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sábado, 28 de dezembro de 2013

Mal traçadas linhas


É chegada a hora de reler o que ficou escrito de nós nas 360 linhas do ano que finda. E agradecer os ganhos, e assimilar as perdas, e seguir em frente. Daqui a pouco as 360 linhas de 2014 se desdobram à nossa frente, convocando-nos a seguir traçando o nosso caminho, com coragem e com esperança. E só há um caminho a seguir: o que leva a nós mesmos.

Traçar o caminho até chegarmos a ser nós mesmos exige desembaraçarmo-nos de alguns nós, desviarmo-nos de algumas pedras. No meio de todo caminho não faltam pedras. E se elas dificultam o traço, não o podem impedir. É preciso olhar para os nós e as pedras do caminho com aquela determinação de o-que-vier-eu-traço. Mesmo cheios de nós, temos de traçar nosso caminho entre as pedras. Porque, entre nós e pedras, só se tem um caminho: o caminho que nos faz ser quem a gente está destinado a ser. E “isso de querer ser exatamente o que a gente é, ainda vai nos levar além” (Paulo Leminski). Dependendo das pedras do caminho, a gente faz o caminho das pedras aos trancos e barrancos. E dependendo do caminho que se queira fazer, não há pedra que nos faça desistir. Se as pedras são muitas, é só dotarmos de muitas curvas os nossos traços. Às vezes se chega a um destino em linha reta. Noutras, só as linhas curvas nos levam a ele. Dispondo curvas no caminho, no fim do percurso poderemos ter traçado um círculo perfeito. O fim e o princípio interligados anunciam que cumprimos com perfeição o destino de sermos o que somos. Não é sempre que partida e chegada se encontram no ponto exato, que as paralelas do infinito se tocam na curva do tempo. Isso é mistério maior que se encerra em si mesmo. De qualquer modo, não importa se caminhamos por linhas retas ou tortas, ou se por mal traçadas linhas, ou se seguimos os traços invisíveis de algum arquiteto maior. No fim do caminho, com todas as pedras pelo meio, há um único fim: ser quem a gente é. E se o caminho de quase todos nós está cheio de nós, como já ficou dito, desatá-los para, enfim, sermos nós mesmos, é nossa missão de caminhantes. O mapa do caminho só se conhece ao fim da caminhada. E a caminhada se faz passo a passo, traço a traço, obedecendo ao compasso do destino. Longa ou breve no tempo, a caminhada nos leva sempre a nós mesmos. Caminha-se uma vida inteira para um encontro marcado: o encontro com quem somos. O certo é que não nos perdemos de nós. E nem perdemos os nós. Sermos nós, desatar nós, desatar-nos: eis o que nos faz ser nós mesmos. Nós no caminho não deixarão de existir. Viver é esse constante ata e desata. Até o desenlace final. Livres de nós, viramos poeira de estrelas, traço de luz no infinito.





sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Polida



Em meio à profunda angústia, abriu a torneira e permaneceu estática, observando o fluxo. Após alguns instantes, pegou a esponja, o detergente e lavou a louça, com todo cuidado, deixando correr água em abundância.

Aquela era sua fuga. Pensava que ninguém faria uma loucura depois de lavar a louça: pareceria estúpida quando encontrassem o corpo.







quinta-feira, 26 de dezembro de 2013


O morto que eu sepultei

O cemitério que mora em meu peito tem se ampliado. Na última década, os moradores aumentaram sobremaneira. Meus avós, meu pai, três tios, quatro primos e muitos amigos passaram cá para dentro. Mas devo reconhecer: nenhuma chegada me doeu mais que a do meu marido. Eu imaginava chegar à velhice ao lado daquele a quem me entreguei em matrimônio; por isso, seu passamento significou mágoa severa demais, praticamente um desespero de solidão que latejava dia e noite.

Meu luto durou forte até ser substituído por algo muito pior: o remorso por ter sentido tanto amor equivocado, o pesar por haver crido ingenuamente, o arrependimento por haver cumprido fidelidade. Descobri a traição bem depois que o meu esposo morreu e vi nisso uma grande injustiça, porque a situação me negou a chance de matar o judas. Não pude dar ao crápula uma vingança apropriada.

Diante de provas irrefutáveis da transgressão cometida por meu amado marido — e certamente só freada por conta de ele haver defuntado —, pensei em também dar fim à vida. Quem sabe assim resolveríamos tudo no inferno? As opções que me apareceram foram: 1) matar a namoradinha; 2) matar a cornuda, isto é, suicidar-me; 3) cometer homicídio seguido de suicídio; 4) revolver as terras onde o cônjuge está plantado para lhe pedir explicações. Depois de melhor refletir, percebi que nada disso era de bom senso. Viúva traída que se preze não sai por aí agredindo cadáver ou acertando contas com a amásia do presunto. Achei por bem abrandar a pena dos meliantes e sair do precário estado autocomiserativo. Preferi despir-me do luto fechado e começar as buscas por um novo amor.

Quando Leôncio se foi, muitos colegas e familiares demonstraram carinho e principalmente pena por esta mulher que de súbito se assozinhara. Nas entrelinhas do que me diziam, aparecia o seguinte discurso: “É muito difícil uma mulher de quarenta arrumar outro homem bom para casar”.

Por algum tempo, as pessoas me viram lacrada. Todo o viço calara em mim. Uma mulher realmente cerrada eu me tornei. Cabisbaixa e melancólica, esqueci qual sexo eu tinha. Meu sangue mensal até cessou, depois que Leôncio sofreu aquele acidente de carro fatal. O melhor marido, o melhor pai, o melhor amante... aquele homem não existia mais no mundo dos vivos. E eu recordava cada detalhe de nossa história e até a maneira como Leôncio me olhava e me amava. Um segredo: sobre o colchão, durante as delícias, ele não gaguejava! Doce marido que a morte ceifara tão cedo...

Foram três anos sob um véu espesso de dor, até que veio à tona o caso de Leôncio com sua bela amante, Jéssica. Descobri os tais fatos dolosos: sempre nas nossas visitas à Vó Leila, durante as férias em Petrópolis, ele fazia segundo turno com a minha prima. Durante quinze anos de casamento, todo janeiro e todo julho, fui traída pelas duas criaturas. Os delatores, dois primos meus, esperaram a vovó morrer para me contar os sebosos pormenores. O casal se deitava num quartinho dos fundos, sem o menor constrangimento.

Pontofinalizei o luto assim que decidi por não me matar nem à Jéssica. Ergui a postura, ajustei as roupas, voltei a tingir os lábios, virei mulher de novo. Foi uma ressurreição sensacional, aplaudida por muita gente. Rapidinho, passei a receber cantadas no trabalho e nas saídas de happy hour. Ganhei flores, cartões, convites para festas, joias... Tornei a beijar demorado e a me agarrar com o Reginaldo, um homem bonito, inteligente, dicção perfeita. Experiência redentora, que apagou o gosto e o cheiro daquele tartamudo duma figa. Meus filhos, já adolescentes, até se prontificaram a sair de casa vez ou outra para deixar a mãe namorar com privacidade.

Não aceitei me atarraxar por completo, se é que você me entende. Quando Reginaldo propôs uma aproximação tipo boas entradas, não aceitei assim de primeira. Apresentei-lhe a condição única: “Tem de ser em cima do túmulo do Leôncio”. Ele tentou me dissuadir com palavras lambidas, mas não cedi. Foi embora todo sentido, afirmando que nem todo o desejo do mundo o faria passar por isso.

Depois de Reginaldo, busquei envolvimento com um rapaz mais jovem, curtidor radical da vida: surfista, alpinista, lutador de jiu-jítsu. Pensei que aquela adrenalina toda se canalizaria bem para desembocar no meu almejado encontro amoroso no cemitério. Quando lhe propus uma primeira noite deliciosamente sepulcral, ele topou de pronto, num ânimo aventureiro. Mas foi só chegar à porta do campo-santo, que o homem murchou.

Heitor e Mário também não aceitaram me amar sobre o túmulo. Saíram em defesa da memória do defunto, argumentando que era desrespeito com aquele lá. O jeito, então, foi estancar precocemente o romance; porque comigo só ficaria quem me satisfizesse de prazer e vingança, quem me permitisse o mais perfeito gozo-desforra.

Foi Alfredo que me brindou como eu merecia. Preparamos a noite ideal: lua cheia, clima agradável, quinta-feira doze, espumante, taças, morangos, leite condensado, castanhas, queijo suíço, música de sussurro rouco, espuma maleável e roupa de cama em seda. Salpicamos pétalas de rosas vermelhas sobre a cama que se sobrepunha ao jazigo e esperamos a meia-noite, quando mais nenhum vivo transitasse por ali.
Experiência sublime! O céu se abriu novamente. Voltei às atividades em grande estilo, após haver padecido de viuvez e despeito mórbido.

Depois de amar Alfredo, as velas se apagaram de repente. Ouvi um soluço baixinho, que parecia vir de dentro da cova. Tatibitate. Era o lamento de Leôncio.





quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Gente


– A questão não é simples, não é nada simples…

Tirou o chapéu e limpou com a mão o suor que escorria da testa. Falava a meia voz para si próprio, ruminando prós e contras, enquanto estudava o problema. O problema, pelo seu lado, não estava nada preocupado; comia a erva verde e suculenta com todo o vagar, as orelhas a variar de direcção de forma autónoma.

– Se fosse meu era simples… Mas não é meu. Se fosse meu vendia-o juntamente com a cabra e as galinhas, acabava-se o problema e ainda me dava uma ajuda nas despesas… Mas eu prometi ao miúdo.

Tinha prometido ao filho, quando ele fora para terras de França em busca de futuro, que tomaria conta do Sr. Doutor e não deixaria que nada de mal lhe acontecesse. O filho tinha pelo burro uma afeição completamente irrazoável mas uma promessa é para cumprir e ele prometera, pelo que o problema era mais complicado do que se o burro fosse seu. Agora não sabia bem o que fazer.

Não podia levar o burro para Lisboa. Não podia deixar de ir para Lisboa, no mínimo por 6 ou 7 meses, o mais certo era ser por um ano. Não podia abandonar o Sr. Doutor e deixar o bicho ao Deus dará, tinha prometido ao filho que nada de mal aconteceria ao animal. Não se podia desfazer dele.

Suspirou. Tinha cerca de um mês para resolver a questão, um mês passa-se num instantinho e havia outros assuntos para tratar. Passou a mão pelo lombo peludo.

– Ai, Sr. Doutor, os trabalhos em que eu me meto…

Ia falar com o vizinho. Pagaria uma renda pela existência sossegada do burro, o suficiente para pagar a despesa e um bocadito mais que incentivasse o vizinho a tratar bem o animal. Certamente o Manuel não diria que não, eram bons vizinhos há anos.

Foi para Lisboa triste. Nesse ano o filho não veio de férias; a mulher, muito grávida, tinha sido fortemente aconselhada a evitar viagens e outras canseiras.

– Ora, paciência, quando vierem já trazem o cachopo e eu também já estarei em casa!

Tirou o chapéu e limpou com a mão o suor que escorria da testa. Falava a meia voz para si próprio, como sempre, hábito ganho desde que a mulher se fora, há longos anos. A sua própria voz, falando consigo mesmo, era como um velho amigo com quem se debate amigavelmente as dificuldades da vida... Com as vantagens de estar sempre presente, não precisar de rodeios e nunca se maçar.

– Mas se tivessem vindo era bom, raios partam a vida que só traz problemas. Quem deve estar bem é o Sr. Doutor, folgado a mastigar a erva!

Riu-se.

 Ó rapaz, pareces o teu filho, não fizeste outra coisa estes meses todos senão falar no burro! O que vale é que voltas para a terra no mês que vem, não tarda fartas-te do animal.

Riu-se outra vez, feliz por voltar para casa. Detestava Lisboa, o barulho incessante, o ritmo imparável, a pressa permanente. Nunca gostara de cidades mas Lisboa era a pior. Não que conhecesse muitas mas Lisboa era a pior de certeza. Raio de gente, sempre a correr de um lado para o outro!

No comboio para casa falou consigo próprio só em pensamento, as pessoas não compreendiam e começavam a olhar para ele de esguelha. Fora uma lição que tinha aprendido depressa, quando viera para Lisboa há 10 meses atrás e nem se podia dizer que era mania de cidade – os olhares mais desconfiados e os sorrisos idiotamente superiores vinham as mais da vezes de gente do campo como ele.

Mas o sorriso largo e o ar radiante, esses não os conseguia disfarçar.

Chegado a casa, passou a mão devagarinho pela porta, acariciou a parede com uma ternura insuspeitada. O Lar... Aquelas paredes, as portas e janelas, até o telhado, tudo era parte de si, tudo trazia memórias, alegres umas, tristes outras, mas todas suas, muito suas. Antes de entrar olhou longamente a paisagem, enchendo o coração de tudo aquilo que tanta falta lhe tinha feito no período de exílio.

 – Amanhã de manhã vou buscar o Sr. Doutor.
 
O Manuel e a mulher fizeram grande festa quando o viram, espantados, julgavam que só voltaria dali por uns meses. Sentaram-se à mesa, a mulher trouxe uns petiscos, falaram da ida, de Lisboa, da maluqueira em que andam as gentes das cidades, do filho e da nora, do garoto que se fazia anunciar, das novidades da terra, o vizinho dali e mais o daqui, do padre, de tudo. Já só faltava falar do burro.

– Manel, vou levar o Sr. Doutor.

– Ó pá… O burro, sabes… O burro teve um acidente.

– Um acidente?!? Mas que acidente?

– Começou a coxear, sabe-se lá porquê. Ainda o levei umas poucas de vezes ao veterinário mas no fim não havia nada a fazer, tinha de ser abatido. Comemos o bicho na semana passada.

– Comeram o Sr. Doutor?!?

– Sim, o veterinário garantiu que não havia problema nenhum com a carne, podia-se comer. Tu sabes a como está o preço da carne,  não sabes? Ainda há alguma ali na arca, guardámos para ti.

– Comeram o Sr. Doutor?!?

– Sim mas olha que não fomos só nós, demos aqui uma festa e vieram todos. Estás a ver, um burro tem mais carne que um porco.

– Uma festa? Para comer o Sr. Doutor?!?

– Porque é que estás sempre a repetir a mesma coisa? Sim, que é que querias que a gente fizesse ao animal?

– O Sr. Doutor?!? Mas vocês comeram o Sr. Doutor??

– Ó pá, outra vez?!?

No caminho para casa, continuava a sentir-se irritado. Passou a mão pelo lombo do animal:

– Burros, burros são os homens, podia ter-me dado uma coisa má. A ver se riam daquela maneira, grandes animais, se eu lhes morresse na sala de estar! Ó  Sr. Doutor, já viste o que era, eu morrer lá na sala quando eles me dizem que tu estavas morto e comido?!?

Riu-se. Tirou o chapéu e limpou com a mão o suor que escorria da testa.





Cada vez acredito menos no Pai Natal


Joaquim Bispo


É Natal. A tradição portuguesa louva o nascimento do Menino Jesus, com missa do galo, presépio e madeiro a arder no adro da igreja. As famílias transmitem a tradição, associando as crianças à montagem do presépio, que ganha um espaço de ternura em muitas casas do país, sobretudo no espaço rural. 
Entretanto, apareceu por aí um palhaço vestido de vermelho que teima em se imiscuir na tradição. Quem é ele? Será o pai biológico da criança? Um Rei Mago tresmalhado? Será o Rei do Carnaval e confundiu as datas? Mistério.
Certo é que o Pai Natal não faz parte de nenhum episódio do Novo nem do Velho Testamento. Não espreita em nenhuma tábua pintada, em qualquer templo de qualquer época. Não aparece em nenhuma iconografia cristã. Não tem nada a ver com o Natal. 
Como é que o enternecedor menino recém-nascido do presépio dá passagem a este grotesco barrigudo? Como é que o madeiro incandescente do adro se transforma em pinheiro nórdico, carregado de neve? 
A globalização tira-nos até a cultura dos nossos avós.

***

Imagem: http://www.tribunadamadeira.pt/?p=14538





terça-feira, 24 de dezembro de 2013

CRÔNICAS LONDRINAS – PARTE III

HO(L)ME(S)

Confesso que, apesar de toda a fama do detetive de Baker Street, jamais havia lido um dos livros de Conan Doyle. Conhecia, sim, algumas histórias – trechos de contos, mais precisamente –, além de haver assistido a dezenas de filmes e séries televisivas, baseados nas aventuras da dupla Sherlock e Watson. Mas nada além desse elementar conhecimento, cora-me a face ao dizer.

Sendo assim, não foi com o deslumbramento próprio de um fã que entrei naquela enorme fila, frente à famosa casa, na tarde de 18 de Setembro de 2013. Não: minha curiosidade foi despertada mais por influência de minha esposa – essa, sim, uma leitora constante (até estudiosa, diria) das obras do escritor escocês.

Pois bem, voltando à narrativa, lá estava eu, à porta de Sherlock, enquanto Londres preparava-se para mais um crepúsculo (sem trocadilhos com as atuais tendências do mercado editorial). Um rapaz, vestido de policial, chamava grupos de dez pessoas a cada meia hora para adentrar a residência. Quando chegou minha vez, subi as escadas, agora mais curioso para conhecer outros detalhes a respeito do detetive mais famoso da Literatura.

Na sala que reproduz o local em que ele e o fiel escudeiro, Watson, costumam discutir sobre os casos mais intrincados, três indianos (reconheci-os pelos sotaques em Inglês) disputavam entre si para tirarem fotos com os famosos chapéu de caçador e o cachimbo, marcas registradas do detetive. Por outro lado, o chapéu-coco de Watson parecia despertar pouco interesse entre os visitantes. Vendo-o, portanto, abandonado – e sabendo que faria mais o meu estilo “gordinho e cético” –, não tive dúvidas: sentei-me em uma das poltronas, frente à lareira, e pedi a uma nada entusiasmada coreana que tirasse uma foto deste envergonhado Watson. Foto essa que foi parar nas redes sociais: um pormenor que Sir Sherlock provavelmente classificaria como “não merecedor de seu tempo”. Mas enfim...

Em seguida, dirigi-me ao setor da casa que mais me chamou atenção: o das estátuas de cera representando assassinos e assassinados. E estava tranquilo, inebriando-me com os produtos químicos que lá encontrara, quando, de repente, uma das estátuas vira-se para mim e comenta: parecem de verdade, não é mesmo? Tomei um susto, claro, mas logo me recuperei, dizendo: “Indeed.” (No bom Português: “De fato.”). E saí da sala, às pressas, em busca de um lugar mais confortável, digamos, a tumba de Conan Doyle...

E foi isso: a fama do personagem, concluí, era mesmo maior que a casa de Baker Street. Mas não que eu tenha me decepcionado. De forma alguma. Tanto que, na loja anexa à residência, não resisti e comprei dois belíssimos exemplares da obra conan-doyleana, a saber: “As Memórias de Sherlock Holmes”, para presentear a minha esposa, e “As Aventuras de Sherlock Holmes”, para presentear-me.

Assim, de volta ao Japão, iniciei a leitura. Agora, mais familiarizado com o detetive, que, tenho certeza, gostou de observar novamente a um desconfiado Watson em visita à casa de Baker Street.

Na próxima, prometo, meu caro Sherlock, chegarei a tempo para o chá das cinco...


***





segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Meu desejo de natal

Eu gostaria de ser daqueles que amam o natal, que se empolgam com as festividades. Mas antes de andar como os outros nessa invisível fila indiana; antes de acompanhar tudo como a boiada que é guiada pelo peão, lembro contraditoriamente que também sou humano. E apego-me nesse último suspiro de subjetividade, nessa autenticidade que tanto me orgulho e que faz me infeliz. Quisera eu fechar os olhos e como tantos outros acreditar que o natal é um feriado genuinamente cristão e não um dos muitos ritos que foram roubados. Uma estória pagã roubada e apropriada, assim como tantos outros tesouros que foram roubados e apropriados pela Igreja. Gostaria de olhar para o Papai Noel e ver nele um bom velhinho, que com a ajuda de duendes e fadas alegram o natal de tantas crianças pelo mundo a fora, mas ao invés disso eu vejo o garoto propaganda de uma empresa de refrigerantes. É triste pensar que até o bom velhinho se vendeu. E, se vendeu por tão pouco. Acho que hoje ele vive uma mentira e ainda pensa que é um bom velhinho.

©Leah Beach 2013

Talvez eu olhasse para o natal de maneira diferente, se não tivesse lido tantos livros sobre as origens dos natal, descoberto tanto mitos que o cercam; talvez se eu não quisesse ter um olhar autêntico, diferenciado dos outros. Talvez eu olhasse para o natal de uma maneira completamente diferente se eu tivesse alguém para me preocupar, alguém para passar os feriados familiares, alguém para passar o natal.

Eu juro que fiz, ou tentei fazer, a minha parte. Eu me casei com uma bela moça. Na verdade, ela não era tão bonita assim, mas para mim era a mulher mais linda do mundo. Sempre foi. Fui homem de uma mulher só. Eu casei por amor, ela por que precisava. Estava grávida e o pai do bebê não queria assumir. Os tempos eram outros. Ela não tinha muita escolha. Eu não ligava. Eu a amava tanto, sempre a amei. E sei que com o tempo ela também me amou. Amei o filho que não era meu da mesma maneira como amei meus dois outros filhos, talvez mais porque sei que foi esse menino, o primeiro que ela teve, que a trouxe até mim.

Tive anos felizes ao lado da minha família. E eu nem me importava com o natal, era apenas uma data para que pudéssemos ficar todos juntos. O tempo foi passando, as crianças tornaram-se adultas, saíram de casa, se casaram. Eu e a minha amada ficamos velhos, vieram as doenças. Cerca de 10 anos ela faleceu. Então tudo mudou.

Os meus filhos me abandonaram. Eles simplesmente me largaram aqui. Os dois mais novos nunca mais os vi. Eles já tinham filhos e não tinham tempo para mim. Foi na época em que me enterraram aqui. Diziam que eu precisava de cuidados e eles não poderiam cuidar de mim. Então era isso, eu estava com 79 anos e acharam que eu já estava muito velho para cuidar de mim.

Parecia uma vingança. E eu juro, não fui um mal pai. Fiz o que eu podia fazer: paguei os estudos de todos, dei-lhes comida, viajei com eles. Brincávamos. E hoje eles me dizem que não há tempo nem para uma conversa com o velho aqui. Por isso que digo enterraram-me para que eu apodrecesse nesse asilo. Não, não se diz mais asilo. Agora os tempos são outros. Agora eles chamam isso de casa de repouso. Um novo nome para prisão. Sim, porque isso é uma prisão. Se você é colado em um lugar sem o seu consentimento, onde lhe tiram a dignidade eu chamo de prisão. Há muitos do meu tempo que chamavam de campo de concentração ou campo de extermínios. A diferença entres esses asilos e as prisões ou os campos de extermínios é a esperança. Nas prisões, campos de concentração e nos de extermínio há esperança. Um pouco de esperança que um dia se possa sair vivo de lá e voltar a ter uma vida. Nos asilos não há esperança de ter uma vida novamente. Você só sai morto.

Ironicamente é com meu dinheiro que eles pagam esse meu corredor da morte. Tiram-me o meu dinheiro, a minha dignidade, os meus sonhos e me jogaram aqui para morrer. Venderam a casa, na qual eu morava e dividiram o dinheiro entre eles.

Mas ainda tive momentos de alegrias. O mais velho, o bastardo. Não bastardo não. Bastardo é uma palavra tão feia, tão ofensiva ele não precisa nunca saber disso, ouvir isso. O mais velho, aquele que não levava o meu sangue. Assim esta melhor. O meu filho mais velho vinha todos os domingos, no início com a esposa e com o meu neto, depois vinha apenas com o meu neto e por último aparecia só. A esposa, eu sabia, não gostava de mim e deu um jeito de voltar o meu netinho contra mim. Mas meu filho continuou vindo. Ele aparecia, quase todos os domingos durante cinco anos, mas um dia também desapareceu.
Consegui com que um funcionário, o qual conversava muito comigo e às vezes com o meu filho, ligasse para a casa do meu menino. Eu queria saber se estava tudo bem com ele. Podia doer saber que ele também havia se cansado de mim, mas eu preferia a verdade. Uma mentira que falamos para nós mesmos. No fundo, a gente nunca quer saber de fato a verdade, a gente quer é que continuem mentindo para a gente e que nos iludam que tudo vai dar certo. A verdade dói. A verdade é que o meu menino havia morrido. Se ele tivesse bem e apenas não quisesse mais me ver teria doído mais. Quando ele morreu, senti que não tinha mais família. Não sei se os outros estão vivos ou mortos. Para mim era como se outros dois também tivessem morrido.

No fundo, eu não quero culpar meus filhos, mas cresce em mim uma raiva pela vida que não consigo controlar. Eu não consigo falar direito, não caminho direito e acho que isso fez com que eu não pudesse mais continuar com a minha vida, mas eu queria poder decidir. Por que não podemos decidir pelo futuro da nossa vida? Sempre tem alguém que sabe mais da nossa vida do que nós mesmos. É mais fácil cuidar da vida dos outros do que na nossa. Mas queria ver se era mais fácil mesmo, se as decisões tomadas pelos outros tivessem que vir também com a responsabilidade e que as consequências recaísse sobre quem decidiu. Queria que meus filhos sentissem um pouco da solidão que eu sinto aqui dentro e não por que eu decidi vir, mas por que trancafiaram-me nesse ASILO.

Então não me condenem, se pareço um velho rabugento e que não gosta de natais. Não me culpem, se o melhor que posso esperar é morrer. Entendam que ficar feliz nessa época do ano, me custa muito. Hoje eu sei que sorrir enquanto esconde sua própria tristeza não é fácil. E percebi que não preciso mais esconder nada.

Eu tenho tempo. E penso muitas coisas. Por exemplo? E se a morte viesse ao meu encontro na data em que comemora-se o nascimento do menino jesus? Isso mesmo no dia do natal? Não teria pensado em melhor presente para acalmar essa alma que grita das dores, das cicatrizes do passado do peso que se tornou viver. Não há desejo de morte. Quando se fica velho a morte não é desejada, é certa, mas a cada dia se negocia um dia a mais, mas ei que vejo me cansado da luta e da batalha. Não desejo a morte, mas viver tem-se tornado um peso do qual eu não posso suportar mais. Talvez seja a sensação de que revele que sua hora chegou e sabe-se que então a que resta é enfrentar o juízo final. Não temo o deus que me julgará, seja ele quem for. Sei que fiz mina parte, fui ã missa rezei meus pecados, pedi perdão pelas falhas, mas quando se chega a certa idade, nada disso faz tanta diferença. Vou a missa mais para fugir dessa solidão do que para rezar ou redimir dos meus pecados. Afinal que coisa de tão grave um homem comum pode fazer para ser impedido a entrar no portões do céu e encontrar-se com os seus. Não temo deus. Espero pelo menos uma casa com lençóis limpos uma cadeira para conversar com os amigos no fina do dia. Será que há dia e cadeiras no céu? Será quem meus amigos estarão por lá? Será que meu filho e minha amada me aguardam para que juntos possamos comemorar o natal, como uma família feliz novamente?





domingo, 22 de dezembro de 2013

Natal depois do fim do mundo

Professora de três, mãe de dois, mulher de ninguém e dona de nariz algum, Ana torcia para que os Maias estivessem certos. Naquela altura da vida ainda precisava aprender tanta coisa para chegar a uma cota razoável de paz e ensinar outras tantas para garantir a cesta básica e a lisura dos filhos, que estava exausta. Farta, mesmo. Cansada de dar conta, manhã-tarde-noite, de planejamento, aulas, avaliações e reuniões pedagógicas, de ter que esticar o tempo para alimentar, dar banho, vestir, pentear, conversar, fazer dormir as crias e, principalmente, de não sobrar hora para o básico: tirar a sobrancelha, pintar as unhas, amar(-se), por exemplo. Por ela, enterraria com o mundo todos os compromissos, deitaria no vinte de dezembro e não acordaria nunca mais. Nunca mais, como na propaganda da cerveja.

O vinte e um amanheceu quente e assim foi até o céu abusado de tão laranja daquela tarde dar lugar à noite limpa e fresca e à madrugada que não acompanhou. Esperou tsunamis, chuva de meteoros, tornados, furacões, alienígenas, catástrofes hollywoodianas e nada. Despertou no vinte e dois e a pilha de exames para correção ainda estava lá, meus dinossauros, pensou. Fez um café forte e sem açúcar, amarrou os cabelos, catou canetas no estojo e pôs-se ao trabalho enquanto os pequenos não levantavam. Mas o pensamento, essa coisa nuvem e aflita que se governa, não parava nas questões da página e ia pousar nas ruínas. Do planeta. Ana estava decidida a não abrir as janelas nem a porta, a não atender telefone nem ligar computador ou televisão. Caso o caos estivesse lá fora, faria um estrago ao juntar-se com a bagunça de dentro. E estar ali, viva, só podia significar algo importante, raro, um sinal. 

Calculou o que ainda havia de consumível na geladeira, cogitou armazenar água e reunir as lanternas, as velas e fósforos em lugar estratégico na cozinha, sabe-se lá até quando o abastecimento iria durar. Já havia sobrevivido a outros fins, mas agora era diferente. Talvez o ar, o silêncio da rua ou o sono prolongado dos filhos a fizessem sentir assim. O fato é que Ana era dura e não conseguia deixar obrigações de lado. Se havia restado em pé depois que o mundo acabou, tinha o dever da reconstrução. Sabia vagamente por onde começar – quando chega muito perto, a finitude tem desses truques, de apagar o tempo e deixar que apenas pedaços de memória venham à tona com certa força – e o fez. Colou a última folha do calendário na parede e riscou os dias seguintes até o vinte e cinco. Natal, lembrou, sem alcançar o motivo da data festiva. 

Árvore, luzes, vermelho e verde e dourado, presentes, peru, família, enumerava mentalmente figuras e símbolos e buscava em gavetas e caixas objetos que pudessem colaborar para um recomeço bonito. Achou no fundo de um armário um saco de sementes de girassol aberto. O que faz isso aqui se não temos nem somos passarinhos?, resmungou. Aproveitou e plantou algumas em copos descartáveis. Brotariam logo e encantariam os meninos. Estranhamente, os filhos seguiram adormecidos até a ceia, quando Ana decidiu chamá-los para celebrar. Nenhum deles acordou para a noite feliz, haviam se terminado com o mundo. Tudo bem, conformou-se Ana, prestes a dar à luz novos girassóis.           





sábado, 21 de dezembro de 2013

Dois Natais

Mais um natal se avizinhando em nossas vidas. Alguns foram ótimos, outros nem tanto, todos, entretanto deixando uma pequenina marca em nossas existências. Época de comprar presentes e, sobretudo de ganhar, ganhar, ganhar! Tá certo, o natal se transformou numa data consumista, onde uma reflexão sobre quem é e quais foram os propósitos do aniversariante enquanto esteve entre nós ficam para segundo plano, contudo, curto o natal e sua atmosfera de solidariedade envolvendo boa parte da raça humana neste dias que antecedem a data. Sociologismos à parte, dois natais marcaram especialmente minhas lembranças do tempo de criança.
O primeiro natal do qual minha já quarentona memória consegue buscar foi também a primeira noite em que eu me lembro de ter passado acordado, coisa audaciosa para quem contava apenas seis ou sete anos de idade. Nesta noite, ganhei de presente um fusca de corrida movido à corda e uma ambulância cujo controle remoto funcionava ligado ao veículo através de um fio. Brinquedos paleozóicos em comparação ao que encontramos atualmente nas lojas e sites especializados. Todavia, o que mais me encantou naquela data, sendo o responsável direto pela minha insônia natalina, foi um livro de capa dura, com dimensões de um volume de enciclopédia, onde passeavam impressas as primeiras histórias em quadrinhos de alguns dos mais famosos personagens de Walt Disney. Varei a madrugada no meu quarto, sem que Morfeu me sequestrasse, sendo cúmplice das aventuras inaugurais do Mickey, Pateta, Tio Patinhas, Peninha, Pato Donald, Gastão, Huginho, Zezinho e Luizinho. Quando a fome me assaltava, ia à ponta dos pés até a sala e servia-me de castanhas, avelãs e frutas sobreviventes da ceia.
Outro natal inesquecível ocorreu por volta dos meus dez anos de idade. Eu queira por demais ganhar uma mesa de futebol de botões. Minha mãe comprou a tal mesa e a escondeu atrás do armário do seu quarto. Desconfiado, passei dias indo sorrateiramente ao esconderijo e, sem que ninguém percebesse, com a ponta dos dedos furava o papel pardo que a embrulhava aquele retângulo ocultado pelo móvel, procurando indícios de que ali houvesse uma mesa. Para o meu desespero, a mesa que minha mãe comprara não era verde e sim na cor marrom do compensado. Picotei o embrulho por dias a fio, como uma cerimônia, uma novena, só obtendo a certeza de que eu ganharia a minha mesa de botões quando avistei o quarto de circulo que demarca a área de escanteio do campo de futebol através de um dos furinhos no papel de minha autoria. Na noite de Véspera do Natal eu fingia nada saber e, próximo à meia-noite, mamãe insistiu para que eu fosse desejar um Feliz Natal a um coleguinha do conjunto residencial onde eu morava. Claro que pelo adiantado da hora não havia amiguinho algum na área do prédio. Quando retornei, estavam todos com cara de que nada sabiam e encostada na parede minha mesa de futebol, com dois times de botões completos. Papai Noel havia passado e deixado um presente para mim, afirmavam os adultos. Não me lembro de haver um dia acreditado no bom velhinho e só m muito tempo depois contei a minha mãe sobre as minhas excursões pré-natalinas atrás do seu armário.

Natais felizes, de uma época mais romântica, que temo estar se perdendo.

Do livro "Pastel de Vento" à venda na AGbooks





sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Quem sabe, um dia

Ouvi um barulho estranho na varanda.
Mais outro na veneziana, outros na caixa do ar condicionado.
E mais outros e outros seguidos, intensos e crescentes como que viessem da rua.
Quando olhei da janela, tudo estava tomado.
As calçadas, os carros, os telhados das casas, as copas das arvores.
Desci de braços abertos, girando com vontade de cantar, olhando para cima,
agradecendo o raro fenômeno.  Ridículo?
Não era o único. Outras pessoas também apareceram. Não nos falávamos,
mas ríamos, sorriamos, gargalhávamos e brincávamos umas com as outras.
As crianças surgiram de pijaminhas e ursinhos a tiracolo. Corriam pra lá e pra cá,
faziam montinhos, rolavam pelo chão, deslizavam pelas ladeirinhas totalmente encobertas.
Todos de todos os credos e não credos deixavam se banhar pela imaginação
e se encharcavam de emoções.
Quando vem chegando o Natal  é sempre assim.
Sonho com uma chuva de livros inundando a vida.





quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Gerações

Não sei dizer se isso é um ensaio, um tratado, uma teoria, ou, pura e simplesmente um acordo comigo mesma. Acho que é reflexão, filosofância... Versar, mesmo em prosa ou drama de atuar, é coisa séria. E as regras desse brinquedo de contar nunca são muito claras, conferindo um sabor especial à brincadeira. 

O drama de toda escrita consiste na página em branco. Curiosa essa afirmação, afinal a ausência de palavras não soa [para mim] como ameaça, muito pelo contrário: é terreno seguro. Depois da primeira linha rompida por uma ideia, um cheiro ou uma constatação, tudo bem. É só encontrar as peças corretas: o que buscarei dessa vez? Solidez de conteúdo? Solidez de conteúdo aliado a um bom movimento sonoro, rimando coisas no meio das grandes cadeias de significação? Quem sabe... 

Isso porque já se disse tudo. As palavras são exploradas tal como uma floresta tropical. É possível tirar muito delas, embora alguém já tenha dito que somos seus servos – acho até que sim. Expressar algo totalmente inovador... – a cabeça dói e nada vem. Se eu ao menos soubesse de onde viemos e para onde vamos, seria uma coisa original, mas ficariam todos tão impressionados com tais respostas que nem prestariam atenção na minha perspicácia e iriam correr para algum lugar, provavelmente o parapeito de um prédio bem alto e dizer adeus. 

Ser original não é fácil e quando repetimos alguns temas, parece até coisa de cientista, genética, né? O olho é do pai, o temperamento é da mãe. E assim, os poetas, as leituras, os pensamentos vão transmitindo o seu gérmen curiosamente roedor e criador, mola propulsora do movimento dos relógios sem sair do lugar. Uma página remete a outra e a outra e mais outra e não nos é estranho a sobrevivência do mito do labirinto, visto que somos ele mesmo. Descer até o mundo aonde a luz não chega, tentar ao máximo escavar esse mistério o qual responde uma pergunta fazendo dez mais.

Por essa razão, responder as questões elementares é inútil. Destruiriam a literatura. 

Sei a resposta de tudo aquilo que nos assola, destrói, constrói e tudo o mais.

Contudo, não confesso.

Preservação da espécie. 





quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O IDIOTA

Otávio Martins Amaral

Perfeito. Para quem pretende rebaixar a zero, a condição humana. Até mesmo, costumam, os “não idiotas”, chamá-lo, ou classificá-lo como um perfeito idiota. Eu, sinceramente, ainda não sei, exatamente, o que possa ser um idiota; perfeito, menos, ainda.

Para o escritor russo Fiódor Dostoievsky e, para o Raul Seixas, as coisas não são bem assim. Dostoievsky foi buscar, na sua imaginação, um jovem príncipe, lá de um manicômio de sua ficção, quando esse voltava para o convívio da sua cidade, no seio de uma sociedade, já, devidamente, corrompida. Interessante registrar que, nem em São Petersburgo e nem na Rússia toda, conseguiram, até os dias de hoje, desvencilhar-se desse tipo de corrupção da personalidade humana. Quem não pertence aos meandros do Estado, é considerado um idiota, quando não, perfeito idiota. Foi o que eu vi e ouvi dizer por aí. Vocês têm acompanhado o fascista Putin? Virar-se contra ele e suas mazelas, no poder do Estado Russo, manda prender. Mesmo os que defendem o Planeta. Como se a Rússia não fizesse parte do planeta Terra.

Seria a epilepsia uma manifestação ou característica da idiotice? Essas e outras idiotices, só na cabeça do Estado Russo, diga-se. Seria um sujeito epilético incapaz de desenvolver algum tipo de atividade, mesmo intelectual, numa sociedade com um mínimo de desenvolvimento social? Não, claro que não. É que Putin é um desajustado, incapaz, violento e fascista. Um grande filho da puta. Concordam?

Quando afirmo que ele é um grande filho da puta, com isso não estou e nem conheço, marcando a sua (dele) mãe. Filho da puta costumo dizer do sujeito da pior qualidade. Principalmente quanto a sua atuação social. Além dos seus eixos. Ou fora deles.

Assim como Putin, outros no mundo existem: Barack Obama (pra mim, Osama), Berlusconi, Merkel & outros filhos da puta, também, de marca maior. Se alguém achar que essas pessoas que acabo de citar não são filhos da puta, segundo a minha avaliação, é só levantar o dedo. Depois, fazer dele o que bem entenderem.

Bem, o que quero dizer é que vamos ter que nos resignar, sendo considerados idiotas, pois não fazemos parte do poder do Estado, segundo a camarilha soviética. Aliás, o que eu sonho, mesmo, é acabar com essa praga, o Estado. A gente comete muitos enganos, é claro. Cheguei a pensar que o Lula iria tirar o Brasil dos braços da Socialdemocracia; que a “Boneca do Ventríloquo”, também fosse ajudar - chegou a tentar o poder pelas armas. Arrependida, deu no que deu. Uma baita duma vaca, de presépio, controlada pelo mesmo ventríloquo, com os cornos pra fora e acima da manada. Só. Apenas mais uma fachada, parte do feixe. Fascista, como Lula, FHC, Sarney, Renan, Azeredo (está com um projeto no Congresso para regulamentar a Internet. Quer mais, controlá-la). Não quer que a gente se expresse. Quer manipular a opinião. Assim como faz a Rede Globo. Aliás, sua aliada, principalmente no que diz respeito ao Mensalão, do qual foi o seu inaugurador, lá em Minas, juntamente com o Marcos Valério, em 1998, na mesma época que outro crápula, Fernando Henrique Cardoso, comprava a “vontade” de alguns congressistas.

Só um idiota, mesmo, pra acreditar nesses dois pilantras, o pelego Lula e a “Boneca do Ventríloquo”, a Dilma Roussef, que estão no topo do poder. Sem moral, corruptos, corrompedores e corrompidos. Dois borra botas. Só.





segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Trânsito - Poema de Eduardo Lacerda

Trânsito
Eduardo Lacerda




Tenho andado errado:
o passo largo,
à frente do tronco (do
resto inteiro, do corpo,
este cimento).

Somente em sonho,
neste ligeiro
plano de
voo,

me alcanço.

Somente em trânsito
esbarro no que
reconheço,

no que sinto,

e estranho.



In Outro dia de folia, Editora Patuá.





Via Dolorosa


"...as prostitutas e os cobradores de impostos
vos precedem no reino dos céus".  

Começou a morrer no momento em que foi espirrada da barriga da mãe. Jogada em meio ao amontoado de imundícies do leito do rio, onde catadores bêbados, cachorros magros e ratos enfurecidos disputavam restos de comida, apodreceu em meio às cascas por algumas horas. Mas quis a sorte ou o azar que espremesse um choro azedo exatamente na hora em que Madalena, uma das putas da rodovia, fazia o seu ofício. Curiosa, a mulher escavou a montanha de entulhos e tropeçou os olhos no bebê, que se mexia muito pouco.
Kelly Cristina vingou nas mãos daquela mãe improvisada. E tomou mais corpo do que podiam suportar os olhos embriagados dos catadores e dos drogados que perambulavam pelas margens do rio. Aos 14 anos, já fazia a vida. Aos 16, tinha um dos melhores pontos no calçadão que margeava a rodovia paralela ao rio.  Era a preferida de motoristas e caminhoneiros, que a recolhiam embaixo do viaduto. Aos 17, mais tarde que a maioria, criou barriga. Como queria ver a cara da criança, escondeu a prenhez de Madalena, até que nenhuma das mulheres teve coragem de lhe fazer um aborto.
Viu a filha nascer bem cedo, em uma manhã de sexta-feira. E passou com ela pouco mais que um dia, antes de se levantar e ir trabalhar novamente. Na noite de sábado, apesar do cansaço, saiu para o ofício banhada e perfumada. Não sabia que, ao voltar, a criança teria ido embora. Madalena já tinha destino combinado para a menina e lhe deu sumiço sem avisar a ninguém. Kelly Cristina, histérica, esbofeteou-a para que dissesse onde estava a filha, mas tudo o que recebeu foi um abraço silencioso. Nunca mais soube da criança.  

OOO
É tarde da noite. Da vida, também. Kelly conhece o veneno que sacia o seu sangue. Vai morrer do prazer que sente pelo sexo de todo o dia. Não lhe interessa a saúde comprovada pelos exames pagos pela ação social da igreja, uma vez por ano. Seu corpo morre é de vontade, não de descuido; o corpo de curvas sensuais que é disputado sob o viaduto. Há nove anos, provou seu primeiro homem. Tinha gosto de pressa. Nunca mais experimentou coisa melhor que os homens da estrada. Faz com pressa o ofício até hoje. E goza.
O corpo do traficante com quem se amasiou depois de parir a filha acaba de sair porta afora. Ela olha o cadáver, se lembrando das surras quase diárias. Mas também das pedras de crack que ele lhe trazia. O puto só lhe entregava o bagulho em troca de um boquete demorado. Pau mole de merda, pensava, enquanto tentava acelerar o gozo do companheiro. O único contratempo na morte do infeliz é que ela vai ter que arranjar as pedras em outro lugar. Nem o filete de sangue que escorre da sua barriga a incomoda. Durante a briga, foi atingida duas vezes pela ponta da faca do traficante: no bucho e no rosto, exatamente no mesmo lugar onde ele tinha lhe batido com o anel de ouro, na véspera, deixando-a com um olho roxo. Nada dói. E mesmo que doesse. Ela não tem tempo para cuidar de feridas. Briga de gente é coisa de porrada. Mas a briga deles tinha sido de bicho. No impacto do primeiro soco, cuspira a gilete que guardava embaixo da língua. E ainda tivera tempo pra pensar se queria mesmo ficar sem o macho e sem o crack. Para cada indecisão sentiu a ponta da faca. Não vacilou mais. Agora, só pensa é na beleza do talho que desenhou na garganta do amante e sorri imaginando a cara do vagabundo acordando da morte no meio do inferno.
No fim de mundo sórdido das putas da rodovia a polícia não tem interesse em saber de nada. As meninas mentem. Dizem que quem matou o companheiro de Kelly foi um desconhecido. Entrou na casa, matou, fugiu. Ninguém questiona. Nem a polícia, nem os vizinhos que nunca veem, nunca ouvem, nunca falam. Um traficante a menos distribuindo sonhos de merda. E mais um ponto liberado para outro marginal assumir.
Quando levanta da cama na manhã seguinte, faz três clientes de uma vez só, no mesmo quarto. Sua pressa está atrasada. Deu para se lembrar da filha; imagina cada dia um rosto diferente para a menina. Pensa na criança enquanto faz sexo com pressa na rodovia. Bebe cachaça e fuma uma pedra de crack quando acorda; bebe e fuma entre um cliente e outro; bebe e fuma na cama dura da casa de Madalena. Para poder dormir. Não dorme. Imagina o rosto da filha. Chora durante o sexo e crava as unhas nos homens. Depois, esquece de gozar ou de fingir. Já não é preferida, nem disputa o calçadão. É mulher de beco lateral.
Ontem à noite, desligou os sentidos. Seus olhos amanheceram perdidos nos entulhos do leito do rio, onde Madalena a encontrou, pela manhã, imunda e abraçada às próprias pernas. A mulher se lembra dela naquele mesmo lugar, ainda um bebê, sem forças e coberta pela sujeira do lixo. Os anos a cobriram com a sujeira da vida. Na casa das meninas, para onde Madalena a conduz, Kelly Cristina não chora mais. Faz o que mandam, faz o que pode. Sem sexo, sem filha. De vez em quando, uma das meninas lhe dá uma pedra de crack, mas nada é suficiente. Ela precisa de mais. No quarto, treme, sua, grita e se urina. E passa as noites acordada nos braços de Madalena, que tenta acalmá-la e a impede de sair sem rumo pela noite.  

OOO 

Faz um ano que Kelly trabalha para Ceiça e José Arlindo, bem longe da rodovia. Ela, uma mulata redonda e desbocada, que trabalha no seu próprio salão fazendo os cabelos e as unhas da vizinhança. É irmã de Madalena. Ele, um homenzinho mirrado que encanta a freguesia numa lojinha de frutas no centro da cidade. São amasiados, companheiros plenos. Pertencem a um mundo que criaram só para si. Gostam de Kelly. E fazem dela a filha que os anos não trouxeram. A internação, os remédios, médico todo mês. Ninguém fala no dinheiro gasto, só em coisas boas. Aos poucos, Kelly esquece a depressão. Distrai-se com as clientes de Ceiça que a tiram da apatia com suas fofocas e gargalhadas. José Arlindo, que se ausenta de vez em quando para uns negócios secretos, lhe pede que o substitua na banca de frutas. E ela já é mais procurada do que ele. Há muito, tornaram-se amigos. Um sentimento novo que ela não sabe se deseja. Ainda pensa na filha que não conheceu além do parto; nas cicatrizes que traz no rosto e no ventre; nas pedras de crack que deseja com todas as forças, todos os dias. O pensamento na droga a faz suar e ter dores fortes na barriga, apesar dos remédios que toma. E esta noite, só esta noite, ela deseja outro remédio para a agonia que a retoma e que inferniza os seus dias alienados. Quando entra na casa das meninas, fecha as narinas na tentativa de impedir que as lembranças entrem pelo ar. Ela precisa de Madalena, a única mãe que conhece. Em seus braços, sente-se forte para ir em frente. Forte para se destruir novamente.  

OOO 

Nem faz um mês que Kelly Cristina voltou. Nem faz um mês que cobre de novo o mesmo ponto na rodovia, que bebe, que fuma as pedras de crack barganhadas por dinheiro ou por sexo. É capaz de repetir esse caminho rasteiro quantas vezes precisar. Não se despediu de Ceiça nem de José Arlindo. Teve medo de que eles lhe pedissem para ficar. Gosta de imaginar que tenham esperado por ela durante alguns dias — precisa acreditar nisso —, mas compreende que os decepcionou como faz com todo o mundo, por hábito, por natureza. Não importa. Ela não pensa mais na sujeira que lhe serviu de berço, na imundície pegajosa que pegou de cada cliente, nem no lixo humano a quem deu fim pelo fio da gilete. Nem se assusta mais com a noite eterna dos seus dias. O que ela sente dói além da carne e dos ossos. Uma agonia que não cessa, um descontrole na alma. É dor de cansaço.
Não sente o chão quando cai, entorpecida pelo crack e pela cachaça barata. Vai se levantar; sempre se levanta. Precisa apenas esperar que o corpo elimine os excessos. Mas, hoje, a rotina falha. Ouve vozes ao redor e sente que alguém derruba em sua boca, lentamente, uma sopa cheirosa. Quando o agasalho de lã envolve seu corpo enrijecido, a dor se distrai por uns momentos. Ela agora tem muitas mães. Aperta a mão de quem a aqueceu e, fortalecida pelo caldo, consegue sentar-se, exalando um cheiro de vômito. As mulheres recuam. Nada mudou. Aquelas senhoras educadas, que exercitam apenas por dever o honroso ofício da caridade cristã, acusam-na sem palavras. Ela é novamente uma prostituta drogada. Cambaleando, levanta-se e foge do risco de se sentir humana. Ela precisa prosseguir com a noite, fazer sexo gostoso, gozar, beber, fumar para que a luz da manhã aconteça sem dor. Ou não aconteça.  

OOO 

Cinco da manhã. A madrugada não trouxe clientes. Ela prefere pensar que está se preocupando à toa e que a escassez é para todo o mundo. Mas, sem homens, sem droga. E ninguém lhe dá mais nada. Enquanto pensa no que ainda poderia roubar da casa de Madalena, não percebe os rapazes que se aproximam. Nem suas vozes histéricas, nem os risos alterados. A curra não a viola pelo sexo multiplicado naquelas seis ou sete posses brutais. O que a enche de fúria é a impotência. É o consentimento que não deu. Debate-se como um bicho até que sente a lâmina gelada entrando no seu ventre, no mesmo lugar do corte da outra, mais antiga. A carne fina explode com facilidade e o sangue esguicha sobre os agressores, fazendo com que recuem momentaneamente. Mas voltam, logo em seguida, e a chutam até os entulhos na beira do rio, onde ela se mistura aos restos de comida. Às gargalhadas, perseguem e apanham pelo rabo algumas ratazanas, jogando-as sobre Kelly. Mas ela não sente mais nada. Inspira o fedor da comida podre e aninha-se sob as cascas. Conhece aquele berço. Agoniza em meio ao lixo, aliviada. Finalmente, é hora de seguir o caminho adiado no parto. Madalena não está por perto. Não pode condená-la, mais uma vez, a viver.
Ceiça acorda Pedro Arlindo antes que o despertador soe o alarme. Ela não sonha nunca, mas esta noite sonhou com Kelly lhe pedindo um abraço. Sem esperar pelo marido, apressa-se em direção à casa das meninas. Madalena está à porta, esperando. Tiveram o mesmo sonho. Juntas, percorrem a pé a trilha das meninas, que pela manhã é apenas o caminho do leito do rio. As marcas da noite estão nas paredes com cheiro de sexo e nos preservativos que apontam rastros. Kelly Cristina espera por elas com os olhos sem viço e a boca entreaberta, por onde entrou o último ar da noite.  

OOO 

A tarde não tem pressa de acabar. No cemitério, Madalena e Ceiça, rosto seco, gestos calmos, consolam as putas da rodovia. Quando estiverem exaustas, consolarão uma à outra. José Arlindo olha de longe a comunhão das mulheres e pensa em suas frutas para se distrair da falta de ar, da falta de tudo. É de tempestade o céu que testemunha o caixão barato ser engolido pela terra. Mas no outro céu deve ter sol. Lá, deve ter.





domingo, 15 de dezembro de 2013

nativitas



Afonço.

Assim escrito. Tal e qual.

Traria a pele engelhada e os lábios roxos, e nem teria tido o tempo de secar a tripa mal atada no ventre desagasalhado.

Afonço sem qualquer apelido acrescentado ao nome.

Nem isso, nem outro modo que lhe dissesse de pai ou de mãe.

Simplesmente, Afonço.

No assento de ter sido baptizado, diz que foi padrinho um tal Francisco Cortes. Baptizava todos, esse sacristão.

Seria a pobreza tanta que nada sobrava para mais um outro. Ou seria o pai morto, ou o pai preso ou desconhecido.

Ou seria o pai um a quem nem pensar em alumiar-lhe o nome.

Ou seria a mãe senhora de recato.

Fosse como tivesse sido, foi Afonço abandonado ao frio de um mês de Dezembro.

E nem o teriam colocado ao peito para que o leite não subisse.

Tome-o e dê-lhe de nome Afonço. Dizia no bilhete.

O menino trazia cosido no cueiro já com uso, um bilhetinho amarfanhado.

Um bilhetinho escrito numa letra tombada. Uma letra analfabeta a pedir: baptize-o que não houve o jeito de fazê-lo, antes. E que Deus lhe dê o devido pago.

Afonço que traria a tripa ainda verde. Que ainda cheiraria a ventre e a sangue. Abandonado por aí, onde quer que o tivessem parido. Ou onde alguém desse por ele e o criasse. Ao menos lhe desse a caridade de o fazer baptizado. Um poial de casa, um adro de igreja. A porta de um convento. A roda a ranger, escura e pesada, pela calada de uma noite.

Outros, muitos, tantos, como Afonço, abandonados. Num ermo, tantas vezes. 

Poucochinhos os que terão chegado a homenzinhos. Não ele que faleceu no mesmo ano em que foi baptizado.

Sabe Deus de que morreu Afonço. De que morreram tantos. Meninos que só tinham um nome.

Ficou decerto o céu repleto de anjos.

       





sábado, 14 de dezembro de 2013

REFLEXÃO JUNTO AO MENINO JESUS

Menino Jesus, está chegando a data em que, simbolicamente, comemoramos o seu nascimento, e se tem uma coisa que gosto nesta época é de montar o presépio. Adoro fazer isto. Desde criança. E é com aquele mesmo prazer infantil que faço o meu presépio. Ponho você deitado na sua caminha de palha, com José e Maria, um de cada lado. Com a minha fértil imaginação, transformo o terreno árido onde você nasceu em campinas verdes e montanhas e vou colocando os pastores, os carneirinhos, a fazendeira que joga milho para as galinhas. Até rio tem no meu presépio, Menino Jesus. No meu tempo de infância, imitávamos a água com espelho. Hoje, veja, faço um riacho de verdade com água corrente passando por debaixo da ponte, com aquele barulhinho que adoro até a primeira meia hora, mas só até a primeira meia hora. Às margens do rio ficam os patinhos e sapinhos. Ponho os três Reis Magos com seus camelos vindo lá de longe, do leste, e a cada dia vou aproximando-os do estábulo. Ah, o estábulo! É aí que eu capricho mesmo. Meu estábulo fica lindo com suas vaquinhas, burrinhos, o pastor que carrega um carneiro em seus ombros, outro que toca uma flauta e lá na cumeeira o anjo, o maravilhoso anjo que estende uma faixa anunciando sua chegada. E faço o céu também, pois não faço? Um céu noturno cheio de estrelinhas e, claro, a estrela maior de todas que uns chamam d’Alva, outros de Vênus, outros ainda de Sirius. A brilhante estrela que os Reis seguiram para presenciar o seu nascimento, levando ouro, incenso e mirra. E fica lindo o meu presépio, principalmente no escuro, quando acendo as luzinhas e ele fica todo iluminado.

Bem, Menino Jesus, você deve estar se perguntando como é que eu consigo conciliar o dia e a noite ao mesmo tempo. O fato é que consigo e não é tão difícil assim, já que esta incoerência é fruto da própria incoerência de que sou feita. Sim, porque sou feita de luzes e de sombras. Agora, por exemplo, enquanto olho para sua figurinha fofa, linda, sou toda amor e adoração, cheia de boas intenções. Mas se meu vizinho jogar novamente cigarro aceso no meu jardim, sei que vou mandá-lo à merda, não sei antes levantar o dedo médio para ele.  Sou capaz de morrer pelos que amo da mesma forma que seria capaz de fuzilar sem piedade, se a lei o permitisse, todo político corrupto. Choro quando vejo imagens de crianças deformadas pela fome, mas tenho vontade de surrar os pivetes descalços que andam pelas ruas do meu bairro assustando as pessoas. Menino Jesus, sou capaz de desfiar milhares de exemplos da minha dualidade, dualidade de que não só eu sou feita, mas de que é feita toda a humanidade, toda a natureza, seja ela viva ou morta. Aliás, dualidade existente até em você, Menino Jesus. Veja se não tenho razão.  Você nos ensina a amar nossos inimigos, mas roga praga numa pobre figueira, fazendo-a secar, só porque a coitada não deu frutos. Você nos ensina a perdoar, mas se transgredimos você nos ameaça com a tortura do inferno, castigo tão cruel quanto inútil já que eterno e, se eterno, qual a sua finalidade?

Menino Jesus, não fique ressabiado comigo, mas preciso confessar que não é sempre que acredito na sua história. Às vezes, assim como este meu presépio, acho tudo meio fantasioso e incoerente. Mas, fantasioso ou não, incoerente ou não, o que interessa de verdade é a simbologia disso tudo, o que você, Menino Jesus, representa. Aliás, não só você, mas tantos outros que tantas outras religiões dizem existir. Para mim, vocês representam a força espiritual que nos criou, que nos sustenta e que nos leva quando chega a hora. E nesta força, que por falta de outra palavra chamo de Deus, eu acredito, como acredito! Acredito neste Deus todo poderoso tanto para o bem como para o mal. Acredito neste Deus, também Ele feito de luzes e sombras, afinal não fomos feitos à sua imagem e semelhança?

Acredito na face iluminada de Deus quando percebo o milagre da vida e a perfeição do universo. Quando ouço uma sinfonia de Beethoven. Quando ouço a voz de Callas interpretando Verdi, ou mesmo quando ouço um samba de Noel. Quando leio um poema de Fernando Pessoa ou um texto de Clarice. Quando ouço a chuva cair alimentando a terra seca. Quando vejo um jardim cheio de flores das mais variadas formas e cores ou o sol se por num belo horizonte, iluminando as montanhas que o confrontam. Quando ouço o canto dos diversos tipos de pássaros que voltam em bando na primavera e vejo a perfeição dos ninhos que constroem. Acredito na face iluminada de Deus quando percebo a solidariedade do ser humano nas tragédias, a sua generosidade quando ajuda um amigo ou mesmo um desconhecido. Quando vejo o suor no rosto do homem que ergue a obra de um artista. Quando vejo o sorriso de uma criança ou quando me derreto ao ouvir os netos me chamando de vovó. Vejo a face iluminada de Deus na risada de um amigo, na emoção de uma torcida quando seu time é campeão, no balanço do meu peito quando recebo mensagens do homem que amo, na felicidade estampada no rosto de quem realiza um sonho.  São muitas as manifestações da face iluminada de Deus, assim como são muitas as manifestações da sua face sombria. A miséria, a fome de milhões de crianças, a fúria da natureza quando destrói e mata, a carnificina das guerras por motivos tão fúteis e tão estúpidos, o sofrimento de um amigo querido destroçado pela doença, o preconceito, a corrupção dos governantes, a inveja, a cobiça, o egoísmo e aqueles tantos outros pecados capitais dos quais somos vítimas. Sim, Menino Jesus, somos vítimas já que os pecados fazem parte da nossa natureza. Fomos criados assim e não temos culpa se Deus, nesta parte, errou o alvo. Errar o alvo é a origem da palavra pecado, né não? Soube que vem lá do grego (hamartia).

Se culpa temos é a de não fazer prevalecer o bem nessa eterna luta contra o mal. É o que deveríamos tentar diariamente.

Então, eu vou me ajoelhar diante de você, Menino Jesus, representante de Deus escolhido por mim, e que repousa tão lindo, tão terno no meu presépio. Não para lhe pedir paz, saúde, prosperidade e abundância como é costume nesta época. Tudo isso eu já peço e desejo para os meus amigos e parentes adorados, sempre e todos os dias. Este ano, nesta época, o meu pedido é outro: que saibamos entender esta dualidade, com ela conviver e dela fazer uso. Assim, nos tempos sombrios, quando as trevas dominam, saibamos olhar para o céu e apreciar as estrelas. Já, quando o tempo é de claridade, tanta que nos cega, saibamos meditar às sombras das árvores. Peço, ainda, Menino Jesus, que, no combate contínuo travado entre o bem e o mal, seja sempre a nossa face luminosa, a luz que existe em nós, a se sobrepor, triunfante e soberana, às trevas que nos habitam.

É o que desejo, do fundo do meu coração, para mim e para todos vocês.

Cecília Maria De Luca