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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Lambendo as Feridas

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 4

 

Um pecado tem sempre como consequência outro pecado.

Ben Hazzai

(Sábio rabínico do século II)

 

Destroçados e de cabeça baixa, entraram na aldeia arrastando os mortos e ajudando os feridos. Foram recebidos em silêncio numa primeira fase e depois com prantos e consternação de todos quantos haviam ficado de guarda às crianças, casas e bens.

Lemi, que fora um dos instigadores da vingança, estava arrasado pela morte do filho, Fuat e para Erem, se também lamentava a perda do primo, a do seu irmão Alev era impossível de suportar. Na tentativa de vingar uma morte havia agora mais duas e uma delas era o pai de cinco crianças que deixava agora a viúva sozinha.

Nos dias que se seguiram, todo o povoado tentou regressar à normalidade, considerando que, apesar do preço que pagaram, a vingança da morte de Nuri fora cumprida. Os grupos de caça retomaram o seu trabalho, sempre atentos à possibilidade de aparecimento de homens-macaco, enquanto outros pescavam e outros ainda cuidavam das magras colheitas ou do curtir das peles. O gado, composto basicamente por cabras-selvagens criadas desde pequenas nas imediações da aldeia, eram responsabilidades das mulheres e dos mais jovens, assim como o cuidar das colheitas e a busca e colheita dos frutos silvestres. Já tinham tentado criar jovens javalis, mas eles arranjavam sempre uma forma de fugir, por mais cercas, ou cordas, que fizessem ou com que os amarrassem.

A organização das tarefas, era uma herança do clã do Rio Brilhante, que devia o sucesso e crescimento ao facto de ter dado os primeiros passos no sedentarismo há algumas gerações atrás. Após comprovarem que se podiam semear e colher algumas das plantas comestíveis, foi fácil que alguns dos membros do clã não quisessem deslocar-se em migração, preferindo ficar junto das suas colheitas que eram um complemento para a caça e a pesca. Após se fixarem, já podiam construir paredes de pedras empilhadas em volta das tendas de paus e peles, para se protegerem do frio do inverno e pouco tempo depois já abdicavam da tenda, erguendo simplesmente os muros circulares e utilizando as peles apenas para o teto. A lama servia para tapar os espaços entre as pedras para reduzir a entrada do frio e consolidar as paredes. A estabilidade conduziu à conclusão de que não podiam andar todos a caçar ou a pescar e começaram a criar-se grupos especializados nas tarefas que mais gostavam de fazer, ou que aprenderam desde crianças.

Quando estavam no vale do lago salgado, eram visitados ocasionalmente por grupos de nómadas com quem trocavam peles ou mesmo caça. Acabava sempre por ficar um ou dois entre eles, porque estava ferido ou doente, ou simplesmente porque estava cansado de vaguear, por vezes até famílias inteiras. Ali, nas terras altas, não tinham visto ainda nenhum outro grupo de humanos. Estavam entregues a si próprios, eram pioneiros em desbravar as terras que o degelo deixara para eles.

Nos primeiros anos, a dureza do clima mais agreste, e as terras duras e pouco generosas causaram mal-estar no clã do Leão da Montanha. Havia críticas sussurradas e lamentos por seguirem o jovem chefe para uma tão grande provação, principalmente da parte dos irmãos de Zia que começavam a perguntar-se se não teria sido melhor ficar com Birol, ao invés de Erem. Os verões eram frios, em comparação ao vale e os invernos rigorosos, embora, talvez fruto do hábito, parecessem mais amenos a cada ano que passava. As sementes não germinavam com facilidade e a terra era dura e difícil de cavar, no entanto, a caça era abundante e um rio próximo tinha muita fartura de peixe, embora não pudessem viver demasiado próximo dele devido aos ursos. Foi só ao terceiro ano que se decidiram sobre o local onde deveriam fixar-se, abandonar as tendas e construir as suas casas de pedra; um planalto batido pelo sol e protegido dos ventos do Norte por um monte mais alto.

Nehir fora a segunda criança a nascer da união de Erem e Zia. A menina rebelde, tornou-se uma adolescente indómita e depois uma mulher laboriosa e independente. Não deixava que nenhum homem se aproximasse demasiado e, os que se atreviam a fazê-lo, saíam derrotados pela argúcia e às vezes até pela força. Forte para uma mulher; herdara a estatura do pai e a determinação da mãe. Quando faziam parte do Clã do Rio Brilhante, cedo se interessou pelo trabalho do xamã e, quem a queria encontrar, fá-lo-ia junto de Gokai e das suas duas esposas. Com eles adquiriu o conhecimento das ervas, da forma de tratar as feridas e mesmo dos encantamentos necessários para curar algumas maleitas. Agora, porém, sentia-se sozinha e impotente perante a quantidade dos feridos e gravidade dos ferimentos.

Erem emitiu um ronco, para evitar um grito, quando Nehir cauterizou o corte sob a vista direita, que parecia querer infetar, recorrendo a um graveto de oliveira em brasa. As nódoas negras quase tinham desaparecido e as dores no corpo já eram coisa do passado.

— Como está Tekin? — Perguntou ele para se distrair da dor.

— Está muito mal. — Informou Nehir mantendo a atenção enquanto tirava os vestígios de cinza do ferimento do pai. — Tem vários ossos partidos e respira com muita dificuldade. — Ela suspirou. — Mas acho que podemos ter outros casos mais complicados.

— Quais? — Erem olhou-a alarmado.

— Há vários bastante feridos por lanças e pedradas, mas são ferimentos pouco profundos, as lanças deles não são de ponta de sílex como as nossas, apenas paus afiados ao fogo. Não é o caso de Su e Ediz; ela tem um buraco profundo nas costas que lhe dificulta a respiração e ele outro na barriga. — A mulher torceu o nariz revelando pouca esperança. — Fiz-lhes pachos com folha cheirosa, folha doce e folha amarga após queimar o ferimento e fiz a reza a Da matter[1], mas têm muitas dores… receio por eles. Os deuses terão de usar o seu poder.

Ele coçou a barba, pensativo, Ediz era seu cunhado, irmão de Zia e Su, mulher de Naci, sua nora, o primeiro jovem e sem filhos, mas a segunda deixava duas crianças. Mais preocupações para o chefe; além de familiares próximos e estimados, eram braços fortes e decididos que deixavam órfãos.

Erem saiu da tenda de Nehir preocupado, (como ela era uma mulher solteira, não construíra uma casa) foi visitar Su e Ediz, para tirar ele próprio as dúvidas. Regressou muito pessimista, temendo que a sua filha e curandeira/xamã podia ter razão.

Sentado na pedra que mandara por para o efeito na entrada da sua choça, ficou a observar uma das noras de Lemi ajoelhada em frente ao totem que ergueram quando decidiram fixar-se naquele local. O grande tronco de madeira com mais de três metros fora aliviado da sua casca e da maior parte dos ramos, deixando-lhe apenas dois laterais com curvas em ângulo reto, dando-lhe uma aparência antropomórfica. Nos seus “braços”, iam sendo pendurados presas, cornos, cascos ou mesmo peles, em agradecimento à intervenção divina na caçada bem-sucedida. Aos pés ou pendurados no ídolo havia bocados de cabelo, lanças, facas ou outros objetos que lembravam aqueles que já partiram… estava lá o chapéu de pele do seu filho Nuri.

Se não tivessem cuidado, todos eles não passariam de recordações naquele totem… até que não houvesse mais ninguém para os lembrar.

Precisavam mesmo de ajuda divina; teria de implorar a Da Mater pela salvação daqueles dois e que o ajudasse a fazer o melhor pelo seu povo. Teria de fazer um sacrifício para manter os maus Ansu[2] afastados e que apenas os bons pairassem sobre a aldeia. Há alguns invernos, os deuses marcaram o lugar onde deveriam ser adorados com um raio que destruiu um imenso pinheiro. Ali se ergueram os troncos gravados por Asil representando Swol[3] e Mensis[4] com a madeira do pinheiro destruído e todo o povo gostou do santuário… talvez estivesse na altura de fazer mais alguma coisa para agradar aos deuses.

Zia saiu do interior da casa e sentou-se, sorridente, ao lado dele. Erem retribuiu o sorriso, apreciando aquele rosto redondo e moreno adornado com dois carvões reluzentes, que acompanhava a sua vida há tantos anos. Apesar dos cabelos que começavam a branquear, mantinha-se em boa forma e não se deixara engordar, mesmo após seis partos bem-sucedidos e um nado-morto. Logo que as dores do nascimento a abandonavam, começava a pastorear as cabras, enquanto a criança precisava de mais acompanhamento e logo retornava às tarefas de caçadora, calcorreando os montes e equiparando-se, ou mesmo suplantando, os homens em resistência e tenacidade. As suas funções de oráculo não a prejudicavam, antes a complementavam, fazendo previsões se haveria um bom dia de caça ou não. Os quase vinte e oito anos não pesavam no seu físico, porque não se deixava abater e engordar após o segundo parto, como grande parte das mulheres.

— Que fazes aqui? — Perguntou Zia sem deixar de sorrir. — Não vais entrar?

— Estava aqui a matutar no que fazer a seguir… — Erem desviou o olhar da companheira para o chão. — Por minha culpa, perdemos dois dos nossos e estamos em riscos de perder mais dois, numa vingança estúpida e impensada.

— Não foste tu quem nos levou. — Ela pegou o rosto dele entre as mãos para lhe ver os olhos. — Todos nós queríamos ir. Fomos todos inconscientes, não nos preparamos, achávamos que Tarhun[5] estaria do nosso lado pela justeza da nossa causa. Um só dos Seus raios seria suficiente para dizimar os homens-macaco, mas tal não aconteceu. Agora resta-nos lamber as feridas e esperar melhores dias.

— Os deuses estão ocupados nas Suas vidas — ele exibiu um sorriso desalentado —… os homens estão entregues a si próprios, implorando a Sua atenção, desde os tempos de Manu[6]. Implorei a Da Mater pela salvação de Su e Ediz, esperemos que nos ouça.

— Consultei as pedras e os ossos. — Zia disse, mas também baixou os olhos. — No caso dele, havia apenas uma linha curta; o fim deve estar breve, mas para ela os resultados eram confusos, não consegui uma certeza.

— Se Su morrer, Naci vai ficar pior do que o costume — previu o chefe —… se ele já é revoltado e impaciente, se ficar sem ela…

— Ontem falei com Nehir, naquela tenda gelada onde vive e ela também acha que Ediz é o caso pior, Su terá mais hipóteses. — Informou a companheira.

— Não sei porque é que ela quer estar ali. — Ele encolheu os ombros. — Connosco, ficaria melhor.

— Lá pode receber e estar com quem quiser… — ela exibiu um sorriso conhecedor.

— O quê? — Erem entusiasmou-se. — Já arranjou finalmente um homem? Vamos ter mais netos? Algum dos teus sobrinhos?

— Não… — Zia retorceu os lábios a olhar para o companheiro —… é mais… Enis, uma das filhas de Lemi.

— Que raio… — Ele coçou a cabeça perturbado.

— Por isso é que ela não quer estar aqui. Teme que não aproves.

— Ela já não tem idade para esses impulsos, essas preferências normalmente passam quando crescem! — O chefe sentia-se desalentado. — Não teremos novos netos, então…

— Sim, mas não te preocupes, o que interessa é que ela esteja feliz. — Afirmou ela sorridente, erguendo-se e puxando-lhe pela mão. — Anda, pode ser que se arranje outro filho em vez de um neto.


[1] Deusa-mãe

[2] Espíritos

[3] Sol

[4] Lua

[5] Deus do trovão, da caça e da guerra

[6] O primeiro humano

 

Manuel Amaro Mendonça

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sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A outra

 

Numa noite de início de primavera, Nely Flores enganava o tédio jogando nas slot-machines do casino do Estoril, quando avistou, por entre os rendilhados pintados dos vidros da sala, Galhardo e a esposa, que saíam de braço dado da sala de espetáculos. Todas as noites passava ali duas ou três horas, apostando moedas nas máquinas rigorosamente programadas para a derrotar. Quando o fim do mês se aproximava, tinha de se conter. Para fazer render, jogava a aposta mínima e introduzia as moedas, uma a uma, em vez de mandar carregar a máquina com um determinado valor. Por vezes, limitava-se a bebericar um Alexander no bar do foyer. Ao ver o seu amante com a legítima, gloriosa num vestido comprido rosado, suspendeu o gesto de carregar no botão da máquina, como se tivesse ficado paralisada. Uma profunda névoa de tristeza toldou-lhe o olhar, enquanto via o casal afastar-se. Com a dor na alma, recolheu as quatro ou cinco moedas da bandeja da máquina e dirigiu-se para o bar. Pensativa, desta vez pediu um uísque de malte, tentando atordoar a mágoa que a feria visceralmente.

Não havia direito! A si é que amargava a boca, com o amor de Galhardo, e a consorte é que desfrutava da sua companhia e se exibia a seu lado. A princípio, fora bom. Ele tinha sido generoso e subsidiara a publicação de autor do seu livro. Eram dezasseis contos inspirados na sua experiência de modelo de moda e tinha o título genérico de “Poodles amestrados”. Conseguira impingir uma trintena de exemplares a familiares e amigos, mas a saída em livrarias fora pouco mais que simbólica. Na verdade, não era grande coisa como literatura, admitia. Deixava transparecer um certo ressentimento de fim de carreira.

Envolvera-se com Galhardo nessa situação de dependência de gratidão que os poderosos sabem aproveitar tão bem. E era atento e gentil. Depois de ir a casa dela algumas vezes, e em vista das suas dificuldades para continuar a dedicar-se exclusivamente à escrita, oferecera-se para ser o seu mecenas e deixara um cheque de mil e quinhentos euros. Desde então, um cheque de valor semelhante era deixado na última semana de cada mês. Às vezes, havia um reforço, a meio do mês, sobretudo pelo vício das slot-machines, que entretanto adquirira. Porquê? Morava perto do casino, permitia-lhe sentir que saía e via gente, e, provavelmente, mantinha-lhe uma esperança mal assumida de voltar a ser independente, desta vez pela sorte.

No primeiro ano, ainda fora acompanhante de Galhardo à República Checa e à Polónia, mas, desde então — e já iam quatro anos — nunca mais o acompanhara nas suas viagens de negócios. O contacto que mantinham limitava-se à visita de Galhardo, uma ou duas vezes por semana, nas quais, quase sempre, ele se contentava com um felatio.

Nely andava perto dos quarenta anos e, se não fosse por usar cabelos lisos, em vez de armados, podia dizer-se que era uma réplica da mulher de Galhardo, mais nova. Na verdade, também tinha formas mais generosas, sobretudo o peito. Segundo se lembrava, só uma outra vez tinha visto Galhardo e a mulher juntos, ao vivo. Fora um ano atrás, nesta mesma situação de saída do casino. Também dessa vez, Nely tinha ficado muito perturbada e invejara, como símbolo legitimador, a gargantilha de pedras azuis que dona Matilde ostentava. Nely reconhecera a gargantilha, pelo que tinha dito, algum tempo antes, a sua amiga Gina, que era esteticista no hotel Palace:

Sabes quem esteve ontem lá no salão? — a legítima do teu homem. Ainda rompe meias solas, a socialite! Estava toda elegante, com um colar de ouro, incrustado de pedras azuis. Com um colar daqueles, até eu havia de parecer uma grã-fina!

Nely não gostara da apreciação positiva feita pela amiga, e alardeara uma influência que não sabia se tinha:

Não digas a ninguém, mas ele comprou aquele colar para mim. Eu é que não o quis, porque a pedra do meu signo é a esmeralda, que é verde. O que fazia eu com um colar de pedras azuis?

Essa conversa era uma parte da razão para nunca pôr a gargantilha de safiras que ele, depois de muito pressionado, lhe oferecera.

Igualzinha, querido, tem de ser igualzinha! Não quero sentir-me discriminada. Já passo tanto tempo sem te ter ao pé de mim…

Na verdade, não tinha muitas ocasiões para a usar. Nem achava que fizesse o seu estilo. Era um bocado pesada de mais para a sua idade. Apresentava-se-lhe com ela posta, isso sim, nalgumas das vezes que ele a visitava.

Quanto mais pensava em todas estas recordações, mais deprimida se sentia. E o sentimento por aquela mulher que ocupava, de pedra e cal, um lugar que podia ser seu, era uma dor cortante no âmago do seu ser.

Desculpe, não é a Nely? — ouviu perguntar.

Ao seu lado, estava um homem entroncado e olhar intenso. Quando ela se voltou suficientemente, Albano não teve dúvidas de que era a sua antiga namorada, de há uns doze anos.

Nely, há quanto tempo! O que é feito?

Olá! Por aqui? Albano, não é?

Nunca mais te vi, desde aquela vez…

Pois, deixaste-me a secar!

Atrasava-me sempre, mas daquela vez devo ter exagerado… Nem voltaste a atender o telefone!

Sei que estás bem, que tens uma empresa de segurança, não é? Vi-te na televisão, quando foi dos tiroteios no Porto.

Queriam saber como era em Lisboa. Eles lá matam-se uns aos outros, pelo controlo dos contratos das casas de diversão noturna. Nós aqui temos a coisa dividida por zonas. Eu não me meto na zona dos outros e eles não se metem na minha. Não temos problemas.

Nely não soube em que momento tremeluziu no seu espírito uma centelha inspiradora, certo é que, em certo ponto da conversa sobre seguranças, e sobre o difícil e delicado que é lidar com homens duros, alguns, ex-cadastrados, Nely entreviu uma possibilidade de alterar o rumo da sua vida.

Também tens ex-assassinos na tua empresa?

Tenho de tudo. Isso não é problema. Só me interessa se sabem impor-se fisicamente, em caso de alteração da ordem, na casa noturna onde estiverem a prestar serviço.

Nely baixou os olhos, pensativa. Albano reconheceu nessa posição a longínqua imagem da amiga, com quem nunca chegara a vias de facto. Nely, após reviver por momentos o rancor que sentira há pouco, ao ver a sua rival, resolveu arriscar e aproximou o rosto do ouvido do ex-namorado.

Achas que consegues arranjar-me um fulano para um trabalhinho realmente sujo?

Albano hesitou um momento.

Sujo, como? Dar uma coça, partir as perninhas?

Apagar uma certa pessoa.

Albano quedou-se um pouco a contemplar o rosto decidido de Nely. Como estava diferente da jovem suave e um pouco tímida que conhecera anos atrás!

Caramba, Nely, não estou a reconhecer-te! Mas arranjo-te o que precisares. Deixa-me pensar! Olha, depois de amanhã, às onze, encontra-te comigo no miradouro da Boca do Inferno. Talvez já tenha alguma coisa para ti.


À hora combinada, chegou Albano. Nely, encostada à amurada do miradouro, fingia contemplar o infinito. Na verdade, controlava, discretamente, o acesso pedonal, um pouco insegura sobre quem apareceria. Albano cumprimentou-a e sugeriu o aconchego discreto de um banco de namorados incrustado na rocha. Foi direto ao assunto.

Nely, não chegámos a falar a sério sobre o que pretendes. Tens consciência de que é uma coisa muito grave e que deve ser rodeada de todas as cautelas?

Sim. O que queres dizer?

Sabes, não há operações perfeitas. Há sempre alguma coisa que corre mal, algum imprevisto. Tens consciência disto?

Nely acenou fracamente, sem dizer nada. Albano continuou.

Estás disposta a avançar, sabendo que, se der para o torto, somos todos envolvidos e presos, incluindo tu?

Estou — respondeu, endireitando o tronco e adotando uma expressão voluntariosa.

Ok! Então, é assim: há dois gajos que fazem isso, mas querem dois mil contos cada um. Vinte mil euros pelos dois. Estavas a contar com este valor?

Bem, sim! Eu não tenho esse dinheiro, mas tenho uma coisa que o vale. Uma gargantilha de safiras. Olha! — sugeriu, virando a abertura da mala de mão para ele. — Vale bem mais que isso.

Ok, talvez. Lembra-te que um recetador não dá o dinheiro que isso custou na loja. Mas vamos ver. Depois digo-te se chega. Agora, preciso de saber quem é o “feliz contemplado”.

Estás a ver o Galhardo dos vinhos? A mulher! — informou, estendendo uma revista do social a Albano. — É esta das fotografias.

Fihu! — assobiou Albano. — Não sei se os gajos vão querer. Logo se vê. Como é que ela se chama?

Matilde. Vive numa quinta em Sintra e dorme sozinha num quarto no rés-do-chão da casa. É fácil.

Tens pressa nisso? Tens algum método preferido?

Nely evocou a imagem da rival, radiosa, de colar a rodear o pescoço.

Enforcada! Pendurada por aquele pescocinho flácido. Assim que puderem.


Ainda nessa noite, Albano chamou ao seu gabinete os dois homens que tinham aceitado fazer o trabalho. Fora uma escolha acertada, à primeira.

Zezé; Bruno; já tenho os elementos que vocês vão precisar. É esta gaja — apontou, mostrando uma revista, em que avultavam fotografias de dona Matilde em várias divisões da sua casa de Sintra. — Vejam bem a gaja e as fotografias da casa, e estudem a localização aqui no Google Earth — adiantou, mostrando o ecrã do computador.

Chefe, já tem a “narta”? — quis saber Zezé.

Já! Tenho isto — asseverou, mostrando a gargantilha. — São pedras verdadeiras. Se levarem isto a Espanha, de certeza que conseguem mais de trinta mil euros. Vou cortá-la ao meio. Se aceitarem o trabalho, levam já metade. Quando acabarem, vêm buscar o resto. Pode ser assim?

Conte connosco, Chefe! — confirmou Zezé.

Se conseguirem sacar mais alguma coisa de valor lá da casa da gaja, é convosco. Até convinha, para parecer um assalto que se descontrolou. Mas, se trouxerem de lá alguma coisa, isso é material que queima. Tenham cuidado com ele. Não é como este.

Esteja descansado! Nós sabemos o que fazemos.

Claro. Era só para lembrar. Agora, queria ter uma conversinha muito séria convosco — explicou Albano. — A ti, Zezé, já te conheço desde os Fuzileiros. Sabes que um camarada nunca lixa outro. Se alguma coisa correr mal — e nestas coisas nunca se sabe o que pode acontecer — lembrem-se que é muito mais útil um amigo que possa fazer alguma coisa por nós, que um que esteja tão tramado como nós. O que eu quero dizer é o seguinte: se algum de vocês for preso, não lixe mais ninguém. Por um lado, eu ia negar tudo; depois, comigo cá fora, sempre vos posso contratar um advogado que valha alguma coisa. Fui claro?


No dia seguinte, Albano voltou a encontrar-se com Nely, para lhe dar conta da evolução do processo.

Está tudo tratado, Nely. Eles aceitaram o trabalho e o pagamento. Agora, é só esperar. Estou convencido de que vai correr tudo bem, que eles são homens de confiança. Por ti, deves fazer uma vida completamente normal, sem qualquer alteração, quer até ao dia D, quer depois. Nós próprios não devemos voltar a ver-nos, pelo menos sem deixar passar muito tempo e deixar arrefecer o caso.

És um querido! — regozijou-se Nely, dando um beijo na face de Albano. — Não sei como te agradecer!

Uma mulher bonita encontra sempre uma maneira de pagar um favor, se quiser — sentenciou Albano, com voz maliciosa.

Maroto! — protestou Nely, sorrindo.

Joaquim Bispo

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Este conto integra a coletânea Tempo de Vilões — resultante de concurso literário —, disponível na Amazon, em formato eBook Kindle. https://www.amazon.com.br/gp/product/B0BB52VNKX?fbclid=IwAR1GOZxMaC6Ka3Ae6NUGvQej0wTpM_UQ6ZN7bn8bpvBykJkP0XeUIn7nJr8

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Imagem:

Édouard Manet, Nana, 1877.

Coleção Hamburger Kunsthalle, Hamburgo, Alemanha.

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sábado, 19 de novembro de 2022

Nada menos que isso


 

Faz dias que não consigo dormir. O vento jogado pelo ventilador soca a minha pele, como uma massa concreta, informe. Qualquer superfície em que me deito espinha ou urtiga. Apesar do tempo brando, há um calor infernal no meu quarto; o sol parece dormir neste canto. Penso em marcar um médico, mas ainda não estou certo de que especialidade, se psiquiatra ou neurologista do sono. Ao mesmo tempo, tenho receio de saber que se trata de loucura ou de tumor no cérebro – meu pai morreu disto. Minha filha é o meu único contato com o mundo, desde março de 2019 – fora a dona Neci, a diarista, que mal fala e pouco vive. Lina vem em dias alternados, sempre que pode. Quando me queixei de desconfortos, ele quis me levar à emergência, mas logo menti, dizendo que havia melhorado – tenho horror a hospital. Já me desfiz do aquário com os dois peixes; dei-o à dona Neci, que deve, também, ter dado um fim inútil – não a vejo cuidando de bichos. A decisão se deu para salvá-los; não me perdoaria se algum deles morresse sob a minha tutela. Aliás, acho uma péssima escolha criar bichos enjaulados. Parece que é uma necessidade, quando é uma carência que só diz respeito a mim; eu que tente resolver os meus problemas. Aceitei o presente de Lina porque seria uma desfeita devolvê-los, e porque ela disse que eu estava muito só, depois da morte de Maria, minha mulher. Agora, devo arranjar um artifício para explicar o “desaparecimento” dos coitados. Que algum deus lhes dê um bom destino. Pois bem, me livrar valia mais a pena do que fingir para minha filha que seríamos bons amiguinhos. Tenho tremeliques no corpo, que me impedem de escrever, um bom hábito que tinha. Até as pálpebras dançam sobre os olhos, em frenesi. Aproveito as poucas horas no dia em que minhas pernas não formigam ou latejam para tomar banho e comer. Tenho lido notícias sobre o mundo, e não são nada boas. Se fosse egoísta, pedia a Deus para mandar logo um meteoro, de modo a acabar logo com tudo. No entanto, com relação ao meu mundo, peço o fim; imediato. Sempre pensei que só haveria sentido em viver se houvesse dignidade. Nada menos que isso. Trabalhei feito um jumento e entreguei parte da minha fortuna ao país, para me aposentar. Tenho para o trivial, para comprar os meus remédios, para fazer as compras; inclusive, para pagar um agrado ao José, o servente do prédio, para trazer o meu almoço e alguma coisa da farmácia e mercearia. Rezo pelo dia em que possamos nos livrar do estúpido conservadorismo e da religiosidade doentia. Tinha o plano de morrer através da eutanásia. Mas, no Brasil, isso ainda é uma nuvem vaga. Não sei se devo descobrir o meu mal. Estou esperando que a natureza faça o seu papel, me tire daqui e dê espaço para uma nova vida que queira viver. Já chega de amolação.





quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Dentro dos glóbulos brancos e vermelhos

 









domingo, 13 de novembro de 2022

"O Cheiro do Medo"

 

“O bando de homens está com medo. Sei-o bem, porque sou um cão e ao meu olfacto chegou o cheiro ácido do medo”.

A maior parte das vezes em que sinto este cheiro, facilmente descubro de onde vem esse medo. Hoje está a ser muito mais complicado, porque por mais que me esforce ainda não consegui descobrir a razão de tanto medo. Não sei se estão à espera de serem vítimas de alguma emboscada ou se o medo advém daqueles momentos que antecedem os grandes golpes.

Se estão a preparar um assalto a casa, desiludam-se, ó medrosos, que eu cá estou para vos fazer frente. Sou um cão de guarda e desde cachorrinho que tenho treino específico para esse mister.

Não é para me gabar, mas posso dizer que já fui posto à prova várias vezes e com grande sucesso. Lembro-me que uma vez tive de me confrontar com um perigoso malfeitor, de grande calibre e sem ajuda de ninguém consegui pô-lo em fuga. Nem é por acaso que os meus donos decidiram baptizar-me com um nome cheio de significado, Leal.

O cheiro ácido do medo chega-me ao olfacto cada vez mais intenso. A sua origem não pode ter nada a ver com coisas comezinhas. Tenho cá um arrepiante pressentimento de que o medo tem a ver com algo de sobrenatural, talvez com almas maléficas do outro mundo.

Afinal de que têm eles medo? Poderá também ser de algum animal feroz ou de algum ajuste de contas entre bandos rivais. Tenho ouvido histórias contadas ao serão acerca de autênticas guerras. Continuo sem dar resposta a esta minha interrogação.

Também não consigo distinguir bem, quase que nem vejo sombras, porque é noite cerrada e o único fraco ponto de luz está colocado no lado contrário. Vou-me esforçando por tentar descortinar alguma coisa, mas por mais que tente fazer jus à minha excelente visão, nada consigo. Sei que são cinco, não pela intensidade do som, o bando fala baixo, mas porque oiço cinco timbres bem diferentes de sons vocais. Sou sobredotado nestas coisas da audição, tenho ouvido absoluto e consigo facilmente distinguir os timbres uns dos outros, no meio de qualquer algaraviada. Também sou capaz de afirmar com toda a certeza que o bando é composto por homens não muito velhos, porque quando falam não arrastam as palavras, têm a fala fluente.

Sou capaz de descodificar o mais insignificante ruído, nasci assim, confidenciou-me uma vez a minha mãe, que recorria frequentes vezes a mim, quando andávamos juntos pelos montes da herdade de noite. A guarda que montávamos só era eficaz se soubéssemos distinguir todos os ruídos, para saber aquilo com que podíamos contar. A minha mãe ensinou-me muitas coisas importantes que me ajudaram ao longo da vida e uma era conseguir distinguir bem os sons uns dos outros.

De dia é mais fácil, porque ouvimos e vemos bem, de noite, além da visibilidade ser reduzida, ela está cheia de ruídos esquisitos e como não vemos os autores deles, ficamos perdidos.

Hoje estou completamente perdido e desorientado, com o que está a acontecer neste momento. Oiço as diferentes falas, mas não consigo distinguir quem é quem, mas sei que o bando de homens está com medo, não pelo que dizem, mas pelo cheiro que chega ao meu olfacto.

Agora oiço um outro som que vem chegando, mas que não consigo descodificar. Não consegue chegar lá, fico-me pelo ruído e não sei de que ruído se trata. O som não me é familiar, nunca antes em circunstância alguma o ouvi. Nada tem a ver com os sons que oiço desde o meu nascimento e que tenho aprendido a distingui-los.

Não consegui descodificá-lo, só fui capaz de o associar a uma imagem virtual ao decompor aquele som em todas as suas camadas. O resultado deu numa espécie carreta puxada por estranhas criaturas. Assim que aquela chocolateira estancou, ouvi um ranger de uma porta a abrir-se e um movimento de alguma coisa a saltar paro o chão.

Não sinto nenhum odor. Essa coisa que saiu da carreta não tem cheiro. Um verdadeiro fenómeno da natureza, porque tudo o que é da natureza tem cheiro. O cheiro ácido do medo veio em crescendo, à medida que aquela coisa sem cheiro caminhava ao encontro daquelas cinco criaturas. Quando o meu olfacto estava prestes a atingir o grau máximo do suportável aquele bando de homens também deixou de ter cheiro.

 





quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Amendoim

O sujeito tinha muito orgulho do nome, enchia a boca cada vez que lhe indagavam, mesmo que para uma simples anotação no caderno de fiado da padaria da esquina. Cultivava este sentimento desde a infância quando observava as assinaturas nas cédulas. Quem sabe um dia fosse tão importante quanto um Ministro da Fazenda ou se não, ao menos Presidente do Banco Central.

Para as primeiras assinaturas, gastou folhas e folhas de papel, horas e horas rabiscando até chegar ao traço perfeito, a chancela que representava toda a dignidade de seu nome. Depois de tanto praticar, acreditava que a sua assinatura possuía traços únicos, garantia de exclusividade.

Tudo que usava era personalizado, o que incluía roupas, acessórios, a mobília que usava em casa ou no escritório. Fez aulas de pintura e de desenho para poder aplicar a assinatura em suas obras. Fez dela também a sua logomarca.

Com o passar do tempo, o Senhor Afonso Carlos de Mendonça passou a ocupar funções de destaque na empresa, chegando à Presidência. Sentia o maior prazer em esvaziar tubos e tubos de canetas esferográficas nas infinitas páginas de documentos que assinava.

Na empresa foram incontáveis os contínuos e estagiários que passaram pela sua frente. Nunca prestou atenção a nenhum deles. Certo dia, foi diferente. Um menino, que atuava como menor aprendiz, levou-lhe, como de costume, uma pilha de documentos para assinatura. Afonso examinou cada um e depois de passar por todos, começou sua sessão de assinaturas.

Testou a caneta, arrumou os objetos sobre a mesa para um melhor posicionamento dos papéis. Já ia assinar o primeiro documento, quando lembrou que não havia conferido o padrão da assinatura. Puxou uma folha de uma das gavetas. O papel já possuía algumas assinaturas, apôs uma nova logo abaixo da última, comparou com o gabarito e sorriu. Respirou fundo e cuidadosamente fez cada uma das assinaturas nos documentos. Tudo com muita calma e esmero.

Percebeu que o menino segurava um dos documentos e olhava com atenção os traços da marca. Curioso, resolveu questionar o menino.

− Gosta de assinaturas?

− Sim, as observo sempre.

 Tem uma?

 Todos têm, desde que aprendem a escrever, senhor. – disse, educadamente, o menino.

− Falo de uma marca pessoal, algo elaborado, como a minha, por exemplo.

− Não senhor, assino meu nome por extenso. Acredito que um dia uma nova assinatura surja espontaneamente.

− Pois eu elaborei a minha com muito cuidado. É o que nos diferencia, sabe?

− Sei.

− Mas se não acha uma assinatura elaborada importante, por que observa tanto a minha?

− Fiquei curioso.

− Com os traços? Com a inclinação? Com a pressão exercida sobre o papel? Ou seria com velocidade que é escrita?

− Não. Estranhei o fato de alguém escolher uma única palavra como assinatura. É um apelido?

− Como assim, um apelido? É uma representação de Afonso Carlos de Mendonça!

− Me desculpe, senhor. Para mim, está escrito: A-men-doim, apontando as partes da assinatura com o dedo

Afonso olhou para a folha de papel, sua face se tornou branca, quase transparente. Olhou novamente para o documento, depois para as assinaturas dos quadros de própria autoria espalhados pela grande sala, para o bordado no lenço do bolso do paletó, para a gravação em baixo relevo nos vidros do prédio, tudo, tudo grafado com o maldito A-men-doim. A terrível palavra reproduzida pelo menino, ecoava em seus pensamentos e o atordoava.

A palidez no rosto deu lugar ao rubor, veio a dor no peito e depois a escuridão. Não resistiu.

Afonso era intolerante a amendoim. Como ninguém sabia disso, estamparam a assinatura dele em sua lápide, logo abaixo da transcrição de uma de suas falas preferidas: “Todo homem precisa deixar sua marca, será a sua identidade e o seu passaporte para a eternidade!”.





quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Despedida de mãe


 

Não te admires se esta cartinha não for muito longa nem muito coerente, é que, com a inúmera medicação que me dão, os meus períodos de consciência são sempre curtos e nem sempre muito racionais. E apesar de me dizerem que não devo desesperar, que enquanto há vida há esperança e outros chavões similares, pressinto que talvez seja melhor deixar-te algo meu, uma mensagem, digamos, para o caso de eu não sobreviver.

Ainda não te vi sem ser em fotos e começo a pensar que não chegarei a ver-te e muito menos a tocar-te. Não podes sair da incubadora que te mantém vivo e eu não posso deixar estas máquinas que tentam manter-me presa à vida na vaga esperança de que o meu corpo comece finalmente a reagir favoravelmente.

Irónico, não é, estarmos ambos dependentes de máquinas, tu no início da tua vida e eu no fim da minha?

Mas divago. O que realmente te queria dizer é que nos curtos meses que tivemos juntos, em que te senti plenamente dentro de mim, me trouxeste uma imensa felicidade. Não és o meu primeiro filho, o teu aparecimento foi até uma surpresa numa altura em que pensava que tudo isso ficara há muito para trás. Mas confesso que, passada a surpresa e o pânico iniciais, passei a ver-te como um verdadeiro milagre, apesar dos usuais profetas da desgraça insistirem em falar nos perigos de uma gravidez na minha idade e estado de saúde.

Fiz, contudo, ouvidos moucos a tudo isso e concentrei-me em apreciar ao máximo uma experiência que, por muito que seja repetida, é sempre nova, sempre diferente. É certo que nem sempre me sentia bem, os célebres enjoos matinais atacaram cedo e em força e nunca chegaram a desaparecer totalmente. E para quem sofre tanto da coluna como eu, uma gravidez não é certamente a melhor opção.

Passei estes longos meses a imaginar como iria ser a nossa vida depois de nasceres, como serias... sim, nem sabia que eras um rapaz, preferi ter a surpresa completa, a da gravidez e a do teu sexo. Estranhamente, uns dias tinha a certeza absoluta de que serias uma menina, finalmente, com quem um dia poderia ter o tipo de conversas entre mãe e filha com que sempre sonhei. Mas noutros, bom, tinha a mesma certeza de que viria aí mais um rapaz, para grande alívio do teu pai que até tinha pesadelos com a ideia de ter uma filha na idade dele.

Pensei também muito nos erros que não repetiria e no muito que aprendi com os teus irmãos. Mais velha agora, muito mais velha, e mais ciente de quem sou, seria certamente bem melhor mãe do que fui com eles, sempre pressionada por problemas económicos e falta de tempo, aliados a uma boa dose de estouvadice e ignorância próprias da minha pouca idade.

O problema é que o mundo mudou, e de que maneira, por isso o mais provável seria cometer outro tipo de erros, quem sabe se mais graves. Mas, infelizmente, estou certa de que não estarei cá para ver isso acontecer, terão de ser os teus irmãos a ajudar a educar-te, é que Raul, o teu pai, nunca foi muito bom nesse tipo de coisas, é mais um homem de “panoramas gerais”, os detalhes do dia-a-dia passam-lhe quase sempre ao lado.

Gostaria imenso de me aguentar até poder ver pelo menos uma foto decente de ti, és tão pequeno e tens tantos tubos e coisas em cima que nem te consigo ver a cara. E não me posso basear nos teus três irmãos, são todos tão diferentes uns dos outros e foram-no sempre, desde a nascença, apesar de terem saído todinhos à família do teu pai. Era, pois, bom que saísses à minha, serias uma recordação viva para quando eu já cá não estiver.

Mas não é só a parte física que me passa pela mente. Nos meus curtos períodos de lucidez dou por mim a imaginar os teus primeiros passos, a primeira palavra que dirás, o teu primeiro dia de escola, se gostarás tanto de ler como eu, a tua primeira paixoneta, enfim, tudo o que virás a sentir e a viver ao longo de uma vida que espero que seja bem longa e preenchida.

Sei que serás muito acarinhado e apoiado pelo teu pai e irmãos. E isso sem esquecer a Ana, a tua única cunhada até à data, que também está grávida, terás pois um sobrinho quase da tua idade. Gosto muito dela, é muito boa rapariga e não duvido de que virá a ser uma mãe ótima para os filhos que tiver e para ti, uma vez que já me prometeu que zelaria por ti “caso aconteça alguma coisa”.

E sei bem que cumprirá, o mais provável será até vires a ser criado na casa dela até teres idade suficiente para ires viver só com o teu pai. Sim, só com ele, porque nessa altura já os teus irmãos terão a sua própria vida, poderão até estar casados e com filhos seus, que serão mais irmãos para ti do que propriamente sobrinhos.

Espero que te falem de mim, que venhas a saber alguma coisa sobre quem te trouxe ao mundo de um modo tão desastroso. Apesar de me recusar a aceitar maus agouros, algo me levou a organizar álbuns de fotos em que eu sou o tema principal, tudo devidamente legendado para que não precises de recorrer a ninguém para saberes o que representam. E mandei converter em DVD os velhos vídeos que tínhamos de festas familiares, férias e outras ocasiões para que os possas ver à vontade – e com ordens estritas ao teu pai para que faça nova conversão caso o DVD deixe de existir...

É pena já não teres avós e nunca teres tido tios, mas com quatro irmãos e mais um sobrinho – ou sobrinha – a caminho não te faltará família para te acarinhar e te dizer quanto foste amado e desejado, apesar da surpresa tremenda que foi a tua conceção.

Mas há uma coisa que só eu te posso dizer, daí a razão de ditar esta cartinha à simpática enfermeira que cuida de mim durante a noite: é que, mesmo sem nunca te ter visto ou tocado, posso afirmar, sem a menor hesitação ou dúvida, meu querido Rui, que foste o sol do final da minha vida.

Luísa Lopes

Photo by charlesdeluvio on Unsplash






quinta-feira, 3 de novembro de 2022

NAS ÁGUAS DO RIO


 

Aquele teu short de estrelas

não saiu de minha constelação mental,

em que eu te vislumbrava nítida e nua

e na noite o teu perfume se misturava

aos perfumes da noite, tornando-a impregnada

de um conteúdo que era ao mesmo tempo

ferino e feminino e ardente.

Lembrança de água barrenta na boca

e o teu corpo exposto que estava

ao papel transparente do sol sobre o tecido.