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quinta-feira, 29 de julho de 2021

Brindemos a Laurinda

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Photo by Tembela Bohle from Pexels

Naquela tarde de agosto, André caminhava apressadamente pelo passeio largo, ao lado da rua movimentada. Já há muito não passava por ali, mas só arranjara estacionamento longe do local onde se dirigia e estava a cortar caminho.

Junto das mesas da esplanada de uma confeitaria, um dos clientes agarrou-lhe o braço. Olhou-o com surpresa e irritação, mas logo o seu rosto se transformou:

— Filipe?!? — Exibiu um sorriso rasgado e abraçou o outro assim que ele se ergueu. —Que andas a fazer por aqui?

— Tive de voltar para tratar da venda da casa. — Fez-lhe um gesto de convite e ambos se sentaram. — Há quase um ano que estava fechada e como não faço tenções de voltar a viver lá… melhor vender do que deixá-la estragar-se.

— De certa forma tens razão. — Concordou André. — Mas não esperava nada ver-te e confesso, já tinha saudades tuas.

— Eu também. Temos de nos encontrar mais vezes, marcar uma data no mês, sei lá. — Ele fez aquele ar de comprometido de quem faz uma promessa que não pensa cumprir. — Afinal, estou a menos de trinta quilómetros daqui, é um instante.

— E escolheste logo esta confeitaria… — André fez um gesto a abarcar o conjunto das mesas e cadeiras.

— Foi de propósito. — Confessou Filipe. — Fez parte da melancolia que me atingiu assim que cheguei.

— Eu nunca mais voltei cá… desde que aquilo aconteceu. Mas fizemos bem em nos mantermo-nos separados. — André baixou os olhos, enquanto o empregado do estabelecimento trazia as bebidas que pediram.

— Não sei porquê. — Cortou Filipe, assim que o empregado se afastou. — Somos irmãos, qual é o problema de sermos vistos juntos? Não é natural? — O outro manteve o olhar no chão, enquanto ele se inclinava para mais proximidade. — Não íamos sempre de férias juntos? Mesmo antes dela?

André brincou com as mãos sobre o tampo da mesa, antes de pegar na caneca de cerveja e beber dois ruidosos tragos. Como que para engolir algo que se lhe prendera na garganta.

— Ela era maravilhosa… — Elogiou ao pousar a caneca, com os olhos perdidos nas marcas da mesa metálica. — Tão linda e meiga, sempre pronta a satisfazer as mais loucas fantasias.

— Sim e manipuladora e intriguista. Que reagia mal, quando não conseguia o que queria. — Cortou Filipe rudemente, antes de dulcificar também o seu tom. — Mas quem conseguia recusar-lhe fosse o que fosse quando ela fazia aquele beicinho e os olhinhos tristes.

— Foste um bocado canalha, ao envolver-te com ela! — Censurou André com secura, antes de meter os lábios de novo à caneca. — A mulher do teu próprio irmão…

— Mas que queres? Tão bonita, tão querida, tão… disponível.

— Porque é que havíamos de ter ido para o Gerês. — Como que se autocensurou André. — Para aquele bangalô no meio de nenhures.

— Exatamente para aquilo que fomos! — Esclareceu Filipe! — Para bebermos, para nos rirmos, divertirmo-nos, em suma! E nós fizemo-lo!

— Meus Deus! — Reconheceu André. — Bebedeiras de caixão à cova até de madrugada, depois dormir e acordar já de tarde para beber mais… bolas, que parvalheira… depois, tu e ela…

— Quando me apercebi, ela já estava agarrada a mim aos beijos e a abrir-me a breguilha. — Confessou Filipe. — Mas tu até te rias, não parecias importar-te e acabamos por fazê-lo ali mesmo no sofá. À tua frente. — Agora era ele quem firmava os olhos no tampo da mesa a recordar toda a história. — Quando acabamos, ela foi para o pé de ti, decidida a continuar contigo o que começara. Eu levantei-me para ir à casa de banho e ouvi-vos discutir…

— … eu estava tão bêbado… — Reconheceu André. — …não me estava a incomodar nada que ela tivesse feito amor contigo. Mas, quando veio para junto de mim, o cheiro de sexo recente, sabê-la suja por alguém que não eu…

— Adormeci no meu quarto, quando tudo ficou em silêncio. — Continuou Filipe. — Quando me levantei de manhã, tu ressonavas no sofá e ela estava no chão, nua, enrolada sobre ela própria.

— Discutimos muito… — Esclareceu André. — Estávamos abraçados, mesmo assim, mas ela tentou soltar-se e eu apertei-a, ela deu-me uma cabeçada e eu esbofeteei-a e empurrei-a… era geniosa, mas pouco musculada, apesar das corridas que fazia.

— És um bruto! — Censurou o outro, com um gesto de desagrado. — Cala-te não fales mais nada.

— A culpa foi dela! Atirou-me com o cinzeiro e eu apanhei-o e atirei-lho de volta. Acertou-lhe na cabeça, ela gritou, insultou-me e depois deitou-se ali a chorar… não achei que fosse muito grave…

— Agora cala-te! — Insistiu Filipe em voz baixa e olhando em volta, preocupado.

— Se não fosses tu… — Continuou o assassino. — … a ideia de lhe vestir o equipamento de corrida, atirá-la da ravina e chamar socorro porque ela saíra para correr e não regressara… o pior foi a polícia a investigar e as custas da recuperação do corpo.

— Que até ficou barato, comparado com a perspetiva de uma boa temporada na cadeia, não achas? — Comparou o irmão, num sussurro.

— Sim, claro, mas ainda penso muito nela… — Duas grossas lágrimas soltaram-se dos olhos de André. — … eu amava-a muito, sabes?

— Agora esquece! — Ordenou Filipe, enquanto erguia a caneca e elevava os olhos ao céu. — Brindemos a Laurinda, um sonho de mulher bela e maravilhosa! — Depois de tilintar a vasilha com a do irmão, bebeu dois largos tragos e concluiu: — Agora, temos de arranjar outra!

Manuel Amaro Mendonça

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sábado, 24 de julho de 2021

Carne

  


O homem encontra-se a caminhar por um trilho terroso, imerso na charneca imensa. É verão, o sol vai alto, o calor aperta, mas o homem caminha. Há muito que por desconhecidos caminhos rurais não se aventurava, mas o momento para isso o empurrou. Há tanto que sufocava no pequeno apartamento citadino, temendo sair e ser tragado pelo vírus letal. Muitas vezes se lembrou então dos bons ares dos ermos envolventes da sua terra, algures no interior beirão. Agora, sorve o ar em grandes golfadas, sem medo que um bicho invisível o tome por dentro. Em volta, azinheiras isoladas, erva e saragaços secos, algum mato. A agricultura é já residual na zona, o calor da época esturricou as plantas que se atreveram fora do solo, o deserto vai-se anunciando. Bem por cima, muito alto, um necrófago faz a ronda do seu território, emitindo, a espaços, o grasnado característico, parecendo que diz:

Carne! Carne!

O confinamento doméstico fora suportável, durante quase dois meses. Ele e a mulher tinham até voltado a ter uma espécie de vida familiar, o que já não acontecia havia uns anos. Cada um andara enfronhado no respetivo emprego, a lutar para trazer para casa complementos e suplementos, arrebanhando, sempre que possível, mais e mais horas extraordinárias. Mas o casamento ia bem e recomendava-se.

Durante o isolamento forçado, devoraram juntos quase todas as séries disponíveis, mergulharam na Internet, revezaram-se nas idas ao supermercado. E devoraram-se outra vez, como nos primeiros tempos.

Foi numa saída ao supermercado que o homem recebeu uma mensagem da mulher, que não era para ele. Confessava muita saudade de voltar ao trabalho. E falava em beijos e noutras carnalidades bem mais íntimas.

Lá em cima, o abutre parece comentar os pensamentos do homem:

Carne! Carne!

O homem caminha e recorda a surpresa, a dor, o ressentimento. Recorda o azedume das recriminações, a raiva da afronta, o constrangimento de ter de partilhar o espaço com a desleal companheira.

Quando foi possível desconfinar, quis voltar a experimentar a liberdade dos grandes espaços isolados, como na sua juventude. E idealizou percorrer a pé umas centenas de quilómetros pelo interior, a começar na sua terra. Sozinho, com o básico, liberto de clausuras, aglomerados urbanos e dependências tecnológicas. A expandir os membros e o pensamento, a reconfigurar o seu lugar no mundo, a reencontrar-se.

No momento em que segue com estas deprimentes recordações, tem de cruzar um estreito riacho, quase seco. Aproveita para reencher o cantil, que já vai quase meio. Ou porque as lembranças desestruturam a qualidade dos seus movimentos, ou porque a vida citadina lhe embotou a prática campestre, o homem põe mal o pé esquerdo, que escorrega, se encaixa entre calhaus submersos, se torce e esfola.

O grito que dá é mais pela torção dolorosa, que pela ferida superficial, mas, quando se senta para avaliar os estragos, um fino veio de sangue escorre do tornozelo.

O abutre, de que se tinha esquecido, parece não perder pitada:

Carne! Carne!

O contratempo é grande, mas o homem não quer adiar o seu pequeno sonho. Só percorreu talvez uma dezena de quilómetros; quantos faltarão até à aldeia seguinte? Ata um lenço sobre a ferida, dá uns passos, parece que consegue andar; quando chegar a uma povoação, vai a uma farmácia.

O incómodo no pé e a vulnerabilidade em que se encontra trazem-lhe pensamentos negativos. Lembra-se da angústia que sentiu quando começou a ver morrer pessoas de todas as classes económicas. O número de infetados a disparar todos os dias, por todo o mundo. Filas de caixões a serem enterrados em valas comuns, campos crivados de covas prontas a receber corpos.

Em largos círculos, o abutre parece ter também opinião sobre o assunto:

Carne! Carne!

Toda a tarde o homem caminha. O sofrimento torna-se penoso, mas não há alternativa. Voltar atrás tornou-se inviável e não se avista vivalma a quem pedir ajuda. Passa a noite enroscado sobre uma folhagem, tentando ignorar as formigas que passeiam sobre o seu corpo.

Quando a claridade rubra do sol nascente ilumina o caminho, recomeça a andar. O tornozelo está bastante inchado; perdeu a quentura do andamento do dia anterior. O cantil esgota ao princípio da tarde; o calor é abrasador; o homem espera encontrar outro regato ou avistar uma fonte. Chega a noite sem sinal da povoação desejada. Nem de água.

A manhã seguinte revela um homem quase a arrastar-se, cheio de dores e de sede. Tem febre. Na hora de maior calor, abriga-se na sombra esparsa de uma giesta. Delira. Recomeça a arrastar-se, mas a meio da tarde só percorreu mais umas centenas de metros. Por fim, desfalece.

O necrófago, lá em cima, observa. Alguns círculos depois, deixa-se deslizar sem pressas e pousa no caminho, a uma distância segura. Daí a pouco, nos seus passinhos saltitados e desajeitados, aproxima-se do homem. Com olhar conhecedor, vai avaliando a situação e, finalmente, parece concluir:

Carne!

Depois de umas bicadas de ensaio, arremete aos olhos.

Joaquim Bispo

*

Uma versão concisa deste conto foi publicada na edição número 1700, de 21/07/2021, do jornal Gazeta do Interior.

*

Imagem: Rothko, Sem título (Laranja e amarelo), 1956.

* * *





sexta-feira, 23 de julho de 2021

LUÍS LOUCO

 



         Este era seu nome na vila. Luís Louco... Nome e sobrenome. E ele atendia ao chamado, não se aborrecia, não ficava chateado. E, se ficava, não deixava transparecer.

         Eu ainda era muito pequena, e o via sempre trabalhando para o meu pai e para muitos outros. Era um homem de seus trinta e poucos anos.

         Sempre que o caminhão trazia uma carga enorme de lenha, e que era despejada na calçada ao lado do restaurante do meu pai, Luís Louco forrava o ombro com um saco de estopa dobrado, e ia carregando os grossos troncos cortados da madeira, um a um. Pesados. Chegava a gemer para erguê-los à altura dos ombros. E, numa ida e vinda incessante, levava a carga para o fundo do quintal, atrás da cozinha do restaurante, e ali empilhava tudo de maneira ordenada.

Era tanta lenha que, extenuado, muitas vezes levava dois dias para terminar a tarefa de recolhê-la. Depois, uma vez por semana voltava ali para rachar os troncos e transformá-los em gravetos que seriam queimados no fogão do restaurante. Tarefa dura, e que executou por anos e anos a fio.

E assim ele trabalhava para muitas pessoas, sempre em serviço muito pesado, serviço bruto, que exigia quase só esforço físico. Era feito um animal de carga, e isso me incomodava.

Normalmente, Luís Louco era uma pessoa dócil, gentil. Era respeitoso. Falava pouco, sua voz era muito forte, alta. Sempre de olhos baixos. Quando me via, esboçava um sorriso tímido, envergonhado, mas terno, muito terno...

Tinha um andar desengonçado. Procurava colocar um pé diante do outro em linha reta, quase que colado à ponta do outro, e para conseguir se equilibrar fazia um gingado com o corpo a cada passo. Quem o visse andando, tinha a impressão de que ele tombaria para o lado. Aparentemente o equilíbrio dele era falho, mas se eu tentasse fazer o que ele fazia com os pés ao andar, tenho certeza de que não sairia do lugar. Cairia sentada.

Mesmo quando prestava serviços para outras pessoas, Luís Louco diariamente comia ali, na parte de fora da cozinha do restaurante. Minha mãe havia colocado uma cadeira na sombra do abacateiro, e ali ele se sentava diariamente para almoçar e jantar.

Tinha um apetite de leão! Trouxera, havia muito tempo, uma pequena bacia de alumínio e uma colher. Seu prato e seu talher. Então, minha mãe preparava sempre uma porção generosa de comida naquela baciazinha, e ele devorava tudo em minutos. Quando estava terminando, raspava o fundo da bacia com a colher. Aquele ruído era como uma senha, um aviso para que minha mãe viesse lhe trazer a caneca com água.

Luís Louco não tinha pai nem mãe. Nem irmãos. Nem documentos. Não tinha nada... Na vila corria, à boca miúda, que ele era sobrinho do dono do bar onde havia o campo de bocha. História nunca confirmada...

Tinha hábitos estranhos. Dormia em uma cabana feita mato adentro, nas proximidades da vila; tomava banho nos açudes... Mas o mais sinistro era a mania de comer besouros. Isso mesmo! Comia besouros.

Toda manhã, debaixo de todos os postes de luz elétrica da vila, o chão ficava forrado de besouros pretos. Ele os devorava. Enchia as mãos com punhados deles, e os levava à boca. Mastigava, mastigava, e os engolia. Coisa horripilante! A mastigação fazia um barulho tão cavernoso, que eu ficava paralisada quando via aquela cena.

Eu acho que por causa deste costume asqueroso, as crianças ficavam sempre longe dele, estavam sempre com um pé atrás.

Não sei até hoje porque ele era assim. Minha mãe dizia que alguma doença o acometera no passado, e por isso ele perdeu o tino.

Luís Louco não podia tomar pinga, não podia fazer uso de qualquer bebida alcoólica. Mas, infelizmente, tornara-se um alcoólatra, e a bebida o deixava transtornado, completamente fora de si.

Durante todo o dia ele trabalhava feito um trator, sem problemas. Mas era só o sol baixar por completo e ele desaparecia. Enveredava-se pelos matos, onde devia esconder a bebida, e ali se encharcava.

Durante boa parte da noite, quando o silêncio caía absoluto sobre a vila, era possível ouvir os gritos desesperados que ele dava lá dentro do mato. Eram gritos agudos, assustadores, doídos, angustiantes. Ele gritava, uivava...

E de manhã aparecia na vila, banhado no açude, penteado, com roupas limpas, roupas sempre doadas pelos moradores. Chegava manso, sempre cabisbaixo, com os olhos tristes, caídos, como a pedir desculpa pelo barulho que fizera à noite.

Não conseguia entender como ele comprava a bebida! Eu achava que seria simples resolver o problema, bastava que ninguém vendesse bebida a ele. Muito simples!

Mas, não era nada simples... Havia muita gente que pagava os serviços prestados por ele com garrafas de pinga. Pagamento barato e que o satisfazia. Pagamento nojento! Mas era assim, e não ia mudar nunca.

Com o passar dos anos a saúde dele foi se debilitando. Já não conseguia trabalhar o dia todo, faltava aos compromissos, estava inchado. Os pés ficaram enormes, já não cabiam nas chinelas, os tornozelos terrivelmente inchados, as mãos...

O apetite diminuiu. Durante muitos dias almoçava muito pouco, e não voltava para jantar. Em outros, nem almoçava. Mas continuava bebendo, e gritando.

A cada mês que se passava, Luís Louco tornava-se visivelmente mais acabado. Nem os besouros ele comia mais...

E aparecia muito pouco na vila.

Numa manhã, eu o vi ser levado, deitado numa carroça, todo sujo, inchado, com os olhos distantes. Ele me viu, mas não sorriu. Nem sei se me reconheceu.

Da carroça, ele foi passado para o banco traseiro do táxi do Seu Juca, e levado para um hospital da região que cuidava de emergências.

E ele partiu. Sozinho. Sem ninguém. Sem nenhum documento.

Foi a última vez que vi Luís Louco.     

 

 

 

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segunda-feira, 19 de julho de 2021

Um miniensaio sobre a nova cegueira


Estou internamente deteriorado. A carcaça é a mesma joça de sempre; servível. Magda não aceita e pergunta o que me aconteceu. Diz que meu olhar é vago e que não encontra o brilho de anos atrás. Repeti diversas vezes que não tem nada a ver com ela. Digo e penso: “O tempo e os acontecimentos são os responsáveis por essa tragédia, ok?!”. Ela odeia quando termino uma frase com “ok”, porque “não está nada ok!”. Tento evitar, mas é mais forte que eu. O que me deixa bastante chateado é quando ela declara, cheia de si, que não tenho motivos para me abater e, por isso, arruinar as nossas vidas. Ou seja, eu seria o agente para a desgraça do meu lugar. “Robério, temos casa, dois filhos lindos, Hélder e Luiza, e um monte de bichinhos”, que, naturalmente, agem como receptores e catalisadores de nossas energias. Eu creio nisso. Poderia ser muito pior. Mas a questão, e isso não entra na cabecinha de Magda, é que antes da pandemia tínhamos como sair, admirar o pôr do sol na ponte dos ingleses, por exemplo; arrumar as malas e seguir sem destino, numa sexta, rumo a qualquer praia do sol poente. Estamos abafados e confinados num cubículo de 110 metros quadrados. Por mais que tenhamos guarida, perdemos o aconchego da casa de meu pai, um velhinho solitário de setenta e sete anos; a rede de apoio de nossa família, que igualmente se enclausurou desde o início do pandemônio. Magda pergunta se nossas vidas não são suficientes para me fazer um homem realizado. Para não encompridar a conversa, sou obrigado a dizer que sim; que, no entanto, por razões insondáveis, não consigo desvendar a minha fraqueza. Ela pede que eu seja “coerente”; que eu seja a “figura da fortaleza” para nossos filhos. Cansa-me essa insistência para manter o status do qual não sou capaz, neste momento. Nossos filhos não podem descobrir que o pai sofre? Nossos filhos são bichinhos de pelúcia, lindos por fora e ocos por dentro? Eu não teria condições de permanecer fingindo, como se nada houvesse acontecido. No último domingo, dei uma volta com Hélder; fomos ao mercadinho comprar uns poucos mantimentos. Meu filho, esperto, já com dez anos, notou que o papai está triste. Ele inventa piruetas, faz palhaçadas para me distrair. Nesse curto caminho, puxou a minha mão, para me guiar, e parou na pracinha, a ver os passarinhos. “Olha, papai, aquele ali; ele parece que está querendo namorar, voando bem rapidão, de uma árvore para a outra”. Eu me apoiava com hesitação no banquinho. Achava que o assento, por ser público, estava infestado de vírus, sendo apoio para as dormidas dos moradores de rua, inclusive com um a cerca de cinquenta metros de distância, nos observando. O homem quis se aproximar, decerto para pedir algum trocado, e eu arrastei o meu filho com uma força descomunal, quase deslocando o seu bracinho fino; e o menino, assustado, me falou: “Papai, o que está acontecendo? Tá doendo. O senhor vai me desmontar”. Ele apontou para um de seus bonecos de Lego, que levava na mão. O medo é uma força sobrenatural, que me cega instantaneamente. O fato poderia ser comparado a um blecaute de consciência. Fiquei paralisado por uns dois minutos, já longe do homem, que entendera o recado. Eu suava bicas; estava com a roupa ensopada. E, quando estou assim, Hélder me rejeita, diz que eu pareço uma gosma pegajosa. Lento, me recuperando ainda do incidente, meu chefe me liga – isso mesmo, em pleno domingo! Deixei que o celular tocasse umas cinco vezes, para ver se o maluco desistia. Mas não, tive de atendê-lo. “Pois não, senhor Aloísio, em que posso ser útil?”. Disse isso com a voz arrastada, a fim de mostrar-lhe o meu descontentamento. Não é possível, só pode ser uma mórbida tara. Já não bastava ele me ligar cinquenta vezes por dia durante a semana? A maldição é que, depois do home office, o troço piorou. Eu não estou ao seu dispor ao pé de sua mesa para apagar os fogos que ele inventa de atiçar. “Robério, não tem jeito, eu preciso que você esteja aqui amanhã” – sim, ele falava do escritório. “Sabe por quê? Bem, a história é longa e eu não queria atrapalhar o seu domingo. Para resumir: o Otávio vai sair, pediu as contas, e exigiu que eu lhe pagasse tintim por tintim, porque senão colocaria a boca no trombone. Você tem noção?!”. Eu parei por um tempo extasiado, mudo, e o senhor Aloísio ecoava o meu nome, me chamando. Otávio é mau-caráter, disso tudo mundo sabe; mas se equipararia em trambiques ao senhor Aloísio? Suponho que sim. Um fingia que não sabia das falcatruas do outro, e passaram assim longos dez anos – antes de eu chegar à empresa, o mau-caráter funcionário já estava lá. “Senhor Aloísio, o senhor sabe, eu não devo sair de casa; estamos na terceira onda da pandemia, dois parentes meus faleceram; um amigo muito próximo também. Estamos muito apreensivos. Eu posso fazer tudo pela internet, de casa. Fique tranquilo”. Eu estava em polvorosa, tremendo de nervoso, e Hélder, condoído, apertava a minha mão, chamando baixinho: “Papai, vamos, por favor!”. De fato, eu poderia ter um piripaque ali e deixar o meu filho em maus lençóis. “Robério, quando eu mais preciso de você não posso contar com a sua ajuda. Esse cara quer me ferrar! Você entendeu que ele pode me botar na cadeia?”. Quase pulou da minha boca: “O que eu tenho com isso?”. Eu desejava, naquele instante, que a terra se abrisse e, para mim, pouco me importava o que sucederia ao meu sinistro chefe. “Bem, o senhor sabe que eu tenho inúmeras comorbidades; tenho filhos pequenos e não quero morrer por um maldito vírus. Eu já disse ao senhor que farei tudo, até videoconferência, se for preciso, para resolvermos o assunto”. “Olha, Robério, se esse negócio não funcionar amanhã, impreterivelmente, você será o responsável por implodir a empresa. Fique certo disso!”. Desliguei puto por ter de responder, segundo as normas da boa convivência, um simples: “Tudo bem”. Faltou-me coragem. Tudo péssimo, como Magda diz; a realista. Na verdade, daí em diante, eu estava sendo levado pelo meu filho, que amofinara de algum desejo traquino. Íamos chutando pedrinhas no chão, sem nos falarmos. Hélder estava visivelmente triste, irrequieto. Será que ele poderia ser acometido pelo meu desgosto? Ao longe, vislumbrávamos um parquinho de um condomínio. Lá estavam o pai e um menino, da mesma idade de Hélder. Quedamos atônitos, olhando a vida em abundância, por alguns segundos, até que o pai zeloso nos notou e arrancou o filho de nossas vistas. Faltava-nos a fortuna da liberdade, da paz. As ruas estavam cada vez mais cheias de degredados da sorte. Eram zumbis à espera de um novo fenecimento. Dessa vez, o mal estava implacável em sua sina e eu não via saída. Mandei uma mensagem para o meu chefe, depois de consultar a poupança. Daria para viver com uma ligeira margem por um ano, pelo menos. Sem contar que poderia fazer uns bicos. Pedi, com educação, que o senhor Aloísio se esquecesse de mim e me desse, bem direitinho, as minhas contas. Passaria a tempestade em relativa calma; um motivo a menos para tombar na terra dos mortos.

 

 

 


 





sábado, 17 de julho de 2021

Educação

 














quinta-feira, 8 de julho de 2021

A Última Carta

 


O João teria adorado o seu funeral. Muita gente, montes de flores, lágrimas, claro, mas também inúmeras histórias sobre uma vida bem preenchida. E ela, muito elegante no vestido negro de que ele tanto gostava, com uma écharpe cinzenta a cobrir o decote pouco apropriado para a ocasião, a tentar conter as lágrimas por saber que ele detestava vê-la chorar.

O que lhe valera fora a Catarina, a sua melhor amiga desde a juventude, quase uma irmã, que a amparara e passara a cerimónia toda a chorar copiosamente, dando largas ao choro que ela não se permitia soltar.

O cortejo até ao cemitério fora impressionante pelo número de viaturas, entre colegas de trabalho, amigos, familiares, alguns vindos de bem longe, e até meros conhecidos que não tinham deixado passar essa oportunidade de lhe prestar uma última homenagem. Sim, podia-se dizer que o seu João fora muito apreciado em vida e pelo que se via, acarinhado nos seus últimos instantes.

Não havia dúvidas, ele teria realmente adorado toda aquela pompa e aparato, extremamente extrovertido e muito dado, sempre gostara de ser o centro das atenções e hoje era-o, certamente.

Talvez fosse por isso que se davam tão bem, uma vez que ela era muito calada e tímida e nada lhe agradava mais do que passar despercebida, era mesmo uma “espetadora inata”, como lhe chamava o marido, preferia observar a participar. No caso deles a velha expressão de “os opostos atraem-se” era certamente verdadeira.

Teria pois preferido algo mais modesto, apenas meia dúzia de pessoas mais chegadas, onde não tivesse de se lembrar constantemente de que sendo a viúva, tinha um papel central a desempenhar, mas ficara de tal modo paralisada pelo choque que nada decidira e fora Catarina e a família do marido que tudo tinham organizado, “como o João quereria”.

Quando se viu finalmente só em casa, tendo convencido com alguma dificuldade família e amigos de que estava bem e só precisava de descansar um pouco, pôde dar largas ao desespero pela perda do marido de que nem se chegara a despedir como deve ser. Quando saíra de manhã cedo naquele dia fatal para uma breve viagem de negócios, estava demasiado sonolenta para mais do que um breve aceno de adeus, voltando imediatamente a adormecer.

Como desejava agora que ele a tivesse acordado para que tomassem um café juntos e o fosse depois acompanhar ao carro!

Ao maldito carro,  a sua “crise de meia idade”, como ele dizia meio a gozar, o causador de toda esta desgraça. Sim, fora excesso de velocidade num dia chuvoso, mas se não tivesse trocado de carro uns meses antes não iria certamente tão depressa e as consequências do despiste teriam sido menos graves. Num carro desportivo como aquele, uma autêntica bomba, a tentação de se pôr à prova era demasiado grande e acelerava-se mesmo sem dar por isso.

Nunca se sentira à vontade nele, mas também nunca se atrevera a mostrar o seu desagrado, sempre que estava prestes a sugerir uma nova troca por um modelo mais discreto e menos potente o ar de miúdo satisfeito do marido impedia-a de abrir a boca. E o resultado estava agora à vista. A sua única satisfação, se é que se lhe podia chamar isso, é que nunca mais teria de o ver, fora diretamente para a sucata.

A caminho da cozinha para ir buscar um copo de leite para levar para o quarto caso lhe desse a fome durante a noite, uma vez que pouco ou nada comera desde a véspera, reparou que alguém, possivelmente a irmã, recolhera o correio e tinha-o empilhado na mesinha da entrada. Não lhe ia pegar, claro, quem pensa em correspondência numa ocasião destas, ainda por cima a maior parte devia ser publicidade ou contas, mas de repente reparou que o envelope de cima tinha a letra do João.

Estacou imediatamente, pegou-lhe por uma das pontas, quase como se fosse uma bomba, e viu que era efetivamente dele e que lhe estava endereçada. Que querido! Sabia como detestava e-mails e enviava-lhe sempre cartas “a sério” durante as suas inúmeras ausências, às vezes apenas meia dúzia de linhas sem nada de importante.

Mas esta devia ter sido enviada ainda antes da sua partida, o acidente dera-se a menos de duas horas de casa e àquela hora não haveria de onde enviar uma carta. Seriam possivelmente algumas recomendações sobre assuntos a tratar na sua ausência, sabia bem que ela era bastante esquecida e por isso deixava-lhe sempre listas muito completas com tudo o que era necessário fazer.

Fosse como fosse, era a última carta que receberia dele. Só de pensar nisso, desfez-se em lágrimas, as que não chorara durante toda a cerimónia e também no enterro. E foi a soluçar que a levou para o quarto, pousando-a na mesinha de cabeceira enquanto se despia e enfiava uma antiga camisa do marido que usava sempre para dormir quando ele se ausentava.

Já na cama e um pouco mais calma, abriu cuidadosamente o envelope, para não o estragar, retirou o maço de folhas que continha, abriu-as sobre o lençol, enxugou as lágrimas para poder ver melhor e houve uma frase inicial que lhe saltou imediatamente aos olhos:

“Minha querida, sei que nunca entenderás porque te deixei e fui viver com a Catarina...”

Luísa Lopes

Photo by Sigmund on Unsplash





sábado, 3 de julho de 2021

COM UM BERÇO NAS COSTAS



 

“Ontem, à meia-noite, estando junto

a uma igreja, lembrei-me de ter visto

um velho que levava às costas isto:

um caixão de defunto”.

Alphonsus de Guimaraens (1870-1921).

 

Por Milton Rezende

 

Depois de muitos anos,

tentando ainda me livrar

das marcas do passado

fui ao cemitério retirar

os ossos do meu amigo.

 

Lembro-me de ter deixado

uma pedra em formato de

concha, sob a qual estavam

os seus objetos pessoais e

toda a minha lembrança.

 

Era meia-noite no relógio

da igreja e um velho sentado

cochilava com a sua carcaça

de quem estava prestes a partir

e abandonar de vez a praça.

 

Antes, porém, seria necessário

àquele velho feio e deformado

atravessar a ponte de concreto

armado e alcançar o outro lado,

onde não havia nada além do pátio.


Surpreendi o velho em sua travessia

quando eu vinha vindo em sentido

contrário e voltando dos bares que

estavam situados na margem oposta,

onde a vida era só queixa e desamparo.

 

O homem trazia em suas costas

uma caixa de madeira envernizada

e cheia de alças de metal dourado,

semelhante aos caixões que eu via

expostos na porta da casa funerária.

 

E perguntei-lhe, já meio bêbado,

o que ele carregava nas costas

e se era pesado – disse-me então

e sem olhar para o meu lado,

que ia levando apenas o seu leito.

 

De súbito, ocorreu-me o fato

e a lembrança que me levara ali:

desenterrar os restos mortais

do meu amigo, depois de passados

alguns anos, conforme combinado.

 

Mas não sei se fui ao lugar errado:

o certo é que encontrei apenas,

na escuridão da casa dos mortos,

somente uma velha caixa de amianto

e pedaços de tubos galvanizados.