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quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Forjando Alianças


Na Madrugada dos Tempos - Parte 19


Para vencer - material ou imaterialmente - três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à falta de melhor nome, se chama sorte.

Fernando Pessoa (1888-1935)

Escritor português

 

Mirsulo estava feliz. Aqueles homens e mulheres, apesar de culturalmente mais atrasados, recebiam-nos como irmãos e, principalmente, salvaram a vida do primogénito. É verdade que tinha muitos filhos das suas quatro esposas, mas Tibaro, além de mais velho, sempre fora o seu favorito. Era aquele que lhe recordava ele próprio, quando era mais jovem.

Olhou Erem de perfil, enquanto este contava uma peripécia de caça a Savirio. Era um rosto de linhas firmes, nariz forte e queixo bem delineado. Os seus olhos castanhos olhavam diretamente nos do seu interlocutor, sem se desviarem. Gostou daquele homem assim que o viu; alguém que se preparava para se defender de um grupo de jovens guerreiros armados com um bando de velhos, mulheres e crianças…, mas alguém que se defenderia mesmo assim, nunca se renderia sem luta. Naci, o filho, era sem dúvida da mesma cepa, embora talvez um pouco mais impetuoso.

— Tenho uma oferta para te fazer. — Mirsulo interrompeu Erem, que o olhou com curiosidade. — Salvaste o meu filho, um estranho, sem esperar nada em troca. Quero oferecer-te uma filha! Desejo que o teu filho Naci, sei que não tem mulher, tome como esposa Tuana, uma das minhas filhas. Será muito bom ter um neto com o sangue de tal bravo.

Se Savirio o olhou com incredulidade, Erem olhou com satisfação.

Foi o curandeiro quem primeiro reagiu à proposta: —Uma das tuas filhas? Para viver no meio… deles?

— Sim. — O chefe hati estava decidido e encarou o seu companheiro de viagem com uma expressão que o silenciou. — Mandarei um dos meus construtores para construir uma casa digna da filha de Mirsulo. — Depois tornou o olhar para o chefe de Barinak. — Isto, se concordares.

— Será uma grande alegria receber a tua filha, que será como se a minha fosse. — Afirmou Erem alegremente. — O teu construtor terá muitos ajudantes.

— Quero também propor-te outra troca. — Mirsulo estava imparável. — Vejo, pela variedade de carnes salgadas que me apresentas, que tens acesso a abundância de sal; que queres trocar por alguns cestos de tempos em tempos?

— O sal que temos vem da grande água a dois dias daqui. — Esclareceu Erem simplesmente. — Os comerciantes que o tiram da água trocam a qualquer um.

— Sim, eu sei. — O chefe hati sorriu. — Mas fica a dois dias de viagem para ti, para mim são mais de quatro e outros tantos de volta. Antes, íamos a uma mina de sal a menos de três dias para Ner [1]de Hatiweik. Há algumas luas, um grande bando de nómadas apossou-se da aldeia e da mina e não negoceiam, ou simplesmente pedem coisas impossíveis. Se trocasses sal comigo, os meus carregadores fariam apenas dois dias de viagem. Que quererias em troca?

Erem fitou o rosto largo e sincero do seu homólogo enquanto pensava se deveria pedir já o que lhe interessava, ou se começaria por outra coisa qualquer. Após uns segundos, como impaciente que era, resolveu ir logo diretamente ao assunto: — Quero saber como se consegue isto. — Apontou a reluzente placa de cobre, decorada com gravações, que Mirsulo trazia ao peito.

Savirio olhou com espanto para Erem e depois para o seu chefe, com a expressão: “Eu não te disse?”

O chefe dos hati olhou para a placa enquanto a acariciava pensativamente. Depois, num gesto rápido, tirou a tira de couro com que a suspendia ao pescoço. Sob o olhar atento do seu curandeiro e, exibindo um sorriso nervoso, colocou-a em Erem que ficou visivelmente agradado.

Lemi bateu as palmas com satisfação pelo gesto.

— Salvaste o meu filho! — Reafirmou Mirsulo gravemente. — És meu irmão! — Agora diz-me, irmão, queres o quê exatamente? Estes adornos? — Exibiu as pulseiras que subiam em espiral pelos braços em grossos fios.

— Preciso de armas melhores. — Respondeu Erem, aliviado por poder falar francamente. — Temos sido atacados e roubados por estranhos que trazem armas como as vossas; as lanças espetam-se melhor e as facas não se partem e são mais compridas.

— Obter o cobre não é fácil. — Explicou o chefe hati. — É precisa grande magia para roubar o sangue de fogo das pedras.

— Magia? — Lemi e Erem surpreenderam-se.

— Sim, claro, como acham que conseguiria fazer uma coisa tão dura como pedra? — Savirio adiantou-se. — Só os mágicos é que atiram pedras para o fogo e transformam-nas no sangue da terra. Um líquido grosso que corre em brasa e queima tudo em que tocar.

— Também temos sido atacados aqui e ali por esses bandidos. — Informou Mirsulo, desviando a conversa. — Não se atrevem muito próximo de Hatiweik porque sabem que está bem protegida atrás dos muros. Mas atacam as casas dos agricultores que existem em volta, matam, roubam e destroem tudo. São os mesmos que se apoderaram das minas de sal. Os meus espiões dizem que vieram de Ner, são muito numerosos e não param de chegar mais.

— Deveríamos tê-los atacado quando se apoderaram das minas e eram menos. — Censurou Savirio. — Conforme te recomendaram o teu filho e os chefes guerreiros.

— Mesmo quando eram menos, — Mirsulo não ficou contente com a censura do curandeiro —, continuavam a ser muitos e morreriam muitos dos nossos para os destruir. Os nossos homens estão habituados a exigir tributos a comerciantes reticentes, castigar ladrões e a expulsar desordeiros. Lutar contra guerreiros armados e acostumados à guerra    será muito diferente.

— Antes o problema era difícil, agora é praticamente impossível… — insistiu Savirio.

— Chega! — Ordenou o chefe hati estendendo a mão com a palma para baixo na direção do seu subordinado. — Se se tratasse de um simples bando de salteadores já estavam eliminados. Mas são um número muito grande de guerreiros, que correm nas costas de cavalos, armados com lanças e flechas.

— Cavalos? — Lemi arregalou os olhos? — Como conseguem subir nas costas dos cavalos?

— Também não sabemos. — Mirsulo mostrou-se desanimado. — Sempre usamos burros como animais de carga, alguns deixam-se montar, principalmente aqueles que nascem dos que apanhamos selvagens. Mas os cavalos, é quase impossível apanhá-los com vida, quanto mais montá-los.

— A solução é unir forças. — Sugeriu Lemi, calando-se de imediato e desculpando-se com um olhar a Erem.

— Estariam prontos a lutar ao nosso lado? — Mirsulo mostrou-se interessado. — Há outros povoados nossos amigos… realmente, se nos uníssemos todos…

— Teria de falar com todo o meu povo. — Erem fez uma expressão de desagrado. — Não poderia simplesmente dizer-lhes para caminharem para a morte.

— Ou para a vitória. — Acrescentou Savirio.

Fez-se um silêncio pesado entre eles enquanto cada um se refugiava nos seus próprios pensamentos.

Erem interrompeu as meditações: — Mas quanto ao cobre. Que temos de fazer para o conseguir?

— Em troca do sal… — começou Mirsulo fazendo uma expressão pensativa —…, poderemos dar-vos pontas de seta e de lança. O problema é que não há tanto cobre como possas pensar. Não são quaisquer pedras que os mágicos querem, têm de ter uma cor e um aspeto que eles exigem. Temos de escavar muito para encontrá-las, outras vezes, são trazidas por comerciantes provenientes de Hewsos[2], mas não dizem de onde vieram exatamente.

Zia, ultrapassado o aborrecimento, regressou ao convívio e sentou-se pesadamente ao lado de Savirio, para desagrado deste. Erem dedicou-lhe um sorriso triste a que ela correspondeu.

— Os teus mágicos poderiam ensinar-nos quais as pedras a procurar… — sugeriu Lemi, espreitando por cima da cabeça de Zia.

O curandeiro hati voltou a deitar um olhar de alarme ao seu chefe.

— Estamos a falar sobre o cobre. — Erem informou a mulher. — Mirsulo diz-nos que são mágicos que produzem o cobre, queimando umas pedras.

— Nunca ouvi falar dessa magia. — Entendida no assunto, a xamã emitiu a sua opinião. — O poder dos deuses é pedido em muitas ocasiões, nem sempre conseguido. Que fazem essas pedras queimadas?

— Transformam-se no sangue da terra! Vermelho, fumegante e queima tudo em que toca. Quando arrefece fica duro como a pedra. — Explicou Savirio, com ar de superioridade.

— E qual o deus que abençoa essa transformação? — Questionou ela assumindo a mesma postura.

— Mas que queres saber tu, mulher, destes assuntos de homens? — A agressividade do curandeiro regressara.

— Não me vais voltar a fazer sair da minha própria casa! — Rosnou Zia entre dentes, mas suficientemente alto para que os mais próximos ouvissem. —Tal como o sol e a lua, também o homem e a mulher foram criados diferentes e iguais no Primeiro Amanhecer! Se Da Pater é o deus pai, Da Mater é mãe, irmã e esposa! A mulher não está abaixo do homem, mas a seu lado! — Os seus olhos pareciam soltar chispas na direção de Savirio. — Eu sou a sacerdotisa de Swol, xamã do Clã do Leão das Montanhas. Sou a voz e a mão do deus. Sou xamã, caçadora, guerreira e mãe, mais do que tu alguma vez serás! És meu convidado e ouço o que dizes, tu deves respeitar a mim e a minha casa!

— Ouço-te, esposa de Erem e xamã! — Mirsulo tomou a dianteira rapidamente, calando Savirio com um gesto. — O curandeiro-maior do meu povo respeitará a tua posição, apesar de seres mulher e isso ser diferente dos nossos costumes. — Depois olhou diretamente para ele. — Se ele não se sentir bem, tem a minha autorização para se retirar. Não te voltará a afrontar.

Savirio corou da cabeça aos pés e olhou o seu chefe de soslaio por várias vezes sem conseguir evitar de resmungar baixinho o seu descontentamento.

— Para responder às tuas perguntas sobre os deuses que presidem à transformação das pedras — retomou Mirsulo — é Tarunte, claro, deus da guerra do fogo e da vida.

— Tharun é o deus do trovão, da guerra e do fogo, sim. — Respondeu ela, corrigindo o nome. — Mas não o da vida. Da Pater e Da Mater criaram o primeiro homem e a primeira mulher, eles sim, os deuses da vida e puseram-nos à guarda de Swol e Mensis. O Senhor do Dia ilumina-nos e faz crescer as colheitas e os animais e a Senhora da Noite vela sobre a escuridão e guia a fertilidade da mulher que dá os filhos dos Homens.

— Se teu esposo permitir — num ato de apaziguamento, Mirsulo soltou uma das suas pulseiras de cobre em espiral e ofereceu-a diretamente a Zia, depois de um rápido olhar a Erem — recebe este penhor do meu respeito pela xamã e voz dos deuses do Clã do Leão das Montanhas.



[1] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal norte) por oposição ao sol do meio-dia.

[2] Proto Indo-Europeu: Madrugada é uma das deusas do panteão, mas também um dos pontos cardeais que dará origem ao Leste.

 

 

Manuel Amaro Mendonça

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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Tempo das paixões

 






quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Dos Males o Maior

 


Verruga, berruga, cravo ou cancro, assim aludiam ao mamilo numa de suas sobrancelhas. De rosto fino e acutilado, feito joia o defeito avultava sobre a vista. Era mole e arredondada, e só os rosas abrandavam, dir-se-ia, sua existência. Gleise não se perturbava com a imperfeição, entretanto, ou sequer escutava as recriminações e exortações da mãe e das tias, instando-a a extirpar este outro excesso de sua carne. Ora, as cirurgias estéticas são acessíveis; ora, o rosto há de aperfeiçoar-se, aconselhavam as senhoras, e ela, surda à censura e alheia ao argumento, recusava os conselhos com estoica determinação.

Mas evite-se o equívoco: Gleise não se constituía em pessoa rija ou inflexível e seria a primeira a acusar a efêmera condição de nossas circunstâncias – ilustrada a convicção quando ela, ao apaixonar-se por Evandro, reconsiderar sua atitude em face à verruga e manifestar o desejo de suprimi-la. Assim deliberou após ouvir Evandro segredar para as colegas do escritório o como lhe repugnava a nódoa em Gleise.

Pela conversão de propósito não se sentiu mais fraca ou inferior, não sentiu tampouco que se curvava às exigências da vida ou às exigências de outrem. Entendeu-se, isto sim, astuciosa por adaptar-se a uma dificuldade, versátil por contornar um obstáculo, e no dia em que deitou na mesa de cirurgia, desnuda senão pelo avental, a enfermeira denunciou as batidas em seu peito,

Que coraçãozinho mais animado!

Amputado o cancro, na pele subsistia uma linha branca e fina destinada a suavemente esvanecer qual um amor de infância. Em virtude da escala de trabalho intermitente, há muito não se deparava com Evandro, e malgrado conversassem por e-mails e mensagens, malgrado existisse, entre os dois, afinidade, não mencionou o procedimento cirúrgico. Desejava surpreendê-lo com a renovação, e assim, escudada pelo imprevisto, conquistá-lo ou, no mínimo, interessá-lo.

Duas semanas após a intervenção, assomou ela no escritório. Era outra: altiva e imponente, com a confiança dos mártires prometidos ao calvário. Do lugar onde sentou-se na sala de recreação, Gleise contemplou a alameda: sombras de jamelões enterneciam o calor e amainavam o infinito de azuis não obstante manchassem, com seu fruto, o que era impróprio à natureza. Evandro chegou minutos depois e, novidade, acompanhado e de mãos entrelaçadas. Ante o curioso olhar de Gleise e demais colegas, disse,

Pessoal, apresento-vos a minha nova namorada, Jeneci.

De rosto fino e acutilado, em feições parecia-se com Gleise à exceção de uma, ou duas, dessemelhanças: Jeneci não apenas ostentava uma verruga na sobrancelha, mas duas, e ainda mais exasperantes e horrendas

Dos ferimentos à unha causados por Gleise, Evandro perdeu um olho.






sábado, 17 de fevereiro de 2024

Três poemas de Alessandro Romio






Etiqueta


tem gente que põe na frente

um monte de nome antes de dizer o seu

gente que põe na mesa um monte de talher

antes de pôr comida no prato

gente que se senta muito longe

gente que fala muito baixo

e eu do meu lado

nem sempre sei o que faço

mas sei que fome não passo

e sempre que posso grito

e sempre que posso abraço








     Apego ao uniforme


     teus sapatos de cimento

     as âncoras em teus cadarços

     as correntes em teus relógios

     os nós em tuas gravatas

     os botões em tuas camisas

     os arcos-íris em teus pijamas

     zelar por tudo que impeça

     teu corpo de vir à tona






                                               Perdoa pai


                                               sei que o senhor

                                               criou o céu a terra

                                               os bichos etc.

                                               até acho bonito


                                               mas o diabo é o dono

                                               de todas as coisas que não existem

                                               & sabe descrever em detalhes


                                               essa felicidade que só eu imagino






Alessandro Romio nasceu em 1975. É designer gráfico, virginiano canhoto e possui três livros de poesia pela Editora Patuá: O jardim nunca foi tão bonito quanto agora (2017), Animais provisórios (2021) e Mambembe (2024, no prelo). Atualmente mora em Osasco - SP.







terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Um Artista das Artes Manuais

 

Um Artista das Artes Manuais

Júlio R. é um artista. A natureza tinha-o favorecido. As suas mãos desenhavam como ninguém, levavam o lápis para onde queriam que ele fosse. Faziam-no deslizar delicadamente sobre o papel e um desenho nascia em toda a sua beleza.

Tem cerca de 35 anos, mede cerca de um e setenta e cinco de altura, veste de forma neutra, cabelo curto, barba feita e sempre longe das confusões. Passa despercebido e faz tudo para não dar nas vistas. Desde muito cedo primou pela discrição.

Fez os seus estudos obrigatórios e depois entrou na área das artes. Acabada a aprendizagem dedicou-se ao desenho de rostos. Os traços e as sombras têm tal perfeição que parecem rostos com vida.

Não vende os seus desenhos, oferece-os. São o desenho e a oferta que vão dar origem a uma outra arte, praticada por muito poucos. Uma é o complemento da outra. Intrinsecamente nada têm a ver uma com a outra, o elo está na sua complementaridade. É do complemento artístico que Júlio R vive. Bem podia viver dos seus desenhos, mas é a outra arte que lhe dá gozo, que o sublima, que lhe dá pica, que o realiza.

Na criação das obras de arte são as mãos que detêm o poder, porque são elas que pensam e executam. Idealizar o desenho da obra, traçar as suas linhas, arquitectar um plano, encher tudo isto na imaginação não lhe rouba muito tempo. Basta um caderno, um lápis de carvão e as suas mãos.

Muito artistas executam a sua obra numa oficina, onde a matéria espera, sem vida, a existência de uma nova vida. Outros criadores trabalham sem oficina, são os artistas de rua, que trazem sempre consigo a matéria-prima, que vai dar origem à arte

Júlio R é um pouco de tudo. É um artista de todos os espaços, a sua oficina mora em todos os lugares, onde estejam pessoas. As pessoas são o início e o fim da sua arte, sem elas não havia criação.

Apesar de poder trabalhar a sua arte em qualquer espaço, o exercício artístico é feito no Metro, porque é neste meio de transporte que circula muita gente, os passantes ocasionais e os viajantes residentes. É nestes que se centra, em primeiro lugar, o foco de atenção do artista, com o objectivo de escolher a pessoa certa. Os viajantes de curta duração só têm interesse para finalizarem a actividade artística.

 A pessoa certa é aquela que viaja no dia-a-dia e de preferência durante um longo percurso. Ela será o Alfa e o Ómega da sua criação, porque nela se vai materializar a sua obra de arte. Ela vai ser o modelo.

Possuidor de um passe que cobre toda a área metropolitana pode viajar, vá para onde vá o Metro, sem tempo contado. Também pode entrar numa qualquer estação e ir por aí fora, saltando de zona em zona.

Quando pretende iniciar a criação, entra numa estação senta-se num lugar estratégico, onde possa ter uma visão de conjunto e estuda ao pormenor os viajantes. Durante uns dias viaja sempre no mesmo lugar, às mesmas horas, até se fixar definitivamente num dos viajantes residentes. É esse que vai ser o seu alvo. Procura reter tudo acerca da personagem: perfil do rosto, tipo de olhos, cabelos, rugas e também impressões sobre o seu comportamento e modo de estar, que vão dar consistência ao trabalho.

Em casa senta-se no estúdio e começa a traçar num caderno as notas recolhidas e, pouco a pouco, a reprodução do rosto da pessoa eleita aparece em esboço.

Os traços finais da obra serão riscados no metropolitano e é aí que a obra fica pronta.

No dia da revelação da obra de arte e antes de a dar a conhecer analisa o ambiente da carruagem onde se instala, estuda tudo ao pormenor, quem vai, quem entra, onde sai, o que traz consigo, o que veste, por aí fora, sem esquecer de analisar o perfil comportamental de todos.

Quando acha que está tudo em conformidade com o seu plano de ataque, Júlio R, levanta-se, dirige-se à pessoa desenhada e, com toda a pompa e circunstância, oferece-lhe o desenho do seu rosto, fazendo essa oferta com tanta eloquência que chama a atenção dos passageiros que, levados pela curiosidade, logo se interessam pelo se está a passar.

Assim, um considerável número de viajantes acotovelam-se para ver a obra-prima e um coro de exclamações aplaude a arte do artista.

Este, aproveitando o momento de diversão, sem que ninguém dê por ele, sai de mansinho na estação acabada de chegar.

Deixando para trás as manifestações de apoio à sua arte, sobe as escadas e sai para a cidade, levando com ele, uma carteira, a obra que as suas mãos de artista tiraram artisticamente do casaco de um dos incautos admiradores do seu desenho.

Quando está suficientemente longe da acção, abre a carteira e tira o que acha que é o justo. Paga-se somente pelo seu trabalho de artista. Se o dinheiro não chega para pagar, faz um desconto e fica tudo arrumado. Não mexe em mais nada, não olha para mais nada do que está na carteira. Se encontra um agente de autoridade no caminho entrega-lhe a carteira, dizendo que a encontrou no chão. Caso contrário, dirige-se à bilheteira de uma estação, entrega a carteira, “achada” a um funcionário e desaparece silenciosamente.

É o único artista que recebe um valor pelo seu trabalho de uma pessoa que não fica com a obra e que nem conhece nem o artista nem a pessoa que fica com ela.

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sábado, 10 de fevereiro de 2024

Viajante



Estamos próximo do horário marcado. Meu sobretudo de lã pouco me protege do frio. Não deveria ter esquecido o gorro em casa, talvez um boné com protetor de orelhas fosse ainda melhor, pois as minhas parecem congelar com o vento frio que sopra por debaixo do viaduto da velha linha de trem, próxima da antiga Estação Ferroviária. Na madrugada, poucas pessoas circulam nesta região da cidade, que em suas sombras parece esconder alguns de seus fantasmas. Mas não são os fantasmas que me preocupam. O perigo ronda cada esquina, principalmente para um policial identificado.

Finalmente vou encontrá-lo, depois desses mais de trinta anos de buscas por respostas. Este trabalho obsessivo tem roubado grande parte do meu tempo.

Acho que vou caminhar um pouco, meus pés também estão gelados, parecem queimar. Preciso encontrar uma bebida quente. A porta como ele disse, não abrirá antes dos cinco minutos da hora marcada.

Enquanto tento engolir o café com gosto de queimado e observo o homem bêbado que conversa com a prostituta, lembro que numa outra madrugada fria, no último dia de junho de 1951, acordei encharcado pelo suor, após um pesadelo. Nele uma velha senhora descansava sentada em sua cadeira enquanto examinava uma pequena caixa com fotografias, recortes de jornal e alguns objetos. Falava sozinha, como quem comenta as lembranças que cada um dos objetos lhe trazia à mente. Algumas vezes sorria, em outras algumas lágrimas corriam sobre sua face. Levantou e colocou a caixa próxima da lareira. Voltou à cadeira, colocou as mãos sobre os braços do móvel e iniciou um processo de concentração. Fechou os olhos. Parecia controlar cuidadosamente os movimentos de respiração.

De repente, uma luz que alternava tons de azul e verde, pareceu surgir de seu peito e em poucos segundos transformou-se em uma bola de fogo. Apesar do aparente calor das chamas ela não esboçou reação e rapidamente seu corpo desapareceu.

Era como se eu estivesse lá e, antes que pudesse sentir em meu corpo as ondas de calor, acordei assustado.

Não consegui entender o significado do sonho até que três dias depois, lendo o jornal, me deparei com a reportagem da estranha morte de uma senhora americana de 67 anos. Os restos carbonizados de suas roupas foram encontrados na cadeira em que ela estava sentada.

A polícia arrombou a casa e não encontrou nada mais do que seus sapatos e uma fina corrente. Não havia sinais de fogo em qualquer outro local da casa. Ninguém entendeu como um corpo humano pudesse ter sido destruído e o fogo confinado a uma área tão pequena. A mobília da sala nem mesmo estava chamuscada ou marcada pela fumaça.

A matéria foi finalizada com a afirmação de que muitos outros casos de combustão humana espontânea haviam sido investigados por cientistas, mas não havia nenhuma teoria plausível. Pessoas repentinamente se incineravam, algumas vezes na frente de outras pessoas.

Era a descrição do meu sonho! Algo me intrigava: por que ela não reagiu às chamas?

A possibilidade de que um corpo humano entrasse em combustão de forma espontânea seria remota, por ser formado principalmente por água. Na sua composição também há metano e gordura, porém, uma cremação exige altas temperaturas, superiores a 900°C, para que possa ser transformado em cinzas. Alguns pesquisadores acreditavam na teoria do “efeito pavio” onde as roupas da vítima ficam encharcadas com a própria gordura e funcionam como um pavio de vela. Um tipo raro de descarga elétrica estática iniciaria a ignição. Havia também explicações paranormais, outras naturais, porém nada conclusivo.

Comecei a me preocupar mais com isso, quando uma série de acontecimentos similares surgiram na minha cidade.

Está quase na hora, será melhor seguir até lá. A ansiedade agora é maior. Me distanciei bastante do local.

Na volta, me deparei com muitos moradores de rua. Alguns se amontoam embaixo das marquises para espantar o frio. Outros queimam papel e madeira em latões. O efeito pavio não justificava uma combustão espontânea. Essas pessoas seriam sérias candidatas a virar cinzas. Mas eu não havia confirmado as minhas suspeitas: alguém se aproveitava da lenda da combustão espontânea de corpos para a realização de assassinatos em série.

Finalmente, a porta do velho edifício está aberta e no final do hall de entrada, sob uma luz tênue, há um antigo elevador com a porta protegida por uma pantográfica metálica. O elevador revestido em madeira escura confere ao ambiente um tom ainda mais claustrofóbico. Os ruídos dos cabos aumentam ainda mais a insegurança. Foram alguns longos segundos para que o lento equipamento chegasse até o oitavo andar.

No corredor escuro esforcei-me para localizar o número 802. Não havia campainha. Bati à porta. Estava aberta. Entrei e percebi a presença de um homem parado em frente da janela da sala que dava para a avenida. O ambiente não permitia mais visão do que a rua lá fora e que agora estava coberta por uma espessa neblina, típica do inverno da capital paranaense. A lâmpada do único abajur, de revestimento turvado pelo tempo, transformava a imagem do sujeito em nada mais do que uma sombra.

Ele virou-se lentamente, cumprimentou-me a distância e recomendou que me sentasse. Aparentava 80 anos de idade, cabelos grisalhos, bem penteados. Da altura de seus 1,80 metros ele parecia fitar-me friamente. A pouca iluminação do ambiente não me permitia perceber a cor de seus olhos, mas acredito eram claros. Vestia um blusão de lã vermelho e uma calça jeans azul. Não portava qualquer adorno como anel ou mesmo um relógio de pulso. Os bolsos pareciam vazios, a não ser pelo contorno de um lenço no bolso direito. Ele não estava armado. Eu, sim.

– Também aguardei muito por esse encontro, delegado.

– Parece que o senhor está tentando facilitar a minha vida, não é? Mas por que tanto tempo?

– Não houve escolha.

– Sim, não houve escolha para todas as pessoas que foram assassinadas.

– Percebo que não aprendeu muito em todos esses anos de busca, policial.

– Já resolvi muitos casos, já levei muito bandido para os tribunais, mas confesso que você conseguiu me enganar, senhor...?

– O nome não importa, não fará diferença alguma.

– Não? Pretende acabar com a minha vida também? Depois vai incendiar o meu corpo?

Eu olhava em volta e não encontrava qualquer sinal de equipamento que pudesse cremar um corpo. Também não havia sinal de combustíveis ou explosivos no entorno. Tudo parecia limpo, perfeitamente organizado, apesar da idade dos móveis e objetos que ocupavam o lugar.

– Nunca incendiei o corpo de ninguém, delegado.

– Como explica todas as mortes? Você sabe que descobri que há uma ligação entre todas as pessoas que aparentemente passaram por combustão espontânea. Parece-me que participavam de alguma organização secreta.

– Tínhamos os nossos segredos, sim. Mas não matamos uns aos outros. Prezamos a vida, doutor.

O homem até me parecia sincero, mas a minha formação me fazia desconfiar de suas intenções. As pessoas desaparecidas, todas tinham as mesmas características, homens e mulheres, todos com mais de cinquenta anos, sem relacionamentos aparentes, sem filhos, sem uma ocupação definida. Viviam com algum recurso transferido para suas contas na forma de benefícios de previdência privada. Ninguém rico ou influente.

– Sabe, delegado, esta nossa passagem pela Terra é como uma lâmpada elétrica que possui certo número de horas de vida útil. Chegado o seu fim, se apaga e a energia que ali se concentrava acaba ocupando outro lugar, outro espaço, algumas vezes num outro plano.

– O senhor está morrendo?

– Não, me transformando.

Ele pediu que eu o ouvisse atentamente, descreveria o que eu deveria fazer dali em diante. Falou por quase três horas sobre as experiências acumuladas. Esqueci o frio, não vi o tempo passar. Ao final, me entregou um caderno com anotações e uma lista de telefones e endereços. Os números não eram convencionais, como os que se usavam no início da década de 1980.

Me entregou uma caixa com um aparelho comunicador. Me disse que ele só funcionaria em 1991, pois ainda não havia tecnologia disponível para conectá-lo a uma rede. Por hora, eu deveria me contentar em assistir a alguns vídeos. Duvidei, em nada aquilo se parecia com um projetor ou com um videocassete. Mas ele mostrou como funcionava. Eu via o futuro? A tal organização possuía um bom estúdio de cinema – pensei.

– Não são filmes de ficção. Este é o futuro. Neste aparelho também estão armazenadas algumas informações criptografadas, que oportunamente os que receberem as suas mensagens conseguirão visualizar

– Criptografadas.

– Sim, são codificadas. Só quem tem a chave poderá acessá-las.

– Mas porque vocês mesmo não entregam?

– Eu e meus amigos recebemos uma missão. Pode não acreditar, mas viajamos no tempo. Outros deveriam ter nos substituído, mas por alguma falha que ainda não conhecemos, não chegaram. Assim, o escolhemos para fazer a ponte no tempo, não viajando, mas esperando, fazendo o nosso papel. Eu sou o último.

– E se eu não fizer isso?

– Se não o fizer, você não terá futuro. Muitos, milhões também não.

Logo depois, me pediu que eu seguisse meu caminho e que não mais voltasse ali. Achei que era a coisa certa a fazer.

Procurei a porta e desci. Os primeiros sinais de luminosidade começavam a surgir. Homens começavam a varrer as ruas e as marquises eram desocupadas à medida que o fluxo de pedestres e veículos começava a aumentar. Atravessei a rua e já do outro lado procurei a janela da sala do oitavo andar. Percebi uma forte luz azul que irradiava do mesmo local onde ele estava. Voltei correndo, subindo rapidamente os degraus e cheguei ofegante ao andar. A porta ainda estava aberta.

Já no corredor senti o odor adocicado da fumaça. As luzes azuis davam lugar a uma chama que alternava entre o verde, o laranja e o vermelho. Havia apenas silêncio, nem ondas de calor se podia ver, ouvir ou sentir. Ao final, um clarão e um flash de luz azul que se deslocou rumo ao infinito. Ele voltou para casa – pensei.

Saí de lá rapidamente, não entenderiam minha presença no local.

Resta-me esperar pelo sinal no aparelho.

Preciso pensar em como encerrar o caso. Também chegou a hora da minha aposentadoria.







sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Arte... para que te quero

 




Olhou novamente para o calendário, com a vaga esperança de se ter enganado. Mas não, bem marcado a vermelho, com inúmeras setas bem grossas a rodear o quadradinho, para dar bem nas vistas, lá estava ela a data fatídica da reunião de toda a sua família. Bom, família, é favor, entre tios e primos de vários graus eram mais de 200 pessoas, sem contar que com a entrada na adolescência de vários elementos das novas gerações era bem provável haver ainda mais namorados e “amigos especiais” na mistura.

Por este andar, as três pensões que costumavam ocupar, mais quartos diversos espalhados por toda a vila, deixariam, em breve, de ser suficientes. Quanto às refeições, bom, já estivera, como convidada, em inúmeros casamentos com bem menos gente e, acima de tudo,  com bem menor quantidade e variedade de comida.

Não que tivesse algo contra a família, era tudo boa gente, alguns, eram, até, bem simpáticos. Só que... todo o clã – sim, era um autêntico clã – era virado para as artes e apenas para elas. De todos os tipos, teatro, pintura, música, escultura, não havia nenhum ramo em que pelo menos um dos membros não estivesse metido. Até tatuagens, com um primo em segunda mão que era, segundo diziam, um artista premiado e muito procurado.

Nem as chamadas artes menores escapavam, bordados, rendas, quilts, tapetes, se podia ter uma vertente artística lá estava um membro da cada vez mais extensa família Gomes. Como uma exceção...

E era esse, precisamente, o problema de Amanda em ir a estas reuniões anuais. É que por mais que tentasse, e fazia-o desde bem miúda, era uma autêntica nulidade para qualquer atividade mesmo vagamente artística. Acreditem, a sua infância e adolescência tinham sido um verdadeiro calvário, saltitando de familiar em familiar em busca de algo para que tivesse pelo menos um niquinho de talento. Mas nada!

Para grande escândalo da família, acabara por se decidir a estudar o que realmente a atraía, física teórica, mais especificamente teorias da origem do universo. Uma vez formada, e com belíssimas notas, diga-se de passagem, não tivera o menor problema em encontrar um bom emprego num instituto de pesquisa, onde era feliz 51 semanas por ano, nem sequer pensando em tirar férias de mais de dois dias de cada vez para não perder pitada do que poderia acontecer na sua ausência.

Mas, chegava, depois, a malfadada 52.ª semana, que lhe estragava totalmente a disposição umas semanas antes e depois. Tentara de tudo para se sentir integrada, como namorar temporariamente artistas, quanto mais obscuro o que faziam, melhor era, só que mesmo assim havia sempre algum familiar conhecedor do assunto e que até fazia melhor, levando o seu suposto amor a deixá-la, amuado, ao fim de umas horas.

Este ano nem se dera ao trabalho de arranjar alguém, não valia a pena, só lhe acarretaria uma dose adicional de olhares de pena, isto fora as inevitáveis discussões com quem optasse por levar.

Enfim, agora era tarde demais, não havia nada a fazer, daí a dois dias começaria a sua provação, a menos que entretanto tivesse um acidente fatal ou, no mínimo, suficientemente grave para uma estadia no hospital. Só que isso seria sorte a mais...

Estava ela a organizar o trabalho para a sua ausência de vários dias quando uma imagem lhe despertou a atenção. Era uma de várias fotos que tirara com um microscópio eletrónico de altíssima resolução a pequenas amostras de várias substâncias para um estudo comparativo à escala atómica. Apesar de saber perfeitamente o que representava, perdeu-se na beleza das cores e linhas e, sem quase dar por ela, viu-se a rever todo o ficheiro.

Isto, sim, era algo que lhe falava à alma, não as obras consideradas usualmente artísticas, fossem de que tipo fossem, e que a deixavam sempre, mas sempre, indiferente. Nem as chamadas obras-primas mundiais lhe despertavam o menor indício de paixão, limitava-se a achá-las mais ou menos interessantes e não passava disso.

De repente, teve uma ideia absolutamente fabulosa. Usando a melhor impressora do instituto, preparou uma pequena pasta com cópias das melhores imagens, ou antes, das que achava mais atraentes, escolhendo, para isso, um papel de belíssima qualidade e a melhor regulação de qualidade. Levou horas, mas o final tinha um belíssimo portfólio de imagens “atómicas”.

E foi com ele na bagagem que partiu, de ânimo bem mais leve, para o que era, desde há muito, o seu calvário. É que desta vez, quando lhe perguntassem com ar de comiseração se ainda se dedicava à tal física, puxaria das imagens e diria, “Esta é a minha arte!” Modéstia à parte, antevia ser um sucesso entre os seus familiares, pela primeira vez na vida. Mais ainda, tinha a certeza de que ninguém, absolutamente ninguém, teria arte como a dela.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite





sábado, 3 de fevereiro de 2024

OCORRÊNCIA



 Tocar com os dedos

os meandros da verdade,

num transporte de desejo

onde o ceticismo perde em essência,

já que acompanhado do impulso de vida

que caracteriza a vontade da procura.

A pretensão de assim reter

uma parcela dos fatos

e com a cumplicidade do sonho,

extrair um pouco de uma felicidade

que de tanto escassa foi perdida

em delírios de falsa vitória.