Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

domingo, 23 de março de 2008

Coleção de Botões

Minha mãe finalmente descansou após lutar bravamente contra um câncer agressivo e doloroso. Eu sempre admirei a sabedoria e coragem da mulher negra, pobre e analfabeta que venceu todas as dificuldades honestamente, ás custas do próprio suor e empenho.

Dona Maria Olímpia teve a única filha sozinha na casinha humilde no bairro do Grajaú. Nasci em 1932 e nunca conheci meu pai, a velha história de ir comprar cigarros e desaparecer para todo o sempre era comum na época, minha mãe já costurava para vizinhas e amigas e nem o resguardo a impediu de atender suas freguesas.

Minha mãe era miúda e agitada, trabalhava dia e noite sem parar. Fui criada ao pé da máquina de costura, adormecia com o barulho das agulhas e tesouras, despertava com o as trocas de medidas e ajustes. Ganhei muitos presentes das freguesas generosas, todas gostavam do trabalho da minha mãe que nunca atrasou um prazo ou perdeu uma costura.

Pretinha e pequenina toda vestida de branco eu era um sucesso cada vez que saía as compras ou a missa aos domingos:__ Filha de costureira, precisava dar o exemplo no capricho dos moldes. Esta boa desculpa me rendia os mais lindos vestidos e fitas.

Quando comecei a estudar na escola do bairro percebi que ser negra me excluía de muitas coisas boas, não fiz amizades nem fui convidada para as festinhas de aniverssário das coleguinhas. Minha mãe não podia comprar presentes nem bonecas nas lojas de brinquedos mas com as sobras das roupas fazia lindas bruxas de pano.

Eu fui uma menina muito tranquila e simples, tudo me alegrava. Vivíamos em uma vila de casas e a maioria dos moradores eram bem idosos, única criança, acabei ganhando muitos avós.
Acima de todos os objetos de costura do mundo maravilhoso dos tecidos finos eu era fascinada por botões. Lindos, de todos os tipos e formatos, pequeninos, pesados, de vidro, cristal, madrepérola ou forrados...botões.

Um freguesa trouxe uma lata de biscoitos vazia para que eu guardasse meus tesouros. Fiquei felicíssima, dava voltas rodopiando com a lata nos braços em uma valsa imaginária, feliz da vida esqueci a falta das festas e amiguinhas da escola, esqueci que era chamada de negrinha e que a carteira ao lado da minha sempre ficou vazia...esqueci até o dia dos pais que nunca comemorei.

Anos depois minha coleção de botões estava na terceira caixa, era o dia da minha formatura no Instituto de Educação, minha mãe só fazia chorar de alegria. Eu, a filha da costureira tirando diploma de professora era demais para sua simplicidade.

Houve cerimônia e recebi elogios pois fui uma das melhores alunas, sempre com média alta e bons trabalhos. Planejava prestar concurso público, trabalhar bastante e tirar mamãe da vida sacrificada que levávamos.

Após a formatura ganhei um bolo confeitado de uma freguesa para o lanche de comemoração. Muitos vizinhos e amigos apareceram para festejar trazendo pratinhos de doces e salgados. Estávamos felizes e eu usava o uniforme de normalista pela última vez.

Mamãe trouxe um pacote enfeitado com um laço vermelho tão lindo que senti pena de abrir, dentro uma finíssima caixa de madeira entalhada com meu nome e data:_ são para os seus botões minha filha.

Abraçadas sentimos que tudo seria diferente a partir daquele dia, a vida prometia muitas mudanças, havíamos vencido uma etapa importante. Todos ficaram comovidos com a felicidade de mamãe.
Coloquei minha coleção no aparador da sala para que todos admirassem meus botões. Incrível como Dona Maria sabia a história de vários deles:_olha Judith este dourado é da farda do Manoel, e este de ''rosinhas'' é do vestido de noiva da Filó e aquele outro é do vestidinho de batizado da neta da dona Ivone.

As vizinhas reconheciam seus botões e contavam histórias dos vestidos, bailes, noivados e recepções. Exatamente como eu havia imaginado durante toda minha infância.

O tempo passou, os anos voaram, fiz carreira e alcancei o cargo de diretora de escola. Casei e dei netos para Dona Maria Olímpia que nunca deixou de costurar. Já bem idosa e doente fazia roupinhas para orfanatos e enxoval para as mães pobres, tinha um coração iluminado e generoso.

Minha mãe. Após o enterro andei pela casinha vazia com o coração apertado de saudades. Abri janelas e cortinas , deixei o sol entrar. Após tantos anos encontrei minhas latas exatamente do jeito que deixei na velha saleta de costuras, a máquina antiga e o manequim de madeira ainda estavam lá, tudo limpinho e cuidado, como se estivessem esperando o momento de entrar mais uma vez na minha vida.

Num impulso espalhei todos os botões no chão e como um passe de mágica voltei aos meus tempos de menina, tocando meus botões e imaginando mil histórias...saudades do perfume de alfazema de mamãe e da sua voz cantando modinhas.

Do barulhinho da máquina de costura passando na seda...pequenos botões amados que fizeram parte da minha história, portadores de alegrias e distração. Mais uma vez cumpriam importante papel trazendo alento ao meu coração, botões, simples e pequeninos botões.





sexta-feira, 21 de março de 2008

Continente





Marcia Szajnbok


Queria captar da palavra amor
Apenas a forma
O corpo nu
Desprovido de significado
(o tal do amor-conteúdo já foi tão abusado!)

Romantismo feijão-com-arroz
Vende-se barato em qualquer parte:
Todos se amam muito!
Se estão tristes, é por falta de amor...
Se são mimados, é porque houve amor demais...
Amor de novela, com violinos ao fundo
E pôr-do-sol de cenário
E juras, e lágrimas, e suspiros, e ais...

Não quero saber desse amor gasto!
Pieguices com colorido barroco:
Não dizem nada
Não têm consistência
Não resistem à primeira chuva
São tempestades de areia
Que turvam os olhos
Mas não aquietam o coração.

Recortarei do amor apenas o nome
O esqueleto
Um oco, buraco vazio
A ser preenchido
De algum modo inusitado
Um amor com assinatura
Amor-obra-de-arte
À imagem e semelhança
De um sonho
Inventado.

Um amor assim concebido
Poderia então dedicar
Com calma e delicadeza
Com gestos lentos e toques leves
A quem soubesse escutar, comigo,
A música infinita do silêncio
Compartilhado.





terça-feira, 18 de março de 2008

De Puta a Pop



Este mês de março marcará a história de Nova York.


A cabeça do governador Eliot Spitzer rolou por causa dum escândalo sexual e, em seu lugar, assumiu Patterson - o primeiro governador negro no estado e, ao mesmo, o primeiro governador cego da nação.

O que surpreende não é o escândalo sexual, não é o fato dum político estar envolvido numa rede de prostituição, ter gasto uns 80 mil dólares para satisfazer seu apetite sexual. Outros políticos norte-americanos já passaram pelo constrangimento de ter sua vida íntima escandarada, inclusive o ocupante do cargo máximo, o notório caso Bill Clinton-Monica Lewinsky. O próprio governador substituto se adiantou e, no segundo dia no cargo, já abriu a intimidade e revelou que ele e a esposa cometeram adultério anteriormente.

Este tipo de puladas de cerca não surpreendem, aliás, numa cultura patriarcal, muita gente acha o máximo - e de direito - que o homem dê suas escapadas. Encontram argumentos na genética, nas sociedades primitivas, na religião, ou em qualquer outra fonte duvidosa, mas sempre apresentam algum argumento "irrefutável" para a instituição do adultério.


Um dos aspectos curiosos do caso Spitzer é que, como dizem, o pobre coitado "cavou a própria sepultura". É dele a lei que torna o cliente de prostituição também um criminoso, passível de ir para a cadeia. E poucos duvidam de que Spitzer também verá o sol nascer quadrado.

Mas o mais surpreendente, na minha opinião, é o "fenômeno Kirsten", como assim o batizaremos.

O nome verdadeiro da "Kirsten" é Ashley Alexandra Dupre, 22 anos, descrita pelo próprio ex-governador como "a mulher mais sexy que já conheci".
Assim que a relação entre Spitzer e a rede de prostituição foi exposta, toda a imprensa se desesperou para descobrir a identidade da prostituta que chegava a cobrar 6 mil dólares por uma única noite. No fim do novelo, estava Ashley.

Spitzer foi demonizado, capa de todos os jornais, execrado pela opinião pública, motivo de chacota, mas a singela e inocente Kirsten atingiu o estrelato em menos de 48 horas.
Descobriram que o grande sonho da moça era se tornar cantora, que teve uma infância difícil, e que fazia bico de garota de programa enquanto tentava lançar sua carreira artística, ou seja, um caminho percorrido por muitos que estão sob os holofotes hoje em dia.

Uma santa, tentando apenas alcançar a fama. E conseguiu, da maneira mais inusitada possível. Precisou que alguém fosse decapitado para que a estrela de Kirsten brilhasse. Logo os MP3 com as péssimas músicas dela estavam nas paradas de sucesso: as canções mais pedidas nas rádios, vendas meteóricas na internet. Estima-se que ela arrecadou, em poucos dias, quase 600 mil dólares com sua "carreira artística".

Simplesmente extraordinário! Nenhum marqueteiro poderia ter planejado melhor estratégia de publicidade.
Muito artista deve estar agora vagando pelas ruas, resmungando consigo próprio: "também quero dar para um governador..."

Enquanto isto, na Holanda, onde drogas ilícitas leves, prostituição e pornografia são permitidas - mais do isto, quase um patrimônio público -, foi aprovada uma lei autorizando também sexo em parques, ao céu aberto, durante a noite. Lá, Kirsten não seria uma pop star, no máximo, estaria se exibindo numa vitrine para os transeuntes.

"Eu devia ter nascido na Holanda", é que deve se passar na mente do ex-governador de NY, neste exato instante.





segunda-feira, 17 de março de 2008

O Longo Exílio

Léon Tolstói
trad.: Henry Alfred Bugalho

Na cidade de Vladimir, vivia um jovem mercador chamado Ivan Dmitrich Aksionov. Ele possuía duas lojas e uma casa própria.
Aksionov era uma rapaz bonito, cabelos loiros encaracolados, divertido e que gostava duma cantoria. Ainda bastante jovem, ele era dado a beber e, quando passava da conta, se tornava um baderneiro; mas, após se casar, ele parou de beber, tirando uma vez ou outra.
Certo verão, Aksionov ia para a Feira de Nizhny e, ao se despedir de sua família, a esposa lhe disse:
— Ivan Dmitrich, não vai hoje; eu tive pesadelo com você.
Aksionov riu, e disse:
— Você tem medo de que, quando eu chegar na feira, eu caia na farra.
A esposa respondeu:
— Não sei do que tenho medo; tudo que sei é que tive um pesadelo. Sonhei que você retornava para a cidade e, ao tirar seu chapéu, vi que seu cabelo estava grisalho.
Aksionov riu.
— Este é um sinal de boa sorte, ele disse. Aposto que venderei todas minhas mercadores, e trarei alguns presentes para você da feira.
Ele disse adeus à família e partiu.
Após ter viajado metade do trajeto, ele encontrou um mercador a quem conhecia, e eles pernoitaram na mesma estalagem. Beberam chá juntos, depois foram dormir, em quartos contíguos.
Aksionov não tinha o costume de dormir tarde e, como desejava viajar enquanto o dia ainda estava fresco, ele despertou o condutor antes de amanhecer e o instruiu a preparar os cavalos.
Então ele se dirigiu ao proprietário da estalagem (que vivia num chalé nos fundos), pagou sua conta e prosseguiu em sua viagem.
Quando havia percorrido uns quinze quilômetros, ele parou para alimentar os cavalos. Aksionov descansou um pouco na entrada duma estalagem, depois adentrou a varanda e, ordenando que aquececem o samovar, tirou seu violão e começou a tocá-lo.
De repente, uma troika apareceu, sinos tilitando, e um oficial desembarcou, seguido por dois soldados. Ele se aproximou de Aksionov e começou a questioná-lo, perguntou com quem ele esteve e de onde ele estava vindo. Aksionov respondeu tudo, e perguntou:
— Não quer tomar um chá comigo?
Mas o oficial continuou interrogando-o:
— Onde você passou a noite anterior? Você estava sozinho, ou com um outro mercador? Você viu este mercador hoje de manhã? Por que você partiu da estalagem ainda de madrugada?
Aksionov tentava imaginar o porquê de ele fazer todas estas perguntas, mas descreveu tudo que tinha acontecido, e então acrescentou:
— Por que você me interroga como se eu fosse um ladrão ou bandido? Estou viajando a negócios, sozinho, e não há necessidade de me interrogar.
Então o oficial, chamando os soldados, esclareceu:
— Eu sou o oficial da polícia deste distrito, e eu o interrogo porque o mercador com o qual você passou a última noite foi encontrado com a garganta cortada. Precisamos vasculhar seus pertences.
Eles entraram na casa. Os soldados e o oficial da polícia abriram as bagagens de Aksionov e as reviraram. Repentinamente, o oficial retirou, dum saco, uma mala, gritando:
— De quem é esta faca?
Aksionov olhou, e, diante da visão da faca enangüentada encontrada em sua mala, ele se assustou:
— E por que há sangue nesta faca?
Aksionov tentou responder, mas mal conseguia pronunciar uma palavra, e apenas gaguejou :
— Eu — não sei — não... minha.
Então o oficial da polícia disse:
— Nesta manhã, um mercador foi encontrado na cama com a garganta cortada. Você é a única pessoa que poderia ter feito isto. A casa estava trancada por dentro e não havia mais ninguém lá. Há uma faca ensangüentada na sua mala, e seu rosto e suas expressões o traem! Diga-me como você o matou e quanto você roubou dele?
Aksionov jurou que não havia feito nada; que não havia visto o mercador depois de eles terem tomado chá juntos; que ele não tinha dinheiro, com exceção de oito mil rublos que lhe pertencia, e que a faca não era dele. Mas sua voz estava trêmula, o rosto, pálido, e ele tremia de medo, como se ele fosse culpado.
O oficial da polícia deu ordem aos soldados para prendê-lo e pô-lo na carroça. Enquanto eles amarravam-no os pés e o arremessavam para dentro da carroça, Aksionov fazia o sinal da cruz e se lamentava. Seu dinheiro e mercadorias foram confiscadas, e ele foi enviado para a cidade mais perto e aprisionado. Investigações sobre seu caráter foram feitas em Vladimir. Os mercadores e outros habitantes da cidade disseram que, no passado, ele costumava beber e vagabundear, mas que ele era um bom homem. Chegou o dia do julgamento: ele foi acusado de ter assassinado um mercador de Ryazan e roubado dele vinte mil rublos.
Sua esposa se desesperou e não sabia no quê acreditar. Os filhos dela eram todos pequenos: um ainda era bebê de colo. Levando todos consigo, ela foi até a cidade onde seu marido estava preso. A princípio, não permitiram que ela o visitasse, mas depois de muito implorar, ela obteve permissão dos oficiais, e o encaminharam até ele. Ao ver seu marido com uniforme de presidiário e acorrentado, trancafiado com ladrões e criminosos, ela desmaiou, e não voltou a si por longos minutos. Então ela trouxe para perto de si as crianças e se sentou ao lado dele. Ela contou para como estavam as coisas em casa e perguntou sobre o que havia acontecido com ele. Ele explicou tudo, e ela perguntou:
— O que podemos fazer agora? Temos de pedir ao Czar para não deixar um homem inocente perecer.
Sua esposa lhe disse que haviam enviado uma petição ao Czar, mas que não havia sido aceita.
Aksionov não respondeu, apenas baixou o olhar.
Então sua esposa disse:
— Não foi em vão eu ter sonhado que seu cabelo tinha ficado grisalho. Você se lembra? Você não devia ter viajado naquele dia.
E deslizando os dedos pelos cabelos dele, ela perguntou:
— Vanya, querido, diga a verdade para sua esposa; não foi você quem fez isto?
— Até você suspeita de mim também! disse Aksionov e, escondendo o rosto com as mãos, começou a chorar. Então um soldado veio e disse que a esposa e as crianças tinham de ir embora; Aksionov se despediu da sua família pela última vez.
Quando eles haviam partido, Aksionov se recordou do que tinha sido dito, e se lembrou que sua esposa também havia suspeitado dele, e falou para si mesmo:
— Parece que só Deus sabe a verdade; é para Ele apenas que devemos recorrer, e Dele apenas que devemos esperar misericórdia.
E Aksionov não escreveu mais petições; perdeu toda a esperança e apenas rezava para Deus.
Akvionov foi condenado a ser chibatado e enviado para as minas. Ele foi açoitado com um chicote, e quando os ferimentos feitos pelo chicote foram curados, ele foi mandado para a Sibéria com outros condenados.
Por vinte e seis anos, Aksionov viveu como um prisioneiro na Sibéria. Seu cabelo ficou branco como a neve, e sua barba cresceu longa, fina e cinza. Toda sua alegria se esvaiu; ele se acorcundou; caminhava vagarosamente, falava pouco, nunca ria, mas orava constantemente.
Na prisão, Aksionov aprendeu a fazer botas, o que lhe rendia algum dinheiro, com o qual ele comprou A Vida dos Santos. Ele lia este livro enquanto havia luz suficiente na prisão; e, aos domingos, na capela da prisão, ele lia as lições e cantava no coro; pois sua voz ainda estava boa.
As autoridades da prisão gostavam de Aksionov por sua submissão, e seus colegas de cárcere o respeitavam: chamavam-no “padrinho”, ou “o Santo”. Quando eles queriam pedir algo para as autoridades da prisão sobre qualquer assunto, eles sempre faziam de Aksionov seu porta-voz, e quando havia disputas entre os prisioneiros, eles vinham a ele como conciliador, para julgar a questão.
Aksionov não recebia notícias de casa e não sabia até mesmo se sua esposa e filhos estavam vivos.
Um dia, uma nova leva de condenados chegou à prisão. À noite, os antigos prisioneiros reuniram os novos e os perguntaram de quais cidades ou vilas eles tinham vindo, e quais eram suas condenações. Aksionov se sentou no meio deles, perto dos recém-chegados, e ouviu, com ar pesaroso, ao que eles diziam.
Um dos novos condenados, um homem alto, por volta dos sessenta anos, barba grisalha bem aparada, contava aos outros porque ele foi preso.
— Bem, amigos, ele disse, eu apenas peguei um cavalo que estava atado a um trenó, fui preso e acusado de roubo. Aleguei que eu o havia pegado apenas para chegar em casa mais rápido e que depois eu o devolveria; além disto, o condutor era um amigo pessoal meu. Eu disse, então:
— Está tudo bem.
— Não, eles responderam, você o roubou.
Mas como e onde eu o havia roubado eles não conseguiam determinar. Certa vez, eu fiz algo realmente errado e devia, com razão, ter vindo para cá há muito tempo, mas, àquela época, eu não fui pego. Agora, fui enviado pra cá por nada.... hum, mas eu estou mentindo pra vocês; já estive na Sibéria antes, mas não fiquei por muito tempo.
— De onde você é? — alguém perguntou.
— De Vladimir. Minha família é daquela cidade. Meu nome é Makar, e eles também me chamam Semyonich.
Aksionov ergueu a cabeça e perguntou:
— Diga-me, Semyonich, você sabe alguma coisa sobre a família de mercadores Aksionovs de Vladimir? Eles ainda vivem?
— Conhecê-los? Claro que sim. Os Aksionovs são ricos, apesar de o pai estar na Sibéria — um pecador como a gente, pelo que tudo indica! E você, vovô, como veio parar aqui?
Aksionov não gostava de falar sobre sua desgraça. Ele apenas suspirou e disse:
— Por meus pecados, estou na prisão há vinte e seis anos.
— Quais pecados? — indagou Makar Semyonich.
Mas Aksionov apenas respondeu:
— Bem, bem — eu devo ter merecido!
Ele não teria contado mais anda, mas seus companheiros narraram aos recém-chegados como Aksionov havia vindo parar na Sibéria; que alguém havia matado um mercador, posto a faca em meio os pertences de Aksionov, e como ele havia sido condenado injustamente.
Ao ouvir isto, Makar Semyonich fitou Aksionov, deu um tapa no próprio joelho e exclamou:
— Nossa, isto é incrível! Realmente inacreditável! Como você envelheceu, vovô!
Os outros o perguntaram por que ele estava tão surpreso, e onde ele havia visto Aksionov antes; mas Makar Semyonich não respondeu. Ele apenas disse:
— É incrível que nós tenhamos nos encontrado aqui, camaradas!
Estas palavras fizeram Aksionov imaginar se este homem sabia quem havia matado o mercador; então ele perguntou:
— Será que você, Semyonich, já não ouviu sobre este caso antes, ou talvez tenha me visto?
— Como pude não ter ouvido? O mundo está repleto de boatos. Mas isto foi muito tempo atrás, e já me esqueci do que ouvi.
— Será que você não ouviu quem matou o mercador? — perguntou Aksionov.
Makar Semyonich riu, depois respondeu:
— Deve ter sido aquele em cuja mala a faca foi encontrada! E se outra pessoa a escondeu lá, “ele não é um ladrão, até ter sido pego” como diz o ditado. Como ele poderia ter posto uma faca em sua mala, enquanto você escorava sua cabeça nela? Você certamente teria acordado.
Ouvir estas palavras fez com que Aksionov tivesse certeza de que este era o homem quem havia matado o mercador. Ele se levantou e saiu dali. Durante toda a noite, Aksionov ficou acordado. Ele se sentia terrivelmente infeliz e todo tipo de imagens surgiu em sua mente. Havia a imagem de como era a sua esposa quando ele se despediu dela para ir à feira. Ele a via como se ela estivesse presente; o rosto e os olhos dela surgiam diante dele; ele a ouvia falar e rir. Então ele viu seus filhos, pequeninos, assim como eles eram àquela época: um vestindo um casaquinho, o outro, no colo da mãe. E, então, ele se lembrou de como ele costumava ser — jovem e feliz. Ele se lembrou de como ele estava sentado, tocando violão na varanda da estalagem, quando ele foi preso, e como ele estava livre de preocupação. Ele viu, em sua mente, o local onde ele foi açoitado, o verdugo, e as pessoas ao seu redor; as correntes, os condenados, todos os vinte e seis anos que passou na cadeira, e seu envelhecimento precoce. Pensar em tudo isto o fez se sentir tão miserável que ele estava prestes a se matar.
— E tudo isto é obra daquele vilão! — pensou Aksionov. E sua raiva contra Makar Semyonich era tão grande que ele ansiava por vingança, mesmo que ele se arruinasse por causa disto. Ele continuou recitando as preces durante toda a noite, mas não obtinha paz. De dia, ele não conseguia chegar perto de Makar Semyonich, nem mesmo olhar para ele.
Duas semanas se passaram deste jeito. Aksionov não conseguia dormir à noite, tão infeliz que não sabia o que fazer.
Numa noite, enquanto ele andava pela prisão, ele reparou que um pouco de terra saía de sob um dos beliches nos quais dormiam os prisioneiros. Ele parou para ver o que era. De repente, Malar Semyonich se arrastou de sob o beliche, e olhou assustado para Aksionov. Este tentou passar sem olhar para ele, mas Makar o agarrou pela mão e lhe contou que ele havia cavado um buraco sob a parede, livrando-se da terra ao escondê-la em suas botas de cano longo, e esvaziando-as todos os dias na estrada por onde os prisioneiros eram encaminhados ao trabalho.
— Bico fechado, velho, e você poderá fugir também. Se você der com a língua nos dentes, eles me açoitarão até tirar meu couro, mas eu darei um fim em você primeiro.
Aksionov tremia de raiva, enquanto fitava seu inimigo. Ele desvencilhou sua mão, dizendo:
— Não tenho vontade de fugir, e você não precisa me matar; você me matou muito tempo atrás! E sobre delatá-lo — talvez eu o faça, talvez não, dependendo de como Deus me orientar.
No dia seguinte, enquanto os condenados eram levados para o trabalho, os soldados do comboio perceberam que um ou outro dos prisioneiros esvaziava um pouco de terra de suas botas. A prisão foi vasculhada e encontraram o túnel. O governador veio e interrogou todos os prisioneiros para descobrir quem havia cavado o buraco. Todos negaram ter algum conhecimento sobre isto. Aqueles que sabiam, não trairiam Makar Semyonich, cientes de que ele seria chibatado até quase a morte. Por fim, o governador se voltou para Aksionov, que ele sabia ser um homem justo, e questionou:
— Você é um ancião de confiança; diga-me, diante de Deus, quem cavou o buraco?
Makar Semyonich agia como se ele não estivesse preocupado, olhando para o governador e quase sem espiar Aksionov. Os lábios e mãos de Aksionov tremiam e, por um longo tempo, ele não conseguiu pronunciar uma palavra sequer. Ele pensou, “por que eu deveria proteger aquele que arruinou minha vida? Deixe que ele pague por aquilo que eu sofri. Mas, se eu contar, eles provavelmente o açoitarão até lhe arrancar o couro, e talvez eu tenha suspeitado dele erroneamente. E, no final das contas, que bem isto fará para mim?”
— Bem, ancião, repetiu o governador, diga-me a verdade: Quem andou cavando sob a parede?
Aksionov fitou Makar Semyonich, e disse:
— Não posso contar, sua excelência. Não é a vontade de Deus que eu fale! Faça o que quiser comigo; estou em suas mãos.
Independente de quanto o governador tentasse, Aksionov não disse mais nada, e tiveram de abandonar a questão.
Naquela noite, quando Aksionov estava deitado em seu leito e quase começando a adormecer, alguém veio, em silêncio, e se sentou na cama dele. Ele perscrutou a escuridão e reconheceu Makar.
— O que mais você quer de mim? — perguntou Aksionov — Por que veio até aqui?
Makar Semyonich permaneceu em silêncio. Então Aksionov se sentou e perguntou:
— O que você quer? Vá embora, ou eu chamarei a guarda!
Makar Semyonich se inclinou em direção a Aksionov e sussurrou:
— Ivan Dmitrich, perdoa-me!
— Por quê? — perguntou Aksionov.
— Fui eu quem matou mercador e escondeu a faca em suas coisas. Eu pretendia matar você também, mas eu ouvi um barulho vindo de fora, então escondi minha faca em sua mala e fugi pela janela.
Aksionov se calou, não sabia o que dizer. Makar Semyonich deslizou para fora do beliche e se ajoelhou no chão.
— Ivan Dmitrich, ele suplicou, perdoa me! Por amor de Deus, perdoa me! Vou confessar que fui eu quem matou o mercador, você será libertado e poderá voltar pra casa.
— É fácil para você falar, disse Aksionov, mas eu sofri por sua causa durante estes vinte e seis anos. Para onde eu iria agora? Minha esposa está morta, e meus filhos se esqueceram de mim. Não tenho para onde ir...
Makar Semyonich não se levantou, mas batia com a cabeça no chão.
— Ivan Dmitrich, perdoa-me! — ele gritava — Quando eles me açoitaram com o chicote, não foi tão difícil de suportar quanto é agora olhar para você... Mesmo assim você teve pena de mim e não me entregou. Por Cristo, perdoa-me, eu sou um desgraçado!
E ele começou a soluçar.
Quando Aksionov o ouviu soluçando, ele também desatou a chorar.
— Deus o perdoará! — ele disse — Talvez eu seja cem vezes pior do que você.
E ao dizer estas palavras seu coração se tornou leve e a saudades de casa o deixou. Ele não desejava mais deixar a prisão, mas apenas esperava pela chegada da hora derradeira.
A despeito do que Aksionov havia dito, Makar Semyonich confessou sua culpa. Mas quando a ordem de soltura foi emitida, Aksionov já havia morrido.

fonte: Bibliomania

Biografia

Liev Tolstói, também conhecido como Léon Tolstói ou Leão Tolstoi ou Leo Tolstoy, Lev Nikoláievich Tolstói (9 de setembro de 1828 - 20 de novembro de 1910) foi um escritor e ensaísta russo muito influente na literatura e política de seu país. Junto a Fiódor Dostoiévski, Tolstói foi um dos grandes da literatura russa do século XIX. Suas obras mais famosas são Guerra e Paz, sobre as campanhas de Napoleão na Rússia, e Anna Karenina, onde denuncia o ambiente hipócrita da época e realiza um dos retratos femininos mais profundos e sugestivos da Literatura. Membro da nobreza, entre 1852 e 1856 realizou três obras autobiográficas: Meninice, Adolescência e Juventude. Tolstói serviu no exército durante as guerras do Cáucaso e durante a Guerra da Criméia como tenente - cuja experiência transpôs para o romance Sebastopol (1856) em que expressa suas opiniões contrárias à guerra. Esta experiência converter-lhe-ia em pacifista. Associado à corrente realista, tentou refletir fielmente a sociedade em que vivia. Vítima de pneumonia, morreu miseravelmente numa estação ferroviária, em 1910.

fonte: Wikipédia





sábado, 15 de março de 2008

Luxo

Jurandir Araguaia

Ao abrir a porta notou o ambiente em pouca luz. A extravagante cobertura situava-se no mais nobre ponto da cidade. Procurou-a com um olhar pela ampla sala. Fechou a porta. Deixou a pasta e o casaco sobre uma cadeira logo à entrada. Respirou fundo. O olhar correu, agora lentamente, por cada um dos conhecidos cantos. A escuridão, quase total, não permitia que enxergasse direito. Sabia do que se tratava. Era sexta-feira. O mercado financeiro fora bom. Cotações em alta.
Caminhou lentamente. Uma música suave começou a tocar espalhando-se pelo ambiente. As poucas luzes mudaram para um tom avermelhado. Sentia uma fragrância deliciosa no ar. Respirou fundo.
- Vou te achar! – disse em voz baixa.
A um canto distinguiu seu vulto. Parecia sentada sobre um objeto. Uma tímida luz foi sendo acesa aos poucos. Daniele apareceu-lhe em tons alaranjados, intensos, dando à sua pele um tom de cobre. Olhava-o profundamente. Vestida sumariamente. Fantasiava-se de fada, o pano fino, transparente, deixava à mostra os belos contornos. Não estava sentada sobre um objeto, encontrava-se dentro de um carrinho de supermercado.
Ele teve vontade de rir.
- E essa agora!
- O cavalheiro veio fazer compras? – a voz da mulher soou sensual.
- Depende, o que você está vendendo?
- Fantasias sexuais... – deixava que a língua umedecesse os lábios vermelhos e carnudos.
Ficou em pé sobre o carrinho. Ele temeu que ela caísse ou que o veículo se movesse. Somente então notou que estava firme, apoiado entre duas poltronas.
- O cavalheiro se interessa?
Aos poucos foi tirando a gravata. Desabotoou o colarinho e as mangas, enquanto caminhava na direção da diva. Em pé ela valorizava suas formas. Uma calcinha, provocante, se via sob a camada fina da vestimenta leve. Enfeitara-se com pulseiras, colares. O cabelo penteado. O corpo coberto por purpurina dourada.
Ele estava ofegante. Algo começou a embaralhar-lhe a vista. Tivera um dia de recuperação após o caos que varrera o mundo dos negócios naquela semana. Bush, Guerra do Iraque, crise do mercado americano, recessão, comodittes. A euforia do mercado, os milhões que girou ora perdendo, ora ganhando.
Daniele pareceu deformar-se à sua frente. Teve a impressão de que transmudava em um monstro vermelho, com cauda pontiaguda, chifres, tridente, presas e garras.
- Você quer que eu o ame? – o monstro exalava um odor de morte.
Afastou-se assombrado. A criatura saltou do carrinho e o segurou pelo pescoço erguendo-o até que sua cabeça tocasse no teto.
- O que foi, querido? Não gostou da surpresa? O monstro crava-lhe a outra mão rasgando-lhe o peito. Aproxima-o de sua boca e lhe dá um beijo. O corpo treme, sente uma aflição, falta de ar, uma profunda dor a contrair-lhe as entranhas.
Vendo-o tombar ela desce do carrinho e tenta, sem sucesso, reanimá-lo. Muito tarde. O monstro, a essa altura, carregava-o em seus braços fortes levando-o para uma viagem sem volta...





Microcontos: Coisas de Mulher

I.
Dez dias de atraso e um desejo imenso. Entrou no laboratório com o coração aos pulos.
Abriu o exame: NEGATIVO
O peito doeu. Num choro, o atraso acabou.

II.
Dias e dias pensando no que vestir na festa e, ao entrar, lá estava ela, a garota mais chata da turma, com uma roupa idêntica!
Por dentro: gasolina e fósforos, o vestido e a chatice transformados em carvão em segundos.
Por fora: sorriso amarelo, três beijinhos, veja só como temos bom gosto!

III.
Namorico de infância. Não se viam há décadas.
- Calor hoje, não?
- Sim... capaz de chover mais tarde...
E, da previsão do tempo ao beijo-nostalgia bastaram três segundos.





Microcontos

Henry Alfred Bugalho

Eternidade

O vampiro viveu para todo o sempre.

Que tédio!



***


A passageira alegre


Tinha orgasmo duas vezes ao dia. Tremelique do ônibus indo e voltando do trabalho.





quarta-feira, 12 de março de 2008

A frase

   Francisco chega a casa molhado e cansado. Como nos últimos dias, pouco depois de entrar liga o “laptop” e fica à espera. Aguarda até que vê o aparelho encher-se de cor, as letras pequenas comunicando necessidade de receber uma identificação e a respectiva palavra passe. Está inquieto, algo preocupado e, também… o caso não é para menos!

  Lá fora, a chuva bate com força na vidraça e o vento sopra forte, provocando ruídos esquisitos. A água escorre veloz por calhas estreitas de eléctricos, incomodando poucos, descendo desgovernada para os lados do Cais do Sodré. Há muito que o cenário se despiu de artefactos humanos, estando agora recolhidos e aconchegados quase todos os transeuntes.

  A máquina fora dada assim de repente e por isso acha normal encontrar ainda a conta antiga - alienígena, os “folders” com lixo e algumas, muitas manias. Mas aquilo, aquela coisa não esperava. E não se dará a cuidados de informar ninguém sobre o comportamento estranho. “Se o fizer que irão dizer? O mais provável será o descrédito das suas afirmações. Chamá-lo-ão louco, considerá-lo-ão um chalado e ele não quer que isso aconteça”. Tem medo porque sabe (considera) que a maior parte das vezes os dementes dão-se mal.

  Passa dedos por teclas, introduzindo as informações necessárias. Primeiro, surge a saudação composta pela frase “Bem Vindo” escrita em letras grandes e vistosas. Depois é a vez do “ícone” em forma de ampulheta marcar a passagem de um tempo morto para desaparecer logo em seguida, cedendo lugar à janela de fundo negro onde se alinham os símbolos (escritos a vermelho) de palavras das três linhas. Lê.

   Como nos últimos dias, a face ganha um tom vermelho rubro, tenso e o coração começa a bater descompassadamente e mais depressa. O juízo identifica rapidamente a necessidade de acção. Como nas horas primas das noites dos três últimos dias, o corpo ergue-se, curvando-se um pouco para a frente. Carrega no botão. A mão fecha a tampa.

  “Dona Hermínia, vou sair. Não se preocupe comigo. Devo voltar tarde”
Diz, voz cava e ninguém lhe responde.

  Desce os quatro lances de escadas com descer desengonçado, aos tropeções. Firma os óculos, aperta o casaco e abre o guarda-chuva para proteger-se das bátegas que descem incessantemente.

  Atravessa e entra na Travessa do Grémio Lusitano. Ao fundo, dobra a esquina e vira à direita para a Rua da Atalaia. Bate a uma porta de madeira. Pequenina. Ninguém abre.

  Passam-se várias horas. Quase um dia, muitas horas…

  Volta a casa molhado e cansado. Como nos últimos tempos, pouco depois de entrar liga o “laptop” e fica à espera até que vê o aparelho encher-se de cor, as letras pequenas comunicando necessidade de receber a identificação e a palavra passe. Está inquieto, algo preocupado e, também… o caso não é para menos!

  Lá fora chove e o vento sopra. A escuridão é rasgada apenas pela percepção de traços de gotas. A água corre velozmente por calhas estreitas. Na rua já não se vê vivalma.

  Abre a máquina e introduz um nome de conta e a respectiva senha. Decorrem poucos segundos até que aparece uma janela com a frase.

  “Vai à mercearia da Tia Joana comprar um litro de leite!”

  Preocupado, desliga o computador, vocifera qualquer coisa para o vazio e sai batendo com a porta. Desce a correr os lances de escadas.

  (Quase) toda a gente sabe que as mercearias estão fechadas à noite. Mas aquela, nas próximas semanas, nem de dia dará as caras. Porque (como práticamente todos sabem no bairro) os donos estão de férias e partiram outro dia para uma aldeola longínqua que fica lá para os lados de Trás-os-Montes.





Sou

Fragmento de pedaço de tempo perdido
Orgão no denso e tenso acto repetido
Sou o chão e um não e nunca mais eu

Sou o cem; sempre vou a sem... o cem...

Sou o que já ali vai e não mais me vem
Espaço de meu abraço que não se tem
Parte de letra que ninguém jamais leu!

Sou o sem; sempre vou a cem... o sem...

Pedra terrena, pequena calçada equipada
No ponto redondo, efémero, de encruzilhada
Entre o nada e a estrada e momento meu





O Espelho

- Não é normal – disse eu ao meu primo.

- Não é normal o quê?

- O olhar do gajo. Vítreo, desfocado. Parece um Robot.

   O meu primo é um céptico que veste “Pullover” aos losangos, corta o cabelo com “risco ao meio” e acha que tudo o que acontece é normal ou, pior, tem uma razão de ser. Ao interpelá-lo, adivinhava já a reacção – sabia antecipadamente que ia tratar o assunto com desinteresse. Sempre fomos diferentes e a bem da verdade não irei mentir, a família é um tanto ou quanto conservadora – são quase todos como ele. É o primeiro filho do irmão mais velho da minha mãe e herdou do pai o porte, a compleição física impressionante e a casmurrice.

- Anda cá, tens de ver o gajo. Anda antes que se vá embora – insisti. Não respondeu.

- Anda Abel. Vem cá ver o “cara de parvo” – entretanto o “cara de parvo” estava aí a uns dois metros de mim. Parado. Fitava-me.

  Tínhamos saído do Bar há pouco mais de meia hora, vinte minutos antes das três, horário de fecho costumeiro do mesmo. Talvez tivesse bebido um pouco mais que ele, não sei… Noite óptima, céu limpo, era possível ver ao longe, por detrás da parede mais próxima, o cintilar das estrelas. Meu primo não me ligava e então descobri que motivo outro tinha para lá da descrença habitual: olhava para um alto longínquo tentando (sem sucesso) descobrir a Constelação.

- Sabes como se acha a Ursa Maior, Constâncio?

   Não respondi. Agastado, pensei “Desta vez não te ficas a rir, indiferente”. Se tão bem pensei, melhor o fiz: descalcei o sapato do pé esquerdo e, fazendo pontaria ao meio da testa, lancei-o em arco. A coisa acertou em cheio, mesmo em cima do dedo mindinho.

  O resultado não foi exactamente o que esperava: Primeiro deu o berro. Depois levantou-se e avançou na minha direcção com ar ameaçador. Tendo chegado, parou, olhou para nós uma primeira e repetida vez e acalmou-se. Disse-me então para me deixar de parvoíces e fazer o favor de sair de frente do espelho.





HERÓI

As duas magnuns escorregaram macias para o descanso dos coldres. Ainda sopravam um fio de fumaça dos longos canos prateados.

O esquadrão de elite entrou pela porta giratória, tomando conta de todo o hall do banco. Reféns correndo, alguns chorando, outros ainda imóveis pela tensão.

- Caceta! – disse Joe tocando o ombro do herói. – Quem precisa da Elite quando se tem na equipe o grande Marko?!

Há meia hora, o alarme daquele banco havia soado. Em seguida, policiais de todas as escalas estavam cercando o prédio. Os bandidos ameaçavam matar um refém a cada quinze minutos, caso suas exigências não fossem atendidas.

Marko não apostaria no blefe, pois o preço era a vida de inocentes.

Abriu um mapa do prédio, localizou um duto de ventilação. Entrou por ele e despencou no centro do hall. Antes que seu corpo tocasse o chão, fez cinco disparos. Precisava esperar o tambor rodar e oferecer o rabo da bala para o cão morder.

Quando aterrissou, cinco bandidos estavam estirados no chão. Uma bala para cada. Enquanto caia e atirava, pode sentir o cheiro da carne – “A carne!” – de cada um.

- Qual é seu segredo? Como você conseguiu matar todos eles? – perguntou Joe.

- Sorte – sorriu-lhe Marko. – Pura sorte.

Estaria nos jornais de amanhã – “Mais uma vez” –, como um herói – “De novo”. Mas a noite era sempre solitária – “E muito fria, não esqueça de contar isto. As noites agora são mais frias.” – Ligou a tv e jogou o controle no sofá.

Da geladeira, retirou um bife cru e jogou para dentro do prato – “Carne!”

Sentou-se e sorriu para a tela. Uma mulher em látex negro pairava no ar e golpeava com os pés – “Matrix, seu porra. Diz logo que é a Trinity da Matrix e qualquer mané vai saber.”

Às vezes – “sempre” – sentia-se flutuando daquela forma, como se o mundo estivesse em câmara lenta. Mirava tão rápido que precisava esperar a bala sair pelo cano para, só então, mirar no próximo alvo.

Após comer a carne – “crua” – lambeu o fundo do prato – “sangue”. – Recostou-se no sofá – “Mr. Anderson fugindo do agente Smith na tela” – e puxou a calça da perna esquerda até o joelho.

“Vou ter que mostrar a merda da ferida pra você continuar com a porra da história?” – No começo, Marko sentia-se enojado com a carne aberta na altura da canela. O roxo, misturado com o negro apodrecido, empurrava a infecção que subia numa veia, até perto da virilha – “Chupa minhas bolas.”

Não contara para ninguém sobre aquilo. Sabia muito bem o que fariam com ele. Viraria cobaia em algum laboratório com cientistas loucos. Tomou medicamentos por conta própria. Nada adiantou. A infecção subia num ritmo lento – “em câmara lenta, como todo o mundo” – mas ainda chegaria ao coração.

Há dois meses, recebera um chamado na viatura. Duas garotas haviam sumido num bairro pobre. Suspeitavam que Mandrax, um serial killer, estivesse envolvido nos sumiços – “sim, neste e em todos os outros que a polícia não conseguia desvendar.”

Marko – “o herói” – foi para o local e, investigando, encontrou ao lado de um poço uma tira de pano, na cor da roupa descrita pela mãe da garota.

Conferiu a largura do poço e calculou que conseguiria descer – “E desceu, otário.” – Chegando ao fundo seco, percebeu que havia uma passagem. Entrou por ela; numa mão a arma, na outra, a lanterna – se tivesse outra mão, estaria segurando o cu.

A passagem foi alargando. De gatinho, passou a andar agachado, depois abaixado. Finalmente estava em pé, rodeado por paredes de rocha e terra úmidas. Escutava o constante gotejo, até conseguir distinguir, muito ao longe, choramingos. Eram as garotas – “A carne”.

Marko não mudou o ritmo dos passos. A luz da lanterna na mira da arma – “uma automática, naquela época não gostava de ver miolos explodindo e carne dilacerando. Ou fingia não gostar.”

Ao fundo, pode distinguir a figura de duas meninas abaixadas. Se abraçavam uma à outra e, ao lado delas, uma estranha figura se levantou. Lívida como um pilar de mármore; olhos fundos e esbranquiçados em cima de narinas afundadas até o osso. A boca sem lábios lhe conferia um sorriso macabro, manchado de sangue ressecado.

A criatura se levantou lentamente – “em câmara lenta, como o mundo”. Com passos trôpegos – “arrastados. Diz arrastados que descreve melhor” – caminhou em direção ao policial.

- Pare! – gritou Marko. – Pare, ou atiro! – insistiu mirando na criatura.

Não foi obedecido. Gotas, choramingos, e agora grunhidos, ecoavam pelas paredes.

O dedo de Marko afundou no gatilho, saraivando o peito da criatura que arquejou sobre os joelhos e debruçou no chão.

Caminhou pelo túnel, fazendo mira na cabeça morta – “Ah sim, ele realmente estava morto. Não duvide disto. Mas, mesmo assim, vem aquela patética cena de todo filme de terror. Vai, conta...”

Ao passar pela criatura, Marko só tinha olhos para as garotas – “a carne” – que choravam ainda mais alto. Ao pisar entre os braços do morto, a criatura agarrou-lhe as pernas e cravou as mandíbulas, rasgando a calça e a carne. Por puro reflexo, Marko descarregou o que sobrara no pente na cabeça do monstro.

Sentou-se ao chão, puxando a calça e sentindo a dor lacerante na perna. Arrastou-se até as vítimas.

- Está tudo bem, não se preocupem. Ele está morto agora – tentou acalmar as meninas.

Voltou pelo túnel com as duas e, do poço, chamou ao rádio. Foram resgatados, mas algo dentro dele – “eu?” – dizia para não comentar nada sobre a ferida. Seria seu – “nosso” – segredo.

As primeiras noites foram horríveis, mas a dor passou. Algo em seu sangue, misturado com seja lá o que havia naquela mordida, o fez acelerar seus instintos – “suas necessidades primais” – e reflexos. O mundo ao seu redor ficou mais lento – como o andar de um zumbi.

Agora Marko – “e eu” – assistia a infecção galgar por sua veia. Não revelaria para ninguém o segredo de sua atual agilidade. Sua mente era assolada com o mistério sobre o que aconteceria quando chegasse ao seu coração – “Ah, senhor escoteiro metido a escritor, quando o veio negro chegar ao coração, será tudo bem simples: Eu vou estar lá e, então, vou querer carne.”

Texto por Denis da Cruz





segunda-feira, 10 de março de 2008

Brincadeira dos Deuses




Os mestres enxadristas se encararam, ambos sabendo exatamente qual próximo movimento deveriam executar para desestabilizar as defesas do adversário, ambos antevendo três ou quatro jogadas, ambos hábeis demais para cometerem erros de principiantes, caírem em artimanhas flácidas, iludirem-se com sacrifícios de peões, exaltarem-se com jogadas aparentemente sem sentido, demonstrarem sua inquietude diante da desvantagem; pois eram mestres, não meros iniciantes.
Mas a bola de uma criança no parque estragou a partida, com o impacto, arremessou reis, bispos e cavalos por terra.
Os dois mestres sentaram-se, lado a lado, num banco defronte ao crepúsculo. Continuaram jogando em seus pensamentos, cada um vangloriando-se de sua vitória, até o céu ficar salpicado de estrelas e de fantasmagóricos reis mortos.





Obra Incompleta



Diante de si, Hubrecht Van Dijk tinha moinhos, tulipas, o vilarejo lá atrás, o campanário da igreja e o mar.
Ele traçou o esboço, apertou as bisnagas e pincelou as primeiras cores na tela.
Após primavera e verão de trabalho, a administração do vilarejo começou a construção dum moderno prédio de escritórios, completamente destoante do bucólico cenário, mas acorde com o espírito vanguardista do prefeito. Van Dijk comparou a pintura com a paisagem, não ficou satisfeito. Sua obra representava uma realidade não mais existente, precisava alterá-la, incluir o novo edifício.
Tendo feito isto, nova insatisfação: um moinho havia pegado fogo, ato criminoso ou não, nunca foi esclarecido, mas Van Dijk modificou o antes alegre moinho, por outro enegrecido de fuligem.
O vermelho do outono chegou, as tulipas morreram, o céu nublado. As cores do quadro de Van Dijk mentiam. Apressado, desesperado para concluir sua obra, o artista lançou tons pastéis sobre a tela.
Porém, o cinzento inverno, com neve, gelo e árvore secas, também adveio. E o vermelho, ocre, marrom deram lugar ao branco e ao cinza.
Sempre algo diferente, sempre a mutação da realidade, sempre a verdade de Heráclito estapeando Van Dijk na cara. Ele era incapaz de capturar o real.
Por trinta anos o artista lutou com sua obra, quando foi diagnosticado com câncer terminal, seis meses de vida, Van Dijk queimou a pintura inacabada e inacabável. Numa tela em branco, começou tudo de novo e pintou aquela primeira paisagem, sem prédio moderno, sem moinho queimado, sem folhas vermelhas nem neve nas árvores.
Pintou a única pintura real, a das cores, não da realidade.





domingo, 9 de março de 2008

A teoria do Humor

Henry Alfred Bugalho e Volmar Camargo Junior


"O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é", esta sentença de Millôr Fernandes, inspirada numa errônea idéia aristotélica — hoje se sabe que macacos, cães e até ratos também riem — escancara o caráter social do riso. A risada é um dos comportamentos humanos de regulação da interação social, facilitando a aceitação no interior duma comunidade.

Esse texto não tem a pretensão de ser um aprofundamento teórico sobre o assunto. A intenção aqui é meramente abordar o humor por um viés analítico, tomando como referência para um (possível) estudo de caso.

A Enciclopédia Encarta diz que o humor, compreendido em seu sentido amplo, é o texto informal cujo objetivo é divertir ou causar o riso. O humor penetra na ilusão e na imaginação, explorando as possibilidades de situações improváveis e de combinações de idéias, mas difere delas por estar preocupado somente com os aspectos cômicos destas situações imaginárias. Como são muito diversos os textos humorísticos, há também diversas teorias que podem explicá-los. Citemos algumas delas.

Aristóteles é, possivelmente, o primeiro teórico da narrativa que se tem notícia no Ocidente. Boa parte de seu esforço, pelo menos na obra "Poética", é de entender a arquitetura da tragédia, que, para ele, é uma forma de poesia superior às demais — à comédia e à epopéia —, por isto, ele aborda apenas periférica e negligentemente as características do nosso objeto, i.e., a comicidade da comédia.
Para o Filósofo, o que diferencia a comédia da tragédia e da epopéia é o objeto imitado: na epopéia, são retratados homens melhores do que nós, como os heróis míticos de Homero; na tragédia, são retratados homens semelhantes a nós, oprimidos pela vontade dos deuses, sujeitos às desventuras do destino; por fim, na comédia, são retratados homens inferiores, cujos baixos instintos, ao serem expostos ao ridículo, causam riso.

Esta perspectiva coincide em muitos aspectos com a Teoria da Superioridade: o riso é provocado pelas pessoas que apresentam algum defeito, se encontram em posição de desvantagem ou sofrem algum pequeno acidente. Segundo essa teoria, o humor advém de alguma forma de escárnio. O autor observa o objeto retratado de um ponto de vista superior, e seu público compartilha dessa visão. Um dos pontos mais importantes dessa tese é trazido por Alexander Bain: "não é necessário que uma pessoa seja ridicularizada. Uma idéia, instituição política ou qualquer coisa que exija dignidade e respeito também pode ser exposta ao ridículo". Outro ponto importante é encontrado na tese de Henri Bergson, cujo ideal são a adaptabilidade e a elasticidade – caracteres de seu terceiro principal conceito: a Élan Vital. O personagem cômico típico, segundo Bergson, contraria esse ideal. Nada mais é que um indivíduo excêntrico que se recusa a adaptar-se à realidade. A persistência em hábitos imutáveis, independentemente das circunstâncias, torna cômicos os personagens e as situações vividas por eles.

A Teoria da Incoerência assevera que o essencial para o humor é a mistura de duas idéias que são, conforme o que se sente, disparatadas. De acordo com tal teoria pode-se dizer que o humor consiste no encontro do inadequado dentro do apropriado. Segundo parte de seus defensores, o prazer da interpretação do texto cômico está em localizar os pontos de contato entre as idéias incongruentes, onde divergem e onde estão mescladas. Outros, alegam que essa incompatibilidade não se encontra apenas no âmbito textual, mas principalmente em como / por quem esse texto será recebido: vai do textual para o cultural. Isso explicaria por que uma dada anedota atingiria seu objetivo cômico em um dado meio e em outros, não.

A Teoria do Alívio alega que o humor questiona as exigências sociais convencionais. Existem barreiras sociais e ideológicas que censuram, por consenso ou por imposição, certos temas. Abordar esses temas, utilizando os recursos textuais humorísticos, é um modo de burlar essas barreiras. O humor resultante é causador de grande alívio, devido à fuga momentânea de sentimentos reprimidos. Essa teoria, reforçada sobretudo pelas descobertas de Freud no campo da psicanálise, assenta-se antes no prazer individual experimentado pelo receptor do texto cômico. Entretanto, situando-se mais na ruptura com as barreiras psico-sociais, é insuficiente para explicar o humor existente, por exemplo, em textos nonsense e em jogos de palavras.

Estas últimas duas teorias sugerem que não basta uma análise lingüística do texto cômico para compreender sua comicidade. Mikhail Bakhtin propõe uma investigação do discurso, a interação entre o social e o literário. Ao se debruçar sobre "Gargântua e Pantagruel", um dos ícones do realismo grotesco escrito por François Rabelais, Bakhtin percebeu que a obra cômica está situada no limiar entre o proibido e o permitido, no umbral do profano e do sagrado, daquilo reservado à vida privada e o que pode ser exposto na praça pública.

É neste trabalho que ele cunha o conceito de carnavalização, quando o mundo às avessas invade a vida cotidiana. Durante as festas populares na Idade Média e Renascença, ao homem do povo é concedida a liberdade à licenciosidade. Coroações satíricas, linguagem vulgar, sensualidade, ídolos, tudo isto é permitido nestes dias de festa. Através do carnaval, a ordem do mundo desmorona, para se renovar ao fim das festas. Deste modo, o riso estaria vinculado à substituição da ordem pelo caos.

Assim como qualquer outro, o objeto textual que se pretende cômico é apelativo ao conhecimento de mundo de um determinado público - e em sua composição está implícita a adesão do público a que se destina ao seu "universo" de significados. Por outro lado, os caracteres que provocam o riso não são de ordem lingüística. Exatamente por isso, não há uma teoria universal que possa dar conta de todas as possibilidades humorísticas dos textos cômicos porque essas possibilidades são inúmeras. Desse modo, podemos entender que o cômico não é simplesmente depreendido, como um aspecto imanente do texto; ele dá-se como um efeito da interpretação do texto feita pelo leitor. Por isso, devemos ter em mente que, antes de "conter" humor, um texto dessa natureza "produz" humor.





Eu também quero me tornar um escritor


Cedo ou tarde, quase todo ser humano ouve o chamado da Arte.

As atividades consideradas como o legado dum indivíduo neste planeta — plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro —, fazem parte do anseio natural para driblar a finitude, para enganar a morte.
Nós, seres transitórios, buscamos na criação de algo perene a nossa própria perpetuação. Uma árvore, se não for derrubada pela marcha da civilização, certamente viverá mais do que qualquer ser humano; um filho carrega, em parte, os genes de seus pais, mantendo vivo o DNA dos progenitores, que hão de morrer um dia; e o livro, representando todo ofício artístico, é a ilusão de que nossas idéias também sobreviverão a nós, que serão compartilhadas pelos pósteros.
Por ser uma faculdade que cultivamos desde a infância, a escrita parece ser o meio mais fácil e certo para nos expressarmos artisticamente. Falamos, logo escrevemos; sem jamais nos questionarmos sobre a ruptura que existe entre estas duas instâncias: a fala e a escrita.
Não basta saber falar, nem ter sido alfabetizado, para se tornar um escritor; assim como não basta escrever para ser considerado um escritor.
Como qualquer outra forma de Arte, a escrita se sustenta sobre três alicerces.

Talento
Nenhum ser humano é igual a outro, cada um possui suas particularidades, sua visão de mundo, seus atributos, e cada um possui seus talentos.
Uns nascem com uma habilidade extraordinária para cálculos, outros com mão cheia na cozinha, outros com a capacidade para falar em público, outros para ajudar o próximo, outros para a música, e assim por diante. Para cada ocupação, dentro dum rol quase infindo de possibilidades, há um talento específico que faz com que seu possuidor se destaque dos demais.
Com a Literatura não é diferente.
Alguém que possui talento para a escrita — aquele respeito essencial pela palavra, aquela busca incansável pela perfeita expressão, pela frase bem construída, pelo signo que oculta, ao mesmo tempo em que revela, o sentido do mundo — larga na frente dos demais, para quem a escrita é apenas uma instrumenta cotidiana de comunicação.
A pessoa nasce com talento; esta qualidade não se aprende na escola, nem em oficinas literárias, nem através de livros. Talvez demore anos para se descobrir a existência dum talento; às vezes, a formação educacional, ou a busca por uma carreira que pareça ser mais vantajosa, relega o talento às profundezas do indivíduo, para que um dia possa despertar. Mas ele está lá, e todo mundo possui o seu (pelo menos, creio eu); pode não ser para a escrita, mas é para alguma coisa.

Dedicação
Qualquer atividade técnica exige um determinado grau de dedicação, isto é, o tempo e esforço que a pessoa pode despender para efetuá-la com maestria.
Uma casa não se constrói num dia apenas; são necessários dias, semanas, meses, preparando o alicerce, pondo tijolo sobre tijolo, fazendo o acabamento; uma colheita também não se faz num dia; é preciso arar a terra, semeá-la, proteger a plantação das pestes.
Ninguém obtém bons resultados na Literatura se não dedica parte de seu dia para se aperfeiçoar, estudar, escrever, revisar. Quem pensa que a escrita é pura obra do acaso, mera conseqüência dum arroubo de inspiração, está mal influenciado. O Romantismo é responsável por disseminar esta idéia, mesmo que, posteriormente, tenha se descoberto que os próprios autores românticos, como Goethe, Schiller, Hoelderlin, ou Vitor Hugo trabalhavam arduamente sobre seus textos, sem auxílio algum de musas inspiradoras.

Vocação
Às vezes um sujeito possui talento, dedica-se ao ofício, mas não possui vocação para fazer desta atividade sua profissão.
Não é fácil ganhar o pão com a escrita, inclusive, há uma referência clássica sobre a vida dura dum escritor:
"Aluísio Azevedo é no Brasil talvez o único escritor que ganha o pão exclusivamente à custa de sua pena. Mas note-se que apenas ganha o pão, as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga."
A citação é de 1896, mas a realidade não mudou muito desde então. Alguns poucos fazem rios de dinheiro com Literatura, mas a enorme massa de escritores continua recebendo migalhas por suas obras, isto se receberem algo.
Nem todos estão preparados para fazer da escrita sua cruz diária, ser mal remunerado, gastar meses escrevendo um livro, sendo que dificilmente receberá condizente ao esforço empreendido, alimentar sonhos de fama e reputação e, no final das contas, não obter nenhuma das duas.
Quem possui vocação para a escrita, suporta tais dificuldades com prazer, pois é incapaz de ser feliz fazendo outra coisa; mas, para a maioria, escrever jamais deixará de ser um hobby.

A hipótese dos dois alicerces
Até onde percebo, é possível alguém ser bem-sucedido possuindo apenas dois dos atributos mencionados acima.
Alguém com vocação e dedicação pode ir muito mais longe numa carreira do que uma pessoa talentosa, mas que não se aperfeiçoa. Ou talento e dedicação combinados podem fazer deste escritor um amador de alto nível, que pode não ter nas Letras sua renda principal, mas angariar alguns leitores e até fazer um troco paralelamente. E quantas histórias não ouvimos de artistas profissionais talentosos, porém se nenhuma disciplina?
Um só destes alicerces não sustenta uma carreira, já os três deles geram um escritor de primeira linha.

O quarto elemento
Por fim, o quarto elemento, que pode significar apenas a coroação dum escritor completo, mas que também basta por si é a sorte; e por sorte podemos entender muita coisa — estar no lugar certo e na hora certa, ser amigo de alguém influente, abordar um tema polêmico e fazer sucesso por causa disto, ter uma biografia interessantíssima, que torna o autor mais importante que a obra, entre várias outras circunstâncias que podem influenciar positivamente, mas que estão para além da capacidade individual do escritor.
É o famoso golpe do acaso, a Roda da Fortuna, a estrela de que tanto falam.

Um escritor pode construir uma carreira sólida, trabalhando anos a fio para compor sua obra, batalhando para se firmar, enquanto que outro escritor, sem talento, sem dedicação, sem vocação, surge do dia para noite, por obra da sorte, e faz sucesso. São aqueles eventos inexplicáveis, fenômenos instantâneos. No entanto, se este privilegiado pelo destino não possuir conteúdo, não permanecerá; sumirá tão rápido quanto surgiu, sem deixar um único vestígio de sua passagem.

Conclusão
Sem dúvida, você já deve ter ouvido o velho papo de que basta buscar seu sonho para alcançá-lo. Esta conversa de almanaque zodiacal ou de livro de auto-ajuda é muito bela e estimulante na teoria, mas, na prática, uma carreira, independente de qual for, não se mantém se inexistirem as bases.
Entre tocar “Parabéns pra você” no piano e tocar um concerto no Carnegie Hall, há um universo de possibilidades, e por detrás de cada sucesso há muito trabalho, muito esforço, muitos sacrifícios. Todos almejam chegar ao topo da montanha e observar o mundo do alto, mas a escalada é a parte mais complicada e nem todos são capazes.

Quase todo mundo ouve um dia o chamado da Arte, mas suportar o peso desta responsabilidade não é nada fácil.
É a vista de sobre as montanhas que faz esta luta valer a pena.





sábado, 8 de março de 2008

O Causo do Dilúvio

Volmar Camargo Junior
Publicado no Recanto das Letras em 05/02/2008


O Patrão criou o homem com a tabatinga da beira de um açude. Depois, para o índio ter o que fazer, resolveu criar a mulher, rachando o bonequinho de barro no meio (aquela história de costela e de “imagem e semelhança” são só algumas das teorias). Deu um assoprão e saíram andando. Batizou os bonequinhos de Adão e Eva. Daí por diante, os dois trataram de se conhecer e de dar cagada. Desobedeceram o Criador, se incomodaram com os filhos, tiveram uma porção de netos flor de bagaceiros, e por aí vai. Entre a peonada celestial, que muita gente chama de anjos, corria o boato de que aquele bicho novo, o tal de ser humano, não ia prestar pra nada.

Quem não gostou nada dessas conversas foi o Dono da Querência. Mandou chamar os linguarudos que passavam mais tempo proseando do que nas lides do Universo. Já que a indiada terrena estava ficando sem-modos, o Altíssimo deu aos anjos a incumbência de encontrar, no meio da criação, um bicho que fosse bom o suficiente para ajudar a endireitar a tribo dos filhos de Adão. Muito dotados nas artes da conversa-fiada, a peonada não hesitou em pedir a Ele que elegesse o mais eloqüente para ser o embaixador do céu entre a bicharada. A proposta pareceu justa, e de pronto, escolheu-se um capataz mui conhecedor da Estância chamado Gabriel. Os outros foram enviados para arrumar o alambrado da Via-Láctea que andava caótico uma barbaridade.

O diplomata foi sem reclamar. Apreciava a campereada, e sobretudo, andar solito pela imensidão do pago, que naqueles tempos era muito maior. Caminhando a despacito, mascando uma folhinha de hortelã, Gabriel teve uma idéia. Fez um chamado, desses que só o pessoal que trabalha pra Ele consegue. Num vá, apareceram três bichos detrás de uma macega: um gato-do-mato, um cachorro e um cavalo. Sentaram e prosearam — dizem que o gato conhecia a erva-mate, e essa pode ter sido a primeira roda de chimarrão da história. O Emissário, mui respeitoso, disse-lhes: “O Patrão quer que um de vocês seja o camarada do homem e da mulher”. Bicho é um tipo de gente muito honesta, e se gosta ou não da proposta, já mostra logo de cara. Pois aceitaram os três. O capataz passou a tarefa, e lá se foram pra onde os homens moravam.

Em pouco tempo, a parentada dos que gostam de comer maçã afeiçoou-se muito aos animais. Os homens, porque eram úteis: o cachorro era companheiro pra caça, o gato limpava a casa dos roedores e o cavalo, mesmo precisando domar antes, virou instrumento de trabalho. As mulheres, porque os bichos eram fofinhos, dava pra pentear, botar fita mimosa, vestir aquelas roupinhas e dar nomes para eles. A coisa desembestou quando os “camaradas” se acostumaram com o jeito de viver dos donos. O gato virou num inútil que só dormia e ainda se sentia o dono da casa. O cachorro só fazia o que mandavam se lhe dessem comida ou brincassem com ele (em geral as duas coisas). E o cavalo, bem, o cavalo continuou trabalhando; porém a indiada se coçava e puxava o ferro branco, e descobriram que guerrear montado era muito mais divertido.

Gabriel ficou guspindo formiga de tão brabo. Resolveu mudar de tática.

Enveredou-se pra cidade mais próxima. Saiu perguntando se alguém conhecia um único homem que valesse a bóia que comia. Pra sua surpresa, existia um: o Seu Noé. Este o recebeu muito bem, ofereceu um mate — ah, sim; o gato ensinou pra todo mundo o hábito de tomar chimarrão — proseou um pouco sobre seus guris, Sem, Cam e Jafé, sobre a morte do Seu Abel, contra-parente que foi morto ainda moço pelo irmão — tem gente que gosta de uma desgraça... O Embaixador Gabriel, firme no seu propósito, botou o talento à prova e inventou, na hora, uma história do arco da velha. Disse mais ou menos assim:

“Olha, Seu Noé. A coisa não ta fácil pros lados de vocês, os herdeiros do Seu Adão. O Patrão Velho anda indignado com as malcriações da humanidade e resolveu botar a casa abaixo. Só que tu, vivente, tem crédito com o Altíssimo! Ele sabe que tu é bom, generoso, correto e tem uma mão boa pra cuidar da criação. Entonces, sem delongas, Deus quer que tu faça o seguinte: junta um casal de cada tipo de bicho, acolhera todos eles mais tu, tua mulher e os teus piá e as prenda deles, constrói uma balsa de madeira de lei que caiba esse povo todo. Despois, pinta a dita com betume pra cobrir as fresta. E providencia umas galocha, porque ta vindo uma tormenta daquelas.”

Inflaram-se feito uns perus, de orgulho de si mesmos. O Noé porque tava grandão com Jeová, e o querubim, porque daquela vez parecia que o plano ia dar certo. Ora, se passar dias e dias enfurnado só com os bichos e a família não endireitasse o homem, então era porque não tinha jeito mesmo. Dias depois sucedeu o tal do Dilúvio que tanto falam. Há quem diga que foi mais ou menos por essa época que nasceu o Ariri Pistola, que não viu o Dilúvio, mas pisou no barro.
O resultado da empreitada foi que o Gabriel, além de tomar uma baita mijada, deixou de ser capataz e virou estafeta. Ninguém mandou sair inventando história e inundando mundo por conta. Depois disso, cada vez que tinha que mandar um recado pra gauderiada cá na Terra, o Patrão Velho mandava o Gabriel falar timtim por timtim o que Ele tinha dito.





quinta-feira, 6 de março de 2008

O Estripador, de Dalton Trevisan

" — Não vou responder às perguntas simplesmente porque não posso, é verdade; sou arredio, ai de mim! Incurávelmente tímido (um pouco menos com as loiras oxigenadas!)." Já se escreveu e se comprovou que os demais vampiros não podem encarar, sem pânico, um crucifixo. Ou réstias de alho, água corrente cristalina... Dalton não pode ver um jornalista. Vendo, foge, literalmente foge, apavorado. Suas raras fotos surgidas na imprensa foram feitas às escondidas, como a que utilizamos para ilustrar esta página.

Nascido em 14 de junho de 1925, o curitibano Dalton Jérson Trevisan sempre foi enigmático. Antes de chegar ao grande público, quando ainda era estudante de Direito, costumava lançar seus contos em modestíssimos folhetos. Em 1945 estreou-se com um livro de qualidade incomum, Sonata ao Luar, e, no ano seguinte, publicou Sete Anos de Pastor. Dalton renega os dois. Declara não possuir um exemplar sequer dos livros e "felizmente já esqueci aquela barbaridade".

Entre 1946 e 1948, editou a revista Joaquim, "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de escritores, críticos e poetas nacionais. Reunia ensaios assinados por Antonio Cândido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas até então inéditos, como O caso do vestido, de Carlos Drummond de Andrade. Além disso, trazia traduções originais de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres.

Já nessa época, Trevisan era avesso a fotografias e jamais dava entrevistas. Em 1959, lançou o livro Novelas Nada Exemplares - que reunia uma produção de duas décadas e recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro - e conquistou o grande público. Acresce informar que o escritor, arisco, águia, esquivo, não foi buscar o prêmio, enviando representante. Escreveu, entre outros, Cemitério de elefantes, também ganhador do Jabuti e do Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira dos Escritores, Noites de Amor em Granada e Morte na praça, que recebeu o Prêmio Luís Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil. Guerra conjugal, um de seus livros, foi transformado em filme em 1975. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas: espanhol, inglês, alemão, italiano, polonês e sueco.

Dedicando-se exclusivamente ao conto (só teve um romance publicado: "A Polaquinha"), Dalton Trevisan acabou se tornando o maior mestre brasileiro no gênero. Em 1996, recebeu o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura pelo conjunto de sua obra. Mas Trevisan continua recusando a fama. Cria uma atmosfera de suspense em torno de seu nome que o transforma num enigmático personagem. Não cede o número do telefone, assina apenas "D. Trevis" e não recebe visitas — nem mesmo de artistas consagrados. Enclausura-se em casa de tal forma que mereceu o apelido de O Vampiro de Curitiba, título de um de seus livros.

"O "Nélsinho" dos contos originalíssimos e antológicos, é considerado desde há muito "o maior contista moderno do Brasil por três quartos da melhor crítica atuante". Incorrigível arredio, há bem mais de 35 anos, com com um prestígio incomum nas maiores capitais do País. Trabalhador incansável, fidelíssimo ao conto, elabora até a exaustão e a economia mais absoluta, formiguinha, chuvinha renitente e criadeira, a ponto de chegar ao tamanho do haicai, Dalton Trevisan insiste ontem, hoje, em Curitiba e trabalhando sobre as gentes curitibanas ("curitibocas", vergasta-as com chibata impiedosa) e prossegue, com independência solene e temperamento singular, na construção e dissecação da supra-realidade de luas, crianças, amantes, velhos, cachorros e vampiros. E polaquinhas, deveras."

Em 2003, divide com Bernardo Carvalho o maior prêmio literário do país — o 1º Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira — com o livro "Pico na Veia".

fonte: Releituras


O Estripador


No sábado, pelas cinco da tarde, a moça voltava da Igreja Adventista Filhos de Jesus. Pouco antes da casa da patroa, viu o tipo mal-encarado. Correndinha atravessou a rua.

A casa tem muros altos e um pequeno corredor na entrada. Com a chave na mão, diante da porta, foi alcançada pelo cara, que lhe encostou uma faca na cintura:

- Nem um pio. Que eu te furo!

Um dia frio, ela estava de jaqueta, mesmo assim doeu fininho. O cara apertou mais a arma:

- É um assalto. Dá a bolsa.

Ela estendeu a pobre bolsa: sete reais em notas e moedas. O tipo achou pouco.

Graças a Deus, vinha um casal na sua direção.

- Bem quieta, você. Feche a bolsa.

Daí passou o caminhão do lixo. Ela tentou fazer um sinal. O cara percebeu, e cutucando o punhal:

- Olha pra cá.

Disfarçando, ele acenou para o lixeiro, pendurado ali no estribo:

- Oi, tudo bem?

Em seguida surgiu um ônibus amarelão. Ele ignorou. À espera do seguinte, no sentido bairro. Voz forte e grossa:

- Você vem comigo. Ou te sangro aqui mesmo!

Suplicante, ela retorcia as mãos:

- Sou a babá do menino. Ele está doentinho. Precisa de mim.

Girava no dedo o anel: confessar que era noiva?

Em pânico, obrigada a subir com ele no ônibus. Perna trêmula, abriu a boca para gritar... E tinha perdido a voz. Da boca aberta nadinha de som.

Mas o seu coração dava berros.

Ficaram de pé. Ela sentia a faca ali furando a jaqueta nova de couro. No terceiro ponto, ele tocou a campainha. Os dois desceram.

Andaram duas quadras. Ele viu o terreno baldio. Lá nos fundos, uma e outra casa. Ainda era dia claro:

- Não. Aqui, não.

O tempo inteiro rezava muda. Todas as preces nu­ma só palavra - Jesus. Entregou a alma ao Filho e ao Pai.

Ele caminhava depressa. Agarrava-a com força pelo braço. Outro terreno vazio. Só uma casa de porta e janelas fechadas. Assim que avançaram, a luz da varanda foi acesa. Ele bateu em retirada.

Mais um terreno com pessoas nas casas. Ele continuou a busca.

Lá adiante:

- É aqui.

Tudo deserto. Noitinha. Um barraco sem ninguém.

Até então, fé e esperança haviam-na amparado. Caiu em desespero.

- Tire a roupa.

Ela não queria. Fechou bem as pernas. Ele ergueu a lâmina e rasgou a manga do blusão.

- Pra mim, matar é fácil. Escolha.

A moça tremia toda. Chorava muito. De joelho e mão posta:

- Tenha dó. Em nome de Jesus Cristinho. Leve a bolsa e a jaqueta. Por favor. Só me deixe ir.

Pensa que teve dó, o bruto? Daí ela foi obrigada. Tan­ta confusão, a pobre tinha andado pra cá pra lá, sem parar. Assim cansada, onde as forças de lutar e se defender?

E fez com ela o que bem quis. Fez isso.

- Os dentes, não. Sem os dentes, sua...

Mais isso.

- Abra. Mais. Senão eu...

Rasgou e rebentou. Uma brasa viva entre as pernas. Mais aquilo.

- Se vire. Não. Assim.

Estripou. A coitada que, virgem, se guardava para o noivo, cuja vida era de casa para a igreja e da igreja para casa.

Só a deixou depois de toda ensangüentada. Foi de tal violência. Aproveitou o mais que pôde. Uma carnificina.

Já era noite. Mas tinha gente passando ao longe. Um casal de conversa lá na rua. Se ela gritasse, alguém devia escutar e acudir. O bandido adivinhou na hora:

- Nem pense nisso!

E espetando a maldita faca no peito nu:

- Quer ver sangue?

Sem ela esperar, começou tudo outra vez. O tipo se serviu bem direitinho. Ainda mais ferida e ma­chucada.

Um carro parou adiante na rua. Faróis apagados. Ele achou perigoso. Mandou que ela se vestisse.

Já arrumados, o cara bem sério:

- Abra o Livro no Salmo 130.

Tal o espanto, a moça ergueu os olhos. E primeira vez ela viu quem era: grandão, meio gordo, bigodão negro.

Certo que abriu a Bíblia, mas você tem voz? Nem ela, ainda mais no escuro. Ele então buscou a sua no bolso, pequena assim. Ao clarão da lua, movia os lábios, sem palavras - estava lendo ou sabia-o de cor?

Disse que também era evangélico. Abandonado em criança pela mãe. E, depois de casado, pela Maria - a única de quem gostou. O amor, essa coisa, sabe como é. Todas as mulheres eram vagabundas. Ele disse outra palavra. Para se vingar, caçava as moças na rua. Se não fosse ela, tinha sido outra. Às vezes, atacava duas no mesmo dia.

- Não tenho nada a perder.

Foram andando a par. Já não a tocava. De repente:

- Agora vá.

Devia ficar contente por deixá-la viva. E agradecida ao Menino Jesus, podia ter sido pior.

- Não olhe pra trás.

A pobrinha chegou em casa pelas onze e meia da noite. Arrastava os pés, toda torta e gemente. Sangrando pelos nove orifícios do corpo.

Trazia o relógio de pulso e o anel de noiva. Por eles o tipo não se interessou. Só pelo dinheiro. Achou pouco sete reais. Mas levou assim mesmo.

Foram umas três semanas até sarar das rupturas, lesões e remendos. Não sabe ainda a resposta do exame para aids e hepatite.

A patroa não a quis mais de babá. O noivo, esse? Sumiu. Está custoso achar novo emprego. E nunca pôde reler o Salmo 130. Quando chega a sua vez, fecha os olhos e salta a página.

Dá uivos, meu coração nu. Esse bigodão negro e a golfada de fel e cinza na boca.

Do Salmo 130 se livrou.

E como evitar a hora fatídica das cinco da tarde? Que se repete, sem falta. O dia inteiro são sempre cinco da tarde. Cinco horas paradas no seu reloginho de pulso.

Os ferimentos cicatrizaram, é verdade. Mas nunca ficou boa. E nunca mais foi a mesma.

Fonte: Revista Época

Este conto integra a obra 33 Contos Escolhidos





terça-feira, 4 de março de 2008

Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Há uma máxima, atribuída a Schopenhauer por alguns, e a Heidegger por outros, que afirma que só existe duas línguas para se filosofar: o grego e o alemão.

Talvez insuflado por esta mentalidade, por anos alimentei uma certa animosidade por tudo que se fazia na França - notória rival da Alemanha quando se trata de cultura -, nada substituía Beethoven, Brahms, Wagner, Nietzsche, Heidegger, Schiller, Goethe, Thomas Mann ou Hermann Hesse.
Nada de bom poderia vir para o lado de lá da linha Maginot.

Também havia um ranço, pelo próprio modo como a Academia se baseava na estrutura educacional francesa, adotando uma linha estruturalista, com professores educados à base dos existencialistas, leitores de Sartre, defensores de Merleau-Ponty, e em parte pela reverência cultural que o Brasil sempre prestou à França, sendo a própria Academia Brasileira de Letras inspirada na correspondente francesa, e tendo quase todos os principais movimentos artístico-literários - o naturalismo, o realismo, o modernismo, o surrealismo, inclusive o pós-modernismo - se inspirado em artistas franceses, francófonos, ou residentes em Paris.
O que valia para mim, durante este período, era ser do contra.

O processo de reconciliação foi sutil. Começou com a leitura de "Gargântua e Pantagruel", obra genial de Rabelais, mas estagnou.

Voltei a ter contato com a literatura francesa mais ou menos um ano depois, quando li pela primeira vez Balzac, "O Pai Goriot", e esta foi uma epifania.
Retornando à dicotomia Alemanha-França, talvez Schopenhauer (ou Heidegger) tivesse razão, poucas línguas possuem a precisão do grego ou do alemão. A prefixação e a aglutinação de palavras permite uma criação ilimitada de conceitos específicos, delimitando os sentidos e estabelecendo um meio quase inequívoco de comunicação.

O alemão até pode ser uma língua poética, mas quando se trata de respeitar a composição duma frase, a criação duma imagem, a descrição dum cenário, não há o que se compare com as línguas latinas. E, nas mãos dos mestres franceses das Letras, a escritura deixa de ser apenas um modo de comunicação, transcende a instrumentalidade da língua.

Tanto Balzac quanto Flaubert observam suas épocas com olhar crítico. Balzac abarca todas as instâncias sociais, do camponês rústico até a aristocracia decadente, mas o foco é sempre a burguesia hipócrita. Flaubert é, por sua vez, mais incisivo; basta uma única personagem para aglutinar tudo aquilo que está disperso nas dezenas de obras de Balzac, esta personagem é Emma Bovary.

A jovem Emma era leitora de romances românticos. Tal formação a fez conceber relacionamentos ideais, uma vida quimérica. O casamento com Charles Bovary é uma frustração, a negação de tudo que ela havia imaginado na juventude. Charles era um homem sereno, sem grandes arroubos de paixão, com um emprego estável, porém medíocre - um médico provinciano sem grandes ambições.
Emma Bovary encontra no adultério a aventura e a emoção que tanto almejara. Primeiro com um fazendeiro dos arredores, posteriormente com um jovem promissor, com quem desfila de braços dados por Rouen.
Flaubert quer que odiemos Emma Bovary, tudo aquilo que ela representa, a hipocrisia, a baixeza, a futilidade, e ele atinge seu objetivo. Nunca antes desejei tanto que um personagem morresse num livro (nem mesmo Heathcliff de "O Morro dos Ventos Uivantes").
Todavia, nem mesmo este prazer Flaubert nos concede com plenitude. Emma morrerá, sabemos disto, antevemo-lo, contemo-nos por páginas e páginas apenas para presenciar sua agonia, porém a morte dela não é libertadora.

"Ela o corrompeu desde além da cova", diz-nos o narrador, referindo-se ao repreensível comportamento de Charles após a morte da esposa.

A corrupção de Emma ultrapassa seu desaparecimento, pois a corrupção de Emma é a corrupção de toda uma sociedade. Emma morre e parte do nosso ódio é aplacado, no entanto, o mundo não muda, outras Emmas, tanto do sexo feminino quanto do masculino, estão lá para ocupar a vaga deixada por ela.
A obra se encerra num tom pessimista, atormentando-nos com seu determinismo, com sua fatalidade.

Grego e alemão podem até ser a língua da Filosofia, mas foi em francês que se criou um dos maiores estudos da psiqué humana, das relações sociais, da mesquinharia, mascarada de Literatura, ou tornado possível justamente por não ser teórico, por não ser fatual, por ser mera ficção, e neste "mera" reside todo o segredo.