.
            O tio bigodudo riu alto e anunciou para a família como se fosse a novidade de um cometa: “Ela quer ser veterinária!”.
            Aquele nome ela não sabia o que era. Só sabia que era um nome feio de doer. Desistiu de ser aquilo, e passou a observar as estrelas. Decidiu que ia viajar pelo espaço sideral e pular corda na lua. Daí em diante, Julieta só pensava nos dias que estavam por vir. Agora sabia responder, na ponta da língua, a pergunta incansável do tio bigodudo. E esse tio ensinou para Julieta que só na cidade grande se crescia. Julieta pediu de presente uma casa na cidade grande. Mas o presente... O presente insistia em estar, e nunca chegar. Chegou o Natal. Papai Noel deixou a bicicleta na sala. Como ele entrou Julieta não entendeu, pois não havia chaminé em sua casa. Julieta não sorriu diante do presente de Natal. Era uma menina infeliz. Não ia aprender andar de bicicleta, tampouco ia escrever diário. Julieta queria mesmo era o futuro de presente.







sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Culpa


Eu atirei no xerife.
Mas não matei o delegado.
Tudo que fiz foi em legítima defesa.

Tudo é tão pequenino e vil!
meditação transcendental, bah!
Eu vou correr com os porcos

louvar Maria Callas!

Esvaziar meus bolsos de falsas moedas
vomitar a rapadura azeda, dada aos pássaros
Vou caminhar com as estrelas decadentes

Chega de vieses infiéis
Chega de em que nada houvesse
É só um vácuo

Vamos vadiar nos buracos da fé
patrocinar remendos em cascas grossas
a grosseria é a mãe das irmandades

Culpado!


The End