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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Mensagem de Aniversário

Quando o blog da Revista SAMIZDAT foi ao ar, no dia 31 de dezembro de 2007, não tínhamos muita idéia do que estava por vir.

Reunir um grupo coeso de escritores, capaz de produzir Literatura de qualidade e de trocar experiências sempre havia sido um objetivo meu, desde quando comecei a escrever e participar de oficinas literárias em Curitiba.

Mas os escritores de hoje são bichos arredios, com egos sensíveis e que geralmente preferem o isolamento, onde podem divagar sobre a própria genialidade, do que se embrenhar na complicada dinâmica dos relacionamentos sociais.

Relacionar-se com outros escritores, seja pessoal ou virtualmente, é correr o risco de se transformar, de descobrir nossos próprios limites, nossas dificuldades, nossos erros; é correr o risco de se descaracterizar, mas também é a oportunidade para um crescimento literário inestimável.

Não é à toa que vários escritores pretéritos buscaram em seus pares apoio para a árdua carreira das Letras. Grupos, movimentos, revistas, círculos, estes eram ambientes seguros para escritores sequiosos por novos horizontes. Esta troca os permitiu crescerem, lapitarem o diamante bruto da escrita.

Foi através de revistas, como a “Orpheu”, que ­Fernando Pessoa e alguns de seus heterônimos surgiram para o mundo. Também foi em revistas que Jorges Luis Borges, Dalton Trevisan, Isaac Asimov, Raymond Carver, James Joyce, e vários outros autores se tornaram conhecidos.

A revista literária, ou alguma publicação periódica, é uma vitrine para o autor, uma centelha de visibilidade. Algumas revistas duram poucos meses, outras perduram; algumas são lembradas, outras esquecidas; como tudo no mundo da Arte.

Que a Revista SAMIZDAT esteja completando um ano de existência é algo que me surpreende, se pensarmos que tudo se originou a partir dum blog e dum primeiro fascículo mal diagramado.
Tive de aprender muito para tornar a SAMIZDAT visualmente atrativa. Mas nós, enquanto escritores, também estamos aprendendo sempre como tornar nossas obras literariamente atrativas. É uma luta diária, que está ocorrendo no silêncio de nossas casas, ou diluída por entre o mundo etéreo da internet.

Esta revista é um sonho coletivo tornado real, mas é também uma das vitórias desta nossa luta diária.

Parabéns para nós!





sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

PlagicAMORniano

Amor, fogo que só arde em nosso ser,
É a dor de nosso pedaço ausente,
Descontente ao não ser bem mais contente,
É a dor que só nos precede o prazer;

Não querer esfomeando o querer,
Solitário com quem não está presente,
É buscar ser feliz eternamente,
Trocar bem quando ganha ao perder;

É o estar preso usando a liberdade,
É vencer pra servir quem lhe venceu,
Com quem te ganha a vida, lealdade.

Então pode causar o favor seu
Nos corações humanos amizade:
Não tão contrário a si é o amor meu.





quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Os deliciosos biscoitos de Oma Guerta

(Maristela S. Deves)

Mariazinha quase bateu palmas quando Oma Guerta entrou na sala carregando a bandeja de biscoitos. Esse era o melhor momento das visitas semanais à casa da avó: a hora do lanche. Tudo o que a Oma fazia era delicioso, cucas, doces, bolos, biscoitos dos mais variados tipos. Gulosa, pegou logo três dos biscoitos, lambuzando-se toda de confeitos coloridos.
- Kind, Kind - riu a avó com seu forte sotaque alemão, acariciando a cabeça da netinha de nove anos enquanto ela atacava a bandeja outra vez.
Cabelos grisalhos presos num coque, olhos azuis brilhantes por trás das lentes dos óculos de aros redondos, Oma Guerta ajeitou o xale de crochê sobre os ombros antes de retornar à cozinha para cuidar de outra fornada de guloseimas.
Na sala, enquanto aguardava com alegria antecipada o bolo ou doce que viria a seguir, Mariazinha olhou ao redor para distrair-se enquanto esperava. A parede cheia de quadros sempre a encantara, e ficava imaginando como teria sido bom conhecer os bisavós e tataravós que a olhavam dos retratos. Ao lado deles, santos, muitos santos, ajudavam a fechar praticamente cada centímetro da parede. A única exceção era o canto onde estava o relógio, o velho relógio de pêndulo que tiquetaqueava as horas com uma solenidade que fazia jus à sua idade...
Pouco depois, terminava a segunda fatia de cuca recheada quando o pêndulo bateu pausadamente. Bléin. Bléin. Bléin. Bléin. Quatro horas. Logo, logo teria de ir para casa. Mas, antes, ia ver se a avó já tinha pronto o pote de bolo que sempre levava para comer no caminho... Lambendo os farelos que tinham ficado nos dedos para não desperdiçar nada daquela delícia, levantou-se e, quase tão solene quanto o velho relógio, encaminhou-se para a cozinha.
Abriu a porta devagarzinho, sem fazer ruído. A avó, como ela esperava, estava parada em frente ao balcão, uma bacia nas mãos, misturando os ingredientes para mais uma fornada de biscoitos. O que ela não esperava ver era Kerb, o gato de longos pelos brancos da Oma, sentado sobre as duas patas traseiras e recitando calmamente em alemão os ingredientes que estavam no livro de receitas que ele segurava com as outras duas patinhas.
- Zwei glass Mel... Ein glass Zucker... Drei…
Olhos arregalados, Mariazinha deixou escapar uma exclamação. A avó virou-se, enquanto Kerb lhe lançava um olhar de quem estava chateado pela interrupção.
- Oma... Vovó, ele... ele fala! _ conseguiu dizer.
- É claro que eu falo! - indignou-se o gato, largando o livro no chão para poder colocar as patinhas na cintura. - E por que não iria falar?
Sorrindo, Oma Guerta meteu-se na conversa.
- Kinder, Kinder... Maria, Kerb, não quero discussões aqui...
Ainda pensando que tinha adormecido no sofá da sala e que estava sonhando, Mariazinha beliscou-se. Ai. Doeu... Mas então...
- Isso é de verdade, mesmo?
Antes que Kerb respondesse outra vez, a avó tomou a menina no colo.
- Mein Kind, Komm hier... Senta aqui no meu colo um pouquinho, a Oma vai te contar um segredo...
E, na meia hora seguinte - enquanto um impaciente Kerb andava de um lado para o outro, sentindo-se ignorado -, a avó Guerta revelou à neta o porquê de seus doces serem sempre tão deliciosos. Tudo começava com o livro de receitas mágico, trazido por suas antepassadas quando elas imigraram para o Brasil. Passado sempre de mãe para filha, ou de avó para neta, ele trazia instruções mágicas para o preparo de qualquer prato, fazendo-os mais saborosos do que os feitos pelos mais renomados mestre-cucas.
- Mas aqui... mas aqui não tem nada escrito - espantou-se a menina, folheando o caderninho que a avó pegara do chão e deixara sobre a mesa.
- É aí que entra o Kerb... - disse, chamando com um gesto o gato, que alegrou-se ao ser mais uma vez lembrado.
- Eu, como meu pai e meu avô e o pai e o avô do meu avô antes de mim, sou o único que consegue ver a escrita invisível que tem no livro mágico. Tenho a missão de ler essas receitas para minha ama, e, também, de dizer as palavras que completam a mágica - concluiu o felino, todo importante.
Os olhos de Mariazinha arregalaram-se ainda mais.
- Palavras mágicas?!
- Sim, palavras mágicas - acrescentou o gato, outra vez impaciente. Será que aquela menina não sabia nada de nada? - As palavras mágicas que vão fazer os biscoitos, as cucas e o que mais sua avó fizer serem os mais deliciosos já vistos.
A pequena olhou do gato para a avó, como que querendo confirmar a informação. Oma Guerta meneou a cabeça.
- E quais são as palavras mágicas? - quis saber Mariazinha.
Condescendente, Kerb dirigiu-se até o forno de barro, ergueu-se outra vez nas patinhas traseiras e, com uma colher de madeira, bateu duas vezes na portinha:
- Wunderbaressen gegessen! - exclamou, também duas vezes. Depois, com um floreio, chamou Mariazinha para abrir o forno.
A menina abriu, cada vez mais maravilhada, e o aroma dos biscoitos recém-assados encheu a cozinha. Sem se conter, bateu palmas de contentamento. A avó chegou ao seu lado e, pegando-a outra vez no colo, disse:
- Mädchen, agora que você já sabe como a Oma faz tanta coisa boa, eu tenho uma pergunta muito importante para lhe fazer. Você quer aprender a fazer esses biscoitos mágicos, para ser a seguidora da tradição da família?
Agora, sim, Mariazinha tinha certeza de que estava sonhando. Ela, fazendo aqueles biscoitos? Como poderia...?
- E você vai ter o seu próprio gatinho - completou a avó.
Levantando-se e levando a menina pela mão, Oma Guerta voltou com ela para a sala. Ali, dirigiu-se para o velho relógio de pêndulo, sob o qual ficavam duas grandes portas de madeira que Mariazinha nunca tinha visto serem abertas. Pois a avó abriu-as e entrou, chamando Kerb e a neta para acompanhá-la. Era outra surpresa. Embora parecesse de fora um pequeno armário, lá dentro o espaço era gigantesco. Prateleiras e mais prateleiras de ingredientes, potes, cestas, até um jardinzinho tinha num canto. E uma casinha...
- Kätzie, venha cá... - chamou Kerb, parando à porta da casinha, e um maravilhoso e peludo gatinho apareceu.
- O que foi, papai? - perguntou a bolinha de pelos.
- Esta é sua ama, Mariazinha. A partir de agora, ela vai vir aqui todo dia para cozinhar conosco, e você vai ajudá-la - declarou o gato, solene.
Kätzie abriu um sorriso tímido para Mariazinha, que, encantada, pegou-o no colo. Precisava pensar: assumir a cozinha da avó era uma grande responsabilidade, mas aquele gatinho era tão lindo...
- Pense até amanhã, mein Kind - disse a avó, adivinhando-lhe as dúvidas. - Volte de manhã, para me dizer o que decidiu. Por enquanto, leve Kätzie com você.
No caminho para casa e durante toda a noite Mariazinha não conseguia pensar noutra coisa que na proposta da avó. Adorava seus biscoitos e suas cucas, e pensar que um dia poderia fazê-los... mas tinha medo de acordar no outro dia e ver que estivera certa, que tudo era mesmo um sonho. Adormeceu abraçada no gatinho, e sonhou com ele recitando as receitas ao seu lado...
Acordou com as lambidas de Kätzie.
- Bom dia, ama - disse o gatinho sorridente.
Todas as hesitações de lado, Mariazinha pulou o café da manhã. Com Kätzie nos braços, correu para a casa da avó. Chegando no jardim, estacou e olhou a casa. Parecia diferente hoje, embora ao mesmo tempo também fosse a mesma de sempre. Toda vez que entrava ali gostava de imaginar que estava entrando em um lugar especial, um mundo mágico. Agora, ia entrar na casa sabendo que isso era verdade, e que a partir de agora ela também faria parte daquela mágica. Bem que a mãe sempre dizia que os mais velhos têm muito a ensinar aos mais jovens...


(uma homenagem à Vovó Leduína, à tia Guerta, às outras tias e à minha mãe, com seus biscoitos mais do que maravilhosos... saudades deles neste Natal...)





terça-feira, 23 de dezembro de 2008

HÁRPIAS- A DISPUTA DAS FÚRIAS - Giselle Sato

HÁRPIAS- A DISPUTA DAS FÚRIAS - Giselle Sato



As irmãs estavam reunidas: Antigas, temidas, odiadas, retratadas em mármore precioso e telas de incalculável valor.
Aelo, porte e altivez. Tudo em sua figura esguia em perfeita sintonia com a moda atual. Poder e magnetismo nos mínimos gestos. A voz embriagante esconde a manipulação em todos os graus e sentidos.

Ocípite, a menina dos olhos sonhadores. Frescor e cheiro de promessas. Musa sempre cercada de poetas e artistas. Cativante, amante da música e das Belas Artes. Devaneios e precipícios, irresistíveis convites aos jovens Ícaros: Iludidos, impetuosos e apaixonados.

Celeno, a sombria. Veludo italiano e renda francesa compõem o visual gótico sofisticado. Botas de couro altíssimas, tatuagens e piercings de brilhantes.Se a noite tivesse uma rainha, definitivamente seria Celeno.

O casarão, em algum ponto perdido no Vale das Sombras, é o único foco de luz. Foi construído com os lamentos e lágrimas dos eternos escravos.O piso de pedras escuras reflete o fogo da imensa lareira. Um aparador exibe bebidas exóticas e taças de cristal. Não fosse pela ausência de janelas, o interior pareceria com qualquer castelo europeu. Aelo bebe absinto. No momento exato, elas formam o círculo. Unidas em profunda reverência, entoam os decretos:

- Por Gaia e Urano, as filhas de Thaumas e Elektra evocam a Tradição e os antigos sábios...

O grande salão exibe tênues sombras esgueirando-se pelos cantos.Ocultas na escuridão, antigas formas murmuram mantras em linguagens milenares:

- Sim, podemos iniciar. Hoje decidiremos quem conduzirá a alma negra que todas desejamos.

As três Fúrias sem a capa da polidez mediam forças. A sina maldita era o convívio eterno. Lentamente os traços humanos deram lugar às verdadeiras faces das Harpias. O homem em questão era um poderoso líder político e espiritual responsável por milhões de mortes no Oriente. Ganancioso, inescrupuloso, sem um pingo de caráter ou moral.

Ocípite movimenta-se brandindo os longos braços como se fossem asas. Volteios exagerados, narrando as terríveis cenas que acontecem naquele instante:

- Bombas explodem cidades, meninas mães choram os filhos e homens caem aos pedaços. Montanhas de corpos no deserto, ódio, sangue e medo. Desespero nos olhos dos soldados inexperientes...

- Pare com isso, poupe-nos de seu teatro. Já partilhamos tudo. Sabemos que o caos é engolido, com sofreguidão pelas trevas. Disputado, incentivado, gerido como um filho mal parido.

- Tamanha sordidez supera os tempos mais remotos quando a bestialidade e a ignorância se confundiam. Precisamos nos apressar...

Aelo e as irmãs caminham para o terraço. Debruçadas no parapeito apreciam a paisagem árida em tons vibrantes. Do vermelho fogo ardendo em fendas e gargantas alimentadas permanentemente com o magma. A dor e o suplício da Terra. No mais profundo dos abismos o ar irrespirável confundem-se com o frio gelado das almas perdidas. A constante mudança de temperatura, assim como a chuva ácida, detalhes criados pelas criaturas tornando o local muito além do insuportável.O ar quente chega em lufadas fortes com a mesma intensidade das tempestades:

- Quase confundo a paisagem com o campo de batalha terreno...

- Algumas vezes penso que eles vão nos superar na destruição da grande Obra.

- Em poucas horas, Sahan terminará o ciclo e uma de nós fará as honras.

A outra irmã não prestou atenção, tinha o costume de ser imparcial em todas as decisões:

- Ocípite, não vai opinar, como sempre.

- Aelo sempre quer arrebanhar o máximo. Centenas de milhares de mortes diárias. Ainda assim, não está satisfeita.

- Sim, sou gananciosa. O que nos rendeu um aumento considerável de almas. Viver na América, tem diversas vantagens. Devo lembrar que a escolha dos continentes foi uma decisão conjunta?

- Mas não estou arrependida, incentivar a eterna guerra Santa é um prazer. As disputas, retaliações, embates que nunca chegarão a lugar algum.

- Ocípite! Fora o presidente que deseja governar o mundo, o que tem feito?

Aelo, tenta ganhar tempo:

- Focada no Brasil. Cada dia pior e mais perdido. Guerras urbanas, tráfico e miséria. Além do mais, apontam o país como o grande celeiro do mundo. No futuro, disputarão cada pedacinho. O povo deixará de ser tão pacífico.

Um tremor suave anuncia a chegada do Senhor dos submundos. As fúrias agitam-se em mesuras e boas-vindas:

- Minhas queridas, estão aprontando novamente?

O cheiro forte de enxofre, marca registrada...

- Hades! Íamos pedir sua ajuda neste impasse.

- Acredito. A resposta é não. Regras claras, ele falhou e morrerá na forca. Aelo, isto é uma ordem, as eleições não tardam. A história terá o primeiro presidente negro. Isto sim. É importante!

- Senhor, Sahan é uma lenda. O mistério que incita os delírios terroristas. Carrega fardos de inocentes...

- Mentiras. Não passa de um ególatra inexpressivo. Esta disputa, é um capricho.... Caso encerrado.

- Como queira Mestre, acataremos suas ordens. Aelo, a eterna diplomata, assentiu em nome de todas.

- Ocípite, minha garotinha deliciosa, concentre-se. O ouro negro é o pomo da disputa. Incite as lutas pelas terras, desfaça acordos... Intrigas ainda funcionam nos dias atuais. Os cartéis estão indo muito bem. O vício cada dia mais forte e incontrolável.

Caminhou até a figura altiva e visivelmente contrariada. Tocou a face pálida, desfez o penteado soltando as fivelas de ouro. Os cachos caíram em ondas perfumadas.

Delicadamente aspirou, sussurrando:

- Linda Celeno! Minha favorita. Vou conceder esta honra, em nome da nossa velha amizade. Estarei vigiando, naturalmente...

- Perdi sua confiança, meu senhor?

- Nunca a teve! Admirada com meu terno Armani? Sou um empresário e vou a uma reunião importante. Em Roma. Ciao meninas.

As Fúrias emitiram um rosnado assustador. Celeno, saboreando o momento de triunfo, emitia risadas agudas, de puro escárnio.Não se despediram. Cada qual tomou seu rumo. Fortes, famintas, personificam os Arautos da Discórdia: Miséria, Fome, Medo, Doenças...

Adaptadas, burlam o tempo e sopram o vento do caos. Nos dias atuais, alguém perceberia a presença das Lendas? Tantos seres humanos exibem comportamento semelhante.Estão em todos lugares e decidem nossos destinos. Neste instante, podem estar ao nosso lado. E nem nos damos conta... Simplesmente, seguimos adiante e obedecemos.





domingo, 21 de dezembro de 2008

Soneto

Marcia Szajnbok

gosto de pensar que sou um ser aquático
que nasceu em terra firme por engano
e que um dia cada pedaço do que sou
retornará ao seu lugar, que é o oceano

gosto de supor que dentro de mim exista
uma concha, um caramujo, algum coral
e que este sangue que tenho hoje vermelho
ficará um dia transparente, só água e sal

é um conforto imaginar-me assim
percorrendo mares, levada nas correntes
na espuma branca das ondas, diluída

no ilimitado das águas encontrarei enfim
a profundeza inusitada e azul da liberdade
que tanto persegui por toda vida





Soneto

Marcia Szajnbok

Não quero conhecer de ti só teu melhor
Quero também aquilo de que não gostas
O que tens como mau, vergonhoso, triste
Quero que me ofereças até que saiba decór

A melancolia que tantas vezes te habita,
Quero-te nos teus dias maus, de frio, de baixa
Quero te amar além do que é terno e doce
Quero pôr à prova minha vontade infinita

De trazer à luz meus melhores devaneios
Pois, do modo como te amo, meu amor,
O que tenho em mim de calor basta

Para extinguir para sempre teus receios
Derreter até a última gota do teu gelo
E estreitar a distância que te afasta...





sábado, 20 de dezembro de 2008

Gênesis

Começou com um.
Ele subiu pelo acostamento, tropeçando nas pedras, o que sobrara de sua mente tentando entender o mundo visível. As feridas abertas em seu corpo haviam parado de sangrar, e verrugas purulentas apareciam por seu rosto, peito e braços. Ele fitou a estrada, se estendendo em direção ao oeste. Seu sangue estava estagnado em suas veias, e seus pulmões, vazios e murchos como bolas de encher sopradas e depois esvaziadas.
Ficou parado à beira da estrada por horas, imóvel. Um cachorro se aproximou dele, deu uma cheirada em sua perna, urinou no chão e fugiu.
Quando ele começou a ficar com fome, tomou a direção da cidade. Seus passos eram lentos e arrastados. O pus escorria por sua face, mas ele não tomava conhecimento disso. Nem dos insetos que pousavam em seu rosto, e em seu peito nu, e que depois voariam e pousariam em outras pessoas.
Morte expressa. Terror a domicílio.
A mulher o avista chegando, e suspira aliviada.
Ela estava viajando para Ouro Verde, que ficava no fim dessa estrada, na direção oposta à caminhada do estranho. Uma cidadezinha construída na base de uma colina. Menos de quinhentos habitantes.
O cu do mundo. Mas era o destino dela, e seu pneu furara.
“Por favor, senhor, você poderia me dar uma ajudinha aqui?”
O som da voz da mulher causou um efeito singular na mente do estranho. Algum tipo de instinto escondido em seu cérebro morto e primitivo.
“Senhor? O senhor está bem?”
Até então, a mulher não tinha visto o rosto do estranho. Quando o viu, começou a gritar.
A cabeça dele estava completamente coberta por moscas. Seus olhos quase não apareciam por entre o negrume dos insetos. Seu peito também estava cheio de moscas, porém não tanto quanto seu rosto. As moscas que voavam para longe pareciam pesadas, diferentes, e eram logo substituídas por novas que chegavam. Havia um rastro de pus no chão atrás dele.
A luta foi breve, e a mulher perdeu.
Antes que ela se libertasse do choque que a manteve presa onde estava, o estranho golpeou o lado de sua cabeça, jogando-a no chão. Ela caiu chorando, o golpe tão forte a ponto de fissurar seu malar.
O instinto recém descoberto pelo estranho lhe guiou pelo resto de seu dever. Ele rasgou suas calças, e arrancou as calças da mulher. Seu membro estava inchado, e coberto pelas mesmas verrugas de seu rosto. Vazava pus pela uretra.
Num movimento só, o estranho enfiou a abominação que um dia pode ter sido um pênis na mulher. Ela gritou no início, mas a visão da face do Senhor das Moscas levou embora sua sanidade depois de alguns minutos, e ela só conseguiu alternar entre riso e choro.
Não foi agradável para o estranho também. A cada estocada, verrugas em seu membro estouravam, causando uma dor terrível.
Demorou mais do que ambos gostariam, e o pênis do estranho explodiu ao orgasmo.
Ambos caíram de costas no chão, o grito do estranho mais alto que o da mulher.
A fome não havia sido esquecida, e ele abriu a garganta da mulher, arranhando e mordendo, mastigando sua pele. Quando caiu no chão, saciado, o rosto da mulher havia se tornado vermelho com seu próprio sangue.
Horas passaram, mas a cena manteve-se a mesma: O estranho e a mulher, deitados lado a lado na beira da estrada.
A mudança veio com o movimento na barriga da mulher, e com a criatura que mordeu seu caminho para fora dele.
Ela estava faminta. Mas tinha dois pratos de comida caídos bem à sua disposição.





quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Mitos, mitos, mitos

Joaquim Bispo
A pressão comercial criou o mito do Pai Natal.
Antes, havia o mito cristão: uma virgem engravidou de uma entidade extraterrestre ou sobrenatural. A esse filho foram atribuídos feitos sobrenaturais: milagres. A história dos Romanos (uma espécie de americanos da altura) não deu por ele, o que não impediu que a lenda crescesse exponencialmente nos séculos seguintes. Nos últimos tempos, porém, tornava-se difícil transformar em paradigma do consumo o nascimento, no ambiente sórdido de um estábulo, de uma figura que acabou em situação não menos deplorável.
Um velho, meio avô excêntrico, meio palhaço, que voa de trenó, vive no Pólo Norte e dá objectos de consumo a todas as crianças, foi o mito que veio preencher a necessidade duma figura glamorosa ultra rica, que gasta a rodos. É claro que não é uma entidade sobrenatural que esvazia a carteira…

Muito gostam os inventores de mitos de pôr figuras antropomórficas a voar! Como na imaginária pré-contemporânea, barroca, sobretudo, em que figuras aladas de todos os tamanhos voavam em revoadas compactas em todas as direcções e tornavam incontrolável o espaço aéreo, também o Pai Natal foi criado como voador. Nada disto é bom para a, já de si, difícil decifração do mundo real, por parte da criança, que assim recebe, de quem mais confia, um acréscimo de dificuldade, uma mentira. Não se faz!





A importância do prepúcio

Joaquim Bispo

Se Cristo nasceu a 25 de Dezembro, porque é que a era de Cristo começa a 1 de Janeiro?
Na verdade, não se sabe quando Cristo nasceu. Actualmente, pensa-se que nasceu cinco a sete anos antes da nossa era. O monge cita Dionísio o Exíguo, por volta do ano 532 da nossa era, indicou o dia 25 de Dezembro do ano 38 da era de César, como a data desse acontecimento e o início da nova era. No entanto, a era de César continuou a ser usada durante séculos. Em Portugal, foi D. João I que a aboliu, substituindo-a pela de Cristo, no ano 1460 da era antiga, que passou a ser o ano 1422 da nova era. Por isso, a data aposta nos documentos anteriores a esse momento deve ser diminuída de 38 anos, para os situar em relação à nossa era.
O início do ano civil estava fixado, desde os Romanos, em 1 de Janeiro, por ser o primeiro dia do mandato dos seus cônsules. No entanto, o início do ano litúrgico foi variando, conforme a época e os países, mas sempre associado a Cristo. No que ficou conhecido como o estilo da Incarnação ou da Anunciação, o ano novo começava a 25 de Março, dia apontado como o da anunciação à Virgem de que ia ser mãe. No estilo da Natividade, o ano começava a 25 de Dezembro. O estilo da Páscoa usava o dia desta festa móvel, o que era pouco prático. Finalmente, em 1582, os cronologistas católicos aderiram ao início do ano a 1 de Janeiro, a que se chama estilo da Circuncisão, por coincidir com a circuncisão de Cristo, já que era uso, entre os Judeus, circuncidar as crianças no oitavo dia após o nascimento.
Assim, curiosamente, vivemos na era que não é do nascimento, nem da incarnação, nem da morte de Cristo, mas da ablação do seu prepúcio.





A desinformação pública

Joaquim Bispo

A era de Cristo, convencionou-se, começou a 1 de Janeiro do ano 1. Há o momento zero, mas não há o ano zero. No fim do dia 31 de Dezembro do ano 1, completou-se 1 ano. Se alguém tivesse comemorado a data, devia ter comemorado um ano, como os pais fazem com qualquer criança quando completa 1 ano. Neste método, claro e lógico, no fim do ano 2, passaram 2 anos desde o início da era; no fim do ano 99, passaram 99 anos; no fim do ano 100, passaram 100 anos; no fim do ano 1999, passaram 1999 anos desde o início da era; no fim do ano 2000, passaram 2000 anos e é altura de comemorar a completude de dois milénios. Alguma dúvida?

Isto é o que os historiadores sabem e não lhes merece qualquer tipo de discussão.
No entanto, não foi isso que vimos por todo o mundo, com a comunicação social, ignorante mas arrogante, comandada pela globalização mercantilista e a pressão consumista, a propagandear o embuste e a incentivar a comemoração da passagem do milénio na passagem de ano de 1999 para 2000. Cheguei a ouvir a alarvidade de que mudava o milénio, mas não mudava o século. Enquanto isso, não vi qualquer tentativa, por parte das entidades científicas, que também têm responsabilidades sociais, de desmistificar a falsidade. Alguns docentes, com quem abordei o assunto, encolheram os braços em atitude de demissão.
Esse período foi penoso para mim. Imbuí-me da consciência aguda de que a razão, o rigor e a verdade científica estavam arredados das nossas vidas e da nossa sociedade, substituídas por interesses meramente económicos, ou ainda de índole mais obscura. Descri da possibilidade de qualquer avanço de mentalidades, tendo por mentores tais pedagogos de massas. Se não conseguem elucidar a sociedade sobre uma coisa tão simples e descomprometida, que sabedoria, que esclarecimento se pode esperar deles, em questões de importância crucial para a Humanidade?





Crônica: Litoral e Capital

“Todos os homens são filhos da puta”.

Somos filhos da puta mesmo. Alguns de nós mais do que o aceitável, outros menos do que deveríamos.

Mas você tem que nos perdoar. Somos todos crianças. Mesmo o mais cínico, o mais orgulhoso e vaidoso de nós é uma criança. Sei que isso não é desculpa para nossa ignorância, mas é no mínimo um atenuante.

Às vezes, somos animais. Animais cujo maior pecado é a imaginação.

Mostre-nos uma loira, que fantasiaremos com rainhas nórdicas sob peles, num deserto gelado. Mostre-nos uma morena, que imaginaremos seu sangue latino fazendo pulsar seu corpo colado no nosso.

Uma mulher magra, para nós é flexível e móvel. Uma mais cheia, é quente e amorosa.

Hoje vi uma mulher na rua, na calçada oposta. Ela andava na direção oposta à minha. Quando meus olhos encontraram os dela, seu pescoço se deslocou para o lado, assim como o meu, e nosso olhar demorou mais do que os olhares que normalmente compartilhamos com estranhos na rua. Ela era alta, mesmo de longe, e usava um vestido roxo justo, que ressaltava bem seus seios. Tinha cabelos pretos, e sua pele era morena. Ela sorriu quando nos olhamos e eu sorri também.

E foi só.

Para ela, não deve ter sido nada. Apenas mais um homem lhe olhando na rua, nada fora do normal. Mas em mim, como seria em todos os homens, esse breve encontro gerou inúmeros pensamentos.

Nessa hora, eu estava com um amigo, e após ver a mulher, não ouvi mais nenhuma palavra dita por ele durante alguns minutos.

O modo como ela me olhara...

Nenhuma mulher sabe realmente o efeito de seu olhar sobre um homem. Muitas acham que sabem, mas se enganam.

A morena me afetara de tal maneira que eu não pude deixar de imaginar aquele vestido roxo jogado no chão, e seu corpo deitado sobre o meu, comigo lhe explorando com meus dedos e minha boca, como se eu pudesse penetrar no mais profundo de seus segredos, e como todos os seus desejos se abrissem para mim, apenas com meus toques.

O que me despertou para a vida foi o tropeço que dei num buraco na rua. Quase caí de cara no chão.

Não sei o que a mulher sentiu depois de nosso pequeno momento urbano. Provavelmente bem menos do que eu. Mas, com minha imaginação de homem, eu posso me dar o prazer de imaginar que ela também teve alguma ligeira visão, ou pelo menos uma sensação diferente, algo que não sentiria normalmente no dia a dia.

Porque, no fim das contas, o mínimo que nós homens desejamos é sermos lembrados como algo fora do comum, como alguma perturbação da rotina da mulher.

Não queremos simplesmente dominar as mulheres. Queremos dominá-las, e ser dominados também. Queremos a ligação quase religiosa que apenas o amor físico pode proporcionar, mas que só existe com a presença de mesmo a mínima afinidade intelectual. É contra intuitivo um homem falar isso. Ora, seria contra intuitivo mesmo se eu fosse uma mulher, do jeito que as coisas andam hoje em dia.

Mas é a verdade.

Claro que o oposto também é verdade: É difícil existir o amor romântico sem a atração física.

Toda a mecânica do amor então se torna algo muito complicado, quase como aquele desenho de Escher, com as mãos desenhando umas as outras. A grande pergunta não deveria ser “quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha”, e sim “O que nasce primeiro? A luxúria ou a poesia?”.

De cara, parece fácil responder “luxúria”, mas não acho que seja assim tão simples.

Para falar a verdade, essa questão é a única que realmente não é simples nessa roda de relações.

Conheci uma garota, quando ainda era bem novo. Raquel era seu nome, e me apaixonei por ela, numa época em que meu corpo ainda nem sabia o que era excitação. Chame de amor infantil, ou do que quiser. A verdade é que eu a amava, e com ela descobri como era bom beijar uma garota, e me apertar em direção a ela, sem saber direito o que estava fazendo, apenas seguindo algum código secreto escrito em meu DNA. Tínhamos seis anos nessa época, e não a vejo desde então.

Quer dizer, nesse caso veio o amor antes da luxúria. Porém, se o contrário fosse impossível, não existiriam prostíbulos, pois os homens não conseguiriam apenas “foder” uma puta, eles teriam que “fazer amor” com elas, e teoricamente falhariam.

No fim do dia, tanto nós homens, quanto vocês mulheres, desejamos apenas alguém para nos agarrarmos quando estivermos com medo, e com quem comemorarmos quando estivermos felizes. Alguém que satisfaça nossas vontades, e que tenha as suas satisfeitas por nós.

Nem todo mundo encontra essa pessoa. Alguns acham que encontram, mas quando se viram para o lado e encontram apenas a carne fria, ou quando tremem e não há abraços que lhe aqueçam, percebem seu erro.

Outros...

Bem, outros têm certeza que encontraram, mas não são encontrados.

“O que nasce primeiro, a luxúria ou a poesia?”.

Para mim?

Só o fato da pergunta existir, já é um sinal que não existe uma resposta única.

E eu não sei. Às vezes é por isso que nos lançamos cada vez mais forte na vida, procurando a carne quente e os abraços acolhedores em estranhos certos e conhecidos errados. Tão forte que não paramos quando encontramos o certo.

E muitas vezes, quando passamos batidos, não temos mais como voltar.





Dialética do jeitinho brasileiro

O "jeitinho" faz parte da cultura brasileira, está imbuído na psiqué do brasileiro.

Às vezes, o jeitinho trata-se duma maneira criativa para resolver problemas insolúveis - e problemas insolúveis é o que não falta no Brasil. O jeitinho pode ser utilizado, por exemplo, para ganhar dinheiro de maneira lícita, mas informal. Vender um espetinho na praia, comprar barato e vender caro, vender almoço pra comprar janta, usar da lábia para conseguir o que se quer, ter um QI para conseguir um emprego.
Todos sonham com a formalidade, mas formalidade e Brasil não combinam - conseqüência dum Estado burocrático e corrupto.

Mas o jeitinho também pode se manifestar ilícita, sem deixar, no entanto, de ser criativa: trazer muambas do Paraguai, distribuir DVDs piratas de filmes que ainda estão em cartaz no cinema, molhar a mão dum policial pra escapar duma multa, cortar madeira sem licença de áreas de preservação, desviar verba pública, sonegar impostos, vender gato por lebre... A lista é enorme, os modos ilícitos de jeitinho são muito mais variados do que os lícitos.

Os noticiários apresentam-nos todos os dias uma série de expressões do jeitinho. Lembro-me quando foi implementada a lei proibindo a ingestão de qualquer quantidade de álcool por motoristas - a famigerada Lei Seca. O jeitinho entrou em ação, tentando conceber maneiras para enganar o bafômetro: balas-de-menta, chiclete, beber vinagre, e outros absurdos. Neste caso, o jeitinho não funcionou e muita gente rodou nas blitz.
Dias atrás mesmo, o jeitinho brasileiro voltou a ser notícia. Voluntários ajudando os desalojados das enchentes em Santa Catarina estavam aproveitando aqueles montes e mais montes de roupas e alimentos para economizar um dinheirinho. Afinal de contas, era tanta coisa que ninguém iria perceber se um tênis, um sutiã, uma calça jean, ou um quilo de feijão desaparecessem. "O que os olhos não vêem, o coração não sente", diz o ditado, e este é também um dos motes do jeitinho: tudo vale, enquanto você não for pego.

Os jeitinho brasileiro extrapola os limites geográficos, onde há um brasileiro, o jeitinho o persegue. Nos EUA, por exemplo, há muito brasileiro trabalhando duro e honestamente, mas os que dão um jeitinho pra tudo são sempre mais interessantes para a mídia. Semana passada, foi presa uma quadrilha de brasileiros que fabricava notas falsas de cem dólares. Peixe grande!
Mas os peixes pequenos, que compram documentos falsos, que enviam grana preta através de doleiros, que vendem drogas na noitada, que fazem de tudo por uma renda extra continuam por aí. "O que os olhos não vêem, o coração não sente", diz o ditado, e isto vale para um país onde tudo é permitido, ou para aquele com lei rigorosa.

O jeitinho também não respeita classe social. Aliás, o nível sócio-econônimo só determina um fator: o tamanho do jeitinho.
Pobre rouba miúdos, como gatos pra pegar TV a cabo ou pra ter acesso a internet; rico rouba bocados, rombos milionários aos cofres públicos.

Muitos povos são conhecidos por suas características: a pontualidade britânica, a ambição norte-americana, o rigor dos alemães, a inteligência dos judeus, a capacidade de concentração dos japoneses. Talvez esteja na hora de reconhecermos a nossa característica nacional: o jeitinho do brasileiro.

Assim como estão tentando revitalizar a imagem do malandro, daquele boêmio carioca das rodas de samba e da capoeira - o "bom malandro" - , talvez esteja na hora de revitalizarmos também o jeitinho e talvez até redefinirmos sua concepção e encontrarmos algo de bom, o "bom jeitinho", quando toda esta capacidade criativa dos brasileiros para superar adversidades é utilizada pra algo que preste, e não apenas para prejudicar os outros.

Portanto, diga sim ao "bom jeitinho" (e torça para que, um dia, as notícias nos jornais sejam de jeitinhos a favor das outras pessoas)!





quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

autobiografia

Enrique Gutiérrez Miranda, poeta aficcionado e tradutor compulsivo.

 

Tradução:  Volmar Camargo Junior

 

 

 

Nasci em Bueu, Ria de Pontevedra, Galicia, às 23:45 de 15 de julio de 1957, dia de São Enrique. Cresci em A Pobra do Caramiñal, onde vivi de 1960 a 1975. Estudei em diversos colégios de A Pobra, Santa Uxía de Ribiera e Ourense sem muito proveito.

 

Minha família mudou-se para Madrid em setembro de 1975, um par de meses antes da morte do general Franco.

 

Em janeiro de 1976, deslumbrado pelas luzes da cidade – e com o correspondente desgosto de meus pais – abandonei os estudos, ou eles me abandonaram, e dediquei-me a desenhar e escrever num fanzine underground. A cidade fervia e chegou a famosa “Movida madrileña¹”. O underground entrou para a história. Para mim chegou a idade de cumprir com os deveres pátrios e fui dar tiros nas pedras e apagar incêndios florestais em Valencia, na serra de Maestrazgo.

 

Quando retornei a Madrid algo havia mudado na cidade e também em mim. Estive um ano sem desenhar nem escrever.

 

Trabalhei algum tempo como desenhista no estúdio de uns amigos arquitetos. Comecei a desenhar e a escrever em uns caderninhos quadriculados de espiral, apenas para mim.

 

Os amigos dispersaram e fui viver na Serra Norte de Madrid durante cinco anos, na proporção de uma vila  e uma casa diferente por ano. Tive um bar e um restaurante, no qual eu mesmo era o cozinheiro. Na época, desenhei, escrevi e li pouco.

 

 

Voltei para A Pobra do Caramiñal, onde vivi em uma aldeia de seis casas, Gonderande, rodeada de horta e milharais durante um ano e três meses. Vendi balas e guloseimas pelos povoados da região em uma van acompanhado de um amigo.

 

Em janeiro de 1995 cheguei a Barcelona. Trabalhei dois meses na cozinha de um hospital e depois num restaurante, mas uma tarde joguei o avental no chão e fui embora sem exigir meu pagamento. Encontrei emprego em uma tenda de jogos e apostas federal, onde ainda trabalho.

 

Certo dia comprei um PDA, para organizar meus livros e minha coleção de postais eróticos. Tive a idéia de ir transferindo para o PDA os poemas dos caderninhos quadriculados. Porém esse trabalho se converteu em um processo de reelaboração e recriação de tudo o que havia sido escrito entre 1987 e 2005.

 

Organizei tudo e reuni em um livro ao qual chamei Fragmentos de un fractal. Metros e rimas clássicas ou quase, incluindo algum soneto, temas variados, em espanhol além de algum poema em galego acompanhado de minha própria tradução. Não o enviei a nenhuma editora. Não publicado. Imprimi duas ou três cópias para alguns amigos.

 

Encontrava-me sem saber como continar escrevendo. Escrevi alguns poemas soltos. Ocorreu-me de voltar aos caderninhos quadriculados. A partir do primeiro caderno escrevi Árboles aves algas. 39 séries de 80-90 versos octossílabos ou tetrassílabos, com e sem rima; cada série correspondente a uma página do caderno. Um pouco surrealista e críptico. Não publicado.

 

O segundo rendeu-me Hojas de hiedra. 40 séries. Mais elaborado, metros variados, com e sem rima. Com um apêndice de vocabulário (palavras que invento e outras raras) e outro de referências, citações de poemas e canções de pop ou rock, com o original e minha tradução. Não publicado.

 

Agora estou com o terceiro caderno. Ao conjunto total dos livros-caderno chamo Laberintos y espirales. ]

 

Tentei fazer uma página na web para publicar minhas coisas, mas era demasiado difícil para mim. Optei pelos blogs. Depois de vários tentativas e blogs eliminados acabei ficando com três: Um para poemas de Fragmentos de un fractal, ilustrado com imagens que baixo da rede. Outro, recém-começado, para Hojas de hiedra, que estou escrevendo agora, e talvez algo de Árboles aves algas, com fotografias minhas de grafittis das ruas de Barcelona. E outro para minhas traduções de galego, português, catalão, inglês, francês e talvez também italiano.

 

 

 

  Olhai, crede

  hoje em dia

  a poesia

  está na Rede.

 

 

 

 

 

 

Blogs de Enrique Gutiérrez Miranda

 

Poemas y fragmentos: http://enriquegutierrezmiranda.blogspot.com/

 

Laberintos y espirales: http://labesp.blogspot.com/

 

Perversión Poética: http://pervpoet.blogspot.com/

 

 

 

Referências (links)

 

¹ Movida Madrilena: http://es.wikipedia.org/wiki/Movida_madrileña





La esencia de las horas



de Volmar Camargo Junior

Versión: Xoan Cullereiro (Enrique Gutiérrez Miranda)




Del carozo de una hora
extraje la substancia vítrea,
oleosa;
breve cual la voluntad,
etérea cual la sensatez.

En ningún recipiente
pude contenerla contenta.
Se escapaba siempre un tanto,
a veces mucho;
casi siempre duplicaba su tamaño,
y así, poco a poco
las gotas,
las partículas
rellenaron el espacio
que tan bien conozco.

Era seductora, envolvente;
la bruma que de ella nacía,
—pues bruma era—
era un vapor invisible
que hizo desaparecer las paredes,
el paisaje de la ventana,
los hábitos convenientes
y mis pies.

Así, día a día,
si aún recordaba lo que eran
acabé por no verlos.

Me dejé, entregado,
a la esencia del carozo de las horas.
Inhalé, comí, bebí,
me desnudé;
y así, desnudo,
me cubrí entero con ella.

No era dolor,
era más bien un frío
de las puntas del cabello a la boca del estómago.
Me enredó.
Dentro y fuera de mí vivía aquello;
imposible contenerlo.
E incluso cuando de lo hondo de la garganta
nació el último murmullo
la cosa cristalizó,
se hizo hielo,
roca,
diamante,
vidrio.

Era el vidrio en mí,
el vidrio de las horas
—el vidrio de las raíces del tiempo,
de todo el vítreo árbol que es el tiempo,
de su vítrea
sangre de lo que no se ve—.
Era el vidrio en mí.

Ya no en la horas,
ya no rellenando los vacíos
entre las partículas del polvo
del tejido de las estrellas.
Era el vidrio en mí.
Dejó de ser esencia
primordial, o quintaesencial.
Era en mí.
Era yo.

Y,
como es propio de las cosas
nacidas o sacadas
del árbol que da los frutos del tiempo,
el vidrio que me tenía cristalizado
desapareció.

Volvieron las ropas,
las paredes, las ventanas,
el paisaje,
los zapatos.

De la esencia de las horas
quedo sólo
una gota.
Se escurrió por mi cabeza hasta la punta de la nariz;
intempestiva,
decidida,
libre,
se lanzó al espacio
con un chapoteo que sólo yo percibí
hasta el choque final contra el suelo.

Salí.
Cerré las ventanas, atranqué las puertas.
Seguí como pude
vivo como consigo.

Permanece aún allá, intocado,
el suelo donde cayó la última gota
de la substancia vítrea,
oleosa,
extraída del carozo de una hora.

Tenía la esperanza de que
donde había caído la gota
pudiera brotar otro árbol
con un tiempo diferente,
quién sabe si mezclado
con un poco del polvo,
de ese polvo que yo soy.




 





A História do Inválido

Mark Twain
trad.: Henry Alfred Bugalho

Aparento ter sessenta anos e ser casado, mas estes efeitos devem-se à minha condição e sofrimentos, pois sou solteiro, e tenho apenas quarenta e um anos. Será difícil para você acreditar que eu, que agora não passo duma sombra, era, há pouco menos de dois anos, um homem saudável e vigoroso, um homem de ferro, um verdadeiro atleta! — mesmo assim, esta é a verdade nua e crua. Mas o mais estranho ainda é o modo como perdi minha saúde. Eu a perdi tentando ajudar a tomar conta duma caixa de armas numa viagem ferroviária de duzentas milhas, numa noite de inverno. Esta é a verdade de fato, e eu a contarei pra você.
Sou de Cleveland, Ohio. Numa noite de inverno, dois anos atrás, cheguei em casa logo após anoitecer, em meio a uma violenta nevasca, e a primeira coisa que ouvi quando entrei em casa foi que meu mais caro amigo de infância e colega de escola, John B. Hackett, havia morrido no dia anterior, e que seu último pedido havia sido o desejo que eu levasse seus restos mortais até seu pobre velho pai e mãe em Wisconsin. Eu estava muito estupefato e mortificado, mas não havia tempo a perder com emoções; eu deveria partir imediatamente. Apanhei o cartão, onde estava escrito "Diácono Levi Hackett, Bethlehem, Wisconsin", e me apressei através da uivante nevasca até a estação de trem. Ao chegar lá, encontrei a comprida caixa de pinho branco tal qual me havia sido descrita; preguei o cartão nela com algumas tachinhas, vi-a sendo posta com segurança a bordo no carro expresso e, então, corri para o refeitório para me prover com um sanduíche e alguns charutos. Quando voltei, algum tempo depois, ali fora estava o meu esquife, aparentemente, e um jovenzinho examinando-o, com um cartão em suas mãos, algumas tachinhas e um martelo! Eu estava embasbacado e confuso. Ele começou a pregar seu cartão, então apressei-me para o carro expresso, num estado de mente alterado, para exigir uma explicação. Mas que nada — ali estava minha caixa, tudo em ordem, no carro expresso; ela não havia sido mexida. (O fato é que, sem eu suspeitar, um equívoco prodigioso havia sido feito. Eu estava carregando uma caixa de armas que o rapazinho havia trazido à estação para remetê-la a uma empresa de rifles em Peoria, Illinois, e ele havia ficado com meu cadáver!). Foi então que o condutor berrou "todos a bordo" e eu pulei para dentro do carro expresso e arranjei um assento confortável num amontoado de baldes. O carregador estava ali, forte na lida — um homem comum, na casa dos cinqüenta anos, com uma expressão simples, honesta e bondosa, e de modos leves e com um vigor prático. Assim que o trem se moveu, um estranho saltou para dentro do vagão e deixou um pacote do peculiar queijo Limburger, maturado e com qualidade, num dos cantos do meu esquife — quer dizer, da minha caixa de armas. Ou melhor, agora eu sei que era um queijo Limburger, mas àquela época, eu nunca havia visto o artigo na vida e era, é claro, totalmente ignorante quanto suas características. Bem, avançamos através da noite selvagem, a ferina nevasca continuava enfurecida, bateu-me uma nefasta melancolia, meu peito se apertou, se apertou, se apertou! O velho carregador teceu um ou dois súbitos comentários sobre a nevasca e o clima ártico, bateu com força as portas corrediças, aferrolhou-as, cerrou sua janela e, andou dum lado pro outro, aqui, ali e acolá, ajeitou as coisas, toda a hora cantarolando contente “Sweet By and By”, em baixo tom, murmurando. Depois dum tempo, eu comecei a notar um odor quase maligno e penetrante rompendo o ar gélido. Isto deprimiu meu espírito ainda mais, porque eu o atribui, é claro, a meu pobre finado amigo. Havia algo infinitamente entristecedor em pensar que eu me lembraria dele deste estúpido modo patético, de tal maneira que foi difícil para conter as lágrimas. Além disto, eu me inquietava por conta do velho carregador, temia que ele pudesse perceber o cheiro. Contudo, ele prosseguiu cantarolando tranqüilamente, e não deu nenhum indício; pelo que fiquei agradecido. Agradecido, sim, mas ainda assim desconfortável; e logo comecei a me sentir mais e mais desconfortável, pois a cada minuto que se passava o odor se adensava, e se tornou mais e mais repugnante e difícil de suportar. Após um tempo, tendo ajeitado as coisas a seu contento, o carregador apanhou um pouco de lenha e fez um fogo tremendo em sua fornalha.
Isto me inquietou mais do que posso descrever, pois não pude evitar de sentir que isto era um erro. Eu estava certo de que o efeito seria deletério sobre meu pobre finado amigo. Thompson — o nome do carregador era Thompson, como descobri no decorrer da noite — agora vagava por seu vagão, fechando quaisquer eventuais fendas que ele pudesse encontrar, lembrando que não fazia diferença que tipo de noite estava lá fora, ele pensava estar nos deixando confortáveis, de qualquer maneira. Eu não disse nada, mas acreditava que ele não estava fazendo uma boa escolha. Enquanto isto, ele cantarolava para si como antes; e enquanto isto, também, a fornalha estava ficando mais e mais quente, e o ambiente mais e mais sufocante. Eu comecei a empalidecer e a nausear, mas sofria em silêncio e não disse nada.
Logo notei que o “Sweet By and By" gradualmente se esmoreceu; em seguida, cessou totalmente e que havia uma imobilidade ominosa. Após alguns momentos, Thomson disse:
“Puxa! Eu acho que não foi canela que joguei ali na fornalha!
Ele se engasgou uma ou duas vezes, então se moveu em direção ao esqu— a caixa de armas, estacou diante da parte do queijo Limburger por um momento, então ele voltou e se sentou perto de mim, aparentando estar bastante impressionado. Após uma pausa contemplativa, ele disse, indicando com um gesto a caixa:
— Amigo d’ocê?
— Sim — eu disse, com um suspiro.
— ‘Tá já bem avançado, né!
Nada além disto foi dito por talvez um par de minutos, cada um ocupado com seus próprios pensamentos; então Thompson disse, numa voz baixa e reverente:
— Às vezes, não se tem certeza se eles realmente partiram ou não — parecem ter partido, você sabe — a quentura do corpo, juntas moles — e assim por diante, e mesmo que você ache que eles se foram, você não tem certeza. Eu tive casos em meu vagão. É completamente horrível, porque você não sabe se a qualquer minuto eles não vão se levantar e olhar pra você!
Então, após uma pausa, e erguendo um pouco seu cotovelo em direção à caixa:
— Mas ele não 'tá em nenhum transe! Não, senhor, ponho minha mão no fogo!
Nós nos sentamos por algum tempo, em silêncio meditativo, ouvindo o vento e o ronco do trem; então Thompson disse, com uma boa dose de sentimento:
— Bem, bem, todos nós temos que ir, não tem como fugir disto. O homem que nasceu de mulher tem os dias contados, como dizem as Escrituras. Sim, você pode olhar pra isto do jeito que quiser, é tremendamente solene e curioso: Não tem ninguém que vai escapar; todos vão embora — todo mundo, como se diz. Um dia, você está vigoroso e forte — neste ponto, ele se pôs de pé e quebrou uma janela e esticou o nariz para fora dela por um segundo ou dois, então se sentou de novo, enquanto eu me esforcei para lançar meu nariz para o mesmo lugar, e continuamos fazendo isto vez ou outra — e no dia seguinte, ele foi ceifado como a grama, e os lugares que o conheciam não o conhecem mais, como dizem as Escrituras. É verdade, é tremendamente solene e curioso; mas todos temos de ir, um dia ou outro; não tem como fugir.
Houve outra grande pausa; então:
— Do que ele morreu?
Eu disse que não sabia.
— Há quanto tempo ele morreu?
Pareceu-me sensato aumentar os fatos para encaixá-los nas probabilidades; então, eu disse:
— Dois ou três dias.
Mas isto não surtiu efeito, pois Thompson recebeu-o com um olhar ultrajado e, sem rodeios, disse:
— Dois ou três anos, que você quer dizer.
Então ele prosseguiu, placidamente ignorando meu comentário, e deu vazão a suas opiniões sobre a insensatez em retardar demais sepultamentos. Ele se aproximou languidamente da caixa, parou por um momento, então retornou com um abrupto trote e pagou uma visita à janela quebrada, comentando:
— Teria sido uma baita duma visão melhor, em todos os aspectos, se tivessem despachado ele no verão passado.
Thompson se sentou e escondeu o rosto em seu lenço de seda vermelha, e começou a balançar lentamente o corpo pra frente e pra trás como se estivesse se esforçando o máximo para agüentar o insuportável. A estas horas, a fragrância — se é que se pode chamar aquilo de fragrância — estava sufocante, ou o mais perto que se pode chegar disto. A face de Thomspon estava ficando cinza; eu sabia que não restava cor alguma na minha. Depois, Thompson descansou a fronte em sua mão esquerda, com o cotovelo sobre o joelho, e meio que abanava seu lenço vermelho em direção a caixa com a outra mão, e disse:
— Já carreguei muitos destes — alguns já bastante passados também —, mas, Deus do Céu, este deixa todos os outros no chinelo! — E de longe, capitão, os outros eram como girassóis comparados a ELE!
Este reconhecimento de meu amigo me gratificou, a despeito das tristes circunstâncias, porque isto havia me parecido mais como um elogio.
Era óbvio que algo precisava ser feito logo. Eu sugeri charutos. Thompson pensou que esta era uma boa idéia. Ele disse:
— Provavelmente isto vai amenizar um pouco.
Nós tragamos com expectativa por algum tempo, e tentamos pra valer imaginar que as coisas haviam melhorado. Mas foi inútil. Após muito tempo, e sem qualquer combinação, ambos os charutos silenciosamente caíram de nossos dedos inertes, simultaneamente. Thompson disse, suspirando:
— Não, capitão, isto não amenizou nem um tostão. O fato é que deixou pior, porque parece que atiçou seu poder. O que você acha que é a melhor a gente fazer agora?
Eu não estava apto a sugerir algo; na verdade, eu estava engolido a seco, todo o tempo, e não queria me arriscar a falar. Thompson desatou a resmungar, de maneira errática e mal-humorada, sobre as experiências desagradáveis desta noite; e ele se referia a meu pobre amigo através de vários títulos — alguns militares, outros civis —; e eu notei que com a mesma rapidez que a eficácia do meu pobre amigo crescia, Thompson o promovia de acordo, dando-lhe um título mais elevado. Por fim, ele disse:
— Tive uma idéia. E se a gente fizer um esforço e dar um empurrãozinho no coronel até para o fim do vagão?— uns cinco metros, talvez. Ele não teria tanta influência, então, não acha?
Eu disse que este era um bom plano. Então nós tomamos um belo fôlego de ar fresco na janela quebrada, calculando segurá-lo até perfazermos a tarefa; então fomos até lá, inclinamo-nos sobre aquele queijo mortífero e agarramos a caixa. Thompson indicou com a cabeça “tudo pronto", e nós nos projetamos, com toda nossa força; mas Thompson escorregou e tombou com o nariz no queijo e perdeu o fôlego. Ele tapou a boa e se engasgou, cambaleou e abriu uma fresta na porta, suplicando por ar e disse, arquejando:
— Não me segura! Me dá espaço! Estou morrendo; me dá espaço!
Sentei-me fora, na plataforma fria, e segurei a cabeça dele por um tempo, enquanto ele retornava à consciência. Depois, ele disse:
— Você acha que a gente mexeu o general pra lá?
Não, eu disse, não conseguimos movê-lo.
— Bem, então aquela idéia está fora de cogitação. A gente tem de pensar em outra coisa. Ele está bem onde ele está, eu acho; e se este é o jeito que ele se sente sobre isto, e ele decidiu que não quer ser perturbado, você pode apostar que vai ser do jeito que ele quer. Sim, melhor deixar ele exatamente onde ele está, o tempo que ele quiser ficar; porque ele está com o jogo ganho, sabe, assim, pela lógica, o homem que tentar alterar seus planos sairá perdendo.
Mas nós não poderíamos ficar expostos àquela insana nevasca, pois morreríamos congelados. Então retornamos para dentro e fechamos a porta, e voltamos a sofrer e a nos revesarmos na janela quebrada. Depois dum tempo, enquanto partíamos duma estação onde havíamos parado por uns instantes, Thompson saltou pra dentro, alegre, e exclamou:
— A gente vai ficar bem agora! Acho que apanhamos o comodoro desta vez. Creio que eu consegui a coisa que vai tirar o fedor dele.
Era ácido carbólico. Ele tinha um frasco disto. Ele o borrifou por todo os cantos; na verdade, ele encharcou tudo com isto, a caixa de rifles, o queijo e todo o resto. Então, nós nos sentamos, sentindo-nos bastante esperançosos. Mas não durou muito. Os dois odores começaram a ser misturar e, então, bem, logo tivemos que abrir a porta; e lá fora Thompson limpava seu rosto com o lenço e disse num tom devastado:
— Não tem jeito. Não podemos vencê-lo. Ele simplesmente usa tudo que a gente põe pra amenizar, e põe seu próprio odor e joga de volta na gente. Por que, capitão, não percebe, está cem vezes pior do que quando começou. Eu nunca vi um deles se empolgar tanto em seu trabalho assim, e ter tanto interesse nele. Não, senhor, nunca vi, em todo estes tempos de estrada; e já carreguei muitos deles, como disse pr’ôce.
Voltamos para dentro quando já estávamos duros de frio, mas, misericórdia, não conseguíamos ficar lá dentro. Então, simplesmente passamos a valsear de dentro pra fora, de fora pra dentro, congelando, descongelando, e sufocando, em revezamentos. Em torno de uma hora depois, paramos em outra estação, e, assim que partimos, Thompson veio com uma sacola e disse:
— Capitão, vou arriscar a sorte uma vez mais, apenas esta vez; se a gente não pegar ele agora, a coisa que vai restar pra gente fazer vai ser jogar a toalha e deixar a lona. É isto que proponho.
Ele havia trazido um punhado de penas de galinha, maçãs secas, folhas de tabaco, tapetes, sapatos velhos, enxofre, assafétida, e uma ou outra coisa; e ele empilhou tudo numa lâmina de ferro no meio do chão e tocou fogo.
Quando o fogo já estava bem avançado, eu não consegui imaginar como até mesmo o cadáver conseguiria suportar o cheiro. Tudo havia vindo antes era apenas poesia em comparação àquele cheiro, mas acredite você, o cheiro original continuava tão sublime quanto antes; a verdade é que os outros cheiros pareciam fortalecê-lo; e, meu Deus, quão forte ele era! Eu não fiz estas considerações lá, pois não havia tempo, fi-las na plataforma. E rompendo para a plataforma, Thompson sufocou e caiu; e antes que eu pudesse arrastá-lo, pelo colarinho, eu mesmo quase havia desmaiado. Quando recobramos a consciência, Thompson disse, deprimido:
— Temos de ficar aqui fora, chefia. Temos de ficar. Não tem outro jeito. O governador quer viajar sozinho, e ele está decidido que pode nos vencer.
E depois ele acrescentou:
— E você não sabe, a gente está envenenado. Esta é nossa última viagem, você pode estar certo disto. Por causa disto, a gente vai ter febre tifóide. Já estou sentindo ela vindo, neste exato momento. Sim, senhor, fomos escolhidos, tão certo como o fato de você ter nascido.
Fomos recolhidos da plataforma uma hora depois, congelados e sem sensibilidade, na próxima estação, e sucumbi a uma febre virulenta, e fiquei fora de combate por três semanas. Descobri, então, que eu passei uma noite terrível com uma inofensiva caixa de rifles e um inocente bocado de queijo; mas as novidades vieram tarde demais para me salvar; a imaginação havia feito seu trabalho e minha saúde estava permanentemente abalada; nem Bermuda, nem qualquer outra terra poderia restaurá-la. Esta será minha última viagem; estou a caminho de casa para morrer.

Biografia
Mark Twain é o pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), primeiro grande escritor do oeste dos Estados Unidos que exerceu grande influência sobre todos os escritores que se esforçaram por "descobrir a América" através de suas paisagens, das peculiaridades de seu povo e de seu folclore.

Clemens passou a infância às margens do rio Mississipi. Perdeu o pai aos 12 anos quando começou a trabalhar para ajudar nas despesas de casa. Foi entregador, escriturário e ajudante. Aos 13 anos tornou-se aprendiz de tipografia, e depois, trabalhando como impressor, viajou por diversos estados. Aprendeu navegação no rio Mississipi tornando-se piloto fluvial. Nessa época começou a escrever textos de humor e adotou o pseudônimo de Mark Twain, termo usado pelos barqueiros, que significa "duas marcas" na verificação da profundidade dos rios.

Depois participou da Guerra Civil, como confederado. Após o conflito, foi para o Oeste (Nevada) onde viveu com seu irmão. Passou a escrever para o jornal da cidade de Virginia. Foi jornalista e conquistou o público com o conto "A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras", publicado em 1865. Dois anos depois, Twain visitou a França, a Itália e a Palestina, recolhendo material para o seu livro "The Innocents Abroad" (1869), que estabeleceu a sua reputação de humorista. Twain se casou com Olívia Langdon em 1870 e se fixou em Hartford, Connecticut.

Dois anos mais tarde publicou "Roughing It", e em 1873 "The Gilded Age". Em 1876 saiu a primeira das suas grandes obras, "As aventuras de Tom Sawyer", romance baseado nas experiências da adolescência do autor no rio Mississipi. No livro seguinte, "A Tramp Abroad" (1880) o autor visitou a Europa, regressando com "Vida no Mississipi"(1883). A obra-prima da carreira literária de Twain, "As aventuras de Huckleberry Finn", foi publicada em 1884.

O livro, que parecia só uma obra para jovens, constituía na realidade uma fábula da América que se urbanizava e industrializava enfrentando o sonho de uma vida na liberdade da natureza. "Huck" representava muitas das aspirações da sociedade americana, com as quais o público facilmente se identificou. O romance estabeleceu definitivamente Twain como um dos grandes humoristas da literatura mundial. Outras obras do autor: "O Príncipe e o Mendigo", "Um ianque na corte do rei Artur" (1889), "A tragédia de Pudd'nhead Wilson"(1894) e "Joana D`Arc (1896).

A década de 1890 foi marcada por dificuldades financeiras e nos últimos anos a caricatura burlesca deu lugar a um pessimismo satírico. A dimensão irônica do mundo e em particular do sonho americano revelaram um retrato americano em toda a sua materialidade.

Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u507.jhtm





As Cinco Dádivas da Vida, de Mark Twain

Mark Twain
trad.: Henry Alfred Bugalho

Capítulo I
Na alvorada da vida, uma bondosa fada apareceu com sua cesta e disse:
— Aqui há presentes. Pegue um, deixe os outros. E seja cuidadoso, escolha sabiamente; ó, escolha sabiamente! pois apenas um deles tem valor.
Os cinco presentes eram: Fama, Amor, Riquezas, Prazer, Morte. O jovem disse, ávido:
— Não há necessidade de refletir — e escolheu Prazer.
Ele foi para o mundo e buscou os prazeres que deleitam os jovens. Mas cada um deles era fugaz e desapontador, vão e vazio; e cada um, ao partir, zombou dele. No fim, ele disse:
— Desperdicei estes anos. Se eu pudesse escolher novamente, escolheria mais sabiamente.

Capítulo II
A fada apareceu e disse:
— Restam quatro presentes. Escolha uma vez mais; e, ó, lembre-se: o tempo voa, e apenas um deles é precioso.
O homem demorou-se a refletir, então escolheu Amor; e não reparou nas lágrimas que brotaram dos olhos da fada.

Após muitos e muitos anos, o homem estava sentado ao lado dum caixão, numa casa vazia. Então ele soloquiava, dizendo:
— Uma por uma, elas se foram e me deixaram; e agora ela, a mais querida e derradeira, jaz aqui. Desolação após desolação passou por mim; para cada hora de alegria que o Amor, o mercador traiçoeiro, me vendeu, paguei mil horas de pesar. Do fundo do meu coração, eu o amaldiçôo.

Capítulo III
— Escolha novamente — era a fada a falar — os anos lhe deram sabedoria, certamente. Restam três presentes. Apenas um possui valor; lembre-se disto e escolha com cautela.
O homem refletiu por muito tempo, então escolheu Fama; e a fada, suspirando, partiu.
Anos se passaram e ela retornou, postando-se atrás do homem onde ele se sentava solitário, refletindo, diante do crepúsculo. E ela sabia qual era seu pensamento:
“Meu nome percorreu o mundo e todas as línguas o exaltaram, e isto me contentou por um tempo. Mas por quão pouco tempo! Então veio a inveja; depois detração; depois calúnia; depois ódio; depois perseguição. Então ridicularização, que é o começo do fim. E, por fim, veio piedade, que é o funeral da fama. Ó, a amargura e a miséria do renome! Aponta para a lama logo em seu apogeu, para a desgraça e compaixão em seu declínio.

Capítulo IV
— Escolha uma vez mais — era a voz da fada — restam dois presentes. E não se desespere. No começo, havia apenas um que era precioso, e ele ainda está aqui.
— Riqueza; pois é poder! Quão cego fui! — disse o homem — agora, por fim, a vida merecerá ser vivida. Gastarei, desperdiçarei, resplandecerei. Aqueles que zombam de mim e me desprezam rastejarão na imundície diante de mim, e eu alimentarei meu coração faminto com a inveja deles. Obterei todos os requintes, todas as alegrias, todos os encantamentos do espírito, todos os contentamentos do corpo que agradam um homem. Comprarei, comprarei, comprarei! Deferência, respeito, estima, adoração — todas as espúrias graças da vida que o mercado do mundo trivial pode prover. Perdi muito tempo, e, até agora, escolhi mal, mas deixe estar; eu era ignorante e considerei o melhor aquilo que parecia sê-lo.
Três rápidos anos se esvaíram e chegou o dia em que o homem se sentava num sotão imundo; e ele estava esquelético, lívido e com profundas olheiras, vestido em trapos; ele estava ruminando um pão duro e resmungando.
— Malditos todos os presentes do mundo, pois são ardis e mentiras douradas! — e os insultou, a cada um deles — Eles não eram presentes, mas meros empréstimos. Prazer, Amor, Fama, Riquezas: Eles eram disfarces temporários para as realidades duradouras — Dor, Pesar, Vergonha, Pobreza. O que a fada disse era verdade; em todo seu estoque havia apenas um presente que era precioso, apenas um que não era desprezível. Quão pobres, baratos e imundos sei agora que eles são comparados com aquele inestimável, aquele caro, doce e gentil, que encharca num sono sem sonhos e duradouro as dores que perseguem o corpo, e as vergonhas e pesares que consomem a mente e o coração. Traga-o! Estou exausto, descansarei.

Capítulo V
A fada veio, trazendo novamente quatro dos presentes, mas faltava a Morte. Ela disse:
— Eu a dei para a queridinha duma mãe, para uma pequena criança. Era ignorante, mas confiou em mim, pedindo-me que escolhesse por ela. Você não me pediu para escolher.
— Ó, pobre de mim! O que restou para mim?
— Aquilo que nem você merecia: o impiedoso insulto da Velhice.





terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Unha

Depois de algumas horas tendo a insônia por companhia, o homem adormeceu. Sonhou haver penetrado em seu próprio corpo, indo tão distante a ponto de vislumbrar a estrutura de um átomo. Constatou que, a exemplo dos sistemas solares, o núcleo do átomo assemelhava-se a uma estrela cujos elétrons gravitando ao redor desempenhavam o papel de planetas. Bestificado, posou em um dos elétrons e verificou a existência de uma avançada civilização habitando sua superfície.
O homem despertou junto com os primeiros raios solares e iluminar o seu quarto ainda intrigado com o sonho que lhe assaltara à noite. Iniciando sua higiene matinal, decidiu cortar as unhas das mãos. Durante o ato, centelha iluminou sua mente. Caso houvesse uma civilização vivendo em um dos átomos de sua unha, ele a destruiria com um simples manejar do cortador. Mas, uma dúvida pairou em sua mente. E se acaso a Terra estivesse localizada na unha de alguém?
Percebeu que a vida era por demais efêmera. Já passara dos quarenta e pouco havia conquistado. Decidiu que dali por diante, tomaria outras atitudes, viveria, ainda que algumas decisões tivessem um preço demasiado caro a pagar. Afinal, tudo poderia terminar diante de um cortador de unha.





segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Entrevista com o escritor Sacolinha

Ademiro Alves de Sousa, conhecido como Sacolinha, é um dos destaques da literatura brasileira contemporânea. Autor de dois livros: “Graduado em Marginalidade” e “85 letras e um disparo”, participou, ainda, de diversas publicações: revista “Caros Amigos”, antologia “No limite da palavra” da editora Scortecci, antologias “Cadernos Negros”, entre outras. Ganhador de alguns prêmios literários, é também o fundador da Associação Cultural Literatura no Brasil e é responsável pela Coordenadoria Literária da Secretaria de Cultura do município de Suzano, em São Paulo. Com muita prestatividade, o escritor nos concedeu esta entrevista.





SAMIZDAT: O fato de você ser um autor que surgiu na periferia foi um obstáculo ou um chamariz para sua carreira?

Sacolinha: Nem um e nem outro. O autor pode surgir de qualquer lugar, mas se ele não tiver uma boa escrita, persistência e articulação, ele não chega e nem se mantém em lugar nenhum. As editoras não estão nem aí de onde vem o escritor, elas querem saber se ele é conhecido e se o livro é vendável. Vejam o caso da Bruna Surfistinha e alguns Big Brohter’s. Lançaram seus livros que venderam horrores, mas depois do segundo título eles deram com os burros n’água, e não conseguiram se manter.
Talvez o fator geográfico tenha contribuído um pouco para minha carreira, já que ser morador da periferia hoje em dia é estar na moda, todo mundo quer ser, graças aos seriados, às novelas e filmes.

Qual é a importância da consciência política e social na sua escrita? A Literatura e a cultura em geral devem assumir este compromisso? Escrever é fazer diferença?

Sacolinha: Literatura abrange muita coisa, entre elas a geografia, filosofia, história e a ciência. Um livro como Grande Sertão: Veredas do Guimarães Rosa tem tudo isso e muito mais. Olhem o escritor português José Saramago, se ele não tivesse consciência política e social, seus livros não seriam conhecidos no mundo inteiro. Eu sempre achei que escritor tem que saber de tudo um pouco, inclusive ser engajado em algum movimento social como o Saramago por exemplo. Não dá pra ficar encerrado num gabinete e inventando histórias ou esperar a noite chegar para ver a lua e ter inspiração.
A literatura só não pode ser engajada demais, porque aí vira documentário, e o papel da literatura não é esse.

Em alguns textos seus ou a seu respeito – há uma entrevista genial que você deu a um jornalzinho estudantil! – você usa os termos “revolta” e “vingança”, em relação à sua literatura. Há alguns anos, não muitos, dizer abertamente, ou veladamente, traduzindo isso em metáforas, era motivo para os artistas “desaparecerem”, levarem porrada ou, na melhor das hipóteses, serem exilados do Brasil. Como você sente a liberdade de poder “se revoltar” e “se vingar” através da literatura?

Sacolinha: No meu caso essa revolta e essa vingança refere-se mais ao meu interior do que exterior. Quero me vingar dos atos e fatos do cotidiano, quero trancafiar ou acabar com meus demônios, me vingar dos pensamentos e desejos ruins. Tenho a literatura como uma válvula de escape, eu escrevo não por hobby ou status, mas porque preciso me extravasar.

A pergunta pode parecer capciosa, mas não é: se você fosse político e estivesse no poder (não como funcionário, mas tendo sido eleito), pelo que você lutaria?

Sacolinha: Por políticas públicas para a cultura para todos aqueles artistas formados pela vida. Quero dizer que têm muitos artistas (popular, clássico e erudito) que não sentaram na cadeira da universidade e desenvolvem um puta trabalho, seja na capoeira, no maracatu, no teatro, na música, no cinema, literatura e nas artes plásticas.
Agora tem um monte de acadêmicos por aí metidos a artistas e sequer pisou no barro, sequer fez um trabalho fora do seu ambiente. Muitos até já têm seu padrinho desde pequeno e hoje fazem eventos com a nossa grana (Petrobras, Lei Rouanet, etc.) e ainda cobram ingresso.
Lutaria por essa inversão, contribuindo para que os artistas menos favorecidos tivessem acesso às leis de incentivo à cultura. E com isso eu estaria lutando pelo direito à vida, porque acredito que o cidadão que tem acesso à cultura ou desenvolve alguma arte, ele enxerga melhor, não morre de fome, tem saúde e sabe resolver situações problemas.

Há um site que diz que seu romance “Graduado em Marginalidade” tem trezentas e onze personagens. Isso é exagero de notícia ou é fato? Você acha possível dar ao leitor tantas verdadeiras e identificáveis personagens, num romance com menos de duzentas páginas?

Sacolinha: É verdade, tem sim. Mas não pensem que todas elas são protagonistas em primeiro plano. Não sou marxista, mas gosto de dar voz aos que não tem voz. Se vocês forem ler o “85 Letras e um Disparo” verão que a maioria dos contos tem personagens inferiorizados pela sociedade que são muito mais do que ela imagina; é uma prostituta que lê Allan Poe, um mendigo que faz dissertações, um ladrão mais instruído que qualquer presidente, e assim vai.

Muitos de seus textos são escritos com linguagem próxima da fala do cotidiano. O trecho “Se eles não tivessem naquela esquina, aquele dia, aquela hora...” demonstra bem isso. Você acredita que o escritor deve se exprimir como o homem da rua para melhor se fazer entender?

Sacolinha: Nunca acreditei nisso, acredito que o escritor deve escrever sem maquiagens. Usar os seus conhecimentos e sua estrutura lingüística, somente isso. O escritor que fica procurando meios ou que escreve pensando na recepção do leitor, pra mim não vale nada.

Qual é o limite entre realidade e ficção em suas obras?

Sacolinha: Só escrevo realidade quando faço crônicas, de resto é tudo ficção, mesmo baseando-me na realidade.

O público brasileiro parece possuir um fascínio por filmes, seriados e livros que retratam a vida na periferia. Para você, a que se deve este fenômeno?

Sacolinha: Conforme já falei, a periferia está na moda há muito tempo. Antes era o Gil Gomes, Afanázio Jazadige, Ratinho e o demagogo do Datena que levavam a gente pra tela, mas de uma forma a mostrar somente o lado ruim. Agora são outras pessoas e outros meios e formas de mostrar a vida na periferia, mas ainda assim é de uma forma pejorativa. O que mudou é que descobriram que nesses lugares têm muita gente boa, em tudo. Por isso é que Cidade de Deus, Antônia, Tropa de Elite e outros foram protagonizados por gente que é da periferia, ao contrário disso, esses produtos não teriam feito tanto sucesso.

Discutíamos, na comunidade dos colaboradores da SAMIZDAT, que os escritores costumam escolher um tema, ou uns poucos temas, e debruçam-se neles por um bom tempo – e isso pode mesmo ser inconsciente. Há um tema comum no que você escreve?

Sacolinha: Não. O meu primeiro livro “Graduado em Marginalidade” é pura violência, já o segundo “85 Letras e um Disparo” é mais cômico e suave e versa sobre vários temas de nossa sociedade. Estou com mais dois livros prontos para serem lançados: “Peripécias de Minha Infância” é um romance infanto-juvenil que trabalha com a criatividade e “O homem que não mexia com a Natureza” é um livro que aborda a temática do meio ambiente. Tem um outro livro que vou começar a escrever que vai falar da questão política. Estou escrevendo um livro didático sobre leitura.
Escrevo conforme vai tocando a minha cabeça. Não me apego aos temas.

Existem discussões sobre letras de músicas serem ou não poesia. Por exemplo, letras do Chico Buarque, quando lidas, são verdadeiros poemas, mas ainda têm um fundamento – e certa interdependência – com o ritmo musical (Cálice é uma delas). E o rap, é um ritmo que tem uma letra, ou uma forma de poesia, acompanhada de um ritmo? Você que escreve ou escreveu rap, o que acha: é poesia, música, ou algo além?

Sacolinha: Sempre gostei de ler as músicas. Presto mais atenção na letra do que no ritmo, e pra mim, música sempre foi poesia, principalmente o rap que transforma coisas ruins em melodias, transformam o sangue e a violência em poesia. Sem contar que tem seu jeito próprio de cantar, sua forma de dizer “zói” ao invés de “olhos”, e falar coisas que só mesmo quem é do meio entende, quem não é, tem que levantar hipóteses e interpretar. Isso eu acho o máximo, porque fizeram dessa maneira com os pobres a mais de séculos, desde a missa rezada em latim nos tempos dos sermões do Padre Vieira, passando pela escravidão e chegando até os dias de hoje nos termos da linguagem técnica, onde um cidadão não consegue nem entender o artigo que está sendo condenado.

Num texto seu, Crônica de um jovem salvo pela literatura, há um trecho valioso: “Precisava fazer alguma coisa para me extravasar: eu partia para o lado da pólvora (crime) ou para o lado do açúcar (cultura). Optei pelo açúcar, que às vezes é um pouco amargo.” Entre essas amarguras, o que foi mais amargo depois dessa escolha?

Sacolinha: Ouvir milhares de “não”, desde as respostas das editoras até as respostas das pessoas que eu abordava nos bares e teatros de Pinheiros e Vila Madalena quando vendia livros nas ruas.
Eu pensava: optei pela cultura que é uma atividade legalmente correta, mas ninguém me dá estrutura. Me enforco de prestações para publicar um livro e quando saio para vender ninguém quer dar atenção, alguns até seguram suas bolsas.
Isso é amargura, você ter a idéia, colocar no papel sofregamente, diagramar, revisar, publicar com seu próprio dinheiro, divulgar e vender, ser o próprio editor e livreiro.

Alguns de nós adoraríamos ter uma coordenadoria de literatura dentro das secretarias de cultura de nossos municípios. Em seu blog, num comentário sobre sua agenda semanal, nota-se que você é muito ocupado e tem grandes responsabilidades como coordenador de literatura da cidade de Suzano. Como funciona uma coordenadoria desse tipo? Como é o seu trabalho?

Sacolinha: Minha função é mais externa do que interna, até porque numa sala a gente não produz nada. Então o negócio é estar na rua, sentir cheiro de gente e tomar sol na cabeça. Como Coordenador Literário tenho que desenvolver projetos de incentivo à leitura e de promoção aos escritores. Nada difícil pra quem gosta do que faz. Mas tem que pensar em tudo, inclusive na pré-produção, produção e pós-produção.
Já publiquei 132 autores, trouxe escritores como Ariano Suassuna, Marcelo Rubens Paiva, Moacir Sclyar, Loyola Brandão, entre outros. Promovi 4 concursos literários, dezenas de oficinas e projetos para incentivar crianças, jovens e adultos a lerem. E falta de verba tem, a diferença é que eu corro atrás de tudo quanto é empresa e vivo batendo na porta do Governo Federal atrás de grana para o desenvolvimento dos projetos. O que falta muito por aí, em Suzano tem de sobra: vontade política.

Há uma tendência (do mercado editorial, da História da Literatura, das universidades, dos críticos... não se sabe ao certo de quem...) de encarcerar os livros em gêneros. Por isso, às vezes, há coisas como Literatura Esotérica, Literatura Espírita, Literatura Erótica, Literatura Gay, como que direcionando o que é produzido para "nichos" de leitores. A segunda edição de seu livro “85 letras e um disparo” foi inclusa numa série chamada "Literatura Periférica".
O que é essa literatura? Essa denominação vem de onde? De quem produz ou de quem publica?

Sacolinha: No caso da Literatura Periférica, esse foi um título dado pelos próprios autores, como uma forma de pertencimento, de geografia. Creio que direcionar a literatura por temas, não é algo de ruim, mas uma forma de identificar o tipo de literatura, como literatura estrangeira, indígena, auto-ajuda, etc. Eu mesmo nunca aceitei rótulos, o que faço é somente literatura. Não sei quem está apto a tematizar o que eu escrevo.

O que é a Literatura no Brasil?

Sacolinha: A Associação Cultural Literatura no Brasil é uma entidade que fundei em dezembro de 2002 com dois objetivos: incentivar a leitura e divulgar os escritores independentes. Essa entidade tem hoje vários projetos, muitos até em parceria com prefeituras, Petrobras e a Fundação Itaú Social.

Não queríamos perguntar, mas não tem como fugir disso: de onde veio o nome "Sacolinha"?

Sacolinha: Essa é uma história longa, outro dia com mais calma eu explico. Quem quiser pode ir lá no meu blog que tem tudo explicadinho: www.sacolagraduado.blogspot.com

A esquipe da SAMIZDAT agredece sua participação. Muito sucesso em seus projetos!


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Coordenador da entrevista:
Carlos Alberto Barros

Perguntas elaboradas por:
Henry Alfred Bugalho
Joaquim Bispo
Volmar Camargo Júnior