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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Chuveirinho

A firmeza de suas carnes é inversamente proporcional à lassidão do caráter. Jussara trai sem dó e se orgulha disso.

Beija Rodrigo bem assim: passeando pelo lóbulo da orelha, boca, dobras e protuberâncias mais sensíveis do rapaz. Simula gosto na arte de amar, quando se serve ao marido. 

Generosa, dá-se com disposição e sem economia, disposta a satisfazer o cliente consorte (palavra justa para definir o corno azarado). Ele fica até bobo de contente. Eu já vi.

O casamento teve propósito financeiro. Ju uniu-se ao primeiro e único namorado para ascender na fazenda. Por conta disso, zela o tesouro do casamento. E zela da própria polpa, conservando a formosura.

Que ninguém nos ouça, mas aquela mulher nunca se entrega completamente ao esposo. Com ele, só representa deleites e orgasmos — cada qual mais falsete que o outro. O coitado acredita que aquilo é intimidade, amor e paixão. Confia na fidelidade da donzela com quem se uniu.

Ela merece a medalha da perfídia domiciliar!

Conheço toda a verdade porque o amante poderoso sou eu, Lorenzetti. Às esconsas, trancadita comigo no banheiro, Juju se entrega ao meu potente jorro morno e morre de prazer.


Maria Amélia Elói





quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Confrontação


Após o jantar na sua mansão campestre de Oxfordshire, o casal Morris e o amigo Dante Rossetti ocupavam o serão, como habitualmente, trocando impressões sobre a genuinidade da pintura anterior a Rafael e a planear pôr em prática a arte para o povo, através da empresa de arts and crafts que tinham fundado. Morris, amigo de Engels e socialista assumido, idealizava produzir mobiliário e outros objetos de uso diário que pudessem ser uma alternativa aos da produção em série da indústria, mas com a qualidade estética que os artistas empenhados no projeto lhes incutiriam. A certa altura, falou-se de jogos de tabuleiro e da importância da vertente estética, mesmo em objetos habitualmente só associados ao lúdico, e referiram as potencialidades estéticas dos tabuleiros de gamão e de xadrez. Dispuseram-se a jogar gamão, mas, como não dava para três jogadores, viraram-se para as cartas. Optaram por jogar rummy, que entretanto passou a póquer. Pouco depois, Jane, a mulher de Morris e modelo de pintura de ambos, sugeriu o strip póquer, argumentando:
Já me despi muitas vezes para vós. Agora, é altura de vos ver despir para mim!
Prontamente aceite, o jogo foi decorrendo no meio de muitas gargalhadas. Rossetti, percebendo a tensão voyeurista de Jane, ia-se deixando derrotar e expunha mais e mais o seu corpo, sobretudo quando o confronto se resumia aos dois. Este comportamento perdedor tornou-se muito evidente e foi percebido por ambos os membros do casal.
Assim, não vale ― queixou-se Jane. ― És exibicionista ou não te apetece jogar?
Não ― explicou Rossetti ―, tenho estado a pensar se não seria altura de alterarmos a estrutura dos jogos desta sociedade de competição. Os jogos são combates. O mundo anda a combater há demasiado tempo. Os jogos podiam ser idealizados para incentivarem a cooperação altruísta e não a competição egoísta. Aliás, William ― disse, virando-se para o amigo ―, tu próprio construíste um tabuleiro de xadrez para três jogadores, lembras-te?
Sim ― reconheceu Morris ―, mas nunca achei que fosse muito interessante. Era mais cooperativo, sem dúvida, mas não gerava uma cooperação sã: sempre dois dos jogadores se uniam, circunstancialmente, para derrotar o terceiro, para, por fim, se enfrentarem. Nem a cooperação era desinteressada, nem a competição límpida. Não creio que a sociedade já esteja pronta para a abolição da competição.
Se calhar, é uma questão de regras ― contrapôs Rossetti. ― Talvez seja altura de criar regras cooperativas para os jogos. E para a vida. A sociedade tem que se defender da competição desenfreada. Vou-vos contar ― sobretudo aqui à nossa musa ― o que se passou em Florença, e o mal que a competição fez à República:
No início do séc. XVI, o governo da cidade encomendou a pintura de dois murais, para a sala do Grão Conselho do Palazzo Vecchio, aos dois artistas de maior nomeada, à época ― Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci. Cada um deveria pintar, a fresco, numa enorme parede do salão, uma batalha travada pelos florentinos. Miguel Ângelo foi incumbido de pintar a batalha de Cascina, na qual Florença derrotara Pisa e, na parede oposta, Leonardo deveria pintar a batalha de Anghiari, em que os florentinos bateram os milaneses.
A situação era de grande oposição. Os dois mestres tinham personalidades completamente diferentes: enquanto Leonardo era um homem racionalista e habituado ao brilho dos salões das cortes, Miguel Ângelo era um intuitivo e um emotivo, e pouco hábil nas relações frívolas. Além disso, não gostavam um do outro. Leonardo era, talvez, mais reconhecido, mas o ascendente Miguel Ângelo tinha acabado de produzir a marcante estátua de David. A competição pela aura de maior artista do tempo estava em jogo e resolvia-se nesta contenda decisiva. A comparação, frente a frente, não podia ser mais incontornável e quem perdesse o confronto ficaria, compreensivelmente, humilhado e seriamente debilitado, em termos de estatuto artístico.
Estás a querer comparar essa confrontação com uma partida de póquer? ― quis saber Morris.
Sim; perdoai se a comparação vos parece abusiva. Na verdade, cada um conhecia alguns pontos fortes do outro, mas não sabia que “cartas” ele ia apresentar. Leonardo apostou no que conhecia bem, pelos inúmeros estudos que tinha feito: cavalos. Os seus desenhos preparatórios mostravam, na parte central, o embate terrível de dois pares de cavaleiros, em que parecia que cavalos e cavaleiros se interpenetravam, no choque. O virtuosismo do desenho dos animais e as faces de terribilitá dos cavaleiros eram “o par de ases” em que Leonardo pretendia apoiar o restante “jogo”. Miguel Ângelo apostou na sua experiência de desenho do corpo humano, compondo um enorme cartão preparatório onde eram representados muitos soldados florentinos nus, no momento em que tinham sido surpreendidos, pelo exército pisano, a tomar banho no rio Arno. A sua musculatura supra-humana e a composição arrojada seriam as “cartas” de contraposição ao “jogo” do adversário.
Passaram, talvez, dois anos, sem que as paredes do salão vissem os traços planeados. Estariam a adiar o momento em que, finalmente, tivessem de mostrar o que estavam a preparar e não mais pudessem fazer bluff? Não sabemos. Certo é que Miguel Ângelo nunca passou o desenho para a parede e Leonardo passou parte, mas usou uma inovadora combinação preparatória do suporte que correu mal ― a tinta escorreu quase toda para o chão. Não será crível, mas até parece que esse desaire tenha sido intencional. Para adiar o confronto não desejado e até temido.
Cada um deles foi entretanto chamado para outros projetos e não chegaram a mostrar a força da sua “mão”. Eis a deplorável herança que a competição nos legou ― a perda de duas obras de arte que seriam, provavelmente, extraordinárias.
Na verdade! ― comentou Jane. ― Mas não vejo a relação com o nosso jogo…
Se o jogo perverso que os acirrou à disputa, pelo contrário, os tivesse incentivado à colaboração ― continuou Rossetti ―, poderíamos hoje contemplar as obras-primas que as “roupas” da competição sonegaram. Eis os malefícios da competição. Por isto, eu queria perder este nosso jogo. Se eu teimasse em tentar ganhá-lo ― sorria matreiro ―, corrias o risco, minha boa amiga, de não chegar a contemplar a plenitude desta obra que, sem ser prima, tem autenticidade pré-rafaelita.
E dizendo isto, atirou fora o resto da roupa com gestos largos, para grande gáudio dos amigos.
Tonto! ― ria Jane, divertida. ― Dizes isso porque não sabes jogar. E já sabias que ias perder.
Ora, ora ― gracejava Morris, fingindo zombar do amigo ― tanta conversa para isto? Nem sequer um ás… Afinal, estavas a fazer bluff!

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Leonardo da Vinci, Batalha de Anghiari, afresco, Palazzo Vecchio, Florença, 1505.
(Cópia da autoria de Peter Paul Rubens de 1603.)
* * *
(Este conto obteve o 1º prémio na categoria “Conto [de autor externo à Universidade]”, no Concurso Literário da UFLA (Universidade Federal de Lavras) de 2015 — Lavras, Brasil.)
* * *
[Este é o primeiro 1º prémio do autor em concursos literários (e único, até agora).]


* * *







terça-feira, 24 de janeiro de 2017

MINICONTOS DE EDWEINE LOUREIRO






sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Muito injusta essa vida



Meu nome é Gorete Silva Santana e estou aqui por justiça e merecimento.

No dia 11 de junho de 2010, desci no ponto mais perto da minha casa,
depois de um dia de serviço no apartamento da Dona Marcela. Para seu saber:
era diarista e dava para viver com a mixaria que recebia de duas casas de família.
Gente boa, bons patrões, me tratavam bem, mas não assinavam minha carteira porque
eu não trabalhava todo dia. Melhor assim. Viúva, cinco filhos para criar, um
amasiado biscateiro e pinguço, não dá pra ficar pagando imposto pro governo.
Metia as diárias na bolsa, tudo nota enroladinha, e entrava na condução rezando
para não dar de cara com vagabundo com canivete ou três oitão na mão.
Várias vezes perdi o dia de serviço assim.

Voltando ao dia 11 de junho de 2010, avistei um reboliço na minha casinha no
alto da subida. Ouvi gritaria de criança, voz grossa de homem e barulho de coisa
quebrando. Foi me dando uma quentura nas pernas, parecia um troço me empurrando,
subi correndo como nunca tinha subido. Acho que larguei as sacolas pelo chão,
sei lá, só sei que entrei tremendo em casa e logo da porta me deu ziquizira nas tripas.
Minha filha mais velha de 15 anos de nome Monique jogada no chão sem calcinha e com
o uniforme da escola rasgado. No cantinho da geladeira, os quatro menores, tudo
tremelicando agarradinho chorando baixinho. Do lado da cristaleira quebrada no chão,
Norival segurando um pé de cadeira cambaleava e bufava com olho de diabo para mim,
para minha filha mais velha, para minhas crianças, para a imagem de Nossa Senhora
de Aparecida caída no rodapé. Ele gritava que quem contasse ia morrer.

No meio da tarde do dia 11 de junho de 2010, Monique chegou da escola na hora de
sempre, encontrou Norival esparramado no sofá da sala encachaçado como todas as tardes.
Até aí nenhuma novidade. Só que ele levantou se escorando na mesa, baixou o calção
e partiu para minha filha, falando mansinho, dizendo que queria dar vida boa pra ela.
Era só ela fazer um carinho nele e deixar que ele fizesse um carinho nela. Disse
baixinho na orelha da menina, já imprensando a pobre contra parede e arrebentando
o colchete da saia, baixando a calcinha, lambendo ouvido e tapando a boca dela.
Monique ficou que nem estátua apavorada, sentiu um ferro quente se enfiar entre suas
pernas e soltou um urro abafado pela mão do Norival. Mas mesmo assim, logo depois daquela
coisa furando que nem broca na parede, conseguiu se debater, até que um braço escapuliu
e alcançou a cristaleira, que foi derrubada e fez um barulhão danado. Meus outros filhos
que estavam vadiando no quintal correram para dentro de casa e começaram a gritar.
Norival ficou doido. Doido bêbado no flagrante de malfeito vira monstro.
Meteu vários tabefes na Monique e saiu quebrando tudo na sala, enquanto espumava
viu o que você fez, viu o que você fez? Agora descobriram tudo! Quebrou a cadeira e
partiu para as crianças e quase deu com um pedaço de pau na cabeça da menorzinha,
não fosse a imagem de Nossa Senhora da Aparecida que Monique arrebentou no quengo dele.
O infeliz rodopiou, e mesmo torto, teve jeito de dar uma rasteira na minha filha,
que também caiu. Foi nessa hora que cheguei.

Na noite de 11 de junho de 2010, tudo estava mais calmo. Apesar de no primeiro momento
quase perder a cabeça e entrar na doideira que baixou lá em casa, olhei a santa espatifada,
fiz o sinal da cruz e ganhei serenidade. Norival tinha acabado de perder os sentidos e
Monique pulou em mim com um abraço tão forte quanto o aguaceiro que descia dos olhos.
As crianças se enroscaram nas minhas canelas e senti o soluço delas subir nas minhas pernas.
Ficamos naquele estado de gente embolada e empapada durante um tempo que nem sei contar,
sem dizer uma palavra, só pensava comigo mesmo: já deu, já deu, já deu. Ninguém me devia
explicação. O estado de choque em que encontrei Monique e meus outros filhos não carecia
de palavra. Norival continuava babando e roncando no chão e nem liguei pro ferimento na nuca
que não parava de sangrar. Só depois de dar água com açúcar para as crianças e ouvir de
Monique os detalhes do ocorrido, segurei as vontades de matar o patife e levei os cinco para
casa da vizinha, a Dona Edith, que não cansava de me avisar: esse Norival não presta.
Quando voltei, tive força para levantar o traste e começar a cuidar do rasgo na cabeça.
Botei um pano para segurar o sangue e grudei com esparadrapo. Ele fez que ia acordar, joguei
água na cara dele. Meio estonteado, começou a gemer o nome da minha filha e xingar coisas
horríveis a respeito da minha pessoa. Jurava que Monique vivia dando em cima dele nas minhas
fuças e eu idiota nem percebia. Mentira. Minha filha tinha nojo do padrasto.. Várias vezes me dizia
que Norival andava olhando a bunda dela com olho esquisito, dava beliscão, batia a língua pra
ela, mas eu burra não queria enxergar maldade no homem que na cama me fazia bondade.
Só na cama, para bem da verdade.

Logo depois da meia noite, já 12 de junho de 2010, resolvi entrar na conversa dele
e desconjurar minha filha também. A porranca estava sarando. Passei café, botei ele debaixo
do cano de água fria, enxuguei cada pedacinho do seu corpo, troquei o esparadrapo e levei o
troncho pro quartinho, fazendo cafuné e demostrando todo meu carinho e compreensão.
Deitei Norival nu de barriga para cima, disse palavras calmas e carinhosas, disse que ia
dar um jeito em Monique, disse que ela era novinha demais para ficar se assanhando para homem
com dona, disse um monte de coisa tesuda enquanto o troço dele endurecia na minha mão, ao
contrário do resto do corpo que amolecia e se entregava ao carinho que só eu sabia carinhar.
Quando ele já estava bem grandão e pulsando gostoso, pedi licença para passar água e sabonete
nas partes só pra ficar cheirosinha como ele gostava de lamber. Norival começou a mexer a cintura,
suspirar fundo, soltar uns grunhidos baixinho e fechou os olhos. Antes de ir ao banheiro, reparei
se o esparadrapo tinha se soltado, vai que sujava de sangue o travesseiro?  Tudo certo.
Ele continuava naquele estrebucho de macho quando quer foder, nem reparou que não
fui ao banheiro coisa nenhuma. Fui é pra cozinha, voltei com um litro de álcool e uma
caixa de fósforo. Ele continuava gemendo de olho fechado e tomou um susto quando
joguei álcool no piruzão duro e na barriga dele. O álcool se espalhou pela carapinha em volta
e escorreu pelo saco, se enfiando pelo cu. Não deu tempo de reação porque na mesma hora
risquei o fósforo. Ele saiu gritando pela casa, parecia um homem tocha, porque era muito
peludo e o fogaréu se alastrou rápido. Enquanto eu abafava o que restou de fogo no lençol,
ele alcançou o quintal e ficou rolando na terra, desesperado, pra lá e pra cá,
mas não adiantou muita coisa.

Hoje é dia 23 de dezembro de 2015. Estou no lugar que mereci. Minha vida acabou e só tenho
lembrança ruim, principalmente daquele dia desgraçado. Quando os bombeiros e a ambulância
chegaram no sol nascendo me encontraram em pé ao lado do Norival. Pouca gente tinha acordado
até então, mas as sirenes fizeram um monte de curioso rodear o muro do quintal. Só deixei
entrar Dona Edith, que me abraçou e entendeu tudo. Gorete, Gorete... não disse que ele não prestava? Perguntei pelos meus filhos. Estão dormindo que nem pedra. Acho que foi o trauma. 
Logo depois chegou a patrulhinha. Eu me entreguei e contei tudinho sem arrependimento.

Amanhã é véspera de Natal. Estou no pavilhão das mulheres, numa cela com vinte uma, onde só
cabem dez. Paciência. Eu mereci. O advogado da defensoria pública alegou privação de sentidos,
essas coisas, não é assim que eles dizem? Mas eu mesmo falei pro meritíssimo que fiz tudo que
meu juízo mandou. A bem da verdade só queria aleijar o pinto dele, mas Deus lhe mandou uma
infecção generalizada misturada com cirrose e ele foi pro inferno mês depois. Fui condenada
por crime premeditado seguido de morte. Não é assim que eles dizem? No fim das contas,
acho que fizeram justiça. E eu do meu jeito também fiz. Ainda tenho 9 anos aqui dentro,
revezando colchão para dormir e falando muito pouco com as colegas. Elas não sabem nada
da minha vida. Tenho medo que elas descubram que eu acabei matando meu homem
com requintes de crueldade. Não é assim que eles dizem?

A única dó que eu sinto é não ver meus filhos crescerem.  Dona Edith esteve aqui somente
uma vez, logo nos meus primeiros dias. Pode deixar, vou cuidar de suas crianças. Depois
nunca mais. As colegas dizem que é assim mesmo, que mulher não recebe visita.
Ninguém aparece. Nem filho, nem marido, nem namorado, nem amante, nem pai, nem mãe.
Não é porque é proibido. Não é proibido não. Homem e familiares é que não ligam para mulher ladrona, assassina, traficante, trambiqueira. No pavilhão deles é diferente. Dia de visita a fila
de mulher dá pra mais de três voltas no quarteirão. Diz a carcereira que hoje, então, é dia de
fila dobrada. Bando de mulher carregando sacola com frango assado e rabanada.
Chegam de noite, dormem na calçada e ficam horas torrando no sol, uma atrás da outra,
até que passam na revista e entram.  Só para fazer visita íntima. Dizem que trepam rapidinho,
na cela mesmo, atrás de uma cortina feita de roupa pendurada num varal. Os homens sabem
se ajeitar e não vivem sem xoxota, senão dá motim.

Monique nunca veio me visitar. Muito injusta essa vida.





terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Newtão - Conto de Eduardo Sabino

Newtão

José Augusto da Silva, o seu nome de batismo. Newtão era o apelido que a turma havia lhe dado dez anos antes de seu falecimento. No início, o chamávamos assim por ironia. Depois, como ocorre quando os apelidos pegam, por estranheza em relação ao nome verdadeiro, de repente vazio e inadequado.
O nome era uma referência a Isaac Newton. O Newtão vivia explicando as leis da física e matando a nossa curiosidade - até quando ela não existia - sobre os eventos mais complexos do universo. Não o entenda mal, por favor, o Newtão estava longe de ser um chato monotemático. Sabia conversar sobre outras coisas. Como todos nós, dava seus pitacos sobre futebol, economia, política e televisão. Respeitava a hierarquia de assuntos que iam gravitando sobre a mesa, na ordem de sempre. Então depois, geralmente no fim da noite, quando o álcool já havia cumprido sua missão de tornar qualquer assunto agradável, ele introduzia a ciência no diálogo.
O grupo se formou naturalmente. Quatro pessoas bebendo sozinhas, após o trabalho, silenciosas ou conversando com o Manel no balcão. A presença carimbada de todos foi gerando, no início, identificação visual, depois um papo meio sem querer, uma conversa atravessada em que o Manel serviu como intermediário, então uma noite a cerveja de alguém foi repartida, para não esquentar na garrafa, e as conversas foram se desembolando e criando proximidade. Quando assustamos, beber sozinhos se tornou um incômodo, e o Manel passou a reservar uma mesa no canto para os Ariranhas, como nos denominamos.
O Newtão foi o último dos Ariranhas. Daí a dificuldade na aceitação, uma espécie de consenso não verbalizado de que ele era um intruso e logo sumiria do bar. Ganhou-nos na insistência, na cordialidade, no talento. Sabia correr um bom papo, ouvir e demonstrar interesse, e ainda mostrava um time invejável para as tiradas cômicas.
Cada um de nós tinha as suas frustrações e conquistas de juventude e mais cedo ou mais tarde elas se tornam assuntos recorrentes no boteco, dependendo sempre do momento, do humor, do clima. O Newtão lamentava não ter se tornado um acadêmico brilhante, internacionalmente conhecido. No curso de Física da universidade, sentia-se como o descobridor dos mundos. Vivia debruçado nos livros e pensava em coisas que dariam uma nova direção para a ciência. Uma nova direção, ele frisava, olhando-nos sem nos ver, erguendo a taça como se brindasse ao futuro do passado.
Suas ideias entrariam em rota de colisão com muitas teorias famosas estabelecidas por sujeitos do naipe de Newton, Rutherford e Albert Einsten. Quando a namorada engravidou, ele tinha vinte anos, e precisou trancar a faculdade e arrumar um emprego qualquer. Depois retornou, graduou-se com louvor, mas não tinha o pique e o tempo do estudioso revolucionário de antigamente. Tirou a licenciatura e contentou-se em dar aulas no ensino médio até a aposentadoria.
Nenhum de nós viu o bar do Manel nascer. Nas paredes havia quadros com boêmios famosos e celebridades da Hollywood dos anos sessenta. Recortes de jornais emoldurados ajudavam a contar a história do boteco. Nos anos setenta, um grupo de jovens sambistas com músicos hoje consagrados fazia ali ensaios abertos e muito concorridos. Em outro quadro, a referência ao maior campeonato de truco da capital, nos anos noventa, com sede no boteco.
Apreciamos o Bar do Manel e suas particularidades. Um detalhe fora do normal pode gerar incômodo e nostalgia. Certa vez o Manel removeu o quadro da Marilyn Monroe, já embolorado, para restauração, e a ausência dela tornou a parede de fundo cinzenta e inacabada. Quando as mesas de ferro deram lugar às de plástico, foi-se embora a alegria de retirar moedinhas da carteira e batucar um samba.
Não é exagero dizer que em dez anos de freguesia ajudamos a moldar o Bar do Manel. Tanto fisicamente quanto na atmosfera. Votamos pela continuidade da máquina de música quando o videokê começava a ameaçar os botecos tradicionais e até hoje fechamos a última rodada das quartas-feiras ao som de Belchior.
Instauramos padrões inegociáveis. O fígado com jiló nas segundas-feiras, o frango a passarinho carregado no alho. A Boemia saindo do freezer com sua adorável película branca. O ritual com o pano seco, contribuição do nosso físico, a fim de não encostarmos um corpo quente em um corpo gelado e evitarmos o congelamento. Também a bobeira de sempre, o Zé Carlos abençoando a primeira garrafa, batizando-a e dando a autorização para o Manel abri-la.
Só agora, Newtão enterrado, noto sua liderança na construção dos ritos. Os botecos têm lá suas leis universais, ele dizia. Uma delas estabelece que no intervalo entre a primeira hora de funcionamento e o instante em que o bar se fecha ao menos um copo será quebrado. Por bêbados desequilibrados, estudantes inexperientes, intelectuais espalhafatosos, não importa; um copo será quebrado.
Em uma noite lendária e remota, alguém deixou o copo se estilhaçar no piso e o Newtão ergueu sua taça e mandou um "Viva Newton", o primeiro de muitos, em alusão à lei da gravidade. Desde então, jamais deixou passar um copo quebrado, de modo que todos nós, e as pessoas em volta familiarizadas com o ato, respondíamos ao brinde de Newtão com um sonoro viva, constrangendo ainda mais o freguês desastrado.
Raras vezes Newtão nos disse algo a respeito de seus familiares. Sabíamos que tinha uma filha e quase não se viam. Que tinha uma ex-mulher e não conseguiam trocar duas frases inteiras no telefone. Que sua vida particular seguia um circuito fechado e repetitivo de acontecimentos. Morava sozinho em um apartamento miúdo no prédio JK, tinha um cachorro poodle que atendia pelo nome de Arquimedes, o único que o amava de verdade, gostava de fumar à janela olhando o trânsito engarrafado em volta da praça Raul Soares no horário de pico. Acordava onze horas, punha os óculos de sol, o tênis velho, o protetor solar, enroscava Arquimedes na coleira e faziam juntos a caminhada matinal até o horário do almoço.
O Newtão que todos conheceram no bar talvez seja, em boa parte, o sujeito que eu conheci, mesmo eu o conhecendo melhor, ou bem melhor, do que os outros o conheceram. Tudo porque uma janela se abriu no tempo e de repente Newtão abaixou a guarda e soltou a língua. Devo isso a um dia atípico e bastante cerveja.
Os ariranhas puxaram o carro. O bar quase sem ninguém. Somente nós dois. Ele não me deixava fechar a conta. Se eu me deixei levar – apesar do cansaço – foi pelo sentimento de que havia, desde o início, algo diferente em Newtão. Estava calado e distraído, forçou o riso em diversos momentos, em outros mal conseguiu rir. Não contou suas histórias nem desviou assuntos sem fôlego para o novo cometa ameaçador no universo ou o funcionamento dos buracos negros. As pernas estavam inquietas e ele fazia questão de disfarçar uma provável ansiedade reclamando do frio.
Manel colocou a notinha na mesa.
"Nós pedimos a conta, Manel?", disse Newtão, arrastando as sílabas.
Manel me olhou buscando alguma cumplicidade.
"Você não me fez um sinal?"
"Fiz sim", menti. "Tá na hora, Newtão. Pra mim já deu".
"Traz só a saideira então, Manel. Aí a gente vai".
Manel assentiu, um tanto irritado, recolheu o prato com os restos de cebola e andou apressado até a cozinha. Voltou com a cerveja e encheu nossos copos, não de uma forma gentil, mas apressada e sem jeito. A espuma subiu no meu copo e dei uma bicada antes que entornasse.
Newtão olhou o Manel se afastar e fez uma careta.
"Pensa bem, negar cerveja para os ariranhas. Tá de sacanagem, né?"
Olhei de novo as pernas frenéticas.
"O que você tem, Newtão?"
"Além de frio?"
"Sim. O que mais tá te incomodando? Pode falar".
Ele tentou ajeitar um sorriso, começou a dizer algo, desconversando, mas parou no meio do caminho e baixou os olhos, mirando o copo. Depois ergueu a cabeça e nos encaramos algum tempo; o rosto agora realmente triste, sem disfarces.
"Vi minha filha ontem".
"Onde?"
"No metrô".
"E aí?"
"E aí que tentei um contato visual. Não deu muito certo."
"Há quanto tempo você não a via?"
"Uns...sete meses."
"Vocês são brigados?"
"Não que eu soubesse. Até uns meses atrás a gente ainda conversava por telefone. Mas eu senti que ela fazia isso sem muito interesse, sabe? Então do nada parou de me atender, e hoje entendi tudo".
"Talvez ela não te viu. Pode ser que não te reconheceu, sei lá. Tinha muita gente?"
"Ela me ignorou, cara."
"Como pode ter certeza?"
"Eu me aproximei dela. Falei alguma coisa..."
Neste instante a voz se embargou um pouco, ele interrompeu a narração, segurou o tranco e retomou:
"Ela me tratou como as pessoas normalmente tratam os vendedores de bala. Disse que não tava afim e virou o rosto"
Pagamos a conta, despedimos do Manel e seguimos na Augusto de Lima. Newtão falava como nunca havia visto ele falar. Tudo o que ele não dizia sobre si mesmo durante tantos anos vinha abaixo num jorro. Atravessamos no boneco vermelho e Newtão não conseguiu evitar um tropeço quando o táxi acelerou e tivemos de esticar a passada. Falava dos arrependimentos. Do tempo que não dedicou à filha, da atenção que não a deu. Da falta de coragem de enfrentar as imposições da ex-mulher que, segundo ele, fez o diabo para afastá-lo da menina.
"Minha vida foi uma falta de rumo danada, cara. Se ao menos eu tivesse sido um exemplo de alguma coisa para ela..."
Tentei amenizar, uma vez mais.
"Não fala isso, cara. Você ajudou a dar um rumo na vida de muita gente. Vai dizer isso pros seus ex-alunos, maluco..."
"Eu não sou professor. Nunca fui professor."
Paramos na Rua da Bahia, na praça em frente ao Subway. Lá dentro a correria dos funcionários para fechar o estabelecimento, recolhendo bandejas com restos de sanduíche, limpando o chão, tampando os compartimentos dos recheios. Tirei um cigarro do bolso, o isqueiro do outro.
"O que você disse?"
"Nunca dei aula de física. Nunca dei aula de porra nenhuma nessa vida."
"Fez curso na universidade, pelo menos?"
"Não. Sempre fui autodidata".
Agora o desabafo me envolvia. Envolvia anos de papo e confiança. Se um cara em quem você confiou e de quem se tornou amigo se revela uma fraude, de repente a amizade entra num estado de suspensão e dúvida. Afinal nada impede que ela também seja uma grande fraude. Você se pergunta imediatamente se é amigo do cara por trás da mentira ou se a afeição é por um ser forjado, que agora deixou de existir.
Newtão era um funcionário público. Um ex-bancário da Caixa, não um professor aposentado. O interesse pela física o acompanha desde a juventude, mas o bolso vazio fez a diferença na decisão de concorrer a uma vaga no serviço público. Os saberes científicos vêm dos livros e das pesquisas no Google. Ele tem uma pasta no notebook com milhares de teses e dissertações. Tenta estar por dentro da academia, assina a revista Scientific American, escreve algumas coisas, para organizar as ideias, mas sem a intenção de publicar.
"Por que mentir sobre isso?"
Ele tirou um cigarro do bolso também, estendeu-o na minha direção e, quando o acendi, levou-o à boca e tragou duas, três vezes sem me responder nada.
Depois balançou a cabeça, deu uma baforada e teve um ataque de tosse, como se fumasse maconha. Então disse, num fio de voz:
"Não sei."
As coisas desenrolaram bem próximas do normal nos dias seguintes. Tirando o mal-estar quando alguém lhe perguntava algo sobre sua experiência na universidade e ele respondia sem o entusiasmo de antes e evitava de bater os olhos com os meus pelo resto da noite. Por sorte esse tipo de interesse não era corriqueiro.
Na sexta em que ele não apareceu, ligamos no seu celular e o telefone chamou até a mensagem de voz. Passamos o celular um ao outro, meio bêbados, fazendo graça e esculachando o furão. No dia seguinte, recebemos o telefonema da ex-mulher. Newtão havia sido achado morto por uma vizinha.
Ela bateu na porta e ninguém atendeu. Lá dentro, Arquimedes latia e arranhava a porta, morto de fome. O dono do apartamento alugado por Newtão morava três andares acima e foi chamado ao local. Chegou com a chave reserva e abriu a porta. Arquimedes arrastava a coleira na sala, que cheirava a mijo e cocô. Newtão estava de bermuda e tênis, estirado no chão. Ao redor do corpo, alguns objetos: os óculos de sol, o celular e mesa de centro tombada. Mais tarde, saberíamos: nosso amigo sofreu um infarto quando saía para se exercitar.
O velório reuniu pouca gente. A turma do bar, a filha, a ex-mulher, uma tia idosa, o padre que faria a encomendação do corpo e uma beata assistente. Por um instante me esqueci da mentira de Newtão e estranhei o fato de nenhum ex-aluno ter aparecido.
Preparado, como todos os cadáveres, para ser uma imagem fiel do vivo, Newtão não se saiu muito bem de morto. A morte suavizou as rugas de expressão, arroxeou os lábios e as pálpebras, anulou a veia sobressaltada na testa, mudou a cor do rosto. Antes um vermelho intenso, a cara sempre inchada, agora um branco-cinza-defunto. Nunca mais o sangue visível sob a pele, nunca mais a energia, o fluxo, o movimento.
No instante da encomendação do corpo, eu e o Marcão nos estacionamos na porta, enquanto os outros dois ariranhas rodeavam o caixão. O padre leu uma passagem bíblica e disse que um dia o senhor José e todos nós estaríamos juntos no céu. O nome de batismo definitivamente não caía bem em Newtão.
Fungar o nariz no salão, um gesto comum de quem chora ou retém o choro nos velórios - quando não está simplesmente resfriado. No pequeno salão, todos tínhamos alguma obstrução nasal, olhos levemente aguados, pesares discretos. Somente a filha exibia seu pranto, um choro forte e soluçante. Ela gemia e passava a mão sobre o rosto do pai, não mais um rosto estranho no metrô, e ele jamais saberia que tinha deixado de sê-lo.
Após o enterro, andamos a esmo no cemitério parque. Só então me dei conta. Era a primeira vez que nos encontrávamos fora do boteco. Uma experiência nada boa. De repente não éramos os ariranhas do Manel, mas conhecidos distantes, sem grande intimidade. Atribuí o incômodo à falta de cerveja. Nossas almas eram flores carnívoras regadas a álcool. No boteco do Manel, a conversa desabrochava na segunda rodada. Podia ser também a situação. A morte repentina de um amigo isola até quem a experimenta em bando.
Prometemos um ao outro não interromper os encontros no Bar do Manel. Nem uma semana. Nem um dia. A melhor forma de homenagear o Newtão era seguir com a vida normalmente.
No dia seguinte brindamos a ele, e a noite prometia. Íamos em bom ritmo na segunda rodada, o papo começando a se desembolar. Então um rapaz estabanado e com pinta de estudante de história abriu os braços para explicar algo a uma garota e, sem querer, acertou um copo. O copo caiu e se espatifou no chão.
As pessoas ficaram imóveis e silenciosas. Quebrou-se o copo e o tempo. O ambiente se encheu de expectativa. Quase todos deviam conhecer o rito e olhavam nossa mesa aguardando uma reação. O Manel vinha trazendo a terceira rodada e levou um baita susto. Pegou no meio da garrafa e congelou a cerveja. O estudante ajuntava os nacos de vidro sob os pés, bastante envergonhado. Não podia adivinhar a gravidade – psicológica, não mais física – daquele gesto involuntário. Por que as pessoas não voltavam logo a conversar? Ficamos ali trocando olhares de constrangimento, as caras subitamente entristecidas, sem brindar a nada, tentando repartir o silêncio e a atenção do boteco entre nós.
Quando o bar voltou ao normal, Newtão ainda estava lá.
Cancelamos a mandioca com torresmo, pagamos a conta e fomos embora.







*Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima-MG, onde vive atualmente. Estreou na literatura com o livro “Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias” (Novo Século, 2009). O conto “Newtão” integra o seu segundo livro de contos, “Naufrágio entre amigos” (Editora Patuá, 2016), do qual também faz parte o conto “Sombras”, vencedor do concurso Brasil em Prosa 2015. É um dos criadores do programa de entrevistas Literatura no Boteco. 





segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Relato de uma vítima

A doutora tem filho? É menino? Quantos anos? Oito. Ainda é pequeno. Eu tenho três. Doze, onze e quatro. Os dois primeiros vieram um depois do outro. Aí, eu pensei que tinha acabado. Mas uns anos mais tarde dei bobeira. Era pra ter tirado o último. Mas não arrumei quem fizesse o serviço e eu mesma não dei conta. Não me arrependo, não. É um menino lindo. Meus meninos são todos bonitos, doutora, acredita? Filhos desta mãe tão feia. 
A de doze anos é menina. Linda. Parece essas crianças de revista. Puxou os olhos verdes do pai. O do meio é inteligente que só. A professora empresta livros pra ele. Disse que se ele continuar assim, bom aluno, vai tentar uma bolsa pra ele fazer o ensino médio. Meus filhos são umas bênçãos.
Eu trabalhava na casa de uma mulher que nem a senhora, doutora. Chique, rica. As crianças dela eram uma belezinha. Cada uma com seu quarto. Tudo cheio de brinquedo. Tinha bichinho pintado na parede, almofada colorida, uma TV pra cada um. O armário dos meninos era cheio de roupa. Era tanta roupa que dava até agonia de olhar. Cada vez que eles cresciam, ela vendia tudo o que não cabia mais. Eu rezando pra ela não conseguir vender. Rezando pra ela dizer Vai querer, Carmelita? Eu ia, claro. Mas a danada vendia tudo. E quando não vendia jogava no lixo. Eu catava. Escondido dela. Abria os sacos de lixo e guardava as roupas numa sacola de plástico. 
Um dia ela me viu saindo com duas sacolas cheias. Mandou abrir. E me acusou de roubo. Não roubei, não, senhora, peguei no lixo. Dá no mesmo, ela disse. Você podia ter me pedido. Se roubou do meu lixo, deve estar roubando aqui de casa também. Me despediu na mesma hora. Cinco anos trabalhando pra ela. Por nada. Eu não era fichada, sabe? Na época era pegar ou largar, e o emprego era bom. Mas por causa do que aconteceu ela não me pagou um tostão. Nem os dias que eu tinha trabalhado naquele mês. Se você insistir, eu chamo a polícia e mando te prender! Saí de lá correndo. Morrendo de vergonha de ser chamada de ladrona. 
Depois disso, não arrumei mais nada, e o Tião, meu companheiro, começou a sustentar a casa sozinho. Naquela época, eu tinha só os dois mais velhos, mas já era muita boca pra comer. E eu não podia nem fazer bico porque não tinha com quem deixar os meninos de tarde. Quando eu tinha meu dinheiro, pagava uma mulher pra ficar com eles. Mas o Tião não podia sustentar a casa e ainda pagar a mulher. 
O dinheiro foi faltando e o Tião foi ficando cada dia mais nervoso, mais agressivo. Ele sempre bebeu muito, sabe? Mas deu pra beber mais ainda. Pendurava a conta no boteco em frente de casa. No fim do mês, pagava com serviço. Bebia todo dia. Ia direto pra lá, depois do trabalho, e só voltava se arrastando, bem tarde. Deu pra me dar porrada. E depois que me batia me obrigava a trepar com ele. Toda machucada, toda cheia de dor. Se eu não quisesse, ele forçava. Foi aí que eu acabei pegando menino de novo. 
Lá em casa falta tudo, doutora. No começo, eu até me virava. Ia com os meninos ganhar comida dos crentes. Mas o Tião desandou a implicar porque eles ficavam aconselhando ele a parar de beber. Não me deixou voltar. 
Sabe como é que a gente dorme? Todo o mundo amontoado num colchão de casal que fica direto no chão. O colchão até que é bom. Eu comprei à prestação quando estava empregada. Luz só tem quando entra um dinheiro extra ou quando o Tião faz uma gambiarra. Senão é na base da vela mesmo. Gás tem. O último botijão está pela metade. Como não tem comida, o gás sobra. A TV tá velha, mas funciona quando tem luz. Mesmo assim eu só ligo um pouco, de noite, pra ver a novela. 
Eu lavo e passo pra fora. Também faço uns salgadinhos pra vender na parada de ônibus e na feira. Quando sobra um dinheiro, eu escondo, senão o Tião gasta com bebida. A coisa tá ruim pra todo o mundo, não tá? Perdi muita cliente este ano. Mas eu nunca fui revoltada, doutora. Nunca senti raiva de ninguém. Nem inveja. Eu sou da paz.
Só tem uma coisa que me tira do sério. É safadeza. Aí, eu viro bicho.  Foi por isso que eu enfiei a faca nas costas do Tião. Enfiei, enfiei, enfiei até ele sair de cima da minha menina. De dentro dela. Até ela parar de chorar. Depois eu chamei a polícia. Queria que eles tirassem logo aquele filho da puta da minha casa. Não me arrependo de nada. Pelos meus filhos eu faço tudo.
Foi isso o que aconteceu, doutora. 





domingo, 15 de janeiro de 2017

o sonho



Ela entra em casa com as sandálias dependuradas na mão esquerda. Um tom leve de rosa cobre-lhe as unhas, e é em bico de pé que entra no quarto, as sandálias a balançarem fitas que ela ataria a cada perna se as calçasse.
Jerónimo dorme.
Ele dorme sempre a esta hora.
Duas da tarde e ele a ressonar sonhos que, depois, lhe conta, madrugada fora, o cabelo dela derramado na sua coxa nua e Jerónimo passeando-lhe as mãos.
Foi assim que ela soube que ele sonhava com o mergulho na lagoa.
Eufemismo, esse, de chamarem o mergulho na lagoa ao que se dera.
Mais dois passos e ela deixa cair as sandálias. 
Reverbera no soalho um som imenso que desfaz o silêncio da casa e se estende até àquele mar de água plasmado lá ao fundo. Um mar de água doce que é a lagoa e, a esconde-lo e a mostrá-lo, ao ritmo duma brisa que sopra, morna, desde que amanheceu, o cortinado.
As sandálias fazem um ruido imenso, apesar do tapete que ela bordara a imitar as bordadeiras do Alentejo; tapete para onde deixa escorregar a túnica antes de se estirar na cama larga, o bronzeado do seu corpo nu a contrastar com o alvo do lençol, que eles nunca põem sobre a cama uma colcha ou outro pano que não seja muito branco.
Ela ao lado de Jerónimo que não reage ao ruido que fazem as sandálias ao caírem no tapete.
Jerónimo que dorme coberto por um calção aos riscos verdes e brancos. Verdes como lhe veríamos os olhos se estivesse acordado e sem as lentes escuras com que se protege daquele sol do Mediterrâneo.
Jerónimo com os caracóis negros humedecidos dum suor igual ao que goteja, aqui e ali, na pele do seu corpo muito da cor de um rosa de carne, quase nacarado.
De madrugada, ele irá contar-lhe, como é o costume.
Primeiro, passeia-lhe nos seios os mesmos dedos com que lhe serviu uma bebida: limão e cidra com um aroma de hortelã acabada  de colher no vaso da varanda; e sempre antes de ter dito: a bicicleta escorregou; que ele ainda lhe gaba o seio e lhe sorri.
– Que redondos e durinhos que são estes teus seios.
E beija-lhos dobrando-se sobre ela, e sorri-lhe de novo, e torna a passar-lhe os lábios, ao de leve, nos mamilos.
Mas, ainda mal o contar do sonho tem início com aquele dizer que a bicicleta tinha escorregado, e já os dedos de Jerónimo se deslassam sobre o corpo dela como se, de repente, tivesse ali ficado outro ele, sejam outros os dedos que estão a tocá-la. E ela, tensa no ouvir do que seria o sonho que Jerónimo tinha tido nessa tarde, encolhe-se sobre si mesma, numa volta rápida, de modo a deixar que ele fique a passar-lhe dedos inquietos no cabelo ainda meio molhado do banho na lagoa e do suor, que nem a brisa acalma o calor daquele fim de agosto.
– Acredita, diz ele, a dirigir-se-lhe e, no entanto, parecendo que fala sozinho.
– Acredita que tive medo como se fosse de verdade.
A bicicleta deslizando e Jerónimo sem conseguir correr.
Ele a gritar: salta Francisco, salta.
Ele a dizer: não te deixes entrar na água, salta.
Jerónimo num desespero a gritar socorro, acudam, e a repetir o nome: Francisco, Francisco, Francisco.
Foi assim naquela tarde.
Ela sabe.
Foram dois minutos, um minuto, poucos segundos; a eternidade é o que pareceu, e ninguém para ouvi-lo naquele local que, de repente, era um ermo: a falésia e a praia e a lagoa e nem um barco à hora a que se deu. Nem um pastor pastando umas cabras; ninguém que tivesse visto, que tivesse acudido.
Jerónimo a contar o sonho diz-lhe que ainda não havia telemóveis, e que as pernas dele já não se moviam, como antes.
– Antes do acidente, eu corria, diz-lhe Jerónimo, e ela sabia.
E, a dizer assim, acaricia-lhe os cabelos cor de fogo ou cor de papoila ou cor da terra vermelha que é como ele costuma dizer-lhe: tens cabelos da cor da terra em África.
Jerónimo sem poder mover-se, depois do acidente, tinha gritado e tinha chorado, que a bicicleta estava a afundar-se na água e com ela o Francisco.
E a contar o sonho, ele diz deste modo:
– E depois, por uns segundos, o corpo do menino fica a boiar, e eu acordo.
Ele termina o contar do sonho e ela desenrola-se de si mesma e enleia-o no seu corpo: braços mãos pernas cabelo.





na imagem desenho de Egon Shiele







quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

ouro de tolo


o amor não cabe na internet
a revolução não virá numa #hashtag
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segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A VELHINHA NA COLINA









A velhinha acena da colina
A cena da velhinha na colina.
Sua vela apagou-se ‘inda há pouco
A vela da velhinha da colina.

A velhinha se despede pouco a pouco 
Todos vão, todos partem, ela fica.
Está frio na colina, lá no topo.
Vento sopra lá na curva da colina.

O azul dos seus olhos entardece.
A velhinha adormece, amortecida.
Amortece e tece amor em seu bordado,
Entre flores, entre rendas, deixa a vida.