Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

domingo, 22 de junho de 2008

O BICHO PAPÃO - Giselle Sato


Rita puxou as cobertas e se encolheu na caminha apertada.

A escuridão e a noite chuvosa contribuíam para que seu pavor aumentasse ainda mais.
O som ritmado dos passos no corredor de tábuas era quebrado apenas pelo baque seco do salto contra a madeira.
Mentalmente contava os tons altos e baixos, dez, nove, oito....e então silêncio.

A porta do quarto nunca era trancada. O monstro espreitava.
Ela esperava de olhos bem fechados, coração pulsando forte, tremendo de frio e medo.

Desde menina , Rita era assombrada por terríveis monstros. Foi embalada por uma canção de ninar onde um boi da cara preta engolia o pranto das criancinhas com medo de careta. Mais tarde, corria para casa com as ameaças do velho do saco e do bicho papão.

Sempre havia um lobo mau pronto a atacar se fosse desobediente.
Os pais eram severos e não admitiam que a menina corresse pela casa ou sujasse as roupas na terra.
As outras crianças brincavam de pique e andavam de bicicleta enquanto Rita, sentada no degrau da frente da bela casa, exibia impecável laços na bem comportada “maria –chiquinha”, o vestido muito bem engomado.

Rita olhava os sapatos boneca de verniz brilhante sem um só arranhão e com a ponta das unhas puxava os fios das meias ¾ , desfiar era sua única distração.

Aos poucos compreendeu que seu limitado mundo era um refúgio de dores e doenças.
A casa cheirava a desinfetante e éter. Pomadas e ungüentos.
A mãe lamentava a artrose e o pai trabalhava dia e noite na padaria, sofria de pressão alta e não podia ser contrariado nunca. Os familiares haviam se afastado no decorrer do tempo e ninguém os visitava.

A televisão ficava ligada em programas femininos. A mãe adorava copiar receitas e acompanhar as novelas.
Rita não podia assistir os folhetins nem ler qualquer obra.
Tudo passava pela censura paterna, nada escapava dos olhares atentos da mãe zelosa que sempre a acompanhava a escola, cinema ou qualquer outro local.

A mãe andava pelas ruas arrastando a menina pelo braço atenta aos mal encarados e suspeitos:-Está vendo aquele homem ali parado? Vamos atravessar, é assaltante ou tarado. Vê como nos olha? Cuidado Rita, são os piores tipos.
Rita não via nada de mais na pessoa em questão.
Muito pelo contrário, achava que o pobre homem devia estar horrorizado com a mulher com cara de louca correndo pelas calçadas como se perseguida por horda infernal

Treze anos de prisão.
Começou a mostrar impaciência e descaso, a exigir maiores explicações para tantas proibições.
A mãe chorava e fazia queixa ao pai, temia que a filha perdesse o rumo, a menina estava rebelde demais.

Naquela noite Rita sentiu os olhares atentos dos pais durante todo o jantar. Descontentes e ameaçadores.
O pai era um senhor rude:- Sabe Rita, sua irmã começou a ficar como você e teve um final trágico e vergonhoso.

-Por favor Adalberto, não tocamos neste assunto há anos.

-Irmã? Eu tenho uma irmã? Onde ela está?

-Morta.

Rita nunca desconfiou da existência da irmã. Era filha única temporã:- Porque nunca me contaram nada? Nem uma foto? Nada....

-Ela desonrou esta família, fugiu grávida e desapareceu com um bandido qualquer. Soubemos depois que morreu de parto. Tinha só quinze anos.

-Depois fomos abençoados com sua vinda e prometemos nunca mais tocar neste assunto.

-Não acredito que vocês esconderam tudo isto, eu sou uma menina normal, quero ter uma vida como a das outras pessoas. Vocês me tratam como uma prisioneira.

-Basta. Nesta casa só quem fala mais alto sou eu. Já para seu quarto. E não sairá do castigo até aprender a ser mais educada.

A mãe chorava e precisou tomar fortes calmantes.
O pai ligou o rádio e pegou a garrafa de conhaque. Logo o fedor do charuto barato invadia a casa.
No quartinho Rita chorava a irmã desconhecida e a vida miserável. Cansada acabou dormindo.

Meia- noite. O relógio antigo bateu as horas e Rita ouviu o som dos passos.

A maçaneta girou e a figura escura entrou sem receio, sabia que ela não gritaria nem teria qualquer reação.
O monstro puxou as cobertas e levantou a ponta da camisola da menina, cheirava a conhaque e charuto, suor e maldade.

Antes de começar mais uma sessão torturante sussurrou:- Se não quer acabar como sua irmã obedeça, seja uma boa menina, não quero ver sua mãe chorando por suas desfeitas nunca mais ouviu bem?

Rita não ouviu nada, estava longe, perdida na floresta Negra, fugindo dos lobos e monstros. Suplicava por socorro ouvindo as risadas da Bruxa Mãe que fingia não enxergar nada. Desta vez havia uma outra menina na estrada esperando. Seguiram juntas o caminho da escuridão onde os gritos de dor sopram como o vento.
Um lamento para os inocentes que sofrem esquecidos





sábado, 21 de junho de 2008

DOIS MOMENTOS





Marcia Szajnbok













I. MORTE

Por vezes me pergunto
Se a falta que sinto
É mesmo do que já não tenho
Ou da parte de mim
Que um dia supus eterna
E agora não recupero
Por mais que tente
Persiga, imagine, invente

Constato a pura perda
Já por mim viva assim não espero
Foi-se o tempo
Perdeu-se sonho
Tornou-se o que fui
Silente

Declaro-me a partir deste instante
Condenada
Ao exílio de mim
Eternamente.






II. VIDA

Tempo é trem que segue adiante
Sem paradas, estações, descansos.
Leva corpos, letras e sonhos.
Sobrepõe lembranças ,
Imagens quebradas e enganos.

Memória é ponto fugidio que escapa à reta,
Transgressão que ilude a alma.
Rompe a seqüência esperada dos impulsos,
Subverte ponteiros e areias,
Desperta espectros de sentimentos insepultos.

Saudade é ausência que deixa no íntimo
Pegadas de lugares, datas, pessoas.
Momentos de dor ou plenitude
Que alongam o tempo,
Contorcem horas, alteram mapas.
Cede às cores o vazio monocromático
De um presente solitário.

Mas o amor...
O amor não tem tempo.
O amor não tem memória.
O amor faz da saudade, alimento.




fonte da imagem:http://farm2.static.flickr.com/1363/1306468707_3fd8442f81.jpg?v=0





sexta-feira, 20 de junho de 2008

O Templo dos sorrisos

Alian Moroz

Tristeza tremenda invadiu minha mente esta semana. Junto com minha esposa, percorremos o bairro num passeio diferente e saudosista. Visitar casas e bairros onde já havíamos morado, transportou nossas lembranças, já a tanto guardadas, para as retinas.
Lugares de benevolente memória e românticas obras. Um desses ambientes, preferido algures por mim, era o Bar do Velho Inácio. Uma antiga construção de esquina onde eu, junto com velhos camaradas, tomava minha cota etílica, acompanhado de uma boa conversa e risos da piada mal contada; todos conheciam, mas era sempre descrita de um modo diferente.
O velho Inácio com seu sorriso sempre amigo, por debaixo daquele bigodão lusitano já grisalho, era farto.
Saudades em meu coração, não compartilhadas por meu fígado, visto, hoje, ser um abstêmio.

Olhei com surpresa que o antigo local de encontro dos já distantes amigos e colegas de juventude tornara-se um templo para arrecadação, não de sorrisos, mas de moedas para o céu. O velho Inácio havia morrido e o templo das risadas, do pão com bolinho, e do pastel, nem sempre frescos, havia sucumbido em sua finalidade e fora transformado, de maneira herege, em mais uma igrejinha de seita desconhecida.

Poderia o simpático bar vir a ser um templo para discussões filosóficas ou poéticas, como o velho Inácio gostava de realizar todos os sábados à noite, mas não, fora também sucumbido perante os apóstolos do nada e sacrificado em nome da alienação. Estou de luto esta semana. Inácio não merecia isso. Sorte de Deus: o velho era ateu, senão, estaria agüentando as argumentações pertinentes do sábio amigo.





quinta-feira, 19 de junho de 2008

Caiu a Sombra

A garota sorriu ao guardar o celular em seu bolso.
Não havia achado algo particularmente engraçado. Não, seu sorriso era aquele de pessoas que não tem qualquer motivo para sorrir. Era um sorriso de tristeza, e de desprezo.
Principalmente, era um sorriso de ódio.

*

O detetive encontrou o sargento próximo a porta do apartamento.
- E aí, o que nós temos?
- É melhor o senhor ver por si mesmo.
O detetive entrou. Peritos forenses tiravam fotos, ensacavam copos usados, espalhavam pós para a coleta de impressões digitais.
No quarto, o detetive viu o corpo. Ainda estava na posição ereta, sentado à frente do computador. O cutelo ainda estava preso na cabeça, praticamente aberta em dois pedaços. Os olhos ainda estavam abertos, e o detetive teve um calafrio ao olhar para eles. O detetive não soube porque sentira aquilo. Tinha sido perturbado, e em quinze anos de serviço, nunca tivera sido perturbado dessa maneira.
Voltou até a porta, e recebeu a identidade da vítima.
- Já temos algum suspeito? -, perguntou, e de repente viu de novo os olhos que acabara de ver, só que dessa vez diretamente à sua frente, na direção da escada.
O sargento tinha dito alguma coisa.
- O que? -, perguntou o detetive subitamente, interrompendo algo que o sargento dizia.
- Eu disse que sim, que na verdade já temos uma boa idéia de quem fez isso.
Ainda um pouco perplexo, o detetive perguntou quem tinha sido.
E o sargento lhe mostrou um saco plástico.
Dentro, havia um celular.

*

Mário pagou o estacionamento, esqueceu de pegar o troco e andou de cabeça baixa até o carro.
Pensava em seu encontro com Penélope, em como ela parecia.
Ela estava muito feliz.
Mário estranhou isso, já que esperava encontra-la deprimida. Não queria isso, mas tinha aceitado isso como fato. Porém, o que encontrou, foi uma Penélope sorridente e alegre. Ela lhe abraçou como se ele não fosse um mensageiro de notícias ruins.
Ele perguntou como ela estava. Ela estava bem.
Ele, cautelosamente, perguntou se ela tinha lido a mensagem que ele lhe enviara.
Ela disse que sim, que não tinha problema, que a culpa dela ter sido trocada por outra não era dele. Ele era apenas o amigo preocupado.
Foram ao cinema, comeram, não conversaram muito.
E, enquanto se dirigia à seu carro, Mário sentiu-se perturbado. Sabia que Penélope não era do tipo de garota que aceitava notícias ruins tão calmamente. Algo estava errado.
Durante a volta para casa, Mário decidiu ligar para Penélope, perguntar como ela realmente estava. Decidiu arrancar a verdade dela, não importasse o custo.
Tateou dentro de sua mochila. Parou no sinal vermelho e continuou procurando. O sinal ficou verde, o carro continuou parado, Mário procurando.
E nada.
Seu celular havia sumido.
*

- Aquela piranha! -, gritou Carlos, pela terceira vez.
Havia recebido a informação de que tinham visto sua garota com outro, e não conseguia tirar isso da cabeça. Se fosse um pouquinho mais inteligente, Carlos talvez enxergasse a ironia da situação. Porém, ele não era, e portanto não enxergou.
Irado, Carlos leu novamente a mensagem em seu celular. Não se agüentando de raiva, decidiu fazer alguma coisa. Nunca se sentira tão mal, e alguém pagaria por isso.
Apertando os botões com mais força do que o necessário, enviou uma mensagem, e saiu.

*

A sombra caiu sobre aquela casa.
Sentada no chão, a sombra viu suas mãos vermelhas. Vermelho era a única coisa que conseguia enxergar. O resto era preto e branco.
Na cadeira, em frente ao computador, estava o resto de ser humano. O sangue ainda brotava do ferimento, como uma fonte macabra.
A sombra se levantou, e saiu do apartamento. E, ao estar em segurança, voltou de onde veio, deixando para trás um corpo cansado e sonolento.

*

- Abra! É a polícia!
Esfregando os olhos, ele acordou, com dor de cabeça.
Dirigiu-se até a porta, a tempo de vê-la ser derrubada, e um grupo de homens de azul invadir sua casa.
Um dos homens (o único não usando azul) jogou-o de cara na parede, e o algemou.
- Carlos Rodrigues, você está preso pela morte de Joana Bagnoux.
Se estava de ressaca antes, após ouvir isso, não estava mais.
- O que? Você tá maluco, cara?
Sua resposta foi ter sido esmagado com mais força contra a parede pelo detetive.
- Eu vi o que tu fez com ela, seu doente -, murmurou o detetive – e você foi burro o suficiente pra deixar sua mensagem no celular dela. Você sabe, aquela que você dizia que ela pagaria por ter te traído.
- Mas eu não fiz nada! Eu saí ontem, para beber...
- E a matou. Continue garoto, tu só tá se dando mais corda para se enforcar.
Chorando e batendo os pés, Carlos foi levado pela polícia, de cuecas e sem camisa, até a viatura.

*

Penélope viu Carlos ser levado, de sua janela do outro lado da rua.
Estava satisfeita. Tudo dera certo. A sombra veio e se foi, porém a memória do que fizera com a vadia loira continuou em sua mente.
Fez uma anotação mental, de devolver o celular de Mário, aquele que ela usara para enganar Carlos.
Olhando a viatura se afastar, Penélope lembrou-se da sensação de enfiar o cutelo na cabeça de Joana, lembrou dela emitindo um último ruído abafado antes da vida jorrar para fora dela. Havia gostado disso, gostado muito.
Talvez fizesse de novo.
Provavelmente faria de novo.
Penélope sorriu com esse pensamento.
Dessa vez, um sorriso verdadeiro.
Estava feliz.

Rio de Janeiro
08/06/2008





quarta-feira, 18 de junho de 2008

Brasileiros no exterior: patuscada no Carnegie Hall


Henry Alfred Bugalho

O brasileiro no exterior se torna um patriota. Mesmo que tenha deixado o país por haver amargado anos de desemprego, ou por medo da violência, ou por vergonha dos políticos, basta um ano morando fora para se criar uma visão fictícia do país. Esquece-se de todas as mazelas e o Brasil torna-se uma Shangri-la.

Esta nostalgia impele os brasileiros a perseguirem fanaticamente tudo que possui alguma relação com o Brasil: restaurantes, casas noturnas, mercadinhos e, principalmente, a vinda de algum artista famoso.

Assistir a algum show dum artista brasileiro é a justificação da existência dos brasileiros no exterior, a oportunidade para matar a saudade do que nunca se teve.
Recentemente, tive a oportunidade de presenciar uma destas agremiações.

A etiqueta da música erudita

Não é preciso ser nenhum gênio para se perceber, logo na primeira experiência com a música erudita, que há uma etiqueta diferente na hora de se apreciar um concerto. Via de regra, não se aplaude entre os movimentos duma peça musical — apenas no final —, nada de assovios, gritos (excetuando os Bravo! Bravo!) ou demais arroubos de comportamento característicos dos eventos populares.

A música erudita foi consagrada pela aristocracia e burguesia européias em contraposição às manifestações da praça pública. Por isto, a reação também deve ser oposta, ao invés do carnaval dionisíaco, a platéia dum concerto é uma mera espectadora, ela vai ao teatro para apreciar, não para fazer parte da apresentação.

A Atração

Em maio, o Carnegie Hall recebeu uma atração muito especial: após uma década, João Carlos Martins voltava a se apresentar no mais celebrado teatro do mundo.

João Carlos Martins já era uma figurinha carimbada do cenário da música erudita há muito tempo. Considerado um dos maiores intérpretes de Bach, a carreira do pianista foi brilhante, até que os contratempos da vida a encerraram. Primeiro, João Carlos Martins perdeu o movimento duma das mãos, ao se machucar jogando futebol no Central Park; recuperou-se, voltou a tocar no auge de sua forma; mas outro acidente, desta vez durante um assalto na Bulgária, o fez perder novamente o movimento na mão. Isto não o impediu de terminar o seu projeto de vida — a gravação da obra completa de Bach para teclado. Quando sua outra mão também ficou lesionada pelo esforço, João foi obrigado a abandonar o piano.

No entanto, este não é o fim da história. Foi justamente neste momento em que João Carlos Martins passou a ser conhecido pelo público brasileiro. A sua história de superação se tornou um ideal, um exemplo, e seu retorno, posteriormente, como regente, foi um novo apogeu.

Agora, não como pianista, mas como maestro, João Carlos Martins se apresentaria no Carnegie Hall.

A Platéia

Dada a sua reputação internacional como concertista, imaginei que o público se comporia, principalmente, de americanos. Mas logo na fila de entrada, já se ouvia português por todos os lados. Obviamente, o show seria dado para (e pelos) brazucas.

Acontece que, algumas semanas antes, João Carlos Martins havia estado no programa do Faustão e mencionara seu concerto em Nova York. Assim, talvez pela primeira vez na História, o Carnegie Hall estava abarrotado de pessoas que só haviam ouvido Beethoven no auto-falante do caminhão de gás e Mozart no comercial do desodorante Vinólia. Talvez o preço da entrada — dois dólares — tenha sido um agravante.

Este fato era o suficiente para antecipar o óbvio — aplausos na hora errada, gente indo embora antes do fim, sessão de fotografia coletiva entre as poltronas, o que levava as funcionárias do teatro ao desespero, na tentativa de se fazer vale a advertência enorme de “No Photos” projetada sobre o palco —, mas nada nos poderia preparar para o menos óbvio, como um celular tocando no meio da interpretação dum Piazzola, ou como toda a platéia se levantando, mão sobre o coração, chorando, enquanto João Carlos Martins regia um arranjo do hino nacional e alguém, nos balcões superiores, balançava uma bandeira do Brasil!

Os poucos não-brasileiros na platéia observavam tudo estarrecidos, sem compreender bulhufas daquele carnaval.

Além disto, uma das principais atrações era uma rápida corrida às primeiras filas para a bajulação obrigatória do global Marcos Frotas, que havia vindo prestigiar o concerto do amigo.

Numa única noite, os brasileiros haviam conseguido quebrar todas as regras de etiqueta dum concerto de música erudita. E com grande estilo, pois não é todo dia que se pode usar o Carnegie Hall pra isto.





terça-feira, 17 de junho de 2008

Hu Shi, o intelectual da reforma literária chinesa

Hu Shi (17 de dezembro de 1891 - 24 de fevereiro de 1962) foi um filósofo chinês e ensaísta. Nascido em Xangai, ele foi enviado aos EUA em 1910 para estudar agricultura na Cornell University. Em 1912, ele mudou linha de pesquisa para Filosofia e Literatura. Depois, estudou Filosofia na Columbia University. Lá, foi profundamente influenciado por seu professor, John Dewey, e se tornou tradutor das obras de Dewey e um defensor ferrenho do pragmatismo. Retornou para lecionar na Universidade de Pequim. Durante sua permanência, recebeu apoio de Chen Duxiu, editor do influente jornal "Nova Juventude", e atraiu atenção e influência. Hu se tornou um dos principais e mais influentes intelectuais durante o Movimento Quatro de Maio e, depois, no Movimento Nova Cultura.

Sua mais importante contribuição foi a divulgação do Chinês Vernáculo na literatura em substituição ao Chinês Clássico, o que tornou a leitura mais acessível às pessoas comuns.

Hu foi embaixador da República Popular da China nos EUA entre 1938 e 1941, chanceler da Universidade de Pequim entre 1946 e 1948 e, posteriormente, presidente da Academia Sinica em Taiwan, onde ele permanceu até sua morta, por ataque cardíaco, aos 71 anos de idade. Ele foi o diretor-executivo do Jornal China Livre, que foi fechado por causa da crítica a Chian Kai-shek.

Obra
Diferente de outras figuras da Era dos Generais na República da China, Hu era defensor de apenas uma corrente de pensamento: o pragmatismo. Muitos de seus textos utilizaram destas idéias para propor mudanças na China.
Hu era conhecido como o primeiro porta-voz da era da revolução literária, um movimento que visava substituir o erudito Chinês Clássico na escrita pela língua vernácula falada, além de cultivar e estimular novas formas de literatura. Num artigo publicado originalmente em "Nova Juventude" de janeiro de 1917, entitulado "Uma Discussão Preliminar de Reforma Literária", Hu enfatizou originalmente oito diretrizes que todos escritores chineses deveriam ter em mente ao escrever:


1. Escreva com substância. Hu queria dizer que literatura deveria conter sentimentos e pensamentos humanos reais. A intenção era contrastar à poesia recente com rimas e métrica, vista por Hu como sendo vazia.
2. Não imite os clássicos. Literatura não deveria conter estilos ultrapassados, mas sim um estilo moderno dos tempos atuais.
3. Respeite a gramática. Hu não dissertou muito sobre este ponto, apenas afirmando que as formas recentes de poesia negligenciavam a gramática.
4. Rejeite a melancolia. Jovens autores recentes comumente escolhem pseudônimos e escrevem sobre temas como a morte. Hu rejeita este modo de pensar como sendo improdutivo na tentativa de resolver problemas modernos.
5. Elimine velhos clichês. A língua chinesa sempre possuiu vários ditados e sentenças com quatro caracteres utilizados para descrever eventos. Hu implorou aos autores para usar suas próprias palavras em descrições e desprezou os que não faziam isto.
6. Não fazer alusões. Hu se referia à prática de comparar eventos presentes a históricos quando não havia nenhuma analogia significativa.
7. Não utilizar dísticos e paralelismos. Apesar de estas formas terem sido o objetivo de escritores antigos, Hu acreditava que os autores modernos deveriam primeiro aprender o básico da substância e qualidade antes de retornar àqueles assuntos de sutileza e delicadeza.
8. Não evitar expressões populares e formas populares de caracteres. Esta regra, talvez a mais conhecida, relaciona-se diretamente com a crença de Hu de que a literatura moderna deveria ser escrita em vernacular, ao invés do Chinês Clássico. Ele acreditava que esta prática tinha precedentes históricos e que conduzia a uma maior compreensão de textos importantes.

Em abril de 1918, Hu publicou um segundo artigo em "Nova Juventude", este intitulado "Revolução Literária Construtiva - Uma Literatura da Fala Nacional". Nele, ele simplifica os oito itens originais em apenas quatro:

1. Fale apenas quando você tem algo para dizer. Análogo ao primeiro item acima.
2. Fale o que você quer dizer e o diga do modo que você quer dizer. Une do segundo ao sexto itens acima.
3. Fale o que é próprio de si mesmo, e não de outra pessoa. Uma reescrita do item sete.
4. Fale na língua da época em que você vive. Refere-se novamente à substituição do Chinês Clássico pela língua vernácula.

fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Hu_Shi

***

Não se esqueça
Hu Shi
tradução: Henry Alfred Bugalho
Filho,
Por vinte anos ensinei-o a amar este país,
Mas só Deus sabe como!

Não se esqueça:
Este é o nosso país de soldados,
Que fez sua tia se suicidar em desgraça,
E fez o mesmo com Ah Shing,
E com sua esposa,
E que fuzilou Gao Sheng!

Não se esqueça:
Quem decepou seu dedo,
Quem espancou seu pai até a invalidez!
Quem queimou esta vila?
Merda! O fogo está chegando!
Vai, para o seu próprio bem! Não morra comigo!
Espere!

Não se esqueça:
O único desejo desse pai moribundo é o país invadido
Pelos cossacos,
Ou pelos prussianos,
Por qualquer um!
Há vida pior do que — esta?!

***

Sonho e poesia
Hu Shi
tradução: Henry Alfred Bugalho

É tudo experiência comum,
Tudo imagens comuns.
Ao acaso elas surgem num sonho,
Engendrando infinitos novos padrões.

É tudo sentimentos comuns,
Tudo palavras comuns.
Ao acaso elas encontram um poeta,
Engendrando infinitos novos versos.

Uma vez intoxicado, descobre-se a força do vinho,
Uma vez enamorado, descobre-se o poder do amor:
Tu não podes escrever meus poemas
Assim como não posso sonhar teus sonhos.





Diário dum Louco

Lu Xun
tradução: Henry Alfred Bugalho

Dois irmãos, cujos nomes não preciso mencionar aqui, eram ambos bons amigos meus durante o ginásio; mas, após uma separação de vários anos, gradualmente acabamos perdendo contato.

Algum tempo atrás, chegou aos meus ouvidos que um deles havia adoecido gravemente e, como eu estava retornando a meu velho lar, interrompi minha viagem para pagar-lhes uma visita, no entanto, encontrei apenas um deles, que me disse que o inválido era seu irmão mais novo.

— Agradeço-o por ter vindo de tão longe para nos ver, ele disse, mas meu irmão se recuperou, há algum tempo, e se mudou para outro lugar, para assumir um cargo oficial.

Então, rindo, ele me apresentou dois volumes do diário de seu irmão, dizendo que neles se podia ver a natureza da doença que o havia acometido e que não havia perigo em mostrá-los a um velho amigo. Eu apanhei os diários, li-os do começo ao fim e descobri que ele havia sofrido de algum tipo de complexo de perseguição. A escrita era em grande parte confusa e incoerente, e ele havia feito algumas insanas asserções; além disto, ele havia se omitido de fornecer datas, assim apenas pela cor da tinta e pelas diferenças na caligrafia que alguém poderia distinguir quando os trechos não haviam sido escritos duma só vez. Contudo, certas seções não eram ao todo desconexas e eu copiei algumas partes para servirem de objeto para pesquisa médica. Não alterei uma única ilogicidade sequer do diário e modifiquei apenas os nomes, mesmo que as pessoas referidas sejam todas interioranas, desconhecidas do mundo e sem importância. E sobre o título, este foi escolhido pelo próprio autor do diário, após sua recuperação, e eu não o alterei.

I
Hoje à noite, a lua está muito brilhante.

Eu não olhei pra ela por mais de trinta anos, então hoje, quando a vi, senti uma incomum exaltação. Comecei a perceber que, durante os últimos trinta anos, eu estive nas trevas; mas agora eu devo ser extremamente cauteloso. Senão, por que aquele cachorro na casa do Chao teria me encarado duas vezes?

Tenho razão para meu medo.

II
Hoje, não há lua, eu sei que isto prenuncia desgraça. Esta manhã, quando saí, cuidadoso, o Sr. Chao tinha um estranho olhar, como se estivesse com medo de mim, como se quisesse me matar. Havia com ele outras sete ou oito pessoas, que falavam de mim sussurrando. E elas estavam com medo de serem vistas por mim. Todas as pessoas pelas quais passei agiam deste modo. A mais corajosa delas escancarou um sorriso pra mim, que me fez ter calafrios dos pés à cabeça, por saber que os preparativos delas estavam completos.

No entanto, eu não estava amedrontado, mas prossegui em meu caminho. Adiante, um grupo de crianças também falava de mim, e o olhar delas eram exatamente como aquele do Sr. Chao, e seus rostos eram duma palidez horrível. Tentei conceber que rancor tais crianças poderiam ter contra mim para fazê-las se comportarem deste jeito. Não consegui evitar de gritar:

— Digam-me! Mas, então, elas fugiram.

Pergunto-me que rancor o Sr. Chao pode ter contra mim, que rancor as pessoas na estrada podem ter contra mim. Não consigo pensar em nada, excetuando que, vinte anos atrás, eu espezinhei o livro de balancetes de vários anos do Sr. Ku Chiu (1), e ele ficou muito ofendido. Apesar de o Sr. Chao não tê-lo conhecido, ele deve ter ouvido algum boato sobre isto e decidiu vingá-lo, então ele e as pessoas na estrada estão conspirando contra mim. Mas as crianças? Naquela época, elas não haviam nem nascido ainda, por que então elas estariam me olhando tão estranhamente hoje, como se tivessem medo de mim, como se quisessem me matar? Isto realmente me assusta, é tão incompreensível e perturbador.

Eu sei. Elas devem ter aprendido com os pais!

III

Não consigo dormir à noite. Tudo exige cuidadosa reflexão para se entender.

Aquelas pessoas, dentre elas algumas que haviam sido humilhadas pelo juiz, esbofeteadas pela nobreza local, suas mulheres levadas por oficiais de justiça, ou seus pais forçados ao suicídio por credores, nunca pareceram tão assustadas e hostis como ontem.

O mais extraordinário foi aquela mulher, ontem, na rua, que dava palmadas no filho e dizia:

— Seu diabinho! Eu gostaria de comer alguns pedaços seus para aplacar minha raiva!

No entanto, ela olhava para mim todo o tempo. Eu me sobressaltei, incapaz de me controlar; todas aquelas pessoas, rostos esverdeados, dentes longos, começaram a rir escarniçadamente. O velho Chen apressou-se e me arrastou para casa.

Arrastou-me para casa. O pessoal lá de casa fingiu não me conhecer; tinham o mesmo olhar que os outros. Quando entrei no escritório, eles trancaram a porta por fora como se engaiolassem um frango ou um pato. Este incidente me deixou ainda mais perplexo.

Alguns dias antes, um dos nossos inquilinos da Vila Lobato veio relatar o fracasso nas colheitas, e disse a meu irmão mais velho que um notório personagem na vila havia sido espancado até a morte; então algumas pessoas arrancaram o coração e o fígado dele, fritaram-nos em óleo e os comeram, com o propósito de aumentar a coragem deles. Quando eu os interrompi, tanto o inquilino quanto meu irmão me encararam. Apenas hoje percebi que eles tinham o mesmo olhar que aquelas pessoas lá fora.

Só de pensar nisto tenho calafrios do topo da cabeça até as solas dos pés.

Eles comem seres humanos, então podem me comer também.

Percebo que o “comer alguns pedaços seus” dito pela mulher, a risadas daquelas pessoas de rostos esverdeados e dentes longos e a história do inquilino no outro dia eram, obviamente, sinais secretos. Vejo todo o veneno na fala deles, em suas risadas cortantes. Seus dentes são brancos e reluzentes: eles são devoradores de homens.

Apesar de eu não ser uma má pessoa, aparentemente minha situação era delicada desde o dia em que pisoteei os balancetes do Sr. Ku. Eles parecem ter segredos que nem posso imaginar e, se ficarem com raiva, eles chamarão qualquer um de mau-caráter. Lembro-me quando meu irmão mais velho me ensinou a escrever redações — não importava quão bom um homem fosse, se eu apresentasse argumentos contrários, ele marcaria o trecho para mostrar sua aprovação, e se eu defendesse os malfeitores, ele diria:

— Que bom, isto demonstra originalidade.

Como eu posso saber quais são seus pensamentos secretos — especialmente quando eles estão prontos para comer pessoas?

Tudo exige cuidadosa reflexão para se entender. Em épocas antigas, se não me engano, as pessoas comiam seres humanos com freqüência, mas não estou muito certo disto. Tentei pesquisar sobre o assunto, mas meu livro de História não tem cronologia, e rabiscadas em cada uma das páginas estão as palavras: “Virtude e Moral”. E como eu não conseguia dormir, li-o atentamente durante metade da noite, até que comecei a ver palavras nas entrelinhas, todo o livro preenchido com duas palavras — “Coma pessoas”.

Tais palavras escritas no livro, tais palavras ditas por nosso inquilino, observavam-me estranhamente com um sorriso enigmático.

Eu também sou um homem, e eles querem me comer!

IV

De manhã, sentei-me em silêncio por algum tempo. O velho Chen trouxe o almoço: uma tigela de vegetais e uma de peixe no vapor. Os olhos do peixe estavam brancos e duros, a boca dele estava aberta exatamente como das pessoas que querem comer seres humanos. Após algumas poucas mordidas, eu não conseguia distinguir se os escorregadios bocados eram de peixe ou de carne humana, então vomitei tudo.

Eu disse:
— Velho Chen, diga a meu irmão que estou me sentindo um pouco sufocado e que gostaria de dar uma volta no jardim.

O velho Chen não disse nada, mas saiu, imediatamente retornou e abriu o portão.

Não me mexi, mas esperei para ver como eles me tratariam, certo de que eles não me deixariam ir. Eu tinha certeza! Meu irmão mais velho entrou lentamente, conduzindo um ancião. Havia um brilho assassino nos olhos deste e, temendo que eu percebesse isto, ele abaixou a cabeça, olhando-me de esguelha por detrás de seus óculos.

— Você parece estar muito bem, hoje, meu irmão disse.
— Sim, respondi.
— Convidei o Sr. Ho para vir aqui hoje, meu irmão disse, para examiná-lo.
— Tudo bem, eu disse. Na verdade, eu sabia muito bem que este ancião era um executor disfarçado! Ele simplesmente se muniu do pretexto de sentir meu pulso para ver quão gordo eu estava; ao fazer isto, ele receberia uma cota da minha carne. Mesmo assim, eu não estava com medo. Mesmo que eu não coma homens, minha coragem é maior do que a deles. Estendi meus dois punhos para ver o que ele faria. O ancião se sentou, fechou os olhos, tateou-os por alguns instantes e depois ficou quieto por outros instantes; então ele abriu seus olhos maliciosos e disse:

— Não deixe sua imaginação o controlar. Descanse em silêncio por alguns dias e tudo ficará bem.

Não deixe sua imaginação o controlar! Descanse por alguns dias! Quando eu houver engordado, naturalmente eles terão mais o que comer; mas que bem isto me fará, ou como é que tudo “ficará bem”? Todas estas pessoas querendo comer carne humana e, ao mesmo tempo, tentando sorrateiramente manter as aparências, não ousando agir de imediato, quase me fazem morrer de rir. Eu não conseguia parar de gargalhar, estava tão surpreso. Eu sabia que nesta risada havia coragem e integridade. Tanto o ancião quanto meu irmão empalideceram, estupefatos diante de minha coragem e integridade.

Mas tão somente por eu ser corajoso eles anseiam ainda mais me comer, para ganharem um pouco da minha coragem. O ancião saiu pelo portão, mas antes que estivesse longe, ele disse ao meu irmão, baixinho:

— Deve ser comido logo! e meu irmão aquiesceu. Então você também faz parte disto! Esta estupenda descoberta, apesar de ter me chocado, não era nada mais do que eu já esperava: o cúmplice em devorar-me é meu irmão mais velho!

O devorador de carne humana é meu irmão mais velho!

Eu sou o irmão mais novo dum devorador de carne humana!

Serei comido por outros, mas, mesmo assim, sou o irmão dum devorador de carne humana!

V

Nestes últimos dias, voltei a refletir: suponhamos que o ancião não fosse um executor disfarçado, mas um doutor de verdade; ele mesmo assim seria um devorador de carne humana. Naquele livro sobre plantas medicinais, escrito por seu predecessor Li Shih-chen (2), afirma-se claramente que a carne dum homem pode ser cozida e comida; então como ele ainda insiste que não come homens?

Quanto a meu irmão mais velho, eu também tenho um bom motivo para suspeitar dele. Quando me ensinava, ele me disse com a própria boca:

— Pessoas trocam os filhos para comer. E, uma vez, debatendo sobre um homem mau, ele disse que este não apenas merecia ser morto, como deveria “ter sua carne comida e que se dormisse sobre sua pele...” (3) Eu ainda era jovem, à época, e meu coração se acelerou por um tempo; ele não ficou nem um pouco surpreso com a história que nosso inquilino da Vila do Lobato nos contou, outro dia, sobre comer o coração e o fígado dum homem, mas ficou concordando com a cabeça. Ele é, evidentemente, tão cruel quanto antes. Se é possível que se “troque filhos para comer”, então tudo pode ser trocado, tudo pode ser comido. No passado, eu simplesmente ouvia suas explicações e fazia vista grossa; agora eu sei que quando ele explicava isto para mim, não apenas havia gordura humana nos cantos de sua boca, mas todo seu coração estava inclinado a comer homens.

VI

Trevas. Não sei se é dia ou noite. O cachorro da família Chao começou a latir de novo.

A ferocidade dum leão, a timidez dum coelho, a malícia duma raposa...

VII

Eu conheço o jeito deles; não matarão alguém diretamente, nem ousam, pois temem as conseqüências. Ao invés disto, uniram-se e prepararam armadilhas por todos os lados para me induzirem ao suicídio. O comportamento dos homens e mulheres nas ruas, há dias, e a atitude do meu irmão mais velho nestes últimos tempos torna isto óbvio. O que mais os agrada é que um homem arranque da cintura seu cinto e se enforque numa viga, porque, então, eles podem desfrutar de seus mais caros desejos sem serem culpados de assassinato. Naturalmente, isto faz com que eles gargalhem com deleite. Por outro lado, se um homem está amedrontado ou preocupado com a morte, mesmo que com isto ele emagreça, eles ainda aquiescem em aprovação.

Eles só comem carne morta! Lembro-me de ter lido em algum lugar sobre uma fera medonha, com terrível olhar, chamada “hiena”, que freqüentemente come carne morta. Ela tritura em fragmentos até o maior dos ossos e os engole: o mero pensamento disto é o bastante para aterrorizar alguém. Hienas são parentes dos lobos, e lobos pertencem à espécie dos cães. Outro dia, o cão na casa do Chao me fitou várias vezes; é óbvio que ele também faz parte deste ardil e se tornou cúmplice deles. O ancião baixou o olhar, mas isto não me enganou!

O mais deplorável é o meu irmão mais velho. Ele também é um homem, então por que não está com medo, por que esta conspirando com os outros para me comer? O hábito faz com que se pense que isto não é mais um crime? Ou ele endureceu seu coração para fazer algo que sabe ser errado?

Ao amaldiçoar os devoradores de homens, devo começar por meu irmão, e, ao dissuadir os devoradores de homens, devo começar por ele também.

VIII

Na verdade, tais argumentos deveriam tê-los convencido há muito tempo...

De repente, alguém entrou. Ele tinha apenas uns vinte anos e eu não enxergava seus traços com clareza. Sua cara vinha ornamentada com sorrisos, mas quando ele me cumprimentou, seu sorriso não parecia autêntico. Perguntei a ele:

— É certo comer seres humanos?

Ainda sorrindo, ele respondeu:

— Quando não há escassez, por que alguém comeria seres humanos?

Percebi imediatamente que ele era um deles; mas ainda convoquei coragem para repetir minha pergunta:

— É certo?
— O que o leva a perguntar tal coisa? Você realmente gosta duma piada... Está um dia muito bonito hoje.
— Está bonito, e a lua está muito brilhante. Mas quero perguntar a você: é certo?
Ele olhou-me desconcertado e murmurou:
— Não...
— Não? Então por que eles ainda fazem isto?
— Do que você está falando?
— Do que estou falando? Eles estão comendo homens agora na Vila do Lobato e você pode encontrar isto escrito pelos livros, em fresca tinta vermelha.

A expressão dele mudou e ele ficou terrivelmente pálido.
— Pode ser, ele disse, encarando-me, sempre foi assim...
— É certo porque sempre foi assim?
— Recuso-me a discutir estes assuntos com você. De qualquer modo, você não deveria falar sobre isto. Qualquer um que fala sobre isto está errado!

Sobressaltei-me e esbugalhei meus olhos, mas o homem havia desaparecido. Eu estava encharcado de suor. Ele era bem mais novo do que meu irmão, mas mesmo assim ele fazia parte disto. Deve ter sido ensinado por seus pais. E temo que ele já tenha ensinado seus filhos: é por isto que as crianças me olham com tamanha ferocidade.

IX

Querem comer homens, mas, ao mesmo tempo, têm medo de eles próprios serem comidos, assim todos se entreolham com a mais profunda das suspeitas...

Como a vida seria confortável para eles se pudessem se livrar de tais obsessões e fossem trabalhar, caminhar, comer e dormir sossegados. Eles tinham de dar apenas um passo. Mesmo assim, pais e filhos, maridos e esposas, irmãos, amigos, professores e estudantes, inimigos jurados e até estranhos, todos se reuniram nesta conspiração, desencorajando-se mutuamente e evitando que os outros dessem este passo.

X

De manhã cedo, fui procurar meu irmão mais velho. Ele estava do lado de fora da porta de entrada, olhando para o céu, quando aproximei-me dele pelas costas, fiquei entre ele e a porta e, com excepcional equilíbrio e educação, disse a ele:

— Irmão, tenho algo para lhe dizer.
— Bem, o que é? — ele perguntou, rapidamente se virando em minha direção e aquiescendo.
— É pouco, mas muito difícil de se dizer. Irmão, provavelmente todos os povos primitivos comiam carne humana, no princípio. Depois, porque a visão deles havia mudado, alguns deles pararam, e porque tentavam ser bons, ele se tornaram homens, tornaram-se homens de verdade. Mas alguns ainda comem — assim como os répteis. Alguns se tornaram peixes, pássaros, macacos e, por fim, homens; mas alguns não tentaram ser bons e continuam ainda répteis. Quando aqueles que comem homens se comparam àqueles que não comem, como eles devem se envergonhar. Provavelmente se envergonham muito mais do que os répteis diante dos macacos. Em épocas antigas, Yi Ya cozinhou seu filho para Chieh e Chou comerem; esta é a velha história (4). Mas, na verdade, desde a criação de céu e terra por Pan Ku, homens têm comido uns aos outros, desde o tempo do filho de Yi Ya até o tempo de Hsu Shi-lin, e desde o tempo de Hsu Hsi-lin (5) até o homem que foi pego na Vila do Lobato. Ano passado, eles executaram um criminoso na cidade, um tuberculoso molhou um pedaço de pão no sangue dele e o lambeu. Eles querem me comer e é claro que eu não posso fazer nada sozinho; mas por que você se uniria a eles? Como devoradores de homens, eles são capazes de qualquer coisa. Se eles me comerem, podem comê-lo também; membros dum mesmo grupo podem comer uns aos outros. Mas se vocês mudarem seus hábitos imediatamente, então todos terão paz. Apesar de isto ocorrer desde tempos imemoriais, hoje nós podemos fazer um esforço especial para sermos bons e dizer que isto não deve ser feito! Tenho certeza de que você pode dizer isto, irmão. Outro dia, quando o inquilino queria que você abaixasse o aluguel, você disse isto era impraticável.

A princípio, ele apenas sorriu cinicamente, então um brilho assassino surgiu em seus olhos e, quando eu falei do segredo deles, ele empalideceu. Do outro lado do portão, havia um grupo de pessoas, incluindo o Sr. Chao e seu cão, todos esticando os pescoços para espiarem. Eu não conseguia ver seus rostos, pois eles pareciam estar mascarados com panos; alguns deles eram pálidos e assustadores, escondendo suas risadas. Eu sabia que eles eram um bando, todos comedores de carne humana. Mas eu também sabia que nem todos pensavam de maneira semelhante. Alguns deles pensavam que os homens deveriam ser comidos, pois sempre havia sido assim. Alguns deles sabiam que não deveriam comer homens, mas ainda assim tinham vontade; e eles tinham medo que as pessoas descobrissem seu segredo; assim, quando me ouviram, eles se enfureceram, mas ainda assim tinham um cínico sorriso amarelo.

De repente, meu irmão os olhou com fúria e gritou alto:
— Saiam daqui, todos vocês! Qual é o sentido em ficar olhando para um louco?

Então entendi parte do ardil deles. Eles nunca estariam dispostos a mudar sua posição e seus planos já estavam traçados; eles haviam me estigmatizado como um louco. No futuro, quando eu fosse comido, não apenas não haveria problema algum, como as pessoas ficariam provavelmente gratas a eles. Quando o nosso inquilino falou dos vilões comendo um mau sujeito, era exatamente o mesmo artifício. Este é o velho truque deles.

O velho Chen veio também, em ótimo humor, mas eles não conseguiam me calar, eu tinha de falar àquelas pessoas:

— Vocês devem mudar, mudar de todo o coração! eu disse. Quase todos vocês sabem que, no futuro, não haverá lugar no mundo para devoradores de homens. Se não mudarem, vocês se comerão uns aos outros. Apesar de muitos terem nascido, eles serão eliminados pelos homens de verdade, assim como os lobos são mortos por caçadores. Assim como répteis!

O velho Chen espantou todo mundo. Meu irmão desapareceu. O velho Chen me aconselhou a voltar para meu quarto. O quarto estava um breu. As traves e vigas tremiam sobre minha cabeça. Após tremerem por algum tempo, elas aumentaram de tamanho. Empilharam-se sobre mim.

O peso era tão grande que eu não podia me mover. Elas significavam que eu deveria morrer. Eu sabia que o peso era falso, então eu lutei, coberto de suor. Mas eu tinha de dizer:

— Vocês devem mudar imediatamente, mudar de todo o coração! Vocês devem saber que, no futuro, não haverá lugar no mundo para devoradores de homens...

XI

O sol não brilha, a porta não está aberta, duas refeições ao dia.

Peguei meus hashi, então pensei no meu irmão mais velho; agora sei como minha irmã caçula morreu: foi tudo por causa dele. Minha irmã tinha apenas cinco anos, naquele tempo. Ainda consigo me lembrar quão adorável e apaixonante ela era. Mamãe chorou e chorou, mas ele implorou para que ela não chorasse, provavelmente porque ele a havia comido e o choro dela o envergonhava. Como se eles tivessem algum senso de vergonha...

Minha irmã havia sido comida por meu irmão, mas eu ainda não sei se mamãe percebeu isto ou não.

Acho que mamãe devia saber, mas, quando chorou, ela não disse isto com franqueza, provavelmente porque ela também pensava que aquilo fosse apropriado. Lembro-me quando eu tinha quatro ou cinco anos, sentado no frescor do vestíbulo, meu irmão me disse que se os pais dum homem estivessem doentes, ele deveria cortar um pedaço de sua pele, cozinhá-lo para eles, se ele desejasse ser considerado como um bom filho; e mamãe não o contradisse. Se um pedaço poderia ser comido, obviamente que o todo também pode. Ainda assim, só de pensar naquele lamento faz meu coração ainda sangrar; esta é a coisa mais extraordinária sobre isto!

XII

Não suporto pensar sobre isto.

Acabei de constatar que tenho vivido todos estes anos num lugar onde, por milhares de anos, eles têm comido carne humana. Meu irmão havia acabado de se tornar o encarregado da casa quando nossa irmã morreu, e ele deve ter posto a carne dela em nosso arroz e em nossas refeições, fazendo com que nós a comêssemos involuntariamente.

É possível que eu tenha comido vários pedaços da carne na minha irmã sem saber e que agora será a minha vez...

Como pode um homem semelhante a mim, após quatro mil anos de história de filantropia — mesmo que eu não soubesse nada, a princípio —, ter a esperança de encarar um homem de verdade?

XIII

Será que ainda há crianças que não comeram homens? Salvem as crianças....

Abril de 1918
________________________________________
Notas
1. Ku Chiu significa “Tempos Antigos”. Lu Hsun tem em mente a longa história de opressão feudal na China.
2. Um farmacologista famoso (1518-1593), autor de Ben-cao-gang-um, a Materia Medica.
3. Estas citações são do clássico Zuo Zhuan.
4. De acordo com os registros antigos, Yi Ya cozinhou seu filho e o presenteou ao Duque Huan de Chi que reinou de 685 a 643 a.C. Chieh e Chou foram tiranos duma época primitiva. O louco cometeu um equívoco aqui.
5. Um revolucionário no final da dinastia Ching (1644-1911), Hsu Hsi-lin foi executado em 1907 por assassinar um oficial Ching. Seu coração e fígado foram comidos.


Biografia
Lu Xun era o pseudônimo de Zhou Shren (25 de setembro de 1881 - 19 de outubro de 1936), um dos maiores autores chineses do século XX. Considerado o fundador da moderna literatura baihuam, Lu Xun foi contista, editor, tradutor, crítico e ensaísta. Ele foi um dos fundadores da Liga Chinesa de Escritores de Esquerda em Xangai.
A obra de Lu Xun exerceu grande influência após o Movimento Quatro de Maio, a ponto de ser exaltado pelo regime comunista após 1949. O próprio Mao Tse-Tung foi um admirador das obras de Lu Xun durante toda a vida. Apesar de simpatizar com o movimento comunista chinês, Lu Xun jamais se afiliou ao Partido, mesmo sendo um ardoroso socialista, como proferido em seus textos.





domingo, 15 de junho de 2008

Entrevista com Fernando Bonassi

Fernando Bonassi nasceu em São Paulo, em 1962. É roteirista de cinema e TV, dramaturgo, cineasta e escritor de diversas obras, entre elas Um Céu de Estrelas (Ed Siciliano) Subúrbio; Crimes Conjugais e 100 Histórias Colhidas na Rua (Scritta); O Amor é Uma Dor Feliz (Moderna); Uma Carta Para Deus e Vida da Gente (Formato) O Céu e o Fundo do Mar (Geração Editorial); 100 Coisas (Angra) ); Declaração Universal do Moleque Invocado (Cosac & Naify) e São Paulo/Brasil (Ed. Dimensão), ambos finalistas do Prêmio Jabuti nos seus anos de lançamento. Em 2003 é publicada a novela Prova Contrária e em 2005 o romance O Menino que se Trancou na Geladeira, ambos pela Editora Objetiva. É co-roteirista de filmes como Os Matadores (de Beto Brant); Através da Janela (de Tata Amaral); Castelo Ra Tim Bum (de Cao Hamburguer); Carandiru (de Hector Babenco – Prêmio TAM do Cinema Brasileiro para o melhor roteiro adaptado de 2003); Garotas do ABC (de Carlos Reichenbach), Cazuza (de Sandra Werneck- Prêmio TAM do Cinema Brasileiro para o melhor roteiro adaptado de 2004). Em 2006 é co-autor, com o cineasta chinês Yu Lik Way, do roteiro da co-produção Brasil/China Plastic City. No teatro, destacam-se as montagens de Preso Entre Ferragens (dirigida por Eliana Fonseca); Apocalipse 1,11 (em colaboração com o Teatro da Vertigem); “Três Cigarros e a Última Lasanha” (com Renato Borghi e direção de Débora Dubois); Souvenirs (dirigida por Márcio Aurélio); “Arena Conta Danton” com a Cia Livre de Teatro; a encenação do fragmento “Estilhaços de São Paulo”, no espetáculo “Megalopolis” do Theater der Klaenge (Sttutgart, Alemanha) e “Centro Nervoso”, quando estreou na direção, em agosto de 2006. Em 2007 volta ao texto e a direção com o monólogo O Incrível Menino na Fotografia, interpretado pelo ator Eucir de Souza. Tem diversos prêmios como roteirista no Brasil e no exterior, além de obras literárias adaptadas para o cinema e textos em antologias na França, Estados Unidos e Alemanha. O romance Subúrbio teve os direitos comprados pelo Deutsches Schauspielhaus de Hamburgo. A adaptação teatral estreou no dia 04 de abril de 1998. Nesse mesmo ano, foi vencedor da bolsa do Kunstlerprogramm do DAAD - Deutscher Akademischer Austauschdienst. Desde 1997 é colunista do jornal Folha de São Paulo.


Há pouco tempo nós tivemos a adaptação do impressionante livro 'Ensaio sobre a cegueira', do José Saramago, em uma produção que causou alguma polêmica. Há uma cena impactante (a do estupro coletivo) que foi efetivamente filmada pelo Meirelles e exibida de maneira experimental. A cena foi vetada porque a reação foi muito adversa. Nesse sentido, há algum trecho do livro “Estação Carandiru”, de Dráusio Varela, que você considerou melhor não expor na adaptação para o cinema? E o que você achou do resultado final do filme?

Fernando Bonassi: Não, nenhuma cena de Carandiru foi censurada de qualquer modo pelos roteiristas e responsáveis pelo filme. Fizemos o que quisemos, mas acho que o resultado não é bom. É um filme muito lento quando devia ser rápido e muito rápido onde devia se deter e “observar melhor” os personagens. Não é o meu melhor resultado em cinema. Gosto mais do que ajudei a fazer em Os Matadores, de Beto Brant.

Para a escrita do roteiro do filme “Carandiru”, você esteve dentro deste complexo penitenciário para acompanhar as atividades diárias dos detentos. O que essa experiência lhe trouxe? Você costuma usar esse artifício de inserção no ambiente retratado para compor suas histórias?

F.B.: Acompanhei um grupo de escritores lá no presídio e ao mesmo tempo escrevia cartas para outros tantos, tudo que vi, e ouvi lá me marcou para o roteiro e marca minha escrita sim. Havia muita dor lá, impossível ficar imune.

A literatura, o cinema e o teatro possuem estruturas, resultados e públicos bastante distintos. Para você, qual é o maior desafio ao escrever para cada um destes meios? E qual deles mais te agrada?

F.B.: Cinema é dinheiro. Teatro é diversão. Literatura é liberdade.

Qual é sua maior preocupação como autor? Que mensagem deseja passar com o que escreve?

F.B.: Minha maior preocupação como autor é comover como sou comovido com a vida.

Conte-nos um pouco sobre a trajetória percorrida até ter sua primeira obra publicada.

F.B.: Escrevia (e escrevo) muito muito. Participei de todos os concursos e jornais literários de minha época e até hoje é assim. Oferecer o meu texto por aí é o único jeito mais ou menos honesto que encontrei e encontro até hoje...

É comum encontrar-se autores que, mesmo com livros publicados, se não tiverem a aprovação da crítica ou um maior reconhecimento, não conseguem obter retorno satisfatório com a escrita e acabam por deixarem-na em segundo plano ou, até mesmo, a abandonam. O que você acha disso e, no seu caso, como e quando surgiu esse reconhecimento?

F.B.: Escritor que escreve por reconhecimento tem texto morto. A gente escreve e a crítica aprecia. Normalmente tomamos pau, mas é assim mesmo. Um dia alguém fala bem e aí começa um circuito de boatos em torno de você... Mas isso só acontece se você escrever sem esperar. Tem que ser surpresa, senão não vale. Se a critica fosse importante, haveria só ensaio, não literatura.

Como foi sua experiência de viver fora da Brasil? Há uma boa aceitação de seus livros por leitores estrangeiros?

F.B.: Viver no estrangeiro, em países onde você nem sabe a língua, é uma experiência muito forte de solidão e paradoxalmente de mergulho na sua própria cultura. Passei a compreender (não aceitar) melhor o Brasil depois que fiquei longe dele. É bom ser cidadão das Américas, a tradição nos pesa menos... Meus livros de criança vendem bem no exterior, mas ainda temos muito o que aprender para se dar bem nesse mercado...

Tendo em vista sua participação em projetos marcantes para a televisão, como os programas “Rá-tim-bum” e “O Mundo da Lua”, até que ponto vai sua afinidade com a escrita para o público infantil?

F.B.: As crianças são leitores mais desencanados que os adultos. Da pra falar de tudo com uma criança, já os adultos vivem se ofendendo... é um saco.

Há algum projeto específico (romance, roteiro, peça teatral) em que está investindo no momento? Pode nos falar um pouco dele?

F.B.: Neste momento interrompi a escrita de um romance para trabalhar na TV. Fui contratado pela TV Globo para algumas propostas (ainda sigilosas) de ficção e com uma liberdade criativa, por enquanto, muito grande. Eu vou até onde eles me deixarem enloquecer. O salário é muito bom, de todo modo. Acho que vai dar pra comprar alguns vestidos de princesa pras minhas filhas...

Por fim, a equipe editorial da revista SAMIZDAT agradece muito toda a prestatividade e disposição com que nos cedeu esta entrevista. Desejamos-lhe todo sucesso e um grande abraço!

F.B.: O meu abraço fraterno a todos da SAMIZDAT!



Coordenador da entrevista:
Carlos Alberto Barros

Perguntas feitas por:
Alian Moroz
Carlos Alberto Barros
Denis da Cruz
Henry Alfred Bugalho
Samuel Peregrino
Volmar Camargo Junior





sábado, 14 de junho de 2008

Cenário

Volmar Camargo Junior





- Essas casas, essas lojas, esses restaurantes... É tudo tão bonito! Parece cinema!
- Senhora...
- Sim?
- Posso parar de fingir que sou seu marido agora?







A Beca do Morto

Henry Alfred Bugalho

- Ele era um anjo!

- Era um amor de criatura!

- Um santo... nunca fez mal a viv'alma.

- Ele era um desgraçado filho duma puta, isso sim! Em vida, ele emprestava minhas coisas e nunca devolvia. Inclusive, aquele terno que ele está usando é meu!





Idéias

Sentiu a consciência pesar.
Uma idéia concreta talvez?


Alian Moroz





sexta-feira, 13 de junho de 2008

O País

A leoa perseguia o antílope pela savana e as garras afiadas estavam quase a apanha-lo quando, sem qualquer aviso, aconteceu. O meteoro que visto dali parecia uma estrela a cair, precipitou-se velozmente e foi embater no solo.

Onde foi ao certo o impacto? Não sei. Apenas sei que foi algures muito, muito longe. Depois, depois aconteceu algo extraordinário: o céu ficou negro, de um negro bem escuro e fechado. A coisa durou dois dias, dois intermináveis dias. Após decorrido esse tempo, o País estava diferente.

Os leões e todos os outros grandes felinos tornaram-se vegetarianos e passaram a frequentar aulas de Yoga. Crocodilos eram cães. Aves eram répteis e as de rapina passaram a esconder-se ao notar a passagem do mais pequeno lagarto ou musaranho. As árvores e outros vegetais passaram a mover-se livremente, mas apenas à sexta-feira. Ou deveria falar nas segundas? É que a semana passou a contar-se assim: Sexta, Quinta, Quarta, Terça, Segunda…

E as pessoas? Bem… os políticos passaram a trabalhar de forma incansável para o bem comum e a recusar luxos e ostentação. Futebol e novelas passaram a ser coisas aborrecidas, pouco interessantes, chatas. O povo tornou-se culto, educado, gentil. As editoras e todos os outros intermediários passaram a pagar um valor justo aos criadores. Ah… e a televisão local teve de cancelar o programa “Fiel ou Infiel”. Por falta de audiência.





Poetrix

Ilusão

Início e fim
Errado que te toca
Rabo de minhoca

Último vôo

Dura folha
Queda esquecida
Outono de vida

Três

O Um
O Dois
O que vem depois

Contabilidade

Calculo que sonhes
Sonho não é cálculo
É salto!

Indecisão

Atenta reflexão
Alavanca que morre parada
Entre Sim e Não e Nada





O autor dos passos

I

Honra! Era a primeira vez que participava no concurso literário do grupo de editoras “Teya” e o seu romance “Os olhos cansados do escurecer” arrebatara logo o primeiro prémio.

- A capacidade para criar uma ambientação rica e poética e mudar de repente para uma narrativa em ritmo rápido e inquietante, foi isso o que mais nos cativou – disse Carlos Reis, o célebre romancista ribatejano, presidente do júri do concurso. Tomou entre mãos o livro de capa escura e abrindo na página previamente marcada, leu alto, para todos ouvirem

“Olhos fundos” fechou a sete chaves a porta do pequeno apartamento. Miguel não aparecera e, de repente, ela sentia-se cansada, insegura, “só de vida”. Na sala moderna e pouco convencional, a janela era grande, de sacada, quase todo o espaço de uma parede. Estava entreaberta. Se espreitássemos por ela, poderíamos observar lá bem em baixo e ao longe as mil luzinhas e mais mil cores que assinalavam o bulício do trânsito sonâmbulo, um enveredar de forma indiferente por repetidos e misteriosos caminhos.

“Olhos fundos” despiu a roupa devagar e brincou por breves momentos com o reflexo do seu próprio corpo moreno belo e esguio. Vestiu o robe branco e puxou do cigarro. Ficou ali absorta, quase em tempo suspenso, seguindo pensamentos erráticos que eram como adornos de fumaça do “Português Suave”. Seria o último cigarro da sua pobre vida.

Pairou por ali um silêncio breve ao fim do qual a plateia aplaudiu de pronto, rendida. Seguiram-se o beberete e as vendas dos exemplares autografados. Ao chegar o fim da tarde, disse para Mariana e aos outros “Estou cansado. Acho que vou para casa tomar um bom banho, comer qualquer coisa e dormir. Se não se importarem, adiamos a comemoração para amanhã”.

Pegou na sacola de couro onde guardava os dois únicos exemplares não vendidos. Desfez o nó da gravata e guardou-a no bolso do casaco.

“Queres que te leve até lá?” Inquiriu Mariana, deixando por momentos o molhe de pessoas.

“Se não te faz diferença…” Respondeu.

Três quartos hora depois e estavam à porta de casa dele. Despediu-se com um beijo rápido e pouco intenso – um “selinho” - e subiu as escadas a correr. Ao chegar ao átrio do terceiro andar, deu com a porta escancarada e parou, colocando-se de sobreaviso. Chegado ao “hall”, não viu vivalma e a arrumação impecável não permitia inferir qualquer presença estranha.

Já estava a meio do corredor quando os sentiu, som quase imperceptível de passos rápidos atrás de si. Virou-se para encarar o intruso e algo lhe bateu com força mesmo no cimo da nuca. Ao mergulhar na escuridão, teve ainda tempo para ouvir a gargalhada. Um som familiar, que conhecia perfeitamente, apesar de estar a ouvi-lo pela primeira vez.

II

Passam uns minutos da meia-noite. No bairro periférico da capital, o grupo apeia-se do comboio. Após as breves despedidas, a mulher inicia o trajecto que a levará até à porta de casa. Não se vê vivalma na rua estreita e escura. O candeeiro de latão antigo e sujo está ainda longe, perto do cruzamento. É a única fonte de luz.

Após alguns metros percorridos, espreita por cima do ombro verificando se algum indesejado a seguiu até aquelas paragens. Nada. Apenas outro comboio que chega. Ouve-se o apito a marcar a partida e ela ainda vê de relance fugirem os rectângulos luminosos que são as janelas das várias carruagens.

Dispõe-se a continuar quando ouve o som dos passos. Estão mesmo atrás de si. Falta-lhe o tempo para escapar. Enquanto a mão forte envolve a face tapando a boca, a outra mão faz deslizar a lâmina aguçada. O golpe é dado de baixo para cima com força e precisão cirúrgica. O metal frio entra pelo baixo-ventre, abrindo rapidamente caminho e rasgando, deixando atrás de si as vísceras desfeitas, soltas e desamparadas. A torrente de sangue jorra livremente naquela mesma fracção de segundo em que ela entra em choque. A mulher nunca saberá ao certo o que aconteceu.

O homem é alto e tem o cabelo rapado e olhos azuis, frios. No seu corpo musculoso, o peito exibe a tatuagem de um escorpião. Em silêncio, agacha-se sobre o cadáver e pesquisa a carteira procurando algo. Decerto não tarda a encontrar o que procura, pois a face sorri quando abandona o local apressadamente.

III

Acorda a meio da noite e a cabeça dói, pesa-lhe. O candeeiro aceso a seu lado é a única fonte de luz. As imagens que surgem uma por uma, desfocadas e descoloridas mostram-lhe que está no quarto das visitas, amarrado à cadeira. Atrás de si, a voz forte e grave, dona dos passos diz

“Como estás, escritor? A cabecinha dói muito?”

Os passos fazem-se ouvir novamente. Está agora bem à sua frente, pode ver-lhe claramente a tatuagem. Sabe a resposta mas, para ganhar tempo, pergunta

“Porquê? Porquê tudo isto? Se ao menos soubesse…”

“Se soubesses o quê?” responde-lhe a voz

“Se soubesse… nunca teria criado essa personagem, nunca, NUNCA TE TERIA ESCRITO!”

Obtém como resposta uma gargalhada forte, bem sonora. Então, o outro pega no livro e encara-o. Após uns segundos, responde

“Julgas que me criaste? Na verdade, sei tudo sobre ti, sobre o que eras dois meses atrás, quando terminei de escrever. A única coisa que não conhecia era esta morada, a toca onde te escondeste. Mas esse foi um problema que resolvi facilmente…”

A boca do escritor que julgava saber tudo abre-se na expressão de espanto

“Tu, tu… tu escreves?”

Então, o captor, em vez de responder, abriu o livro e começou a leitura

Era fim de tarde, uma tarde chuvosa e triste quando Nuno Marques da Silva, escritor amador, leva o copo de uísque pela segunda vez à boca e pensa se não será melhor desistir daquele projecto. Entre o vidro e ele e o mar, apenas a rua deserta e as dunas. Ao longe, o cinzento das ondas que vão e vêm sempre de forma diferente, uma inconstância digna de Heraclito de Éfeso à qual apenas a perspectiva peculiar do homem conferiria padrão.

De repente, a ideia surge e senta-se e começa a escrever. Todo o enredo iria ser construído a partir do personagem principal, um ser astuto e forte, completamente desprovido de escrúpulos.

“Já chega” Disse o outro, as mãos aproximando-se da cadeira

O escritor fitou-o com terror

“Que, que me vais fazer?”

O intruso colocou a cadeira junto da janela e retorquiu em voz alta, com um sorriso cruel

“Vou ler-te o fim. Não queres saber como acaba o meu romance?”

A cadeira estava agora junto à portada aberta, a escassos trinta centímetros do vazio. Novamente os passos atrás de si. A voz voltou para terminar a leitura

A portada estava aberta e ele sentia o vento frio roçar as cordas e entrar roupa adentro. Em pânico e paralisado pelo medo, o escuro da noite não lhe permitia ver quase nada mas ele sabia onde estava, imaginava já o impulso e a queda.

Novamente passos. Desta vez, atrás de atrás de si.

“Alto. Nem um movimento!” rugiu a voz, imperiosa.

Ouviu então o estampido do projéctil. Num único segundo, os passos que morrem, o corpo que sai de atrás de si para o vazio…

As mãos puxaram novamente a cadeira para dentro. E ele viu então surgir a cara do Inspector Santos acompanhado pelos dois polícias. Que sorte! Que sorte tê-los criado também.





quarta-feira, 11 de junho de 2008

A única Paz possível é a Jacimeire

Leo Borges

O que eu mais gosto no Bar do Setembrino são os axiomas do Rildo. Normalmente vêm acompanhados de bolinhos de carne – especialidade da casa – e cerveja barata, muito comum nos subúrbios. Se não vejo o Rildo em uma das mesas na calçada, cumprimento o Setembrino, jogo uma sinuca, falo um pouco sobre futebol, mando um beijo pra Jacimeire e sigo meu caminho. Mas com ele por ali, fato relativamente raro, fico para um papo mais cáustico, onde suas verdades empíricas vão sendo derramadas sem filtros para quem quiser ouvir.

Hoje ele estava por lá, como sempre na mesa exposta ao ar livre, se misturando entre os transeuntes apressados. Rildo dizia que o melhor de um bar não é a comida e nem a bebida, mas a possibilidade de ver as pessoas, nervosas, correndo de um lado para o outro numa sessão pavorosa de corpos em movimento. Não me furtei em puxar uma cadeira para acompanhá-lo com uma gelada. Comentei sobre um fato triste que havia presenciado momentos antes, quando um pivete roubara a bolsa da dona Lourdes. Ele decretou que a paz que o mundo busca é impossível porque entra em conflito com a própria essência beligerante do ser humano.

Qualquer conduta reativa é, antes de mais nada, uma violação ao que foi explanado anteriormente. Na visão macro de Rildo essa premissa é não apenas primordial como muito pitoresca.

– Quando rompemos o padrão, a vida se movimenta e as pessoas se desacomodam e com isso, evoluem. Sem a bolsa roubada, Lourdes iria pra casa assar sua carne, fazer seu arroz. Mas aconteceu um fato novo em sua vida e isso a vai fazer pensar em outras coisas mais aprofundadas, tipo: ‘que mundo é esse em que vivo?’ e ‘quem são as pessoas a minha volta?’. Ela nunca teria essa oportunidade se não tivesse tido esse contratempo.

Rildo não é um sujeito que pode ser classificado como 'agradável'. Ele é dolorosamente fiel aos seus conceitos. Desfia suas pérolas como algum filósofo frustrado que pretende explicar a vida a partir de sua vivência boêmia. Mas é gostoso ouvir colocações que não são politicamente corretas, já que nos jornais, revistas e TV tudo o que vemos é o óbvio e batido: “não agüentamos mais a violência!”. Roupas brancas de grife desfilando pelas ruas pedindo paz.

– As pessoas se adaptam ao jogo. Para novas conquistas o homem se reuniu para guerrear e criou flechas e pólvora. Se quisesse a paz, teria ficado no seu cantinho, no cultivo familiar, trocando sal e frutas com seus vizinhos. A evolução é a própria face da violência e do caos. Quer coisa mais violenta que o desenho do Pica-Pau?

No ponto de vista de Rildo não há viabilidade na paz. É tão ingênuo quanto tentar fazer o leão não caçar suas presa explicando que a zebra vai sentir dor. A comparação é tão estapafúrdia que seria uma violência ao diálogo tentar ponderar. E ainda que eu quisesse um caminho mais brando para hastear a "bandeira branca" sobre os argumentos de Rildo, não conseguiria. Ele não dá essa opção.

– A verdade é que todo mundo gostaria de ser policial ou bandido. Há glamour na violência. Estar intimamente ligado a uma arma é prazeroso. Vá a uma locadora de filmes e constate: existe a categoria “Engenheiro”? A “Arquiteto”? A “Peixeiro”? Não. Mas existe a “Policial”. Polícia e ladrão é a brincadeira mais recorrente entre a criançada. E criança tem sua própria natureza de tapas e corredor polonês. Precisam disso. Claro que quando não recebem uns bons cascudos de seus pais para se comportarem. O indivíduo só deixa de porradaria quando o policial vem e lhe senta o cacete.

Para Rildo a violência não tem como ser combatida pelo fato de o ser humano não saber conviver sem ela. Seria um mundo enfadonho, macambúzio e... violento! Não seria uma violência dolosa, mas ainda assim as estatísticas iriam surpreender. Triplicariam as mortes nas estradas, já que todos sairiam para passear. Duplicariam os pisoteamentos em shows, pois milhões iriam freqüentar raves e similares. Afogamentos em piscinas e praias em balneários superlotados. Intoxicações com inseticidas. Queimaduras. Atropelamentos. Seria uma catástrofe sem precedentes.

- As pessoas enjoariam de tanto marasmo e falta de perspectivas perversas e sairiam para todos os cantos buscando qualquer coisa que as alegrassem. A figura do diabo seria transformada num boneco de aniversário de criança. E os pugilistas entrariam no ringue com luvas de algodão para poderem fazer uma boa “matinê de cafuné”. Quem pagaria para ver isso? Imagine uma lírica torcida do Flamengo enaltecendo a torcida do Fluminense no Maracanã. Seria até caricato. A essência de uma disputa é justamente a briga. Já começamos brigando desde espermatozóides. Se não houvesse o antídoto da calmaria, o mundo estaria fadado ao cinismo, à falsidade e à desonestidade. Exemplo maior são os nossos políticos, que não atiram nem esfaqueiam. Mas quer violência maior que uma canetada assinando uma lei estúpida? Um salário mínimo que no papel garante tudo e na prática só serve como chacota. Melhor fazer piada que chorar com tanta violência.

Realmente é um mundo esquisito o que Rildo vislumbra... mas e as religiões? Não cumpririam seus papéis pacíficos numa sociedade despojada de violência?

– As religiões, que deveriam ser ícones de paz, fomentam a violência com dogmas intolerantes e intransigentes. O grande trunfo da Igreja são, paradoxalmente, as trevas. Sem elas, a bonança seria apenas um quadro do Rembrandt num consultório psiquiátrico.

Eu normalmente não contraponho as assertivas de Rildo, porque suas definições são, como ele próprio alega, irrepreensíveis. E consiste nisso a diversão espinhosa de um bate-papo com ele.

- Tragédia maior, entretanto, seria o sombrio clima entre um casal impetuoso num mundo sem violência. Entre quatro paredes, o rapaz não poderia nem segurar com volúpia os cabelos de sua amada e muito menos dar uns bons tapas em suas ancas quando a sacanagem esquentasse. Em última análise isso também está no rol de aberrações, de espancamentos, ainda que consentidos.

O mais interessante de Rildo é que seus discursos são despolitizados, mas não são ocos. No caso em questão não dá para acusar o velho como sendo um paladino pró-violência ou um libelo da destruição, já que seu tratado é uma versão sarcástica e estilizada do mundo real. Rildo é o Thomas More ao reverso em meio aos salgadinhos engordurados do Bar do Setembrino.

- Eu repudio frontalmente a violência – diz ele. – O problema é que ela mora em todos os lugares onde há sinais de inteligência. Dê um pedaço de osso para um cachorro e ele será feliz. Dê toneladas de ossadas para um ser humano e ele ficará amargurado com tantos restos mortais à sua disposição.

Seriam os cães mais inteligentes que os homens?

- A busca pela felicidade é traumática, pois nos coloca frente a perguntas sem respostas. A violência, ao contrário, é pura, não precisa de arquétipos, sem falar que é ela quem gera milhões de empregos, de militares a jornalistas. Afinal, notícia ruim é que movimenta a imprensa.

Para Rildo intolerância é a prima da ignorância. Moram juntas e são muito competentes em criar e cuidar da violência. Fazem isso com grande esmero.

– Veja você que um soldado é condecorado ao matar duas pessoas, mas é execrado se transar com alguém do mesmo sexo. A violência prevalece e ainda que lute por seu país, nem ele próprio vai saber quais são os ideais pelos quais luta. Seus líderes dizem que é a luta pela democracia. Mas o que se quer mesmo é a obtenção de riquezas. Ou seja, quem é forte e violento, vence, sai bem na fita, é glorificado e ainda posa de 'bonzinho'."Deus nos ajudou a vencer essa guerra contra os impuros". Como disse Sartre, "o inferno são os outros".

Percebi que o papo desse dia já estava ficando cinzento além da conta. Enfim, para o meu amigo de cerveja não há paz possível. Seria isso? Nem tanto.

– Eu vou te contar qual é a única paz possível: a Jacimeire.
Jacimeire é a garçonete do Setembrino. Mulata gostosa, ela é mais que carinhosa no atendimento aos fregueses, trazendo sempre junto com o pedido um sorriso franco e um espírito alegre. Quando alguém pergunta seu nome ela o fala todo: Jacimeire Francisca da Paz. Acho que faz isso por gostar muito do ‘Paz’ no fim. Nada mais correto, já que sua exuberância acaba com qualquer conflito entre bêbados mais alterados.
ndo jogar o video game da moda, aquele onde se matam centenas em cada fase. Criança de boa índole essa. Pelo menos me chamou de "moço".

Alheia às loucuras dos boêmios, ela trabalha com indescritível préstimo e amor e isso confunde os incautos que acreditam que tal desenvoltura possa ser algum flerte. Mas, que nada. É só uma simpatia transbordante que sempre relaxa a fisionomia rabugenta de alguns, que sempre traz esperança em algo melhor. Melhor que o bolinho de carne de sol, melhor que a tristeza de um mundo confuso.

– Que Paz maravilhosa...

Nesse ponto não há o que discordar dele.

Publicado no livro "Retratos Urbanos"
http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=19246





terça-feira, 10 de junho de 2008

Utopia

Frederico Galhardo

Flanei pelas ruas, buscando sei lá o quê.

Nas vitrinas, consumo e cores.

Nas calçadas, panfletos e bitucas de cigarro.

Seres anônimos passaram por mim, semblantes sérios, passos apressados.

Escravos das horas, servos do trabalho.

Eu, um vagabundo nauseabundo os invejei,

Sempre tão ocupados, sempre em cima da hora, sempre indo para algum lugar.

Meu ócio me envergonhou e, num banco de praça, ocioso me envergonhei.

Depois, em casa, deite-me, ronquei, babei, sonhei.

Com um mundo desocupado sonhei, todos poetas e filósofos

Contempladores do universo, sem relógios nem rugas de preocupação.

Apenas o tempo a passar sem que ninguém se preocupe com ele

E a vida a ser vivida sem que por ela dessem conta.



Vagabundo vaguei pelas vielas do sonho,

E lá encontrei sei lá o quê.


Biografia
Frederico Galhardo nasceu em Curitiba. Cursou dois anos de jornalismo. Trabalha atualmente (e talvez para todo o sempre) numa livraria. Ocasionalmente, redige artigos para um jornal comunitário, para e-zines e para serem escondidos na gaveta.





Capítulos 1


Henry Alfred Bugalho

Elijah Abramanoviecz, cumulado de anos, decidiu contar sua história, desde criança em Varsóvia, pelo gueto e humilhação do Reich, até a fuga para a América e os filhos que lá teve.

Sentou-se para escrever seu livro, começando pelo começo e traçando toda a genealogia que conhecia de sua família. Como rabi Solomon Abramanón, seu mais antigo antepassado, foi perseguido em Madri no século XVI pelo Santo Ofício e como, muitos séculos mais tarde, seu pai, Isaac Abramanoviecz cuidava de sua barbearia e, um dia, conhecera Rebeca Steinberg, filha de um industrial alemão, com a qual se casaria posteriormente e, de cujo amor, ele, Elijah, nasceria.

Mas aquele longo capítulo, não o satisfez. Mais uma catalogação de memórias pretéritas do que um livro autobiográfico, o ritmo moroso e a abundância de detalhes enfadariam os supostos leitores.

Contar pelo fim pareceu ser a melhor opção: relatar como ele, Elijah, cabalista de Nova York, tomou a resolução de abrir o livro de sua vida para os outros. De todo o esforço davídico por conquistar o universo das palavras e expor, com toda a sinceridade de seu ser, as lições que aprendera da vida.

No entanto, este princípio, que prenunciava um longo flashback no qual sua história se desenrolaria, também não o agradou.

Rascunhou um novo capítulo, desde o momento em que ele leu pela primeira vez o Sepher Yetzerah e, ainda jovem, recém-saído de seu bar Mitzva, iniciou seus estudos dos sephirots e dos nomes de Deus.

Um princípio tão hermético e abstruso, detalhando anos de aprendizado cabalístico, mais se assemelhava a um dos milhares de livros sobre ocultismo do que o que Elijah realmente pretendia.

Tentou novos começos, e a cada tentativa novos obstáculos e objeções surgiam. Nem o relato de seu matrimônio, nem os anos na escola torânica, nem os medos em Treblinka, nem a cegueira parcial, nem a infância tranqüila, nem o deslumbramento na Big Apple da década de cinqüenta. A cada novo começo, um novo fracasso.

Então, ao reler as setecentas páginas que havia composto nos últimos sete meses, Elijah Abramanoviecz constatou que toda sua vida esta ali. Não somente como ele a relembrava, linearmente, como o grande projeto de Yahweh para os homens, mas ciclicamente, com falsos começos e finais mentirosos, tal qual os projetos irrealizados dos homens, que quando fazem uma escolha, deixam para trás um leque de outras perdidas, como o projetar-se existencial de Heidegger, e como os círculos concêntricos de rememoração, os mesmos que motivaram Proust e Henri Bergson; aqueles círculos que se afastam de nós e, quando retornam, vêem como se não mais nossos fossem, estranhos a nós, apesar de nos pertencer.

No entanto, o que mais surpreendeu Elijah é que, em meio a todos aqueles capítulos um, havia um que ele sequer se recordava de haver redigido, aquele no qual ele narrava sua própria morte e aqueles que ao seu funeral atenderiam e como ele voltaria a fazer parte do mistério cósmico que um dia o concebeu, deixando de ser o cabalista de Nova York e tornando-se aquele que pode escrever o próprio futuro.





segunda-feira, 9 de junho de 2008

Por que escrevo?

Henry Alfred Bugalho

Hoje em dia, a última moda é criticar a aquisição de “capital cultural”.

Antes, o alvo havia sido o capital puro e simples — grana, bufunfa, prata, money. Uma legião de esquerdistas, de cunho marxista-leninista, se proliferou por países subdesenvolvidos, execrando os males do capitalismo, a exploração da mais-valia e a sociedade de classes.
A falência do socialismo foi um balde de água fria para esta turma. Mas, recentemente, em vários artigos que tenho lido pela internet, algo semelhante tem surgido, mas agora criticando o hábito — extremamente burguês, como negar? — de se escrever livros. “Os autores só escrevem para adquirir capital cultural”, eles dizem.
Tomei ciência deste conceito pela primeira vez através da boca duma amiga americana, mestranda de Ciências Sociais, que me explicou o que Bourdieu entendia por isto. A grosso modo, “capital social” é o conhecimento, ou experiência ou relações que alguém possui de modo a permiti-lo se destacar daqueles que não possuem a mesma formação. Este capital se divide em três instâncias: 1 – inerente, aquele que nasce com um indivíduo, ou é decorrente da formação familiar; 2 – objetificado, que é aquilo que pode ser possuído, enquanto propriedade, como uma obra de arte, um livro raro, ou algo de grande valor cultural; e 3 – institucionalizado, que decorre da legitimação de instituições culturais, como universidades, premiações, títulos e demais honrarias.
Até onde percebo, o escritor se enquadraria nestas três categorias, pois a escrita depende de algo inerente, o idioma no qual se escreve, o talento para organizar sentenças, a capacidade de observação do mundo e sua reprodução através da literatura; depende também da objetificação do livro, algo físico, palpável, que pode ser comercializado, manuseado, que traz na capa o nome do autor, que o institui como criador e dono de seu conteúdo; por fim, também possui um caráter institucional, pois o reconhecimento da Academia é uma das grandes medidas de canonização dum autor, a adoção de suas obras por uma Universidade, ou a premiação em algum importante concurso literário, ou o recebimento de alguma titulação de doutor honoris causa.
A aquisição de capital cultural faz parte do ofício da escrita, mas é isto que os autores buscam ao escreverem um livro?

Sem dúvida, há uma fetichização do livro. Aquela coisa, composta de páginas, caracteres, signos, sentido, é um universo à parte do nosso mundo cotidiano. Apesar de a escrita ser uma espécie de instrumento de comunicação — escrevemos cartas, e-mails, cartazes, jornais, revistas para comunicarmos algo a alguém, sendo que este alguém pode ser um receptor direto, alguém que conhecemos, ou um receptor indireto, uma massa desconhecida —, o livro ultrapassa esta função, ainda mais se nos restringirmos aos limites da ficção.
Um romance ou uma coleção de contos transmite uma mensagem, comunica um sentido, mas vai além, visa algo que ultrapassa a mera comunicação.
O que este “além” significa é motivo de debates acalorados através dos séculos; uns dizem ser a transmissão do Belo; outros, o estímulo de sensações e sentimentos; outros, a formação de senso crítico ou a crítica da sociedade; outros, entretenimento. As hipóteses e propostas são infindas, talvez tão numerosas quanto os volumes de livros que já foram escritos na História da Humanidade.
Eu, enquanto escritor, não me recordo de, em momento algum, eu me sentar diante do computador para escrever um conto ou romance e ser assolado pelo pensamento: “que beleza, vou adquirir mais um pouco de capital cultural!”
Acho que a primeira intenção dum autor, a mais genuína, a mais entranhada, é tentar recriar as mesmas impressões que ele teve ao ler um bom livro. Talvez o que se passe na mente, talvez até de maneira inconsciente, dos escritores é causar nos leitores aquela sensação: “eu queria ter escrito este livro”.
Isto não significa que os autores tentam imitar formal ou estilisticamente seus autores favoritos, mas sim que, no interior de seus gostos e predileções, eles gostariam de causar no leitor, através de palavras, o deslumbramento que um dia tiveram através da leitura.
A aquisição de capital cultural está atrelada ao ofício literário do mesmo modo que a aquisição de capital está vinculada ao trabalho. Se não é vergonhoso ser remunerado pela execução dum trabalho, então por que o reconhecimento através da escrita seria?

Mas não é isto que motiva um escritor, pelo menos, não deveria ser.

Se alguém me perguntasse: “por que você escreve?”, a única resposta que eu poderia dar, a mais sincera e verdadeira, é: “porque gosto; porque, acima de tudo, eu me divirto muito”.
E não há dinheiro ou reconhecimento capaz de superar esta sensação.





Três versos

Volmar Camargo Junior


Há algum tempo, desde que comecei a integrar esse grupo de escritores, auto-proclamados “oficineiros”, entrei em um irremediável processo de auto-descobrimento literário. Entre as coisas que descobri em mim mesmo foi o quanto escrever poesia é gratificante. A primeira vez que fiz um poema na vida foi para uma das atividades da oficina: uma coletânea de haicais. Para minha inteira satisfação, eu consegui escrever um haicai – que era, aliás, um gênero de poesia do qual apenas havia ouvido falar.

Depois disso, não parei mais. É claro que ainda não fiz nada de extraordinário (muito pelo contrário, aliás) Mas estou experimentando. O resultado dessas experiências vem sendo publicado aqui, na SAMIZDAT. São meus Laboratórios Poéticos.

Bem, continuei escrevendo haicai. Entretanto, eu simplesmente não conseguia manter-me preso à singeleza e às normas muito bem definidas que essa linguagem poética tão bonita (e tão antiga) exige. Então, eu descobri o Poetrix. Ou melhor: eu descobri que o que eu fazia, pensando ser haicai, era, na verdade, poetrix.

Para tentar deixar claro o que é um e o que é outro, dando como exemplo poemas que eu mesmo escrevi, tentarei expor abaixo as normas que fazem um haicai não ser um poetrix, e vice-versa.



O haicai


Sobre a linguagem do haicai na História, pretendo tratar em outra oportunidade. Entretanto, vale ressaltar o nome de duas pessoas essencialmente importantes para a divulgação do haicai em nosso país: Nempuku Sato e Goga Masuda. O primeiro, um mestre desta forma de arte, foi o grande responsável pela cultura do haicai entre os imigrantes japoneses no Brasil – apesar de nunca ter escrito poemas que não fossem em seu próprio idioma. O segundo, Goga Masuda, é discípulo de Nempuku Sato. Possivelmente, é o responsável pela divulgação dessa forma poética em terras brasileiras - não apenas para os imigrantes - seguindo a milenar tradição japonesa. O texto abaixo, de autoria de Masuda, é uma orientação para o haicai tradicional.


Os dez mandamentos do haicai
(
http://www.kakinet.com/caqui/dezmand.shtml)

I - O Haicai é poema conciso, formado de 17 sílabas, ou melhor, sons, distribuídas em três versos (5-7-5), sem rima nem título e com o termo-de-estação do ano (kigô).
II - O kigô é a palavra que representa uma das quatro estações, primavera, verão, outono e inverno; p. ex., IPÊ (flor de primavera), CALOR (fenômeno ambiental de verão), LIBÉLULA (inseto de outono) e FESTA JUNINA (evento de inverno).
III - Cada estação do ano tem o próprio caráter, do ponto de vista da sensibilidade do poeta; p. ex., Primavera (alegria), Verão (vivacidade), Outono (melancolia) e inverno (tranqüilidade).
IV - O haicai é poema que expressa fielmente a sensibilidade do autor. Por isso,
respeitar a simplicidade;
- evitar o "enfeite" de "termos poéticos";
- captar um instante em seu núcleo de eternidade, ou melhor, um momento de transitoriedade;
- evitar o raciocínio.
V - A métrica ideal do haicai é a seguinte: 5 sílabas no primeiro verso, 7 no segundo e 5 no terceiro; mas não há exigência rigorosa, obedecida a regra de não ultrapassar 17 sílabas ao todo, e também não muito menos que isso. E a contagem das sílabas termina sempre na sílaba tônica da última palavra de cada verso.
VI - O haicai é poemeto popular; por isso usa-se palavras quotidianas e de fácil compreensão.
VII - O dono do haicai é o próprio autor; por isso, deve-se evitar imitação de qualquer forma, procurando sempre a verdade do espírito haicaísta, que exige consciência e realidade.
VIII - O haicaísta atento capta a instantaneidade, qual apertar o botão da câmera.
IX - O haicai é considerado como uma espécie de diálogo entre autor e apreciador; por isso, não se deve explicar tudo por tudo. A emoção ou a sensação sentida pelo autor deve apenas sugerida, a fim de permitir ao leitor o re-acontecer dessa emoção, para que ele possa concluir, à sua maneira, o poema assim apresentado. Em outras palavras, o haicai não deve ser um poema discursivo e acabado.
X - O haicai é um produto de imaginação emanada da sensibilidade do haicaísta; por isso, deve-se evitar expressões de causalidade, sentimentalismo vazio ou pieguice.

***

Um haicai, segundo minha pena (torta), tentando acompanhar as diretrizes acima, é assim


Orvalho noturno,
Frio e geada -
Verso branco.


No entanto, o primeiro que escrevi, foi esse:

Flerte

Roseira branca,
na cerca, ama o céu
negro sem culpa.



O POETRIX

O Poetrix é uma forma poética nascida aqui, no Brasil. Surgiu, à maneira dos movimentos vanguardistas do Modernismo, com um manifesto. Seu idealizador, o poeta baiano Goulart Gomes, é hoje o coordenador do Movimento Internacional Poetrix. Da mesma forma, pretendo falar mais detidamente sobre a origem do Poetrix em um futuro próximo. O texto abaixo consta na introdução do Volume 1 do Caderno Internacional de Poetrix, distribuído gratuitamente na rede (http://www.zaz.com.br/virtualbooks/novalexandria/goulart/poetrix1.htm)



O Poetrix hoje


POETRIX é um terceto contemporâneo de temática livre, com título, ritmo e um máximo
de trinta sílabas, possuindo figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor
satírico. (...) No Manifesto Poetrix foram identificadas as suas principais características, que resultaram na atual definição do novo vernáculo:

  • possui apenas uma estrofe de três versos, sem limite de sílabas (depois seria estabelecido o limite de 30 sílabas);
  • o título é desejável, mas não exigível, podendo complementar o texto (atualmente, o título é uma exigência);
  • não existie rigor quanto a métrica ou rimas (mas o ritmo é desejável);
  • metáforas e outras figuras de linguagem, assim como neologismos, são uma constante no poetrix;
  • geralmente há uma interação autor/leitor provocada por mensagens subliminares;
  • é minimalista, ou seja, procurr transmitir a mais completa mensagem em um menor número de palavras;
  • passado, presente e futuro podem ser utilizados sem distinção;
  • o autor, as personagens e o fato observado podem interagir, mesmo criando condições suprarreais, cômicas ou ilógicas (non sense).






Uns e outros

Uma importante relação entre os dois formatos foi trazida por Goulart nesta mesma publicação, referida acima:

"(...) POETRIX é, certamente, a primeira linguagem poética a ganhar uma definição discutida e elaborada pelos seus próprios praticantes – os poetrixtas – no mundo virtual da internet. O POETRIX foi proposto, inicialmente, como uma evidente alternativa ao hai-kai, mantendo a sua forma (em tercetos) mas subvertendo o seu conteúdo, ao admitir título, rimas, figuras de linguagem e um maior número de sílabas
."

Não estou querendo defender um em detrimento de outro. Aliás, muito pelo contrário. Desde que conheci o haicai, tenho-me esforçado para conseguir criar um que seja minimamente adequado à tradição. E, da mesma forma, tenho produzido alguns poetrix, porque – talvez, é uma suposição – meu pensamento seja ocidental demais, e demasiadamente atrelado ao “querer dizer” dos idiomas românicos. Sobretudo o português. Ainda mais, esse português tupiniquim, nostálgico, eclético, e (pelo que sou muito grato) democrático.

Fico muitíssimo satisfeito.




__________________________________________________________________________
Para ler mais sobre haicai e poetrix, acesse:

Grêmio Haicai Ipê
http://www.kakinet.com/caqui/ipe.shtml

Biografia de Masuda Goga
http://www.kakinet.com/caqui/goga.shtml

Movimento Internacional Poetrix
http://www.movimentopoetrix.com/

Biografia de Goulart Gomes
http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=17739