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sábado, 28 de maio de 2016

AS SEIS NOTAS



Não sabia o que vestir, então deixou que sua mãe a ajudasse. Reviraram as roupas do velho baú até encontrarem algo apropriado para a ocasião daquela tarde: um velho vestido de tafetá, mas de um azul bonito e lustroso.

— Teu pai ficava doido quando me via socada nesse aqui. Eu faço um arranjo ligeiro e tu vai entrar nele como se tivesse sido feito pra tu — diz a mãe, visivelmente orgulhosa.

— Anda, Veralda, avia! Vai te assear que eu vou dar uns ponto no vestido, depois a gente pinta a tua cara pra te livrar dessa cor de cera, minha filha.

Coordena os serviços, a mãe. Tem ela o pé nu e de unhas feias posto sobre o pedal da máquina de costura. Uma mão acaricia o tecido que fede à barata enquanto a outra busca por tesoura e linha.

Veralda apressa-se em não decepcioná-la e corre até a cozinha, onde apanha sobre o jirau um pedaço de sabão de coco e uma toalha. Caminha aos pulinhos até o banheiro improvisado com palhas de carnaúba, posto estrategicamente ao lado da cacimba. A água fresca banha seu corpo e Veralda se esquece do calor e das obrigações, pensa nas belas bonecas que ganhará e esfrega a cara com força, como se quisesse se tornar outra. Experimenta o cheiro bom do sabão e lambe sua espuma. Não parece coco.

Quer estender o banho, mas seus braços finos não aguentam puxar mais que três baldes. A aspereza da toalha quase fere sua pele marcada pelas surras e quedas do cajueiro.

— Mãe, bota mais — suplica Veralda diante do espelho, ao ver seu rosto, pela primeira vez, maquiado. — Eu tô bonita, num tô? — Pergunta a filha.

A mãe responde com um muxoxo e se ocupa em desembaraçar os cabelos cheios de piolhos e carrapichos.

— Nem teus irmão homem tem uma cabeça sebosa como a tua, cunhã. E para de se bulir senão eu te dou um cascudo, desinfeliz — repreende a mãe.

Mas Veralda nada escuta. Mira-se no espelho e sonha em ser a princesa que um dia vira em uma revista que sua irmã mais velha trouxera de Fortaleza. Jamais fora à capital do estado. Nem ela, nem seus pais ou seus outros irmãos. Pareciam todos condenados a morrer ali, entre Brejo Santo e São José do Belmonte. Mas, a sorte de Veralda estava fadada a mudar ainda naquela tarde. Teria um quarto só seu e dois bambolês, um amarelo e outro azul. Seria mais rica que qualquer menina.  

— É essa aqui? — pergunta o estranho, de aspecto repugnante.

O homem segura a menina por um dos braços e verifica atrás das orelhas, também dentro da pequenina boca. Talvez procure por feridas, como faria o comprador de um animal.

— É essa aí sim, é bonita, num é? — cintilam os olhos da mulher, orgulhosa por ser boa parideira.

— Essa menina tem mesmo só onze ano? Seu Dosinho só gosta das novinha. A sua cabrocha aqui parece mais velha. — desconfia da mercadoria, o atravessador. Sabia o que lhe aguardava caso pagasse mais caro por algo que não valesse cada centavo.

— Tem mais de onze não, Juarez. É que essa aí come demais. Ou me livro dela ou não crio as outras três pra ficarem assim, vistosa que nem ela. E tá aqui a certidão de nascimento — apresenta a mãe o papel carcomido, o que abona sua retidão em transações comerciais. — Se quiser, pode levar pro Seu Dosinho em pessoa conferir o documento.

Após guardar o papel no bolso de sua calça brim encardida, o homem retira a carteira — cuidadosamente posta entre o cós da calça e seu púbis — e sorri para Veralda.

— O acertado foi seiscentos reais, num foi, Dona Verbênia? Pois tá aqui cada centavo, a senhora já tinha visto uma nota de cem? É bonita, num é?

A mulher acaricia cada uma das cédulas, enquanto seu cliente traz para junto de si o resultado de sua compra.

— Deseje felicidade pro Seu Dosinho, viu, Juarez. E Diga pro Sargento Cardoso que Valfredo não vai poder ir no sábado porque ainda tá cum dor. Mas mando o Valter no lugar dele e faço um abatimento.

A mulher ri satisfeita ao sentir as seis notas de cem reais roçarem-lhe o mamilo rijo. Molha-as de leite.

— Mãe, eu não quero ir — diz a menina ao libertar-se das mãos de seu comprador e correr até sua cachorra. Abraça a cadela prenha como quem procura o carinho de uma boa amiga. — Eu quero ver os cachorrinho da Pidoga nascer. Depois que ela parir, a senhora pode me mandar pro Seu Dosinho.

Nervosa, a cachorra balança o rabo. Seus olhinhos castanhos molhados pelo choro da menina que ama, ficam apertados. Se soubesse o que se passa, morderia esses dois infelizes que as separarão para sempre, Veralda e ela, e que também se livrarão de seus filhotes antes mesmo que eles desmamem.

A mãe, extremamente constrangida, toma a filha para si. Paciente, como só as mães sabem ser, seus olhos reluzem enquanto ela diz:

— Deixe de besteira, Veralda. Vá logo com o Juarez. Pra que tu quer ver os filhote da Pidoga? Que serventia tem isso? Se preocupa em fazer logo um teu, pensa direito, ou tu num é minha filha?

Muito séria, Veralda para de chorar e entrega sua mão a de Juarez.

— Eu preferia ser filha da Pidoga — diz, vingada, antes de partir.


Emerson Braga





quarta-feira, 25 de maio de 2016

O crítico de Arte


 “Vou a esta!”, decidiu Carina, acentuando a decisão com um círculo a esferográfica sobre a informação da Agenda Cultural. “Uma palestra sobre aspetos da Arte pelo Sandro Delvaux só pode abrir horizontes mentais. O tipo é um crânio”, pensou, evocando a imagem vertical, ao mesmo tempo sóbria e sofisticada, do crítico de Arte.
Carina é uma dessas jovens mulheres suficientemente maduras para terem feito uma qualquer licenciatura e encetado uma carreira profissional, e suficientemente inseguras por não terem definido um rumo para a sua vida, quer por indecisões próprias, quer pelas circunstâncias. Um namorado que nunca mais ganha vontade de assentar não ajuda. Um dia, a impaciência suplanta a compreensão e o namorado desaparece ou é corrido, como sucedeu com o de Carina. A partir de então, ela vive nesse limbo que tem tanto de espera angustiada como de gosto reganhado de uma liberdade cada vez mais assumida e fruída. 
Tem um pequeno grupo de amigas, também de trinta e pouco anos, que convida à vez para ir ao cinema, às compras ou a eventos culturais, conforme a propensão prevalente. Talvez por tê-la convidado em cima da hora, a amiga Sónia declinou o convite “com pena”, pelo que Carina resolveu-se a ir sozinha à palestra na Culturgest. Foi cedo, diretamente do escritório, e sentou-se na terceira fila. A primeira estava reservada para convidados e os emproados gostam de se sentar logo a seguir.
Como esperava, Delvaux fê-la aperceber-se de aspetos em que nunca tinha pensado no campo da Arte. Aliás, perguntou-se, como teria sido possível discorrer por si própria, — ela que, embora adorando Arte, vinha de Direito —, que um colecionador é, em geral, tomado — na sua obsessão de juntar objetos belos e de valor —, por uma atitude mental de carência, de reminiscência de períodos em que queria ter mais objetos e não pôde, em que queria afagos e não os teve, de uma baixa autoestima, em suma? Ou que é possível detetar falsas pinturas renascentistas só pela análise dos anéis da madeira em que foi pintada? Além disso, a figura do crítico impunha-se não só pela assertividade das declarações, mas também pela imagem límpida: um rosto impecavelmente barbeado a harmonizar-se com o crânio rapado. De roupa, a habitual t-shirt negra, sob um casaco igualmente negro. Uma coerência. A frase final — “A Arte é, por isso, a atividade humana que persegue e explica a nossa vontade de divino” — resumia muito do que fora dito.
Quando terminaram as palmas, Carina sentiu que queria aproximar-se dele, embora só tivesse admitido que devia agraciá-lo com umas palavras pessoais de apreço, com o pretexto de pedir um autógrafo, mas não foi fácil: outras circunstantes também deviam ter sentido apelos de agradecimento, porque se juntaram várias à volta do palestrante. Por fim, a sua figura esbelta de morena chamou a atenção do mestre, que lhe fez um sinal para avançar. A proximidade fê-la temer algum titubeamento, mas a segurança de Delvaux transmitiu-lhe calma. Enquanto ele rabiscava um autógrafo expressivo e esteticamente equilibrado no folheto da palestra, Carina lançou algumas palavras que não tinha preparado, mas que transmitiam bastante do que sentia:
Professor, adorei ouvi-lo. Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados e senti-me num estado de graça tal, como quando ouço As Quatro Estações de Vivaldi.
Pensou ter-se excedido, quando Delvaux levantou os olhos para ela e foi como se se tivesse feito um grande silêncio. Os olhos dele, negros e brilhantes, transmitiam um misto de ternura e comoção, mas também uma curiosidade alienígena. Fixaram-na por um momento, enquanto, impercetivelmente, um sorriso se juntava à ternura do olhar.
Apetece-lhe um café? — soltou Delvaux, num tom de voz doce, mas que não deixava lugar a escusas.
Carina assentiu emocionada e tanto mais embaraçada quanto lhe parecia que o convite excedia em muito as palavras pronunciadas.
Quando Delvaux conseguiu livrar-se do resto do envolvimento festivo da palestra, sentaram-se no pequeno bar da Fundação, mas ainda interrompidos esporadicamente por admiradores retardatários. Tanto por essa falta de sossego na conversa, como pela curiosidade que Carina manifestou pela pintura de Delvaux, de que ela não desconfiava, combinaram um encontro para a semana seguinte no ateliê do crítico.
Agitada, ligou a todas as amigas a contar a experiência surpreendente que tivera e o encontro que prometia ser excitante intelectualmente. O resto se veria.
O Delvaux? Uau! Esse tipo é lindo — reagiu Sónia, sem conseguir esconder uma ponta de inveja.
Sabes o que eu lhe disse, a abrir? “Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados.” Eu nem queria acreditar.
Estás muito atiradiça, mulher! Vai-te a ele!
Sónia, ele tem quase cinquenta anos… Eu só me deslumbrei pela cabeça dele — desvalorizou Carina, mentindo com todas as frequências do telemóvel.
Passados uns dias, porém, o entusiasmo expectante foi esmorecendo, à falta do contacto prometido. Duas semanas foi o limite tolerado por Carina. Entre uma semi-humilhação de ser ela a procurar Delvaux e a irritação pela sedução negligenciada, Carina resolveu-se a procurar o crítico e a fazer-lhe notar a indelicadeza, difícil de perceber num homem impecavelmente atencioso. “Talvez esteja doente”, pensou, desejando que “antes isso”. Descobrir a morada do ateliê não foi difícil e umas informações cruzadas em páginas de Facebook deram-lhe umas pistas das horas em que Delvaux costumava frequentar o local de pintura. No dia seguinte, de tarde, com uma dispensa no escritório para “obrigações legais”, procurou o “desaparecido”.
Delvaux estava bom, aliás, demasiado bom, o que desarmou qualquer resquício de retaliação que Carina ainda mantivesse. Delicado, insinuante, desculpou-se com um apagamento involuntário do número de Carina. O ateliê eram duas assoalhadas na zona da Bica. No “quarto” instalara Delvaux um pequeno escritório onde provavelmente elaborava a parte ensaística do seu trabalho. A “sala”, uma divisão de uns 3x5 m, também ainda com soalho de madeira, era usada como acanhado estúdio. A um lado, encostavam-se dezenas de telas, frente a um cavalete que recebia luz da janela, à esquerda. Ao lado desta, um espelho de “corpo inteiro”. A toda a volta da divisão, ao nível dos olhos, uma boa dúzia de autorretratos, vários ainda a manifestar outra estrutura capilar do artista.
Só faz autorretratos, professor? — foi a pergunta mais neutra que Carina conseguiu produzir, estupefacta com tão inesperada galeria.
Não, não! Pinto muitos outros géneros, mas este tem a vantagem de me proporcionar um modelo à mão, a qualquer hora, de graça — asseverou, sorrindo.
Mas só tem aqui autorretratos…
É que estes não se vendem; são para consumo próprio — acentuou Delvaux a ironia, dando uma gargalhada.
São muito interessantes. Parece um álbum fotográfico. Usa-os como outras pessoas usam fotografias na estante ou em cima da cómoda?
Não exatamente. Repare, um autorretrato é também um exercício de autoconhecimento. Por exemplo este — apontou uma imagem abertamente expressionista, ainda com uma frondosa cabeleira negra — mostra o jovem com pouco tempo de Belas-Artes, cheio de vontade de inovar, um pouco revolucionário até. Veja o brilho no olhar aberto e luminoso. O tratamento plástico ilustra na perfeição o meu estado de espírito de então.
E mantém-no aqui desde essa altura?
Sim, ajuda-me a não me esquecer dos meus sonhos de jovem. Nele, espreito-me nesse tempo, como o meu olhar perscrutava a minha imagem no espelho, ou o que dela eu selecionava.
Em casa deve ter outras imagens nas paredes, não? — lançou Carina, sem ter medido bem o implícito autoconvite que a referência sugeria.
Não; só tenho autorretratos. Minto. Tenho uma moldura-caixa com umas das últimas madeixas de cabelo, enquanto ainda tinha o que cortar — acrescentou em tom vagamente melancólico.
Parece assim um bocadinho narcisístico, não acha? — arriscou.
Sim, talvez. Já me têm acusado disso. Se vissem as pilhas de desenhos a carvão e a sanguínea… — sorriu-se. — Como dizia a publicidade: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Repare, não estou a fazer mais do que um Durer. Já viu aqueles extraordinários autorretratos em que ele se afirma não só belo e próspero, como um virtuoso da pintura? E os mais de cem autorretratos do grande Rembrandt? São leituras psicológicas que o pintor faz de si próprio, tal como as fará Van Gogh mais tarde. A subjetividade acrescenta-se às outras vertentes da pintura. — O entusiasmo tomara conta do discurso de Delvaux, que agora dava uma aula privada e emocionada à jovem admiradora. Ele próprio tinha consciência de que a admiração que provocava nela era o seu alimento. — Um artista é uma espécie de instrumento do divino. Ao capturar-se a si próprio em momentos de criação está perto de captar o processo divino. Veja este — mostrava-se a mirar-se de meio lado, em tronco nu. — É a imagem de alguém — eu — que observa com toda a atenção a atividade do pintor — eu — que o pinta. Este loop provoca uma quase vivência do quadro, mesmo não estando pintado de maneira muito naturalista.
Carina experienciava um estranho misto de deslumbramento pelo brilho teórico de Delvaux, com um mal-estar que radicava na maneira de ele ver o mundo, e que começava a assustá-la.
Deixe-me falar-lhe de Velásquez — prosseguiu o crítico de Arte. — Alguma vez se apercebeu da maneira ardilosa que ele usou para pintar As meninas? Aquilo é um autorretrato disfarçado de cena íntima da corte espanhola. Mas quem sobressai mais do que as infantas? Ah, pois é!
Carina já não aguentava. Pediu desculpa por ter de se retirar: “mas tenho de regressar ao escritório onde uma colega me está a aguentar o trabalho”. Desceu as escadas do prédio rapidamente, enquanto Delvaux, surpreendido e magoado, a chamava. Mas só um vago eco lhe respondia.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Egon Schiele, Autorretrato, 1912.

(Este conto, com o título Sandro, obteve o 8º lugar, no Primeiro Concurso Literário do ICBIE Instituto de Cultura Brasil Itália Europa —, 2015)

* * *





terça-feira, 24 de maio de 2016

TROVA DE EDWEINE LOUREIRO _ TEMA: DINHEIRO






domingo, 22 de maio de 2016

Branco para todos os dias

Cinza o dia do outro lado da janela. E úmido. Há mais de cinco horas chovia sem trégua e Elisa não cansava de olhar as gotas despencando do céu e formando poças na grama do pátio. A mulher concentrava-se nas gotas caindo, dedicava-se obsessivamente a acompanhar o trajeto da água, pois assim, bastante ocupada, não permitia brechas para lembrar. As vezes, raios desenhavam riscos no alto da tarde e quase conseguiam desviar a atenção de Elisa, que experimentava jeitos de conter o vazio, de antecipar e contornar os estragos que recordar tem o poder de fazer. Ela queria o espaço em branco por dentro. Branquíssimo. O branco tem um peso, sabia bem, capaz de sufocar e preencher o buraco sem fim que havia se espalhado pelo pensamento, pelo sangue, pela pele.

Como todos os dias, desde aquele domingo de outubro, Elisa esperava. Esperava o tempo passar, esperava reaver uma força sua que se perdeu em algum momento entre as cobertas quentes pela manhã e o desalento no fim da noite, esperava alguma forma de reencontro, uma compensação, esperava compreender a distância entre a presença e a ausência. Do que é feita essa dor que se instalou em mim?, não cansava de questionar. Queria dar o próximo passo, mas não conseguia afastar-se da janela, das gotas de chuva, não sabia mais como respirar fundo e arejar o peito, estava paralisada diante da vidraça.

*****

O domingo já ia longe, mas eles deixavam-se ficar na cama como se o mundo inteiro fosse aquela dimensão entre lençóis azuis e travesseiros estampados. Nus, estendidos um ao lado do outro, o vão curto entre os braços e as pernas dele e dela eram fronteira. De um lado, pensava ela na vida, no tempo, no encontro com aquele homem bom e honesto. De outro, ele pensava no fim, na brisa, na companhia daquela mulher segura e bonita. Pensavam, pensavam e sentiam crescer por dentro da barriga e subir pela garganta um calor conhecido, uma vontade de permanecer. No outro. Pelo outro. Com o outro. Para o que imaginavam ser o sempre.

Ela voltou-se para ele, passou a mão pelos próprios cabelos e os ajeitou atrás da orelha, sorriu antes de acarinhar a testa do companheiro, o nariz, a boca, as bochechas do companheiro. Curvou-se sobre ele e o beijou com o beijo de todos os dias, demorado e verde. Havia nos olhos dele uma tristeza de vidro que não tinha coragem de explicar nem a si mesmo. Ela percebeu, mas não quis perguntar. Ele compartilhou o beijo de todos os dias como quem vai embora de casa para jamais voltar.

Fizeram amor. Não o de todos os dias, mas o de um domingo em particular, com o cuidado e a destreza dos alpinistas experientes. Escalaram os corpos um do outro, subindo, descendo, explorando montanhas familiares com exatidão. E havia uma atmosfera de fim de festa. Não comentavam, mas sentiam-se arrumando malas.

Deitados nus, agora um sobre o outro, ele com o rosto no peito dela, arriscou: lembro de acordar no meio da madrugada para ficar olhando a tua barriga crescer, na nossa gravidez do João. Não respirava mais fundo para não te acordar, chegava com a boca bem perto do teu umbigo e dizia lá para dentro, aos sussurros, que João não se preocupasse, pois seria feliz desde o primeiro choro. Contei ao nosso menino que o amor que a gente tinha era inteiro, que havia vindo não sei de onde, mas que estava aqui quando chegamos e que... mergulhamos. Disse que a vida era assim cheia de mergulhos, para cima e para baixo, para os lados, e que valia a pena encarar todas as marés, porque vir à tona era encostar em ti. Disse que ele viesse sem medo, que a rua era perigosa, mas que a nossa casa seria sempre garantia e riso frouxo. Que viesse logo para ver o teu rosto e o meu, tão testemunhas de que existir é uma viagem infinita. Eu fiz isso.

Eu ouvia, ela disse. Muitas noites despertei com teus sussurros e o bafo úmido perto da minha pele. No início ficava assustada e curiosa com o teu jeito. Depois passei a esperar que confissões tu farias. Chegaste a contar uma história inventada de elefantes no supermercado. E para a minha barriga! Fez efeito, sabes? Até hoje o João procura as tuas palavras, nos almoços de fim de semana faz questão de estimular a tua memória, dá corda para os teus causos. É que a tua voz é mesmo música. Eu também caí nos teus contos... Noutros tempos tu cantavas embaixo da janela do sobrado onde morei, te recordas? Meu pai queria jogar em ti o xixi madrugado do penico toda vez que arranhavas "uma marca" no violão. Sempre a mesma música, né? Teria me apaixonado por ti mesmo se fosses mudo e se não tivesses o mínimo talento para a música. Teria.

Seguiu-se à conversa um longo silêncio repleto de fragmentos de história repartida. Ele acomodou-se sobre ela de forma a cobrir por completo o corpo da companheira, feito jogo de encaixe. Encostaram-se as pontas dos narizes e não ousaram dizer palavra alguma. Nos rostos de um e de outro havia o desenho de inúmeros caminhos, trilhas ao redor dos lábios e dos olhos, corredores estreitos e profundos escavados de repente pelo vento: em um dia não existiam e no outro estavam lá, irremediáveis. Sinto a tua falta com o mesmo desespero dos primeiros dias, ela confessou sem desviar os olhos dos dele. Correu o rosto para o vão do ombro da amada e respondeu com voz tremida, não quero ir, quero ficar contigo como todos os dias.

Primeiro surpresa, logo penalizada, ela segurou a cabeça do marido com as mãos em concha. Havia deslizado para fora do corpo dele e agora se ajoelhava ao redor daquele homem encolhido, repetindo baixinho que ele não iria a parte alguma sozinho, que estariam juntos até o fim. Antônio chorou. Chorou, inconsolável, nas mãos da esposa até adormecer. Elisa não entendia o pranto do marido. Nos últimos 42 anos havia visto o esposo chorar apenas três vezes e de forma muito discreta: em 1970, quando o filho do casal nasceu, quando perdeu os pais no acidente de automóvel em 1978, e na formatura do João em arquitetura há dez anos. Não que Antônio fosse um homem frio. Não era. Aprendera a ser comedido, a sentir as coisas do mundo sem transbordar, aprendera a ser equilíbrio.

Elisa perdia-se em interrogações quando Antônio acordou num pulo, sobressaltado. Ah, tive um sonho horrível Elisa, horrível. Estava exausto, preso em uma masmorra escura e fria, sozinho e com fome. Vi corpos pelo chão, gritei socorro, implorei ajuda e não apareceu uma alma para me tirar dali. Então entraram quatro homens vestidos de um jeito estranho, como os atores naquele filme de gladiadores, sabes? Esses homens não sorriam, não falavam, não estavam lá de verdade... Eles riam de mim e me jogavam pedras. Chegavam perto e gritavam barbaridades, que eu não valia a areia do chão, que eu jamais veria luz novamente, que eu era fraco e imundo, que eu morreria devagar, que perderia os pedaços até que pudesse ver o meu corpo pelo avesso. Eu tinha tantas feridas. Me sinto amarrado lá ainda, junto com o fedor, com o escuro, sozinho.

Estava magro o Antônio, os ossos do peito bem marcados sob a pele clara. Noutras épocas costumava gabar-se para as visitas das dobrinhas na parte de trás do pescoço, isso dá um mocotó de luxo, fazia graça, forçando o relevo abaixo da nuca. Elisa aconchegou o marido num abraço apertado, pediu que respirasse fundo, que ele estava bem ali na cama macia, que pesadelos são só sonhos inconvenientes, que não se impressionasse, toma aqui o teu remédio, querido. O marido abandonava-se no colo da mulher feito criança pequena, ingeriu os comprimidos sem protestar, um, dois, três, quatro bolinhas, tamanhos e cores diversas, um gole de água nos intervalos. Será que nunca mais vou dormir um sono cheio? Claro que vais, Tonho. Esquece isso e vamos conversar.

Elisa tentava bater papo, mudar a energia do marido que parecia mesmo impressionado com o sonho ruim. Banho juntos, que tal? Antônio ameaçou um sim com a cabeça e o meio sinal bastou para que sua companheira saltasse da cama e o conduzisse ao chuveiro. Era uma pluma, o Antônio. Um pingo de chuva na vidraça que o sopro faz mudar de rota. E Elisa assoprava o marido, ao redor dos ouvidos, tentando produzir as reações habituais, certeiras. Havia decifrado tanto daquele corpo... sabia bem o seu próprio, mas aquele corpo tinha gosto especial em tatear, ainda. Havia visto o tecido que o cobria mudar de texturas e de odores, acompanhou marcas que apareceram, sumiram, tornaram a aparecer. Ultimamente ele se queixava de muitas dores: na cabeça, no estômago, nas costas principalmente. Nos últimos meses ele tinha muitas aftas, redondas e ardidas, tinha pontos mínimos na língua e também grandes ulcerações, ilhas brancas, um arquipélago particular sob o céu da boca.

Ela ligou o chuveiro. Sorriu para o homem grisalho a sua frente, que lhe sorriu de volta. Os cabelos cinza escorriam pela testa de Antônio, que outra vez se deixava levar. Elisa ensaboou, massageou, fez cócegas na cintura do marido, esfregou-se nele, experimentou penteados com xampu, riscou corações em espuma nos braços do companheiro, disse que o queria bem, o queria perto, completo, fundo, já. A água descia ombros abaixo em direção ao ralo enquanto eles faziam amor.

Antônio passou mal ao enxugar-se. Frio, dor aguda na cabeça, náusea, pernas trêmulas. A vertigem e o piso gelado. Elisa correu a reanimar o marido, sua toalha esquecida no chão do box, acorda querido, por favor, abre os olhos. Nada. Nenhuma reação. Segundos eternos e Elisa chorava sacudindo o marido, gritava socorro para as paredes de azulejo, os contornos da boca do esposo começavam a arroxear.

A mulher atinou a abrir a porta e sair pela casa atrás do telefone. Ligava para João quando Antônio recobrou os sentidos. Foi com dificuldade que o homem apoiou as mãos no piso, tentava sentar-se. Por instantes havia se perdido, não reconhecia o lugar, menos ainda recordava o que fazia lá. Aos poucos entendeu que se recuperava de um desmaio e estava só. Quis chamar a esposa, mas a voz saiu fraca e pouca, quase um fio de ruído. Quase nada. Ao retornar ao banheiro, Elisa já trazia roupas limpas para vesti-lo, o que fez rapidamente e sem parar de falar, de perguntar, insistindo em respostas de Antônio, de preferência coerentes.

Ele fazia esforço, meu signo é libra, tenho um filho João e duas netas, Renata e Rebeca, um peixe beta e um fusca vermelho 73 na garagem. Estou bem, mulher, só tenho sede. Antônio ficou sentado nos pés da cama, mal respirava com medo de nova vertigem. Mais aliviada, Elisa lembrou-se de ainda estar nua. Abriu duas gavetas, pegou calcinha, sutiã e um par de meias, vestiu tudo apressadamente, em seguida uma blusa de linho amarelo e calça jeans. Olhou no espelho, passou os dedos pelos cabelos alinhando os fios ao meio, numa risca acostumada no topo da cabeça, pegou a bolsa e num pulo estava ao lado do marido. Estás bem? Tens frio? Dor? Fala alguma coisa, criatura! Sede, Elisa, só sede. Elisa já ia buscar um copo de água, mas uma buzina estridente deteve seu passo: João está aqui.

Vem, homem. Vamos ao médico agora. Como de costume, Antônio foi conduzido, dessa vez pela mão até a rua. Entrou no carro lentamente, ajudado por João, abaixa a cabeça pai. Suado e aflito, o filho seguiu com os pais direto ao hospital.

Antônio não atravessou a madrugada. No final daquela tarde de domingo dera entrada no hospital e em seguida, enquanto o médico fazia os primeiros exames, outro mal estar o fez desmaiar. Desta vez, levou mais tempo a recobrar os sentidos. Acordou em um quarto muito iluminado, cercado por desconhecidos, enfermeiros e médicos, e sem sentir completamente as pernas e a nitidez da visão. Queixou-se de náusea, vomitou, sentiu dores de cabeça, dores espalhadas pelo corpo, nem de todas deu notícias a quem o atendia. Às 23h45 teve novo desmaio e jamais voltou a si.

Um homem magro e alto, médico com ar de cansaço, informou a família do falecimento, deu explicações detalhadas as que Elisa não prestou atenção, tumor, dor, terror, amor, or, or. As palavras que lhe diziam soavam como as badaladas de um sino pesado. E não faziam sentido. Não era o começo de uma depressão o que Antônio tinha? Não era cansaço? Desânimo? Estresse? Era, sim. Certeza de que era, pensou Elisa. Mas não.

*****

E ali, sentada na ponta do sofá, diante da janela passou todos os dias que se seguiram. Viu chuva começar, abrandar e acabar, viu sol nascer e se por, viu estrelas e todas as faces da lua, viu o tempo girar ao redor dos próprios ponteiros, viu vizinhos aproximarem-se da porta de entrada, baterem e desistirem, e viu, enfim, uma nuvem branca adensar-se do outro lado do vidro, primeiro na forma de um redemoinho descendo com fúria do céu, depois como uma onda de espuma grossa, penetrando pelas frestas da janela e inundando a sala, a cozinha, o banheiro, os quartos, o pátio, o bairro, a cidade, a espera, a memória, os batimentos do coração.

O branco da nuvem passou a limpo todos os dias, que pareciam ecos daquele domingo sem fim. Apagou o que havia sido e o que não chegou a ser. Era tanta brancura, que Elisa empalideceu aos poucos e seu contorno esmaeceu e o que estava dentro fundiu-se ao que estava fora e o que ainda restou dela desapareceu na imensidão branca.





sábado, 21 de maio de 2016

A bala que se encontra

Dúvidas nunca atormentam quem quatorze anos completa. Somente certezas. Certezas emolduradas pela miséria pungente transbordada pelos becos estreitos da favela onde habitava. Decidira assim abraçar o banditismo.  Não esperou a maioridade. Naquele ramo iniciava-se cedo. Infante. Esse seria seu apelido. Henrique na pia batismal, Infante Henrique alusivo ao monarca de terras além-mar. Em pouco tempo reinava na boca de fumo. Começara soldado do tráfico e logo chegara a general. Abraçara um fuzil e com ele as maldades que o faziam forte diante dos súditos. Sua palavra era lei e quem a desobedecesse, morador ou membro da quadrilha, provava de sua fúria. Incontáveis matou por vontade própria, outros, as balas perdidas disparadas por seu AK-47 tomaram o rumo indevido e ceifaram vidas no morro e no asfalto não tão distante. Eu aperto o gatilho, Deus guias as balas, costumava zombar.
Raramente saia do seu feudo-favela e sonhava virar inimigo público número um, estrelando cartaz destacado no disque-denúncia tão logo completasse dezoito quando o improvável aconteceu. Infante conheceu o amor. Menina de família, mãe crente. Largou tudo por Cristiana antes da maioridade. Entregador de farmácia tornou-se. Certo dia, voltando do trabalho o Infante criou asas e transformou-se em anjo por obra de uma bala perdida que encontrou seu corpo. Morreu na via pública. Não fora castigo de Deus tampouco fatalidade. Apenas mais um dia da barbárie urbana que assola o País.






sexta-feira, 20 de maio de 2016

Contículos


O contista contido Rui Sá resolveu escrever
do único jeito que sabia ser: minimalista.
Não por preguiça ou economia de palavras,
mas por uma intenção mais nobre:
instigar a imaginação do leitor, provocando o próprio
a criar o começo e os desdobramentos das histórias
que habitam esses contículos. Pode ser uma bobagem.
Pode ser um exercício de leitura e pensamento.
Pode ser algo divertido: pensar não custa nada.
Ao trabalho, leitores.

1.
O pequeno caixão branco baixou os sete palmos.
Davina apoplética assistiu à cena se perguntando:
"Por que meu sono é tão pesado? Por que não percebi o engasgo?".
À última pá de terra, encerrou-se a vida de uma mãe.
E brotou entre as flores e para sempre uma culpa frondosa.

2.
- Pai, o que é equanimidade?
- Menina! Você me irrita com essas perguntas fora de hora!
Que diabo!? Não vê que estou lendo?
- Mas pai...
- Dirce! Tira essa menina daqui! Senão eu faço uma besteira!
O pai sacolejou o jornal. Tentou se concentrar no que o perturbava.
Palavras Cruzadas: equilíbrio, moderação, comedimento, doze letras.

3.
Disse o velho babão para a arrumadeira brejeira do hotel:
- Fica para dormir comigo, moça bonita.
- Tenho tempo pro senhor não, seu dotô.
- Então, só um cochilinho, minha filha.

4.
Toca a campainha. É o síndico.
- Boa noite, senhor.
- Senhor não, Coronel!
- Pois não, Coronel.
- O motorista de seus filhos foi pego frequentando o elevador social.
O senhor sabe que é proibida a presença de serviçais nas dependências
sociais do condomínio?
- Posso até não concordar com a proibição, senhor, digo, Coronel.
Mas adianto que as pessoas que trabalham na minha casa são consideradas
membros da família. Portanto, podem frequentar qualquer dependência do prédio.
- Ah é? Então quer dizer que o motorista dorme também na sua cama?
- Só quando sua mulher vem aqui. Geralmente à tarde, Coronel.

5.
Rubinho sempre foi tido como um menino esquisito na vila onde morava.
Cresceu excêntrico, entre a pecha de genial e doido varrido.
Uma vez, já adulto e solitário, procurou companhia nas redes sociais:
“Quero amar uma mulher perneta e com vitiligo. ”
Apareceu uma só: Dagmar.
Não sei se por gratidão, despreconceito, paixão ou compaixão,
mas vivem juntos e felizes até hoje.





quarta-feira, 18 de maio de 2016

Uma noite é sempre uma noite. Só uma noite




Devia fazer no máximo uns quarenta minutos que Chico estava ali, cochilando perto do posto central. Aquela noite parecia que ia ter pouca coisa pra fazer, e só mesmo o corriqueiro: bateria que precisava de uma carga, motor fervendo, pneu estourado, fora os malas que não põem gasolina e depois inventam a maior história, de medo de serem entregues pra polícia, porque agora ficar sem gasolina dá multa. Mas Chico nunca chamava a polícia. Percebia às primeiras palavras as mentiras e enrolações, sentia quase raiva de os homens não falarem logo a real, Acabou minha gasolina, esqueci de pôr, uma droga, fiz a maior burrada e coisa e tal. Mas mesmo assim não chamava a polícia, não queria aproximação com eles.
Só que Chico foi bobo de cochilar tão tranquilo, confiando no seu palpite do mais absoluto sossego noturno. Ele até pensou, terça-feira, mais de duas da manhã e nada sério, sinal de que vai ficar tudo bem. Mas não ia e ele devia saber. Basta se vangloriar que as piores merdas acontecem. Faz quase oito anos que tá nessa, já devia ter sacado. E sacou, na verdade. Mas seu otimismo era entranhado na carne, vinha pelo sangue, era da sua mãe, sabia disso.
O rádio devia estar chamando há algum tempo. A letra mais o número foram entrando no sono quase profundo em que ele entrava. G1 G1 G1 G1... Mas era código que quase sempre participava dos seus sonhos, muitas vezes de seus pesadelos também. O guincho da companhia era quase uma extensão da sua casa, e era dentro dele que dormia agora, meio esticado para o banco do passageiro, a perna direita apoiada em cima da esquerda, os pés descalços, a cabeça caída para a frente e a boca aberta para o ronco que sempre roncava. G1, G1, está ouvindo? G1! G1?! Dirija-se ao quilômetro 43 da Anchieta, G1! Agora!
Chico conseguiu sair da última barreira do sono e despertar por completo. Estava sendo mesmo chamado. Pegou o console do rádio e confirmou, estava ouvindo, sim, iria para lá. Era uma moto? Certo, iria agora mesmo. Raspou a mão nos olhos, tirando as ramelas que já tinham começado a se formar, enfiou os pés nos tênis e deu a partida, direto pra Anchieta. Tava ao lado, chegaria logo.
Nessas horas em que acordava no meio da noite, metia a mão no bolso de trás da calça à procura de cigarros, sempre. Só aí, o bolso vazio, é que lembrava tinha parado. O médico proibira. Era isso ou o enfisema, o pulmão já estava muito preto. Fazia dois anos e Chico já tinha se acostumado, mas toda vez que acordava sobressaltado nem pensava e buscava os cigarros. Priscila odiava cigarro, tinha ficado felicíssima de ele parar. Tinha ódio de beijar a boca amarga de fumo, era o que dizia. Mas agora fazia todo esse tempo e ela continuava não querendo muito saber de beijar. Fugia, dava desculpa, dizia pra ele se aliviar com as putas. Ele vinha segurando o corpo e nem gostava de pensar nisso, mas o pensamento ultimamente andava fixo. Ia fazer 47 anos. Não tinha tido um filho nessa vida ainda e não queria morrer sem ter pelo menos um. A Rosana não podia, ele aceitou, o corpo dela não conseguia segurar bebê nenhum, parece que era um problema genético, coisa complicada. Ficasse com ela ia ver o que fazia, mas depois o amor terminou, ele encontrou Priscila, se apaixonou, foi morar com ela e o filho que ela trazia, ainda pequeno. Tinha engravidado novinha e não queria mais saber de filho na vida. Ele gostava de Thiago, o moleque era gente boa, mas não era seu filho. Daqui a pouco Chico morria e nada.
Tinha que achar a porcaria da moto quebrada agora, o 43 já tava ali adiante e nem sinal de moto no acostamento, onde será que tinha se metido? Tinha que andar mais um pouco pra saber, vai ver ela tava detrás daquela árvore maior ali, precisava continuar. Mas não tinha nada. Onde será que tava a danada? Será que tinha resolvido o problema e ido embora sozinha? Encostou o guincho no acostamento pra pensar o que fazer. A luz que vinha dos faróis na pista contrária fazia a vista doer. Na madrugada era ruim dirigir, os olhos não deviam estar muito bons, mas não falava pra ninguém, se o demitissem nem sabia o que fazer da vida.
Ia pegar o rádio pra falar com a central quando veio o chamado. G1? Onde você está, G1? Quarenta e três da Anchieta, apressou-se a responder. Mas não tem moto nenhuma aqui. Da Anchieta? É 46 e da Imigrantes, caralho! Ademir não costumava soltar palavrões, mas a mancada de Chico tinha sido imensa. Porra, errar de rodovia, que merda tinha feito! Vai imediatamente pra lá, os outros carros tão atendendo outros chamados, vai agora, G1, corre! Chico nem tentou explicar, desculpar, nada. Ligou o motor e partiu.
E foi quando estava saindo do acostamento, com a frente já na pista, que viu do outro lado o que parecia a traseira de um carro apontando adiante, só a bundinha aparecendo, no meio das árvores. Que merda seria aquilo? Acelerou pra pegar o retorno, tinha que dar a volta pra ir pro outro lado, mas a visão daquele carro mergulhado incomodava. Esperou não vir carro na outra mão e se jogou, depois explicava pros chefes, tinha que ver aquilo logo, parecia uma grande, imensa grande merda. Estacionou o guincho e ligou o pisca-alerta, sinalizando.
Desceu do carro e a mão escorregou, suada, na hora de bater a porta. Não se considerava medroso, isso não, mas não fazia nem um mês da morte da moça e ainda via a cara branca dela, dura, os lábios roxos, a parte direita toda esmagada e preta de sangue, e o desespero do marido, apoiando a cabeça dela no colo, gritando por ajuda, para que salvassem a mulher dele, pelo amor de Deus. O grito que ele deu foi horrendo e atravessou as matas. Não era nem uma coisa articulada, mas nem precisava. Era a angústia pura de um homem que queria salvar a mulher e não percebia que também ele morria. Isso é que Chico não se conformava. A visão da moça era horrível, mas ele já tinha visto muita gente morta nas estradas. As pessoas pediam pra ele fazer alguma coisa, socorrer os feridos, ajudar, mas ele não podia, não era médico, nem enfermeiro. Era só o motorista do guincho da companhia. O que não saía da sua cabeça era o pânico do homem e o absurdo de ele estar morrendo e não se dar conta. O sangue nas pernas e no peito pareciam ser da moça, mas ele também sangrava, parece que uma das artérias importantes tinha estourado, foi o que ouviu depois, e ele perdia sangue numa velocidade odiosa. Morreu no caminho do hospital.
E era por essa visão que Chico caminhava devagar agora, a lanterna apontada pro chão, demorando a jogar a luz pro carro, o medo do que ia ver desta vez. O coração quase engasgava, mas ele não podia ser tão covarde assim. Respirou um pouco mais fundo com a boca aberta e jogou o jato de luz na direção do carro que parecia balançar entre a estrada e o morro. Estava vazio. Os vidros estavam quebrados e as portas fechadas. As pessoas deviam ter saído pela janela, na melhor das hipóteses.
Começou a gritar, a voz um pouco baixa no início, depois mais e mais confiante, solta, Ei, tem alguém aí? Era estúpido falar isso, mas que outra pergunta ia fazer? Foi entrando na mata, fria e silenciosa, girando a lanterna pra todo lado e descendo, a terra escorregadia e úmida do sereno, amortecendo os barulhos dos passos de sua bota amarelo-fosforescente. Continuava gritando e ninguém respondia. Ouvia só o chiado vindo do seu rádio, no guincho, deviam estar chamando, mas agora não podia interromper sua busca. Aquele carro estava abandonado? Teriam fugido? Ou socorridos? Só se fosse por alguém da região, algum morador dali por perto, se é que tinha, porque se fosse a companhia teriam botado fitas isolantes, faziam um auê.
Entrou mais na mata. Pareceu ouvir um barulho, ainda baixinho, era um choro? O casal que morreu tinha deixado um bebezinho de apenas dois anos. Não tinha acontecido nada com ele, só um arranhãozinho na testa, de nada. O carro, em compensação, só faltou partir ao meio. A família nem veio buscar. Tava lá ainda, no pátio da polícia, até agora. Coisa ruim dessas, pra que iam querer o carro de recordação? Agora deviam estar vendo como iam cuidar do bebê, levar a vida pra frente depois da tragédia. A caminhonete que bateu no carro deles não foi pega até hoje, a filha da puta fugiu depois de bater e mesmo com as câmeras não conseguiram achar ainda, a assassina. O que mais tinha medo de encontrar era criança. E era choro sim, o que ouvia. Que não fosse de uma menininha, pediu rápido.
Por sorte não era, mas também não era muito melhor. Havia sangue por quase todo o corpo branco. Ela estava de costas, chorava e se batia com as mãos. Conforme Chico se aproximava começou a entender algumas palavras do que ela murmurava. A moça pedia para morrer, meu Deus do céu! Não era só com as mãos que ela se batia. Tinha uma pedra grande na mão direita e fazia uma força enorme para chocar a pedra contra a cabeça, num lugar que parecia estar ferido. A iluminação ali era só da lua e dos ecos da lanterna que Chico direcionava pro chão. Se lançasse o jato na cara da mulher tinha a impressão que ela podia atacá-lo, jogar a pedra por cima dele, ou fazer algo ainda pior, com ela mesma. Não tinha visto seu rosto ainda, mas de costas a cena era de alguém em transe, parecia até tomada por algo, credo!
Lançou a lanterna, agora apagada, ao chão, e enquanto se aproximava passo a passo ia pensando no que fazer. Caminhava segurando deliberadamente o ritmo dos passos, embora soubesse que era óbvio que ela tinha já notado a presença dele. Havia a luz piscante do guincho, os gritos que havia dado, o ruído baixo mas ainda audível do rádio. Mesmo assim ela prosseguia como se nada, como se não houvesse plateia, ou então será que caprichava mais agora que tinha plateia? Chico tinha que ser cuidadoso, mas também agir rápido. Desse jeito ela ainda acabava conseguindo o que queria.
Quando estava a poucos passos dos cabelos emplastrados de sangue da moça cujo braço continuava a se esforçar e a se atingir, chamou baixinho, buscando a doçura de quem fala com criança, Moça, ô moça, não faz isso! Olha, o mais importante é que a senhora tá viva, moça! Deixa disso! Eu tô aqui pra ajudar a senhora, vai ficar tudo bem! Quando ele falou ela finalmente resolveu notá-lo. Virou-se de frente pra ele, a pedra ainda na mão esquerda e um caco retorcido na direita, que fazia lentos rabiscos nos seios descobertos, a blusa florida rasgada, os trapos caíam-lhe nos braços. Eu quero morrer, olha o que eu fiz! Eu tenho que morrer, eu tenho que morrer, oh, meu Deus!
Chico não sabia se ela se referia ao carro batido ou aos machucados que se desferia, mas não importava, era preciso pará-la, deixá-la calma, e ele só conseguia falar a banalidade, verdadeira porém, que era que o valia era ela estar viva, o carro era só um carro, era um milagre ela estar viva. Mas essas coisas só adiantam pra pessoas mais normais, e a moça talvez não fosse tanto assim. Dava pra ver que sofria muito, devia ter problemas sérios, vai ver era atormentada por um marido severo que não a perdoaria pelo ocorrido, talvez fosse bater nela, talvez fosse ele a tentar dar cabo da vida dela, vai saber. Isso vinha na sua cabeça, mas na verdade não importava. Ele tinha que tirar aquelas coisas das mãos da moça. Permaneceu se aproximando, mas ela passou a gritar pra ele se afastar, levantando a pedra de novo e dando-lhe as costas. Quando achou que ela iria acertá-lo, ela se ajoelhou no chão, largando pedra e vidro e enfiando a cabeça na terra, num choro infantil que parecia conter uma tristeza gigante como Chico nunca tinha visto.
Chico não era um homem delicado. Quando Priscila chorava, ele até mandava calar a boca, sabia que era frescura. Mas aquela mulher sofria de verdade, por isso ele se ajoelhou atrás dela e bem devagar a abraçou, confortando-a como uma criança e deixando ela deitar a cabeça no seu ombro e chorar, o nariz escorrendo, o sangue dela avermelhando o uniforme cinza de Chico e os dedos dele tomando cuidado pra não encostarem nos mamilos descobertos dela. Quando se lembrou disso percebeu que não poderia contar pra ninguém essa parte da história, seus amigos jamais acreditariam e nem ele mesmo acreditaria, mas aquela era uma hora sagrada. Chico sabia, tinha sido enviado ali para salvar aquela dona.
Depois que ela chorou muito, no início ainda repetindo umas palavras confusas, que queria morrer, queria morrer de todo jeito, depois em silêncio, o choro cada vez mais pra dentro, Chico falou que ia pedir ajuda e se levantou, com movimentos leves, recostando-a no chão. Só então ela olhou no rosto dele e falou a primeira coisa que parecia voltada pra ele, que não era apenas reclamação e lamúria pra dentro. Você tem um cigarro pra me dar? Ah, se ele tivesse, se ele tivesse, dava tudo pra ter um cigarro para ela, mas não tinha e não ia adiantar explicar que tinha parado, o pulmão preto, a boca fedida, as roupas fedidas, nada. Eu não fumo, é pena, falou apenas, e saiu correu pro guincho, de costas, porque tinha muito medo de ela fazer alguma nova merda, e então acionou a central. Em menos de dez minutos a ambulância estava ali e a levaram dele, sem que ele soubesse seu nome. Ela ainda pediu que fosse ao pronto-socorro acompanhá-la, estava viva só por ele, mas isso fugia de qualquer norma e ele não podia arriscar o emprego. Passou apenas os dedos, de leve, nas mãos machucadas dela, olhando-a com calma e dizendo que ela ficaria bem.
Ela sobreviveu, foi tudo o que soube depois. Será que tentaria se matar outra vez? Como será que tinha enfiado o carro no mato daquele jeito? Perdera o controle na curva? Por que não aceitava o que tinha feito e ficava repetindo Eu sou toda errada, toda errada, toda errada? Ela parecia bonita, a moça. Devia ter uns trinta anos, era um pouco mais nova que Priscila.
Passou a incluí-la nas suas orações noturnas. Pedia que ele persistisse mais um pouco no seu projeto de família, a ideia de ficar casando e descasando não lhe agradava, dava muito trabalho, gastava tempo e depois nunca levava a nada. Tinha trocado Rosana por Priscila e os impasses e questões eram todos parecidos. Ah, que Priscila voltasse a trepar toda noite e topasse o filho, era tudo que ele queria, logo. E que a moça da estrada, minha Nossa Senhora, que ela fique boa, não sofra mais, nunca mais. Porque se ela aparecer de novo no caminho, não dá pra garantir que não pego ela pra mim.

Mulher bonita não pode nunca sofrer.  





terça-feira, 17 de maio de 2016

Isenção











                           A verdade é que desisti da poesia porque mandei o mesmo poema para diferentes pessoas. Todas acharam que o fiz pensando nelas, mas já nem me lembro para quem era. Ficou o poema, isento. Eu não vivo assim, com isenção.














segunda-feira, 16 de maio de 2016

O fogo do inferno


Era assim que ela pensava nele. Com o sexo pulsando dentro da lingerie recém-comprada e os bicos dos seios em riste, dois olhos varando o tecido leve do vestido. As entranhas se repuxando e se esticando num clímax de veias e órgãos; o suor escorrendo pelo corpo, formando alagamentos onde as curvas e desvios e orifícios permitissem. 
Um ano antes e nada era assim. Nem a vida em estado de graça, nem a respiração acelerada, nem a vagina depilada para sentir a pele dele encostando-se à dela. Um ano antes e ela não sabia como era esse calor que consome como o fogo do inferno. Não contava com nada além dos próprios dedos acanhados dentro da calcinha larga, e com o orgasmo silencioso no quarto escuro, e com a moleza do corpo que a deixava dormir um sono pesado.
O único homem com quem tinha dormido já fazia tempo. Um bêbado estúpido que lhe concedia duas horas por semana, enquanto a esposa perfeita acreditava que ele estava com os amigos. No começo, se arrumava e se enchia de cremes e perfume. Fazia jantar e sobremesa para esperar por ele. Comprava flores para a jarra de cristal. E soltava os cabelos para vê-los se agitar numa cavalgada que nunca aconteceu. O que aconteceu foi a certeza de que somente as garrafas de uísque precisavam ser renovadas a cada duas semanas. 
Mas, um ano antes, tudo havia mudado. Quando ela já não esperava por nada. Não que ter trinta e seis anos a incomodasse. O que arrebentava por dentro era o medo de só ler nas revistas aquelas carícias e sensações incríveis. Não precisava de homem para pagar as contas, para trocar as lâmpadas, para carregar peso, para conversar. Queria um homem de cama, devasso, com pegada forte e cheiro de toda hora. Nada de companheirismo ou de jantares. Cama. 
Foi o que teve. É o que tem. Há um ano, um mês e doze dias. 
Nada demais, quando se conheceram. Aliás, tudo de menos. Um segurança vulgar de boate, fazendo pose de policial americano dentro de um terno preto surrado. Uma briga qualquer que saiu do controle, o salto do sapato quebrado e ela no chão, sentindo a dor de cada pisada sem conseguir se levantar. Até que tudo parou. E ela se sentiu no ar, naquele colo imenso. O braço dele, rijo, sob as suas coxas; o suor daquele peito que a acolhia, protegia.
No elevador, mais tarde, sem se importar com os pontos no rosto e com os hematomas doloridos, ela se entregou a ele como um bicho. Nenhuma delicadeza. Nenhum pudor. Apossou-se dele com os dentes, com a boca, com as mãos, com as pernas entrelaçando-lhe a cintura. Gemendo num tesão enlouquecido. 
Nunca mais parou de gritar durante o sexo. Na hora do almoço, em casa, sobre a cama grande e perfumada; no fim da tarde, na cama estreita do quarto barato em que ele morava. Tudo para esperar a noite, em que qualquer canto escuro e sujo perto da boate servia para o coito rápido. Dois intervalos para fumar. Era o que ele tinha. Duas trepadas em pé. E ela, sem freios, imaginando o logo mais, quando o arrastaria, no fim da madrugada, para o apartamento dela. E fariam sexo mais uma vez, na garagem, no chuveiro, no corredor ainda escuro do prédio.
Um ano antes e nada era assim. Agora, a urgência insaciada agoniando o corpo. Ele dizendo que ela precisa parar, que ela está doente. Ela não querendo se curar dessa doença, dizendo que não é doença, que é vontade de cama. Desconfiando que ele arrumou outra e quer se livrar dela. Que ele e a outra transam, às escondidas, enquanto ela está no trabalho se acariciando no banheiro apertado sem poder gritar; ou enquanto ela ainda está em casa, à noite, esperando pela hora do intervalo dele. Tendo certeza de que ele e a outra estão, neste instante, rindo, mordendo, gemendo feito bichos. Olhando para a arma que pegou no armário dele e pensando que, antes de matar e de morrer, ela quer transar mais uma vez, só mais uma vez.

Ilustração: Escultura em mármore O Rapto de Proserpina, de Gian Lourenzo Bernini (Séc. XVII)






domingo, 15 de maio de 2016

pelo sinal


O pai de Margarida a tentar alcançar o barco e o barco a afastar-se.
O barco virado e o mastro desfeito na areia, era já a mãe de Margarida correndo pés de medo pela praia.
Os pés da mãe de Margarida mais corridos do que quando iam buscar a água que se despenhava da falésia, ou quando brincavam pela areia, ou nas rochas, nas pocinhas de água que o mar fazia nelas.
A mãe de Margarida que, com mãos trémulas de comoção e mágoa, acenderia velas aos pés da Virgem agradecendo, e o mar a deixar na areia, um em cada dia, os haveres: o pão desfeito na bolsa de quadrados, e a camisa, e o relógio tal e qual como o pai de Margarida o deixara na algibeira que ficava do lado direito.
O mar a lamber a areia e a deixar cada peça como se fosse prenda. Como se fossem desculpas que o mar apresentasse pelo imenso susto.
O barco tinha ficado mal atracado. Nada mais que uma pedra jogada ao fundo, e um pedaço de corda amarrado à proa do barquito.
Prendo-o melhor depois do almoço, tinha dito o pai de Margarida.
O barco indo num levante que veio com a praia-mar.
A mãe de Margarida disse: o barco desprendeu-se. E o pai de Margarida foi apanhar o barco nadando braçadas impossíveis, e o barco já longe, e nem forças para remar, que mal as teve para subir o calado do que nem era mais que um bote.
Pelos cimos da falésia, os pastores, olhando o homem e olhando o barco, descuidavam os rebanhos.
O sueste  a lamber a areia de uma praia, logo adiante daquela onde a mãe de Margarida ficara rezando, e lá no alto da arriba os pastores prevendo: a onda vai virar o barco e o homem morre.
A mãe de Margarida a rezar tanto, e o barco levado para outra areia, e o barco virado pela onda. Tinham previsto os pastores que, a passarem palavra de uns aos outros, vieram dizer à mãe de Margarida que o seu homem estava salvo, que tinha saltado para a água antes que o barco caísse sobre o mastro que se desfez em pedaços.
Deve ser de quando Margarida se lembra de ver a mãe correndo pelo areal, e nem ela terá percebido que a mãe corria pés de medo. Que nem terá sido logo, logo, que Margarida se confrontou com o mistério da vida e da morte. Mas terá sido naquele dia de ser o barco indo, que Margarida percebeu o poder imenso de benzer-se como ela veria as mulheres: em momentos em que falavam de ter morrido, ou de ter adoecido, ou de ter nascido, ou por um isto ou aquilo que lhes fosse desmedido, levavam os dedos da mão direita muito unidos até à testa e, a seguir, até quase ao ventre e, num gesto sempre muito sacudido, uniam um ao outro cada um dos ombros.
Mas quando a mãe lhe disser: ajoelha-te, filha, a fazer uma reza, Margarida, a sentir o frio da pedra, puxará as saias a proteger os joelhos, e ficará dobradinha, enrolada numa devoção que, ainda não sabe, os céus nunca irão conceder-lhe.
O pai de Margarida quase morto naquele mar que era tão pachorrento. Um mar que raramente dava em ondas de levante e, à noite, uma lua gorda vinha, como um farol, varrer-lhe o imenso negro.
Quando a maré vazava, ficavam as rochas com seus poros dilatados onde a água era tal e qual um espelho. E as cores. Os verdes, os lilases, os azuis. Miríades de tonalidades nas covinhas que o mar deixava ao arredar-se para longe. Outros mundos que Margarida nem ainda sonhava.
E as algas como bichos na areia, como colchas.
Como mantas, dizia a mãe de Margarida.
O odor do iodo confundia-se com a névoa ao fim das tardes e, pelas noites, as estrelas vinham banhar-se: nuas, despegavam-se da abóbada celeste em mergulhos acrobáticos, e Margarida batia palmas a sugar sentidos nas pedrinhas encharcadas em água salgada.





terça-feira, 10 de maio de 2016

Tupsărru


Por Henry Alfred Bugalho

Benedictus percorria os corredores da gigantesca biblioteca sabendo que o dia chegaria.
Os boatos deviam ser verdadeiros, pois há quase um século eram repetidos de bibliotecário a bibliotecário. Numas das prateleiras, havia um livro que quem lesse jamais morreria.
Não se sabia se este poder provinha do próprio livro — o que por si só já seria um problema, pois talvez fosse necessário ler várias vezes à mesma obra, mas em cópias diferentes, para se ter acesso ao misterioso volume —, se provinha das palavras inscritas ou se se originava da combinação de ambos. Além disso, como saber se já havia lido tal livro, se não somente ao se descobrir imortal? Ou haveria uma marca, um sinal, uma revelação, algo que pudesse identificá-lo?
Durante vinte anos, Benedictus havia lido mais de nove mil volumes do acervo de todas as áreas dos saberes humanos: Física, Filosofia, Matemática, Química, História, Geografia, Literatura, Medicina, Direito, Gramática, Retórica...
Entretanto, tudo que havia lido contradizia os boatos. “Todo homem é mortal” era a mensagem que perpassava a totalidade do que havia sido criado pelas mãos humanas; cada homem, gênio, boçal, rico, pobre, cristão, gentio, belo ou feio feneceria.
Foi quando Benedictus encontrou um antigo manuscrito sumério, enrolado numa capa de couro. A primeira sentença revelou que o projeto de imortalidade não era tão simples quanto parecia. Escrito em cuneiforme caldeu, dizia o seguinte:

“Apenas a leitura não basta; é preciso compreensão”.

Convencido de que aquele escrito era o que procurava, o bibliotecário se debruçou sobre seu estudo. Entretanto, os caracteres bailavam diante de seus olhos e, a cada vez que ele relia o texto, o sentido era diferente.
Seus colegas se espantaram com sua determinação e, por mais de um quinquênio, admiraram seu esforço em compreender aquele frágil pergaminho.

Numa manhã, ao descerrarem as portas da biblioteca, encontraram o corpo sem vida de Benedictus debruçado sobre a mesa. Ao seu lado, havia uma anotação sua:
“Que tolo fui! Passei todo esse tempo buscando o que já me pertencia”.


Fonte da imagem: https://lebedesiscuturi.files.wordpress.com/2014/10/old-shattered-library.jpg