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sábado, 28 de novembro de 2020

Expiação


A extensa nave da igreja encontrava-se em semipenumbra. Apenas a luz do luar se coava preguiçosamente através da claraboia setecentista, muitos metros acima. Todo o espaço estava repleto de sombras e as imagens dos santos e mártires, imobilizadas no seu mutismo eterno, eram testemunhas e guardiões do silêncio.

O padre Ramiro, rondando os sessenta anos, assomou à porta que conduzia à sacristia, antes de se mostrar completamente. Envergava um pijama e roupão e calçava uma chinelas de tecido, surradas. Estava já deitado e dormia a sono solto, quando uma urgência, que não sabia bem explicar, o fez levantar-se, deixar a cama e vir até à igreja.

Na segunda fila de assentos, divisou o vulto ajoelhado, rosto escondido entre mãos implorantes. O silêncio intimidante, impunha-se pesadamente.

Após um minuto de hesitação, o sacerdote soprou uma pequena coluna de vapor e apertou mais o roupão, para se defender do ar gelado que repousava no templo. Arrastou as chinelas até junto do vulto e, com um profundo suspiro, ajoelhou a seu lado, imitando a pose implorante, frente ao altar.

O estranho levantou a cabeça ao perceber o recém-chegado. Aparentava uns trinta anos e tinha o cabelo comprido e desgrenhado e a barba negra e crescida, quase tapando o rosto pálido e macilento, onde brilhavam dois olhos pequenos, cor de carvão.

— Também tem pecados a expiar, padre? — Grasnou o homem, ecoando na nave.

Surpreendido, o sacerdote fitou o inusitado companheiro.

— Todos somos pecadores, meu filho. — Esclareceu-o ele. — Todos cometemos pecados, uns mais graves que outros. O importante, é a forma como lidamos com eles. — O estranho olhou-o pensativamente, avaliando-o e sopesando as suas palavras, enquanto o padre continuava. — Temos de reconhecer que erramos e devemos pedir perdão a Deus por eles. Teremos de prometer que tudo faremos para não voltar a pecar.

— E se o pecado não tiver perdão? — O outro insistiu.

— Todos os pecados têm perdão! — O sacerdote foi perentório. — Há pecados mortais, é certo, mas a misericórdia de Deus é infinita e até o mais vil dos pecadores, terá uma oportunidade, se se arrepender do fundo do coração.

— O meu pecado não pode nunca ser perdoado. — O homem fez um esgar amargo.

— Já disse, Filipe, que Deus pode perdoar todos os pecados. — O padre Ramiro reafirmou.

— Como sabe o meu nome? — O estranho estremeceu, muito sério.

— Conheço-te há muitos anos… — Uma lágrima refulgiu nos olhos do sacerdote. — Não me reconheces mesmo?

O chamado Filipe pareceu incomodado com a pergunta e levantou-se, dando uma volta sobre si mesmo, hesitante. Passou a mão pelo cabelo e cofiou a barba fitando o interlocutor com intensidade. Por uns segundos, um pesado manto de silêncio pesou entre os dois; um, em pé, recurvado e o outro de joelhos no suporte do banco da igreja.

— Devia reconhecê-lo? — A voz do estranho tremia, como que acometido do frio, que há muito mordia o padre.

— Não só a mim, como todo este templo, onde estiveste tantas vezes… — Acusou o ministro da igreja.

— Sim, venho aqui de vez em quando… pedir perdão pelos meus pecados… — Filipe arrastava a voz, puxando pela memória.

— E sabes quais foram os teus pecados? — Ramiro sentou-se, observando-o. — Recordas o que tanto precisas que te seja perdoado, que te não deixa descansar e te traz aqui amiúde? Tiveste sequer a noção de quantas vezes me ajoelhei, como hoje, ao teu lado a rezar? Em todas essas vezes nunca me falaste, porém, talvez não estivesses preparado.

O estranho parecia cada vez mais perturbado e acenava negativamente com a cabeça enquanto balbuciava: “Não me lembro…”

— Há quase quarenta anos, entraste nesta igreja com uma mulher sem vida nos braços. — Lembrou o sacerdote. — A mulher que nós amávamos!

— Armanda! — Filipe apertou as mãos contra a boca, o rosto retorcido numa máscara de dor. — Fui eu! Oh, meu amor, fui eu quem a matou! — Depois, num súbito reconhecimento, fitou padre nos olhos. — Ramiro? És tu, Ramiro? Estás tão velho!

— Passaram-se muitos anos, querido irmão. — As lágrimas assomaram com força aos olhos do ancião.

— Perdoa-me, meu irmão! — Implorou o outro atirando-se ao chão, quase junto aos pés do sacerdote.

— Eu é que te peço perdão, por ter permitido que ela se aproximasse de mim, depois de estar casada contigo. Peço perdão a Deus todos os dias, por ser o causador de toda desgraça que nos atingiu. — O padre enclavinhou as mãos numa oração. — Amaldiçoo-me eternamente por me ter deixado possuir por aqueles belos olhos, durante as férias do seminário em tua casa.

— Eu não podia suportar! — Gemeu Filipe, caminhando até ao meio da igreja, no espaço entre os bancos e ajoelhando no tabuado, em pranto. — Foi aqui que a deitei, depois de a ter estrangulado no carro! Eu não queria matá-la, mas não podia suportar que a mulher que eu mais amava no mundo me trocasse por outro homem… ainda que fosse o meu próprio irmão!

Com visível esforço, Ramiro aproximou-se e ajoelhou no chão, junto do outro, os olhos cheios de lágrimas: “Perdoa-me!”, gemeu.

Os dois, ajoelhados no soalho, não passavam de sombras na vastidão da nave do templo.

— Achas que Deus me perdoa? — Ao fim de uns segundos, Filipe estendeu as mãos para o padre. — Achas que ela me pode alguma vez perdoar? E tu, meu irmão, perdoas-me?

— Alguma vez Lhe deste essa possibilidade? A qualquer um de nós? — O sacerdote rouquejou. — A tua solução foi atirares-te ao rio e desaparecer para sempre. O teu espírito vagueou sempre por aqui, incapaz de assumir o mal que fizeste, escondido do julgamento, assim como de qualquer forma de perdão.

Aparentando agora ter mais quarenta anos às costas, Filipe ergueu-se a custo, com os olhos rasos de lágrimas fitos no chão onde em tempos repousou a mulher ambos amaram. Soluçou audivelmente e pousou a mão direita sobre o coração.

Ramiro chorava com ele, mas engoliu em seco e o seu rosto tornou-se uma máscara cheia de majestade e levantou-se apoiando-se nas costas do banco mais próximo. Ergueu os dedos indicador e médio da mão direita, numa autoridade que o seu cargo lhe permitia, enquanto sentenciava “Ego te absolvo, in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen”.

Filipe, atordoado, cambaleou na direção da porta que levava ao exterior da igreja e que abriu de par em par. Uma onda de luz imensa ofuscou todo o espaço, rebrilhando no ouro dos altares, iluminando os rostos tristes das imagens neles contidas, ressaltando nos cristais dos candelabros e nos vitrais das janelas, como uma onda de esperança que Ramiro, tombando de joelhos no meio do templo, recebeu de braços abertos.

Foi de manhã bem cedo, que a equipa de limpeza encontrou o velho abade da freguesia, tombado no soalho frente ao altar. Aparentemente, sofrera um ataque fulminante que lhe levara a vida, antes mesmo de se aperceber do que estava a acontecer, pois o seu rosto exibia um sorriso, sinal de que partira em paz.







quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A última morada

 


 Respeita a minha última morada.

Pelo teu exemplo, 

talvez respeitem a tua.


Eburu estava indignado. A anta da sua família, com mais de 6000 anos, fora arrasada para plantar um amendoal.

Ninguém o avisara que os mortos não se indignam. Nem têm nenhuma das outras inumeráveis emoções dos vivos. Mas, não era o único morto que não tinha consciência da impossibilidade da sua vitalidade psíquica.

Comentou o desacato com familiares e amigos, mas não obteve mais do que encolheres de ombros. Parecia que todos já estavam habituados à falta de respeito pela integridade dos seus restos mortais e da sua última morada. Uma indignidade continuada. A falta de apoio deixou-o desalentado, mas não deixou de ruminar no assunto.

Na excursão a Lisboa que a autarquia organizou pouco depois, Eburu sentou-se ao lado de um tipo moreno de óculos. A conversa, em língua moderna, só podia rumar num sentido:

O vizinho já viu o que me fizeram? Arrasaram-me a anta de família, ali na Herdade do Vale da Moura. Aguentou 6000 anos sem estragos de maior! É claro que os esteios já estavam à vista e a cobertura estava tombada sobre um resto da terra da mamoa, mas estava completa, com um porte ainda nobre. Agora vieram estes tipos e mandaram aplanar o terreno todo, para plantarem um amendoal intensivo, como se lhes fizesse falta o terreno de 4 árvores. A última morada, minha e da minha família, não vale mais do que 15 ou 20 quilos de amêndoas. É de uma indignidade atroz, você não acha? Você é de onde e de quando?

Olhe, eu sou ali de ao pé de Montemor e estou morto de fresco. Morri há 4 anos e nem fui à terra, fui direto para o crematório de Ferreira. E pensa que os herdeiros levaram as cinzas para casa? Ná, foram para o cendrário coletivo do crematório. É assim a nossa vida. Você, ao menos, sabe onde era a sua anta; eu nem isso.

Eburu não respondeu, mas franziu o sobrolho, surpreendido com a revelação pungente do companheiro de viagem.

Eu até acho mais ecológico — continuou o interpelado. E tem algo de evocação primordial: o clã à volta da pira sobre a qual se depositava o falecido, as chamas altas, o fumo a subir. Parece uma solução própria de exércitos ou grupos étnicos em marcha. Prestam homenagem ao extinto e não deixam para trás qualquer resto que possa ser profanado por estranhos ou inimigos. Era assim no tempo da Guerra de Troia.

Só soube dessa guerra umas centenas de anos depois...

Somos a única espécie que tem comportamentos funerários — discorria o recém-conhecido. — Devem ter surgido não só pela razão prática de fazer desaparecer a carne morta, como pela tomada de consciência da falibilidade da vida. Para os nómadas, se não praticassem o canibalismo, seria fácil abandonar o corpo à ação higienizadora de abutres e lobos; para os sedentários ligados à terra, o fogo purificador faria menos sentido do que enterrar o defunto. Adubava a terra. As plantas e os frutos que dali medrassem teriam um pouco do falecido, seriam o seu regresso ao ciclo da vida.

Eburu mantinha-se atento, mas conhecia bem aquele entendimento.

O resguardo dos restos mortais em urnas, jazigos, criptas deve ter sido adotado quando se ganhou a convicção, ou pelo menos a esperança, na vida depois da morte — prosseguiu o morto recente. — Manter o corpo guardado num local fechado podia ser a melhor forma de manter alguma coerência corporal. E se fosse bem preservado por uma mumificação eficaz, como faziam os Egípcios, e bem resguardado numa estrutura inexpugnável, como uma pirâmide, o morto tinha as melhores condições a que podia aspirar, quando iniciasse a viagem para um outro mundo, ou quando ressuscitasse.

Em Lisboa, Eburu tratou de visitar o Cemitério dos Prazeres. Já conhecia a fama da qualidade arquitetónica dos jazigos, mas o que o levou lá foi sobretudo tentar perceber se a falta de respeito pelos mortos e pelo património também se fazia sentir na grande cidade. A maioria dos jazigos parecia em bom estado e objeto de atenção frequente. Não meteu conversa com ninguém, porque os habitantes estavam recolhidos, e não era por causa da Covid-19; era porque já não podiam com tanto turista. Deambulou pelas avenidas do local, ficou mesmo surpreendido com o inesperado de algumas construções e com a qualidade das esculturas, mas, depois de muitas paragens, decidiu que, apesar de tantos arrebiques, a sua anta possuía — possuíra — uma beleza singela e natural que nenhum daqueles edifícios tumulares atingia. Deteve-se com alguma demora em frente do formidável mausoléu do Duque de Palmela. A grandiosidade da edificação, que alberga os restos mortais de mais de 200 membros da família, causava-lhe um misto de admiração e ressentimento pela ostentação faraónica. A seu lado, dois outros turistas isolados apreciavam o túmulo coletivo.

Admiro o cuidado com que mantêm esta necrópole em tão boas condições — lançou Eburu aos presentes. — E até fico impressionado, confesso, com a capacidade dela. Já sou mais cético em relação à longevidade… Eu estive numa anta no Alentejo, logo abaixo de Évora, rodeado por vários familiares, durante quase 6000 anos. Há talvez uma centena de anos, assaltaram-na e a maioria dos ossos dispersou-se. E, há uns meses, vieram com máquinas e destruíram-na completamente. Já tenho dificuldade em saber onde era. Até as pedras enterradas arrastaram dali. Há direito isto? Já não valem nada 6000 anos? Aonde é que nós chegámos?

Os outros dois olharam-no surpreendidos. Pareciam não querer conversa, mas após um tempo, um deles pareceu entristecer-se e baixou a cabeça. Parecia rememorar alguma coisa penosa. Por fim, tomou a palavra:

Como eu o compreendo, amigo! Isto são tempos terríveis. Não há respeito por nada. Você, se calhar, ainda encontra as pedras maiores da sua morada; eu nem isso.

Lembranças dolorosas fizeram-no baixar de novo a cabeça. Depois prosseguiu:

Chamo-me Creze. Vivi há 3000 anos numa área junto à serra da Gardunha. Fui agricultor de certa importância. Cultivava cereais naquelas encostas descarnadas e mantinha um rebanho numeroso, ajudado pela meia dezena dos filhos que chegaram à idade adulta. Quando morri, os filhos mandaram escavar uma grande pedra oblonga e enterraram o féretro na encosta de uma pequena elevação, na qual eu gostava de me sentar à sombra de um carvalho olhando a distância. Há coisa de 60 anos, um agricultor agradou-se da minha sepultura. Devia querer usá-la para bebedouro de animais. Desenterrou-a, levou-a para a sua quinta e tentou furá-la no fundo. Tanto martelou que a sepultura de pedra se partiu a meio. Frustrado e sem lhe encontrar já préstimo, no dia seguinte partiu-a a martelão.

Os ouvintes franziram o sobrolho, incomodados com o relato daquela depredação inútil.

O meu querido machado de bronze, que ele também tinha levado, foi parar às mãos do filho adolescente, que não reconheceu a peça, muito menos a sua antiguidade, apesar de ser estudante. Pouco depois, usou-o como escopro para uma das suas bricolagens. É claro que, com aquele uso inadequado, o machado abriu-se em lascas. A metalurgia do meu tempo não tinha a qualidade da de agora. Em dois ou três dias, o meu espólio, a minha última morada, a minha dignidade foram completamente esfacelados.

Eburu estava impressionado. Parecia que o seu caso, que tanto o indignava, era a regra: saque e destruição.

O outro ouvinte pareceu ganhar coragem para contar a sua história.

O meu nome é Arnth Vipinana, de uma das mais importantes famílias etruscas do final do século IV a.C., da qual provinham os altos funcionários do Estado. Vivíamos na zona a norte de Roma e a nossa gens tinha um nível cultural muito apurado, o que não impediu que viéssemos a ser absorvidos, nos últimos séculos antes desta era, pelos emergentes descendentes de Rómulo. Deixámos monumentos funerários admiráveis, de uma beleza sofisticada — sarcófagos encimados por figuras reclinadas, geralmente resguardados em grutas coletivas. Assim era o meu, uma arca em granito, com altos relevos de cenas guerreiras na face maior e que na tampa apresentava a minha figura de vulto, em atitude de descanso majestoso, reclinado sobre o lado esquerdo. Mantive-me em sossego durante 22 séculos, juntamente com outros familiares, cada um em seu sarcófago, na cripta coletiva subterrânea.

Os dois ouvintes circunstanciais mantinham uma atenção silenciosa.

Então, em 1839, a necrópole da minha família foi descoberta pela família Campanari. Os Campanari eram já prósperos comerciantes de antiguidades, com licenças estatais e tudo. Estava em alta a moda das antiguidades, potenciada por uma exposição de arte etrusca por eles organizada dois anos antes em Inglaterra. As peças etruscas rendiam bom dinheiro e muito do espólio encontrado foi leiloado pouco tempo depois. Por volta de 1867, venderam três sarcófagos da nossa cripta, incluindo o meu, por um preço fabuloso, a um emergente comerciante inglês — Francis Cook. Cook tinha acabado de comprar a Quinta de Monserrate, em Sintra e lançara-se na construção de um esplendoroso jardim romântico, com inúmeras espécies botânicas exóticas, trilhos serpenteantes, cascatas, lagos, pontes, ruínas falsas. Neste ambiente paradisíaco, colocou ele os três sarcófagos verdadeiros, aproveitando não só a sua beleza estética, mas também a sua capacidade evocadora, cada um em seu contexto cenográfico. O meu ocupava a abside da ruína falsa de uma capela e ali se manteve desde 1867, à mercê da ação da humidade, de líquenes e musgos, e sobretudo, do vandalismo dos visitantes, que é sempre ignorante. Aquele fabuloso parque foi mesmo votado ao abandono a partir de 1929.

É uma falta de respeito inaudita! — fez-se ouvir Eburu, que já estava um pouco cansado da explicação.

Em 1983, houve uma tempestade tal que a torrente arrastou uns metros o sarcófago que estava junto a uma represa e lhe levou a tampa, que nunca mais apareceu. Foi um dia muito triste para nós os três. Só nessa altura as autoridades nacionais recolheram os sarcófagos no abandonado Palácio de Monserrate, mas com tal falta de cuidado que esborcelaram gravemente aquele já castigado pela tempestade. Mas terminavam 116 anos de grande degradação e angústia. Finalmente, em 1997, criaram uma câmara especial, a lembrar uma cripta etrusca, no Museu Arqueológico de Odrinhas, onde me sinto razoavelmente. Só me queixo da vozearia que vem da Sala dos Romanos — um salão com umas boas dezenas de estelas e pedras tumulares.

Isso foi uma odisseia e tanto, amigo! — respondeu, por sua vez, o beirão. — Mas ao menos acabou em bem. Já quanto a nós…

— “Em bem” é uma maneira de dizer; o amigo desculpe — ripostou o etrusco. “Em bem” era ter-me mantido na cripta em que os meus familiares me colocaram, e não vir parar a uns milhares de quilómetros, a servir de decoração e divertimento para gentes que não conhecia.

Tem razão, pois claro, desculpe. Mas como compreende, a nossa situação é muito mais penosa que a sua. Infelizmente, não há muito a fazer. Não é verdade, amigo alentejano?

Eu não sei. Acho que isto não fica assim; não pode ficar assim. Só me apetece ir lá deitar-me na cama dos que me fizeram isto. Se calhar, não davam por nada; ou talvez sentissem um fresquinho, sem saberem de onde vinha… Pelo menos, tinha onde descansar.

Creze gostou da ideia. Logo ali resolveram os dois criar um movimento dos “sem tumba”. Haviam de organizar-se, reunir o apoio de tantos outros deserdados, propor formas de ação, intervir no mundo dos vivos, ainda que de forma subtil.

Despediram-se do itálico, que prometeu pensar no assunto.

Quando passarem por Sintra, vão-me lá visitar a Odrinhas — convidou.

Está prometido, Arnth! Arrivederci — brincaram os ibéricos, bem-humorados.

Foi bom humor de pouca dura. Daí a pouco, no elétrico, enquanto lançavam olhares distraídos ao jornal que um cidadão folheava, carregaram de repente o semblante. Uma pequena notícia no interior, de título “Outra anta do Neolítico arrasada no Alentejo”, informava que o crime acontecera no mês anterior na Herdade dos Pardais, Cabeção, Mora.


Joaquim Bispo

*

Imagem: Sarcófago etrusco de Arnth Vipinana, c. 310–300 a.C.

Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, Sintra.

* * *






segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O CHAPÉU DE PASSEIO DO MEU AVÔ

 


 


         Naquele último mês, na vila não se falava em outra coisa. Desde que a notícia chegara através do serviço de alto-falante, tornou-se a motivação da vida de todos os moradores.

         E não era para menos... A vila havia sido emancipada há pouco tempo, alçara à categoria de município, o primeiro prefeito eleito ainda governava, e agora receberia a visita de uma ilustre candidata à assembleia legislativa do Estado. Se tudo isso, tão novo, tão diferente, já era motivo suficiente para tanto burburinho, imagine uma mulher candidata em pleno início da década de 1960! Fugia muito dos costumes...

         Os moradores, assim como as autoridades, tiveram um tempo generoso para cuidar dos detalhes, dos preparativos do evento. A loja de tecidos do Seu Pereira faturou como na época das festas natalinas! As mulheres, cuidadosamente, escolhiam os tecidos e modelos dos seus vestidos, das roupas das crianças, e dos calçados. Os velhos ternos saíram das malas, foram arejados, meticulosamente escovados e passados a ferro. Tudo deveria estar pronto para o grande dia.

         Meu avô usaria o seu único e velho terno. Com este terno ele ia a casamentos, batizados, velórios, missas, terços, enfim, era a vestimenta oficial para os grandes acontecimentos da vila. E chapéus, ele possuía apenas dois de feltro e um de palha. O de palha era o que usava na lida diária com os cavalos que puxavam a charrete, instrumento da sua profissão. Usava-o no corte do capim colonião, na escovação dos animais, no corte da crina, dos cascos... Um chapéu de feltro um pouco descorado era seu companheiro diário no trabalho como charreteiro da vila. Agora, o outro chapéu de feltro, que não era novo, mas muito bem cuidado, fazia parte da indumentária única de passeio. Complementava o traje de gala, ou seja, o terno único. Era o chapéu de passeio.   

         No sábado, véspera do tão esperado evento, o som do alto-falante, que ia ao ar três vezes por dia, trazia na voz eloquente e animada do locutor, a grande expectativa e convocava cada morador a se tornar um integrante da comitiva que faria a recepção da candidata. E todos os moradores se orgulhavam por isso.

         A candidata, da qual me recordo apenas do primeiro nome, Conceição, morava em um município-polo interiorano, era de família tradicional, estudada. Educada para seguir na carreira política. Uma senhora de visão, como se dizia na época. Somado a toda essa expectativa estava o meio de transporte que seria usado para a chegada da candidata. Ela desceria na vila a bordo de um helicóptero! Imagine uma vila encravada no interior do Estado, aonde a energia elétrica acabara de chegar, aonde todas as estradas que lá chegavam e que por lá passavam eram de terra batida, e que possuía, como único meio de comunicação direto com a capital diariamente, o rádio, que acontecimento seria para seus moradores poderem ver de perto um helicóptero! Se os adultos sonhavam com isso, avalie como ficava a imaginação das crianças! Nem mesmo avião cruzava pelos céus daquela vila, e qualquer outra coisa que voasse e que não fosse pássaro, inseto ou pipa, fazia parte apenas do imaginário da grande maioria das pessoas que ali vivia. Eu, particularmente, aguardava aquele domingo com a mesma ansiedade que esperava o dia de Natal para comer peru assado e tomar guaraná.

         A praça da matriz, onde o helicóptero pousaria, era formada pelo quarteirão central da vila. Um quarteirão enorme que formava um grande retângulo. A igreja matriz ocupava uma parte da lateral mais estreita, era uma igreja bem acanhada, muito simples. Na lateral oposta ficava um barracão de madeira coberto de telhas comuns, local onde aconteciam as quermesses, as festas domingueiras, as festas juninas, os bailes populares, as apresentações de sanfoneiros, violeiros, cantadores. Nesse barracão a candidata seria recepcionada e ali ficaria um tempinho antes de acontecer o comício. Esse barracão era imenso. Ocupava toda a extensão dessa outra lateral mais estreita, oposta à igreja matriz. Numa das extremidades ficava a cozinha com paredes de tábuas, que abrigava, no centro, um grande fogão de lenha, rodeado por jiraus de madeira com várias torneiras, e muitas prateleiras. Nesta cozinha era preparada e armazenada toda a comida dos eventos.

         Formando o retângulo da praça, uma das laterais maiores abrigava uma figueira imensa, viçosa, e que mesmo com o sol a pino, conseguia cobrir, com sua sombra generosa, parte da rua de pedregulhos, e que oferecia uma área sombreada ainda mais generosa para a praça, onde as crianças podiam jogar futebol, bolinhas de gude, queimada... Ali, naquela sombra, eu passava boa parte dos meus dias.         Ainda na sombra da figueira, na divisa da praça com a rua de pedregulhos, havia bancos rústicos feitos de caibros e vigas de madeira, e neles os mais velhos costumavam sentar para se refrescarem durante todo o dia, até o sol descer por completo, e à noitinha eles abrigavam os casais enamorados.

         Na outra lateral maior, que fechava o retângulo da praça central, não havia nada. Apenas a terra vermelha, sem grama, sem calçada, juntando-se à área da rua principal, esta com pouco cascalho e muita terra solta. Por este lado seria finalizado o pouso do helicóptero que traria a candidata. A notícia da ilustre visita se espalhou até mesmo pela zona rural, então era esperado um público numeroso, quase como acontecia na Sexta-feira Santa.

         Domingo. Ainda escuro e a cama parecia ter espinhos... Eu não tirava os olhos das frestas da janela de duas folhas que havia no meu quarto. Esperava ansiosamente que a claridade do dia emoldurasse o batente. E enfim, clareou... Pulei da cama, nem conseguia encontrar os chinelos tateando o chão com a sola dos pés. Quando consegui calçá-los corretamente já havia saído do quarto, atravessado o corredor e chegado à cozinha.

Minha mãe, madrugadora, que também ansiava pelo acontecimento do dia, havia coado o café, fervido o leite e a mesa estava posta. Eu estava com uma fome danada, mas fiquei contrariada por ter que me sentar e tomar café como sempre. Queria ganhar a rua o mais depressa possível, mas também avaliei que o dia seria longo e intenso, e que eu precisava forrar o estômago para aguentar a maratona. E me sentei... E comi... Quero dizer, engoli. Nem me lembro de como me vesti naquele dia, do que vesti, do que calcei, mas me lembro da alegria que senti quando, enfim, ganhei a rua.

Era ainda muito cedo mesmo, minha mãe estava com a razão quando argumentou que eu deveria comer com calma. Tudo ainda ia demorar. Subi pela rua principal, aquela que passava ao lado da praça, do lado oposto da figueira. Apenas a padaria estava aberta, e o cheirinho do pão assado saindo do forno era um agrado para qualquer olfato, mesmo estando com o estômago saciado como eu. Não havia qualquer criança por ali. Tudo quieto, muito quieto para o meu gosto. Certamente as outras crianças resolveram ouvir os argumentos de suas mães. Tudo ainda ia demorar.

Faltando um quarteirão para chegar à praça, já era possível ouvir algumas vozes, e aí apertei o passo. Estava ansiosa para ver o que estava acontecendo. Na esquina da sorveteria parei para respirar. A pressa com que caminhei, misturada com a ebulição de ânimo que a espera ocasionava deixaram-me ofegante. E na praça, tudo calmo. O movimento das pessoas chegando para a missa das sete ainda era lento. Apenas no barracão, que seria o centro das atenções, onde aconteceria o comício num palanque improvisado e erguido do lado de fora, havia algumas mulheres fatiando a mortadela. Mortadela que seria usada no recheio dos sanduíches a serem servidos aos moradores que viessem recepcionar a ilustre convidada. Eram dezenas de peças roliças de mortadela a serem cortadas, e os rolos ainda estavam amarrados com barbantes reforçados, como aqueles rolos que eu sempre via dependurados na venda do Seu Chico.

A fornada dos pães encomendada pela prefeitura estaria pronta por volta das oito, e então os pães seriam cortados ao meio, um a um, recheados com as fatias de mortadela, e os sanduíches seriam cuidadosamente colocados em imensas bacias de alumínio, cobertos com toalhas de mesa até serem distribuídos aos moradores. Era sempre assim em todas as festividades. E tudo tinha um gosto tão bom!

Para beber, como sempre, seria servido refresco de groselha. As mulheres já providenciavam vários caldeirões e várias panelas imensas cheias de água. Ficavam ali, tampados, e após o preparo dos sanduíches, os muitos litros de licor de groselha mais o açúcar eram despejados nos recipientes com água, misturados com grandes conchas, e depois o refresco era servido em canecas de alumínio. Não havia copo plástico, não existia nada de plástico. A vila desconhecia a palavra, o material “plástico”, e até hoje não sei se era apenas a vila, ou se ele ainda não existia. Fui conhecer o plástico algum tempo depois...

Durante a comilança, uma equipe de mulheres ficava na cozinha do barracão com a tarefa de lavar as canecas que eram devolvidas pelos moradores conforme iam se fartando. E todo esse processo acontecia de maneira calma, sem pressa, sem tumulto. As pessoas eram ordeiras, mansas, extremamente generosas.

Não demorou muito e as badaladas do sino da igreja ecoaram. Era o aviso de que a missa das sete ia começar. A missa das nove fora cancelada em virtude do evento. Eu sabia que se fosse para a igreja e acompanhasse a missa, a hora passaria mais rapidamente, mas não me animei. Queria ficar ali, perto do barracão, e acompanhar todo o movimento da chegada dos moradores.

Os primeiros que chegaram foram os da zona rural. Famílias inteiras eram transportadas em carrocerias de caminhão, em carretas puxadas por tratores, em carroças, em charretes, e muitos homens chegavam montados a cavalo. Todas as pessoas chegavam vestidas em suas melhores roupas, trajes domingueiros, e com certeza muitos pés reclamavam do castigo dos calçados novos, do couro duro e ainda não amaciado pelo uso. Mas valia a pena!

A essa altura, os bares já estavam abertos, principalmente a sorveteria que ficava na esquina da praça. Ali as mulheres e crianças refestelavam-se! Era um sorvete de palito atrás do outro. Só se escutavam as vozes desesperadas das mães preocupadas com os pingos de sorvete nas roupas domingueiras das crianças. Afinal, a festa começaria dentro em pouco, e se não se cuidassem chegariam a ela com as roupas em estado deplorável! Meus olhos acompanhavam tudo. E meus ouvidos também... Conforme os minutos passavam, o movimento dentro e fora do barracão se intensificava. O sol brilhava firme e pressagiava um dia muito quente, com poucas nuvens, e tudo levava a crer que a sombra da figueira seria disputada por muitos.

As autoridades da vila, na sua maioria, estavam participando da missa prestes a terminar. Na verdade já deveria ter acabado, mas o padre, experiente e acostumado com festividades, com certeza dispensou um tempo maior na homilia, talvez o dobro do tempo que costumeiramente dispensava. O sermão deve ter sido extenso! E agora deveria estar se prolongando nos avisos que são dados ao final do ritual domingueiro. Tudo cuidadosamente estudado para que os fiéis não voltassem para suas casas após a missa, mas para que se juntassem à multidão que se aglomerava na praça.

Meu avô, todo paramentado, chegou. Passei rapidamente por ele, tomei-lhe a bênção, e, de mansinho, deslizei por entre as pessoas.

E a multidão foi adensando... Já passava das nove horas, a chegada da candidata estava prevista para as dez, portanto, a expectativa ia crescendo na mesma proporção em que a praça ia sendo tomada pelo povo.

De forma generosa, os sanduíches começaram a ser distribuídos, principalmente para aqueles moradores que vieram dos sítios em redor da vila. Bastava pedir para qualquer pessoa da equipe que estava na cozinha do barracão, e seria prontamente servido. Eu não sentia fome alguma, apenas uma ansiedade galopante que formigava todo o meu corpo. Faltava pouco...

Na vila a força policial era ínfima. Não havia necessidade de muito aparato, as pessoas eram tranquilas, não havia perigo nem violência. Eu me lembro de dois milicos que ajudavam em todos os eventos, não mais que isso. E agora não era diferente. Estes nossos dois heróis estavam na praça, cuidadosamente uniformizados, e calmamente explicavam aos moradores que deveriam deixar livre o espaço central da praça para que o pouso do helicóptero fosse possível. Não havia cordões de isolamento, nem delimitações da área do pouso. Tudo era organizado apenas com o pedido do famoso “um passinho pra trás”. E as pessoas atendiam... Formou-se, então, uma enorme clareira no centro da praça, espaço suficiente para o pouso da aeronave.

Finalmente, dez horas... Na praça, a multidão toda olhava para cima. As mulheres e crianças usavam as mãos em conchas como toldos para os olhos, e fitavam o céu. Para os homens era mais simples. O uso sistemático dos chapéus, alguns com abas generosas, evitava a claridade excessiva que incomodava os olhos, ofuscando a vista. E as cabeças estavam todas jogadas para trás, os rostos expostos ao sol, e os olhos procurando avidamente o objeto voador que traria a candidata.

Meu Deus, como doía o pescoço! Se pudesse deitar no chão seria mais fácil, mas não havia espaço. Sentia no meu calcanhar, a ponta do pé do outro morador que estava atrás. Isso mesmo, a multidão era compacta!

Bem perto do palanque, as autoridades estavam perfiladas. O prefeito, o vice, os vereadores, o padre, o juiz de paz, o oficial do cartório, o diretor da escola, o médico do posto de saúde, as esposas e filhos. Todos com suas roupas impecáveis, calçados engraxados e reluzentes, chapéus das melhores marcas. Tudo fora preparado com muito esmero.

E bem perto do palanque estava o meu avô. Orgulhoso, imponente dentro do seu único terno, cuidadosamente escovado e passado pela minha avó, empinando no alto da cabeça o seu chapéu de passeio.

Passei os olhos por todos, eu estava na fileira da frente e via, privilegiadamente, a grande clareira em forma de círculo no centro da praça. De repente um ruído pôde ser ouvido. Era um barulho que se assemelhava à batida de asas de um bando de pássaros. As pessoas, eufóricas, mesmo antes que o helicóptero aparecesse no céu, apenas com o ronco do motor, aplaudiam, sapateavam de alegria.

E ele surgiu... Lá no alto, muito alto, como um pontinho preto no céu... E foi ficando maior, e maior, até que pôde ser visto detalhadamente. Era preto, com duas listras amarelas nas laterais. Fez um sobrevoo do outro lado da praça, acima da grande figueira que se alvoroçou toda. Conforme sobrevoava a figueira, seus grandes galhos se vergavam e balançavam incontrolavelmente, num espetáculo maravilhoso e assustador. Nunca vira nada igual, nem mesmo naqueles terríveis dias de tempestade e ventania! Os moradores estavam extasiados! Aplaudiam incessantemente, as mãos estavam vermelhas e quentes, e os pés incontroláveis.

O piloto fez várias manobras subindo e descendo com a aeronave, encantando os olhos de todos. De repente, subiu, passou bem alto sobre a igreja, e foi baixando lentamente, conforme avançava em direção à multidão.

Como a rua principal estava totalmente tomada pelas pessoas, não sei se o piloto não viu, ou se não foi avisado de que ali havia muita terra solta, a aeronave foi passando sobre a multidão e levantando uma nuvem de poeira vermelha que impedia as pessoas de abrirem os olhos ou respirar. De repente tudo ficou vermelho, só se viam espirais de poeira e chapéus rodopiando no ar.

O piloto, percebendo a situação embaraçosa, subiu novamente com a aeronave, e tentou entrar pela outra extremidade, onde a praça embicava com a sorveteria. Mas, de nada adiantou. Outra nuvem vermelha de poeira se ergueu juntando-se à primeira, e os chapéus que ainda estavam nas cabeças rodopiaram no ar. Foi tudo tão rápido e espantoso que todos ficaram sem ação, não conseguiam raciocinar. As pessoas se agachavam, tentando fugir do vento e da poeira. Nada mais podiam fazer porque o vento era tão forte que não havia como correr.

O piloto fez várias tentativas desastrosas de pouso, ora de um lado, ora de outro, e a praça durante alguns minutos virou uma nuvem de pó, uma bolha vermelha. Eu estava quietinha na linha de frente, agachada e tampando o nariz com as mãos em concha, o que me permitia respirar com certo conforto.

Quando finalmente o piloto pousou a aeronave no centro da praça, e a porta lateral foi aberta, a candidata apareceu e levou um choque com o que viu mais de perto. A praça era o caos instalado. Quem não estava agachado, estava em pé se debatendo e sacudindo a roupa coberta de terra vermelha. Outros, desesperadamente tentavam limpar os óculos para que pudessem enxergar e entender o que havia acontecido. Os homens, assustados e incrédulos, com as mãos na cabeça, tentavam organizar as ideias, os pensamentos, tentavam decidir que rumo tomar, para qual lado sairiam em busca dos chapéus. Havia chapéus espalhados pela praça toda. Eram centenas e centenas... Debaixo da figueira, o chão estava forrado de chapéus, todos cobertos de pó vermelho, e assim, vistos de longe, pareciam todos iguais. O problema é que não eram...

Aí foi o corre-corre. Os homens iam pegando os chapéus do chão, um a um. Cada um dava uma batida com eles nos joelhos para pelo menos enxergar se a cor conferia com o que era seu, colocava na cabeça, caso não servisse, se não fosse a sua medida, jogava novamente o chapéu no chão e saía à cata de outro... Um caos.

De longe eu via o desespero do meu avô. A cabeça descoberta, os ralos fios de cabelos brancos, empoeirados, e a testa grande exposta aos raios do sol brilhava pouco devido a uma pequena camada da terra vermelha grudada pelo suor. Virava de um lado para o outro, nem sabia o que fazer. De repente eu o vi entrar na multidão que catava chapéus, depois, desapareceu das minhas vistas.

A candidata, constrangida, acenava timidamente com a mão em um cumprimento encabulado, mas ninguém prestava a menor atenção. Neste momento, as famílias ajudavam na procura do chapéu do pai, do marido, do tio, do avô... Era um corre-corre na praça que ninguém se entendia!

Os cabelos da mulher do prefeito, que antes da chegada do helicóptero estavam arrumados num grande coque no alto da cabeça, mostrando o capricho da cabeleireira em desfiar os fios para darem mais volume, o cuidado em organizar tudo num belo coque e fixar o penteado com laquê, agora, depois do episódio, estava uma calamidade. O vento excessivo provocado pelas hélices do helicóptero havia desfeito o coque, e as mechas de cabelo, antes desfiadas, se erguiam para o céu como um ninho de guaxe, desfeito. E se isso não bastasse, ela ainda estava coberta de pó. Que cena deprimente, ridícula! O prefeito tentou ajudar passando a mão na cabeça dela por várias vezes para abaixar aquele chumaço, mas foi em vão... Para abaixar aquilo só mesmo lavando os cabelos!

A confusão na praça durou cerca de meia hora. As pessoas estavam desorientadas, decepcionadas, e algumas estavam bem nervosas. Principalmente os homens. Muitos ainda não tinham encontrado o chapéu, resmungavam, praguejavam, e olhavam desconfiados para os chapéus que estavam nas cabeças daqueles que julgavam ter encontrado o chapéu certo.

Ainda não tinha cessado completamente o tumulto quando a candidata iniciou o comício. No palanque, as autoridades não escondiam o constrangimento. Todos estavam num estado deplorável, exceto a candidata que presenciara tudo de dentro do helicóptero. Ninguém ouviu nada do discurso da candidata, nem quando ela passou a palavra para o prefeito, ninguém prestou atenção a nada. As falas foram como monólogos sem plateia. O tino de ninguém estava ali... Ninguém mais queria comer sanduíche, nem tomar refresco. Na boca, a terra vermelha fazia os dentes rangerem.

E o comício acabou... Conforme as pessoas iam descendo do palanque, os dois milicos de uniformes cinzas, agora cobertos de terra vermelha, tentavam abrir espaço para que a candidata pudesse retornar ao helicóptero. Aí, percebido isso, foi uma correria geral. Ninguém queria presenciar a decolagem. Outra vez a nuvem de terra vermelha, o rodopio dos chapéus no ar... E todos corriam em busca de um abrigo, fora da área da praça.

Eu corri para a sorveteria, mas muitas pessoas, como foi contado depois, saíram em tão desabalada carreira que conseguiram chegar às suas casas antes mesmo do helicóptero decolar.

Após a partida da candidata, ainda havia chapéus no chão, e ainda havia homens catando, sacudindo o pó e os experimentando. Enfim, o evento se tornou uma calamidade. Foi tão triste que ninguém mais quis falar sobre isso. Nunca mais se falou no ocorrido. Todos se calaram... E o mais impressionante é que nunca foi comentado se a candidata obteve algum voto na vila ou não. Nada nunca foi falado.

Meu avô, que tanto se preparou para a recepção daquele dia, que teve seu chapéu de passeio arrancado da cabeça pelo vento provocado pelas hélices do helicóptero, um velho português, bravo, turrão, mal-humorado, sistemático, nunca se conformou com o ocorrido.

Na sala da casa dele havia um mancebo de madeira, e ali ficavam o guarda-chuva e seus dois chapéus de feltro: o de uso diário e o chapéu de passeio. Diariamente ele se sentava na cadeira da sala, ao lado do rádio, de frente para o mancebo. Ali ouvia, todas as noites, os programas de rádio. Depois do ocorrido, ele sempre espreitava o chapéu de passeio no alto do mancebo, e falava com a mesma convicção que aquele chapéu, apesar de idêntico, não era o dele.

Durante muito tempo, silenciosamente, continuou tentando identificar o seu chapéu na cabeça de outro morador da vila.

E ele morreu, seis anos depois, sem mudar o discurso.   

 

                            Regina Ruth Rincon Caires                        

                                                                   





sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O equívoco




O professor passou o enunciado: “Você está na areia da praia. 

O mar está revolto e você percebe um braço que aparece e desaparece 

entre as ondas. Inspire-se”. Eu tinha uma hora e meia para a prova de redação. 

E saí escrevendo.   


“O dia amanheceu morno, bom para uma corrida na areia da praia. 

O sol tímido logo foi engolido por nuvens cinzentas, que por alguma 

implicância, começaram soltar pingos grossos, ao sabor dos ventos 

cruzados, os mesmos que deixaram as ondas batendo cabeça. Lembro do 

meu tio oficial de Marinha dizendo que, quando esse fenômeno se dá, 

chama-se de mar encarneirado, tamanha a semelhança das espumas brancas 

com um rebanho de ovinos à solta. 


O espetáculo da natureza me paralisou. De tanto contar carneirinhos, 

tal numa noite insone, vejo algo se debatendo. Uma onda subversiva? 

Um peixe voador? Uma arraia em sofrimento? Um golfinho arteiro? 

Um sinal do sobrenatural?


Não. Um braço. Uma pessoa se afogando, dizem minhas certezas, quando 

já estou com água pela cintura, apanhando da arrebentação, mas decidido 

a por em prática minha breve vivência de escoteiro do mar. E disposto, 

parto a nadar em direção ao reboliço que aparece e desaparece entre os 

inquietos carneirinhos, até que some de vez, me fazendo girar o olhar em 

quase desespero pela frustração. 


Mas eis que uma força me surpreende e me submerge, levo uns tapas, sinto 

arranhões no pescoço quase sufocado, mas ainda guardo forças para emergir 

com uma pessoa pendurada em mim. Instintivo, consigo dominar o que não era 

um peixe grande, um polvo de Júlio Verne, uma lula gigante desembestada. 


Era uma moça loura aparentando pouco mais do que minha idade. Do jeito 

que deu, consegui levá-la à areia, com meu braço direito fazendo uma gravata 

suave no seu pescoço e o outro vencendo ondas furiosas e a arrebentação. 

Chegamos exaustos, ela pior, com evidentes sinais de afogamento, porém viva, 

pulsando, pupilas com diâmetros normais. 


A praia estava vazia. Arrisquei a respiração boca a boca, tapinhas no rosto 

e massagem no peito. Instantes depois ela jorrou um aguaceiro. 

E eu me senti um herói. 


Àquela altura os salva-vidas haviam chegado, e ao colocá-la na maca, viva e 

assustada, travamos os primeiros contatos verbais. Com forte sotaque, ouvi 

que era uma austríaca, de nome Brigitta, estudante em Campinas 

e que viera conhecer as areias desertas da Barra da Tijuca. No rápido percurso 

da maca, tentei dizer o meu nome, João Pedro, mas acho que ela não entendeu. 

No entanto, o sorriso que me disparou antes de fechar a porta da ambulância 

foi desconcertante.”

 

O professor me chama à sua mesa vetusta.

- João Pedro, certo?

- Sim, senhor.

- Pois bem, meu rapaz. Sua redação é um grande equívoco. 

- Sim, professor.

- Você não prestou atenção no enunciado da questão. 

Olhe aqui: não é braço que está escrito. É barco. Bar-co. Sabe o que é barco?

- Sim, é verdade, professor. Errei. 

- Errou feio. E acabou escrevendo essa xaropada.


Não sei se as palavras do professor foram determinantes para que não escolhesse 

a escrita imaginária na minha vida profissional. Sei lá. 


Hoje tenho Pós Doutorado em Geografia, sou professor de Climatologia, palestrante 

mundo afora e ativista de uma ONG focada nas ameaças do ser humano ao meio 

ambiente, e suas consequências desastrosas para o planeta. 


Não há um dia sequer que não tenha uma vontade danada de saber 

como vai Brigitta.   






quinta-feira, 19 de novembro de 2020

84ª Carta ao Além.

 



Estou sentada, me retorcendo ao avesso, querida Deusa; e até supus não conseguir escrever. Mas eis que me envolve uma vontade danada, e, para sair do lugar-comum, do marasmo em que me encontro, reúno – maldispostas, é verdade – essas porções de vontade, para não deixar que se dilacerem, por si mesmas, no fundo de meu ser.

***

Não calculo bem as horas, com essa idade toda; elas me fogem pelas mãos frias. Parece que tateei as linhas do caderno por toda a manhã. Ponderei esmiuçar aqueles dias ensolarados da mocidade; mas, talvez, deponham contra mim a memória. Tenho a cruel sensação de que não fiz o que devia.

Ontem, depois de alguns meses enclausurada, me surgiu, com um semblante de serenidade, o sempre simpático senhor Cipriano. Há tempos não nos víamos – desde, imagino, o começo do ano, quando ele andava com seu netinho do outro lado da rua e acenou para mim.

Nesse bendito encontro, ele me falou umas boas palavras, como se sentisse a minha intranquilidade – de fato, para bom apreciador dos traços humanos, não seria difícil perceber. Tratou de se chegar, sem dar a mão em cumprimento, claro; contudo, abraçava-me com os olhos e a voz. Nem sei em que tempo senti essa espécie de doçura, que tanto falam, da amizade. Logo, rindo, disse: “Eu me arrependo do que fiz, dona Creuza. Se fiz, posso ao menos me arrepender”. No contexto em que estávamos, notei que falava mais para puxar assunto. O pensamento, traiçoeiro, voou para a dita mocidade. Acho que ele alcançou a minha presença, não-presença, volátil e se despediu, colocando-se à disposição para o que fosse preciso; compras e afins, em mercados, etc. Sendo também do grupo de risco, pela idade avançada, bem se viu mais moço e preparado para enfrentar o tal do Covid.

Veja só, Deusa, minha amiga, jamais cogitei ultrapassar a solidão que já havia. Sei que, no tempo de mamãe, arrasou essa terra a gripe espanhola. Ela mesma contava, nos seus momentos de lucidez, o que teria suportado, com parentes e amigos vitimados da noite para o dia. Um clamor geral. Não existiam meios; compreendo que bem pior do que agora. Mas a morte em progressão arrasa os sentidos, desequilibra a razão para suplantar a dor.

A memória, como contei, me prega peças. Ia me esquecendo de dizer que o senhor Cipriano, no auge da pandemia, bateu em minha porta insistentemente. Na hora, não percebi a gravidade, e o cuidado que teria por mim. Depois de alguns minutos, talvez mais de meia hora, atendi-o, sem colocar meu corpo na varanda. Perguntou se eu estava bem e se precisava de algo. “Não, querido. A Maria, minha sobrinha, ficará comigo uns tempos. Ela está encarregada de comprar o necessário. Muito agradecida”.

Bem, na verdade, não sou de mentir; mas, dada a circunstância e a persistência, resisti por medo de ser invadida. Maria existe, não é invenção de minha cabeça. Ela mora a quilômetros daqui. Não ficou comigo; entretanto, mandava sempre os preparados: comidas congeladas e algum suprimento extra. É uma menina boa, prole de minha irmã falecida, a Hermelinda, mas, coitada, tem um filho doente e foi abandonada pelo marido. Devo ser fiel às palavras: seu marido, que não cheguei a conhecer a fundo, é um bandido perigoso. Somente depois de anos de casada, Maria soube dos trambiques, com a polícia na sua porta. Parece-me que o sujeito anda preso ou exilado. Maria, ainda assim, se refez, trabalha e cuida do filho, com a ajuda de uma amiga. Não posso ocupá-la com mais problemas. O que faço, e é pouco, conforme me permite a aposentadoria, é enviar-lhe uns trocados, que mal devem dar para a sustância da semana.

***

Desculpe-me por esses trechos picotados. Tenho dificuldade de alongar as ideias, que vêm escassas, ou às vezes não me sobra nada. Não sei se falei, em algum instante, do meu medo de ficar completamente esquecida, com a doença que comprometeu minhas duas tias e, especialmente, minha amada mãezinha.

O esforço para lhe escrever, amiga, tem o motivo de deixar algumas memórias registradas. Saiba que, na juventude, por muito pouco não fui freira. É, isso mesmo. Imagino que essa questão pode lhe causar surpresa. Como vivia em Missão Velha, e as oportunidades eram vazias, estudei e me formei como professora. Porém, aquilo não ia bem; as crianças, paupérrimas, chegavam à escola sem terem feito sequer a primeira refeição. Contorcia-me com o horror. Quantas vezes não comprei, de meu bolso, bolachas, farinha, mel etc., para fazer cessar as perturbações daqueles olhos ávidos. O ensino era secundário. Quando dava. E me brotou a fantasia de que, sendo freira, já que vivia na igreja, e não tinha pretensão de me casar, seria o jeito de mudar aquela situação. Cheguei a ir ao convento. A madre superiora, Irmã Dionísia, tinha o dom de olhar além; rejeitou não só a mim, mas uma porção de meninas da minha idade, declarando, resoluta: “Esse caminho não é para você, mocinha. Não podemos lhe receber”. Contentei-me, e foi o bastante, em ser professora, até quando pude.

Outro relato importante, ainda na esteira do que me provocou Cipriano, é que me ardiam ideias revolucionárias. Inteirei-me da política, de que não sabia nada, e conheci, pelos jornais e por livros, um moço chamado Ernesto Guevara. Papai cortou minhas asinhas, como disse; propriamente o dinheiro que me ajudaria a atravessar o Nordeste e, quiçá, engajar-me numa dessas trincheiras que se formavam por aí. Ouviam-se notícias de comitês, agremiações e congêneres, para lançar uma derrubada arrebatadora aos modelos do Norte. Papai, homem direito, mas fechado para o mundo, achava que nada fora de nossas divisas interessava, quanto mais para uma donzela bem criada como eu. Findou que, por medo, dei andamento às minhas atividades como professora, pensando que podia ajudar assim; ou mais, quando a revolução irrompesse. Não vingou a revolução. Então, a fiz do meu lugar, lutando pela igualdade.

Papai passou a me achar atrevida demais, me metendo em assunto de homem, que não competia a mim, quando pegou uns papéis escritos. Tive a pretensão de preparar um romance. No entanto, ele deu fim a essas folhas e consegui, somente após a sua morte, publicar dois livros, um de poesia e um de contos.

***

Tenho muito a dizer. Talvez o faça em outro momento, se sobrevierem forças. Digo que ainda me inquietam as palavras do senhor Cipriano, homem humilde, porém sábio. Não sei muito sobre a sua vida. Parece-me que gozou da liberdade. Tem um ar vigoroso, humano, de homem revolucionário. Pelo menos, para amainar essa perturbação em que me encontro, sei que promovi pequenas revoluções. Do lugar que saí, deixei sementes. Helena é uma delas. Vez por outra, vem à minha casa. Agradece por ter tido tão boa professora e julga que, por mim, entrou para a política. Para que não haja interpretações errôneas a meu respeito, digo que não tratava de minha ideologia nas aulas, mas, decerto, fazia com que os alunos elaborassem os seus pensamentos, para a causa da humanidade.

***

Deusa, minha querida, acho que já tomei bastante o seu tempo. É muito ocupada, disso eu sei. Acomoda tantos afazeres mundanos, importantes… Queira me permitir, nalgum dia, olhar a sua face e agradecer-lhe, como é devido, o dom da vida. Pude mais do que supunha, apesar da fraqueza, da mediocridade; coisas humanas, carnais, que atravancaram o meu caminho… Se considerar que fui uma boa menina, me conceda a derradeira e almejada paz.

 






segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Mirena, hoje está tão seco - conto de Betzaida Mata




          Nunca vi sorveteria com rádio. E justo nessa estação? Coisa mais saudosista. Logo a música do A-ha, por quê? Eu só queria tomar um sorvete, adoçar a boca, esfriar a cabeça. Com essa música não tem jeito. Não vim aqui para sofrer com o passado. Crying in the rain num tempo seco desse parece até piada. A cidade fica tão feia quando não chove. Tudo cheirando a coisa velha. É impressão minha ou antigamente chovia mais? Tenho tanta lembrança de temporal de quando eu era moça. Moça? Sei lá. Treze anos. Adorava subir a rua da mercearia, até lá em cima, e ficar olhando a paisagem depois da chuva. “Cuidado, menina, lá é muito ermo. Cheio de lote vago”. Minha mãe morria de medo da parte alta do bairro. Mas eu gostava. Dava uma sensação de limpeza, aquela paisagem toda úmida. Mas agora... Parece que está tudo empoeirado. De que adianta conseguir uma brecha para sair de casa se não posso respirar ar puro? 

          Ser mãe de três filhos é viver numa prisão. Três? Não pensa, Mirena, não pensa. Três e pronto. Você não saiu de casa para isso. O tempo já passou. E não tem nada de prisão. “Filho é benção”, Leila me proibiu reclamar das crianças. Eu me calo. Brigar com Leila pra quê? Não fosse ela, estaria agora em casa naquele suplício. “É só por uma hora. Preciso dar uma volta e espairecer”. “Pode ir, eu olho os meninos pra você.” Então, se ela me diz que filho é benção eu só posso concordar. Leila conhece a história. Não fala nada, mas me olha com aquela cara de “eu não esqueci”.  Eu era tão nova, meu Deus. Nem pensei no que estava fazendo. E no fim, deu tudo certo, não deu? Ainda posso subir a rua da mercearia. A vista não vai estar bonita como naqueles tempos, mas ainda posso. 

          Queria agora estar em um filme. Aí, nesse instante, teria um corte e a legenda em letras garrafais: “VINTE E SETE ANOS ATRÁS”. Então, iria aparecer a rede de vôlei estendida, atravessando a rua, os mastros presos a latinhas de Nescau cheias de cimento e o céu coberto de nuvens anunciando um temporal. “Anda! Entra pra dentro que vai chover!”, as mães começavam a gritar pelas janelas das casas.  A gente se fazia de surdo e continuava a partida, os pingos grossos caindo, a lama dos terrenos baldios descendo para a rua. Aos treze anos eu era linda. Diziam que eu me parecia com a menina da propaganda do chocolate Laka. Acho que parecia mesmo, exceto pelos meus pés ligeiramente tortos e as coxas grossas demais para quem ainda era uma menina. 

          Ninguém mais se lembra da propaganda. Do you like me?, a jovenzinha em frente ao espelho fazendo caras e bocas ao som do A-ha. I’ll do my crying in the rain. Corte para a cena do banco de praça. Um adolescente de cabelos lisos e rosto de anjo devorava um chocolate à espera da menina. Eu demorei muito? Todo mundo dizia que ela era linda e que eu me parecia com ela. Eu trouxe um Laka pra você, o adolescente desconcertado. Ela lhe perguntava cadê e ele lhe dava um beijo. Ninguém mais se lembra. Mas a Leila não se esquece. “Naquela época você já tinha corpo, Mirena”.  Ela que era magrela demais. Quatorze anos e ainda nem tinha menstruado. Acho que sentia inveja de mim. Os homens mexiam comigo. “Que linda!”, “Ô menina do chocolate Laka!”. Eu gostava. Alguns exageravam: “Ô gostosa”. E eu não sabia ainda se aquilo era bom ou ruim. Aos doze, já beijava na boca dos rapazes. Por aqui, isso era normal desde aquela época. Só não podia deixar passar a mão. Nem mesmo por cima da roupa se podia deixar passar a mão na bunda ou nos peitos. Hoje em dia as coisas são mais liberadas. 

          E se eu voltar à sorveteria? A música já passou, adoço a boca e esfrio a cabeça. Será que ainda dá tempo? A essa hora, deve estar fechada. Vai começar a escurecer e é melhor voltar para casa. Perigoso andar sozinha domingo à noite, fica tudo tão ermo! Naquele dia estava exatamente assim, as ruas desertas, o sol indo embora. Olha lá, foi só pensar que atraí coisa ruim! Que homem é aquele, meu Deus? Atravesso a rua ou sigo? Se atravesso, ele pode se sentir ofendido. Se eu seguir, é mais fácil dele me atacar. Calma, você não é mais uma menina. Homem nenhum vai querer atacar uma senhora de quarenta anos. Vê? É só um jovem. É só... Meu Deus, já virou um homem!

          – Tudo bem, Mirena?

          “Mirena”, é assim que ele me chama. E daí, é este o meu nome, não é? Agora virou homem de verdade. Vinte e sete anos. Vinte e sete mais treze é igual a quarenta, a minha idade.  “Agora sim, ele já tem corpo”, diria a Leila. E os mesmos pés tortos de quando era ainda um menino magrelo. É lindo. Eu também era linda.   

          – Oi. Você está sumido.

          – Estou morando em Ouro Preto. Mas você já sabia disso.

          – Sim, é verdade. Dona Francisca me contou quando você passou no vestibular. Por falar nisso, como ela está?

          – Com câncer. Não te avisaram?

          – Câncer? Não sabia. 

          – Você devia ir visitá-la. 

          Devia mesmo. O mínimo que devo a essa mulher é gratidão. Carregou minha carga sobre os ombros. E que carga!  

          – E a faculdade?

          – Está bem. No final do ano, eu me formo. 

          – Já? Então deu tudo certo, não deu?

          – Deu sim, Mirena. 

          O menino de dona Francisca, era assim que o chamavam. Você, um bebê chorão que passava pela rua da minha casa a caminho da creche e me fazia sofrer de um jeito que eu não queria. Tudo naquele bairro – as ruas, a vizinhança, a mercearia e os terrenos baldios – pareciam me censurar como se a mim não fosse lícito o sofrimento. “Não pense mais nisso, Mirena, segue sua vida”, Leila uma vez me disse quando ainda conversávamos sobre este assunto. 

          Ninguém o suportava. Um demônio! Furava pneus de carros, danificava os produtos da mercearia, inventava mentiras que provocavam brigas entre a vizinhança inteira. Era esperto. Algumas vezes, chegava a ser cruel. Feito o dia em que convenceu Lili, a filha da Mariana, a beber querosene. Disse que era bom para emagrecer. E ela gordinha, coitada, bebeu logo o vidro inteiro. Leila, que na época já tinha carro, correu com a menina para o hospital e fizeram uma lavagem gástrica. “Esse jeito do Marcos é por causa da revolta que ele tem dentro dele”, voltando do hospital, ela se punha a comentar com as vizinhas, cheia de compaixão, enquanto desferia contra mim o olhar envenenado. Eu só tinha treze anos, Marcos, o que eu podia fazer?

          – Que bom, você já está encaminhado. 

          – Dei muito trabalho quando era menino, né?

          Não para mim. Deu trabalho para dona Francisca, que teve a compaixão de o pegar para criar. Para suas professoras que se descabelavam quando quebrava portas das salas de aula e esvaziava extintores de incêndio da escola. Depois, deu trabalho para a polícia. Para mim, nunca. 

          – Normal, Marcos, era coisa da idade. 

          – Se eu pudesse, pediria desculpas pra todo mundo. Principalmente pra você, Mirena.

          – Você pedir desculpas pra mim? Não deveria ser o contrário?

          – Você era nova. Treze anos é até covardia! Minha mãe vivia falando isso comigo. Pra eu não guardar raiva que você era muito menina. 

          – Dona Francisca tem o coração bom. 

          Desculpa? Só se for por causa daquela vez. Quantos anos você tinha naquela época? Uns doze? Eu ainda era solteira e trabalhava na mercearia. Você entrava escondido, abria embalagens de iogurte, bebia pela metade e deixava o resto ali, fazia questão de deixar as embalagens pela metade para que seu Raimundo pudesse ter certeza de que você tinha passado por lá e aprontado mais uma das suas. Eu o protegia. Claro! Já havia falhado miseravelmente no princípio de tudo (eu era uma menina, Marcos, você precisa entender). Seu Raimundo conhecia a história, mas nunca comentou comigo. “Esse garoto é a própria encarnação do demônio.” Eu engolia seco e abaixava a cabeça. Não gostava que falassem assim de você perto de mim. Um dia, ele me ameaçou: “A próxima vez que eu souber que esse diabo entrou aqui, você está na rua!” Poucas horas depois e lá estava você. “O que você quer, Marcos?” “Vim comprar leite para minha mãe”. “Vai embora. Seu Raimundo não quer você aqui.” Você me ignorou e continuou seguindo. “Some daqui que eu estou mandando, moleque desgraçado!” Por que fiquei tão furiosa? Você estancou, caminhou lentamente até o balcão e começou a despejar as palavras, feito um saco de espinhos. “Está pensando que é quem para mandar em mim? Sua ridícula! Quem manda em mim é minha mãe. A minha mãe, entendeu? Dona Francisca. Você é só uma imbecil que deveria estar morta. Eu te odeio mais que tudo”. Falava pausadamente, sem elevar o tom de voz, os olhos faiscando a colocar para fora todo o ódio do bebê recém-nascido jogado fora num terreno baldio.  Depois, se enfiou pelas prateleiras, abriu um vidro de água sanitária e despejou tudo no chão, lentamente, encarando-me como quem desafia. Então, correu para o fundo da venda e começou a quebrar, um por um, os ovos expostos em caixas. Quatro dúzias ao todo, que foram descontadas do meu salário. Além da água sanitária, dos três litros de leite e de cinco tomates espatifados pelo chão. “Eu quero que você morra!”. Seu Raimundo apareceu na hora e lhe deu uma surra. Que surra! Dona Francisca foi até lá, furiosa, disse que ia chamar a polícia porque um adulto não podia bater assim numa criança. “Pois pode chamar, dona Francisca. Mas não reclame depois se levarem esse delinquente para a Febem!”. Ela recuou. “Ele é revoltado, seu Raimundo. Por causa da história dele”. O velho me olhou de lado. “Não tenho nada com isso. Deixa pra lá. Esse prejuízo quem vai pagar é a Mirena.” Naturalmente, aquela conta cabia a mim e a mais ninguém. “Mas a senhora, dona Francisca, trate de fazer alguma coisa, não quero ver seu filho passar nem na porta da mercearia.” Ela deu um jeito e você nunca mais apareceu ali por perto. Depois, eu tive notícias, continuou aprontando na rua, nos bares, até que criou juízo e foi estudar. Eu me casei e tive mais três filhos. Nesse meio tempo, nós nos vimos poucas vezes, uma ou outra missa, um ou outro velório. E a vida seguiu. 

          – E seus filhos, como estão?

          “São três, não são?” É o que os vizinhos até hoje me perguntam, com um misto de curiosidade e malícia. Não, não são. 

          – Bem. Já estão crescidinhos. 

          – Eu vi. Estive agora lá na casa da Leila. 

          Se acabou de vê-los, por que me perguntou? 

          – É impressão minha ou a sua filha mais nova é canhota?

          Ele percebeu. 

          – É canhota, Marcos, igual a mim.

          – Igual a mim também. 

          Canhota e das pernas tortas.

          – Foi bom ter te encontrado. Preciso ir, os meninos devem estar dando muito trabalho para a Leila. 

          – Que nada. Estavam tranquilos, desenhando com lápis de cor. Vamos conversar mais um pouco. 

          Conversar? Mas o quê?

          – Preciso ir. Além do mais, daqui a pouco vai chover e estou sem sombrinha. 

          – Chover? Mirena, hoje está tão seco! Não quer tomar um sorvete comigo? 

          – Será que ainda dá tempo?