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sexta-feira, 26 de junho de 2009

2 anos de idéias

Acesa há dois anos

Dia 2 de julho próximo, meu blogue pessoal, o Das Idéias de Caio Rudá, completará dois anos, o que significa alguma literatura e certo trabalho. Em números, são marcas relativamente bacanas para o porte do projeto: 102 postagens, 9 mil visitas e quase 16 mil visualizações.

Quem faz literatura, no entanto, não se prende à arbitrariedade e objetividade dos números. Prefiro a narração, a descrição, dissertar, as metáforas, a incógnita, o transcendente. E esses são os ingredientes utilizados no bolo de dois andares. Particularmente, gostei do resultado. Nesse segundo ano de muita poesia, a receita ganhou um doce a mais. A experiência deu consistência à massa e a cobertura agora tem um sabor novo.

Estão todos convidados para a festa. Sintam-se à vontade e sirvam-se de uma fatia:

Das Idéias de Caio Rudá
http://dasideiasdecaioruda.blogspot.com/





Tamanho não é .DOC


Está disponível para download gratuito o livro de microcontos escritos pelos membros da comunidade do orkut "Escritores - Teoria Literária". Os microcontos foram publicados no twitter entre os meses de maio e junho.

Tamanho não é .DOC

Autores:

Erik Kurkowski Weber
Fabio Cunha P. Coelho
Henry Alfred Bugalho
Rafael T. Okada
Wilson Gorj

scribd - http://www.scribd.com/doc/16678651/tamanhodocumento

calámeo - http://en.calameo.com/read/0000022388dabc23135eb

recanto das letras - http://recantodasletras.uol.com.br/e-livros/1662440

E em julho haverá uma segunda rodada de microcontos!





quinta-feira, 25 de junho de 2009

Fale Frei Cappio, fale a Vida

Fale Frei Cappio, fale a Vida

Fala a teia da vida, a alma do Planeta,
Fala a alma do Nordestino, a cada fala do Frei.
Enquanto fala o olho egoísta, dos papéis investidos
Do lucro rápido e fácio, à cegueira dos malefícios,
A Grande imprensa paga pelos anúncios financistas, pelos dinheiros malditos.

Assim segue Canudos sua sina em plena "Democracia"
Sem que haja, no entanto, Democracia Plena
Em papéis invertidos, quando a vontade do povo,
Nas mãos de "representantes", nunca lhe vira lei.
Sendo sempre o povão quem paga, vaga e pena,
Enquanto a gana de uma minoria se lhe impõe como um rei.

Entre o egoísmo e a coletividade,
O individualismo e a solidariedade,
Quem ganhará a eterna Guerra,
Do bem contra a maldade, do ter mais que o Ser,
Do consumir/exaurir contra o (con)(sobre)viver?

Que fale a voz do povo explorado em Frei Cappio, Beto e Bofff,
Em Sabatella, Comparato, Casaldaliga e Zé Celso,
Reverberando em vozes sem fim
Como reverberaram as vozes de Gandhi, Cristo, Zumbi,
Conselheiro e do grande Martin Luther King.

OBS: Poesia publicada no contexto da greve de fome de Frei Cappio contra a Transposição do Rio São Francisco que segue irrigando ainda mais as terras dos latifundiários e passam à largo do semi-árido do povo pobre e sofrido, filhos, netos e bisnetos do Arraial de Canudos.





quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Admirador - Parte 4: Rostos

(Maristela Scheuer Deves)

Acordou do desmaio deitada na cama e tendo ao lado uma aflita camareira, que não sabia o que fazer com aquela hóspede que desmaiava ao receber uma simples rosa. Por mais que perguntasse, não conseguiu descobrir quem deixara a flor na portaria – mesmo resultado dos inquéritos que fizera quando da entrega dos buquês no seu apartamento. A cabeça ainda girando, questionou-se se valia a pena continuar no hotel, uma vez que o esconderijo fora descoberto tão facilmente.


Decidida, apanhou a mochila e desceu para fechar a conta. Pensou em almoçar – já era quase meio-dia, o tempo se escoava rapidamente –, mas abandonou a idéia. Sabia que, naquela aflição, nada pararia no seu estômago. Rumou de volta para casa, e, no caminho, jurou que seus últimos resquícios de sanidade tinham se esvaído: o porteiro do hotel, o guarda parado na esquina, o senhor de idade sentado no banco da praça, o taxista, todos pareciam olhá-la de maneira estranha, furtiva, suspeita.


Não foi diferente ao chegar no prédio no qual morava: o homem que saía rapidamente e no qual esbarrou, o zelador, a meia dúzia de vizinhos pelos quais passou no corredor – seria um deles?, perguntava-se ao olhar para cada rosto. Trancou a porta do apê e depois a porta do quarto. Jogou-se na cama, em lágrimas. Não aguentava mais. Acabou adormecendo, e nos sonhos – ou alucinações? – os rostos mais uma vez se sucediam, conhecidos ou desconhecidos, todos ameaçadores.


Acordou com o toque insistente da campainha, e assustou-se ao olhar no relógio: já passava das 16h! Ainda semi-adormecida, olhou pelo olho mágico, mas não havia ninguém no corredor. A dormência evaporou-se como num passe de mágica, os últimos acontecimentos voltando como uma torrente. De repente, um dos rostos do sonho fixou-se na sua mente. Claro!, pensou, começando a tremer mais uma vez. Como não pensara nisso antes? Era óbvio, só podia ser...


Estranhamente reconfortada agora que sabia quem era seu inimigo – sim, tinha certeza, não havia outra alternativa –, sentiu-se calma pela primeira vez em meses. Foi ao banheiro, lavou o rosto, voltou ao quarto e arrumou-se cuidadosamente. Então, saiu rumo ao Cemitério Municipal. O horário do enterro estava chegando, e ela estava decidida a não perder a festa de jeito nenhum.


(não perca, no próximo mês, o final dessa história!)





terça-feira, 23 de junho de 2009

Parceiros - Giselle Sato

A delegacia abarrotada fedia naquela noite típica de verão. O odor entranhava na roupa e pele de quem fosse obrigado a chegar próximo à carceragem.
Lotação mais que esgotada, seminus eles alternavam as posições de pé e sentado. Magalhães acendeu um cigarro por pura maldade, inalou e soltou devagar a fumaça. Enquanto observava os olhares cobiçosos, percebeu o olhar de reprovação de Barbosa:- Algum problema?

- Nenhum .

- Já estão trazendo o preso, daqui a pouco sairemos deste inferno.

- No final do plantão... Não dá pra acreditar!

- Chegou o boneco. Vamos andando.

O rapaz chegou algemado, cabeça baixa e bem machucado. Franzino e encolhido como se fosse possível tornar-se ainda menor. Barbosa lançou o famoso olhar de soslaio, mania irritante que apenas ele julgava ameaçadora. O parceiro ignorou com um sorriso disfarçado e acompanhou o preso até o carro.

Naquela noite, não usariam a viatura. Vinte e dois anos trabalhando juntos, davam-lhe conhecimento de causa. Eram mais que amigos, um batizou o filho do outro, passavam as folgas com as famílias reunidas em intermináveis churrascos. Todos admiravam a dupla, eram dignos de confiança e respeito. Barbosa sempre agitado e Magalhães ponderado e bonachão.Barbosa estava irritado: Havia brigado com a mulher, o carro enguiçou e o filho estava para ser reprovado. Na realidade, a mulher informou a separação durante o café da manhã e no instante seguinte, deixou a casa com todos os pertences. Barbosa e o filho nada falaram... Cada qual seguiu sua rotina, como se nada houvesse acontecido.

Não era a primeira vez que ela ia embora e depois retornava arrependida. Infelizmente daquela vez, Barbosa jurou que seria a última.O amigo sabia que não era hora de perguntar nada, sentou-se no banco do carona e deixou que Barbosa assumisse a direção:

- Porra! Na hora do rush ir pra Caxias é um inferno.

- Posso dirigir...

- Não! Não confio em ninguém no volante.

- Desculpe, quer conversar? Porque está tão irritado?

- Nada demais. Coisa da vida, desta vida de merda que vivemos. Deste salário de merda, deste carro bichado e deste boneco, filhinho de papai sentado aí atrás rindo de nós. Motoristas de um moleque riquinho e safado. Viciado da porra! Traficante de merda! Quer que eu explique mais alguma coisa?

Magalhães já estava acostumado com as patadas do amigo, acendeu um cigarro e relaxou. O preso sentado no banco de trás, soltava risadinhas de vez em quando... pela primeira vez, Magalhães olhou com atenção. Apesar do desconforto, o jovem exibia uma expressão altiva e parecia muito à vontade. Ele sabia que estava sendo transferido para uma delegacia melhor. Naquela hora da noite, Magalhães entendeu que era tudo muito irregular e não devia fazer perguntas. O preso começou a rir alto e Barbosa jogou o carro no acostamento:

- Vou dar um jeito neste palhaço.

- Calma, o moleque tá doidão.

- Eu estou calmo!

Não adiantou argumentar, Barbosa desferiu uma série de socos na cabeça do preso, transformando o rosto em uma massa disforme e sanguinolenta. À muito custo, foi contido e jogado no asfalto. Magalhães tentou socorrer , mas o rapaz regurgitava sangue por todas as vias. Em poucos segundos, estremeceu e caiu para o lado. Barbosa certificou-se que o rapaz estava morto, tirou as algemas e calmamente retomou o volante.

O parceiro sabia que ele devia estar pensando, não ousou interromper e acendeu outro cigarro. A rodovia estava completamente deserta, um vento gelado soprava e Magalhães desejou ter faltado ao plantão. Havia acordado com maus pressentimentos e infelizmente não seguiu o instinto. Finalmente, o detetive Barbosa deu partida no carro e pegou a rodovia:

- O que vamos fazer?

- Entregar o boneco, não foi para isto que viemos?

- Ele está morto, se não percebeu... Irão ver na hora.

- Eu sei.

- Ei amigo! Está correndo demais, porque esta pressa agora? Barbosa, estamos a 120, 140... Barbosa! Diminua esta porra! Olha a árvore!

O carro colidiu contra a árvore e como é do conhecimento geral, o instinto sempre obriga o motorista a se proteger. O preso atravessou o vidro e foi arremessado no matagal à margem da rodovia. Toda a lateral ficou completamente destruída, Magalhães preso às ferragens ainda respirava, mas o estado era crítico. Barbosa soube imediatamente que tinha quebrado as pernas:

- Barbosa! Ajude... Estou morrendo...

- Maldito! Era para estar morto! Safado... Pensa que não sei do seu caso com Inês? Pensa que não notei que crio seu filho? Pensa que sou idiota? Todos estes anos... Eu só queria te ver morto, mas você sempre sobreviveu... Nunca levou um tiro! Armei tantas e nunca levou um tiro! Mas hoje ela pediu que voce viesse...para não levantar suspeitas.

Barbosa testou a porta e conseguiu abrir com dificuldade. Girou o corpo e soltou um grito agudo enquanto jogava as pernas para fora do automóvel. Magalhães arregalou os olhos de puro horror, enquanto Barbosa tirava o maço de cigarros de seu bolso. O fumo acendeu e Barbosa puxou com força, até transformar a ponta em uma brasa viva. Lentamente deixou o cigarro cair no fundo do carro.





segunda-feira, 22 de junho de 2009

O dia em que o farsante encarou o espelho

Por Barbara Duffles

Já estava desconfiado há anos. Mas, ao completar seu 40º aniversário, Toby não teve mais como fugir. Definitivamente – e disse isso mirando-se firme no espelho – ele era uma farsa. Que ninguém lá fora me ouça, pensou.

A constatação deixou Toby frustrado. Por mais que, vez ou outra, uma vozinha do além tentava convencê-lo de sua inutilidade, a auto-estima sempre lhe disse que ele era o máximo. Agora Toby sabia que estava mais para mínimo, e as centenas de livros de autores consagrados em sua estante, lidos pela metade ou intocados, assinavam embaixo que ele realmente era uma farsa. Longe de ser o intelectual, o culto, o sensível, características que os outros lhe creditavam, e que ele piamente acreditava.

Rememorou seus textos, escritos desde a adolescência até então, e percebeu como eram rasos. Todos nada mais eram que variações do mesmo tema, as palavras se repetiam, o estilo se manteve, cansativo. Como puderam comprar seus livros ao longo desse tempo?

Lembrou-se do que dizia às mulheres para conseguir dormir com elas. “Além de escritor, também sou pintor”. Fail, fail, fail. Os quadros mal pintados, ou abandonados por fazer no quartinho dos fundos diziam o oposto. Que feio.

Toby agora estava diante de um dilema moral: revelar ou não ao mundo que era uma farsa? Assumir publicamente que é mais raso que um prato de salada, ou seguir fingindo profundidade, causando inveja em amigos, comendo mulheres incríveis, ganhando dinheiro sem derramar uma gota de suor?

Toby não tinha coragem de renegar-se. Não aos 40 anos. Não ia manchar sua existência por isso. Afinal, o resto do mundo, pelo menos a maioria, também é de farsantes. Gente que entra para a história com base em mentiras. Ele é que não ia ser bobo de queimar o próprio filme.

Resolvido o embate consigo mesmo, Toby deu um sorrisinho cínico para o espelho e desceu para o salão, onde acontecia o lançamento de seu mais novo best seller, “A inteligência é para poucos”.

*******

Barbara

Sem saber o motivo, começou a pensar no próprio nome. Barbara. Repetiu-o algumas vezes, estranhando a sonoridade. Barbara. Barbara. “Nome bruto”, pensou. Olhou-se no espelho e encarou a imagem. “Então essa sou eu”. Não se reconheceu. Reparou em cada detalhe do rosto refletido: olhos, nariz, boca. O buraquinho no lado esquerdo da bochecha. Esta pessoa era ela, assim como era ela o nome estranho repetido diversas vezes. Mas nada lhe era familiar, nem o nome, nem a imagem. Em seu mundo interior, Barbara era uma figura sem forma, uma sensação, um buraco negro que ora se esticava, ora se encolhia. Não tinha rosto, muito menos uma palavra que a designasse. Ela era seus sentidos, era o que enxergava, ouvia, pegava, comia e cheirava. O espelho lhe mostrou um ser desconhecido. Um ser chamado Barbara, que, por acaso, ela era mesma. Muito prazer.

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Textos publicados no blog Não Clique e no livro Não Abra





domingo, 21 de junho de 2009

Camuflagem

Marcia Szajnbok
Horas a fio a observar o pequeno exército de formigas. Marchavam sobre a mesa, capturavam migalhas e restos de açúcar, invadiam o pote mal fechado de geléia. A cabeça apoiada sobre os braços, só os olhos de fora, bem abertos.
Imaginava.
Persegui-las, esmagá-las uma a uma, afogá-las em leite quente.
De onde vinham? Esquadrinhava os azulejos à procura da fresta. Abre-te, sésamo! E se jogasse lá dentro um pouco de álcool, e depois enfiasse um palito de fósforo aceso pelo buraco?
Imaginava.
Gritos desesperados, as pequenas pernas esturricadas como gravetos em miniatura.
Imaginava. Só.
Só imaginava.

***
Parada diante da estação, vestida de cinza no tom da parede, fazia-se invisível. Gostava de ficar ali, oculta no mimetismo urbano, observando as pessoas.
Iam e vinham aos borbotões. Formigas.
Casais riam juntos, alguns de mãos dadas. Crianças portando mochilas. Outras, menores, puxadas pela mãe que desfiava aos ouvidos desatentos algum discurso moralizante. Adolescentes em turbas barulhentas esbarravam numa velhinha que precisava do corrimão como apoio. Todos disputando a entrada estreita do trem que, implacável, partia em trinta segundos.
Imaginava.
Do que riria a moça? Que livros, naquelas mochilas? Que travessura teria feito a pequena que chorava e se lambuzava de lágrimas e chocolate? O que lhe diria, se fosse ela própria aquela mãe?
Os olhos procuraram furtivamente o mostrador do relógio. Meia hora de atraso.
Imaginava.
Na trupe adolescente, devia dar-se uma quadrilha: Carlos amava Dora, que amava Paulo, que amava Lia... A velhinha lembrou-lhe a avó. Saudade.
Uma hora. Tantos rostos, menos aquele.
Uma hora e meia de atraso. Ele não vem mais.
Imaginava ainda.
Haveria, decerto, um bom motivo. Morreu alguém. Foi assaltado. Ele próprio podia estar morto. E se jogasse sobre ele um pouco de álcool e depois um fósforo aceso? Gritos desesperados, o corpo viril retorcido e carbonizado. Um resto.
Só.
Teria sido um bom encontro, se ele tivesse vindo. Talvez fossem felizes. Talvez tivesse aprendido a amá-la. Talvez tanta coisa.
A noite caía e mais cinza a cidade mais a escondia, desfeita de formas junto à rua borrada de chuva e de gente.
A vida passava. Continuava só.
Só imaginava.





sábado, 20 de junho de 2009

Prisioneiro em si

Léo Borges

– Vou embora. Eu estou namorando a Silvia. Quero que você entenda a minha liberdade, porque estou procurando ser feliz.

Com essas palavras minha mulher se despediu de mim, alguns anos atrás. A incompreensão e a dor foram elementos que me acompanharam desde então, intensos como deveriam ser. Mas não foram maiores do que a reflexão que fiz sobre os núcleos daquela estrutura oracional: “liberdade” e “ser feliz”. Naquela época, eu poderia me declarar escritor, romancista de uma literatura esparsa, livre na acepção da palavra, mas que – depois descobri – não era verdadeira. Procurava levar entretenimento às pessoas, prendê-las a minha fantasia frugal. Falava muito disso, de liberdade, mas Laura propiciou-me, com aquele ato, a oportunidade do meu primeiro livro não-escrito de sucesso, o que mostrava, então, a verdade sobre essa palavra com a qual os poetas iludem os tolos: a derradeira obra sobre a inexistência da liberdade.

Laura saiu do matrimônio para poder entrar na vida de outra mulher e acreditou que assim seria feliz. A felicidade, embora seja um agente ilusório, é, paradoxalmente, passível de ser procurada. Liberdade, então, seria algum ânimo misterioso que nos mantém ativos nesta busca. De fato, seria mesmo terrível se todos se descobrissem presos. Por isso minha admiração por Laura nunca acabou, até porque com o rompimento pude descobrir, enfim, que estar livre é, em verdade, estar mantido sob engano. Ou seja, a liberdade seria o perfeito ópio da humanidade. Estarmos presos a conceitos dimensionais é melhor do que compreendermos as armadilhas de um mundo supostamente livre. E esta clausura transparente é que nos mantém esperançosos em algo que nunca chega, mas que nos auxilia em nossa submissão.

A fé nessa liberdade fictícia atrapalha nosso curso natural e nos aprisiona nesse deprimente cenário de falsas alegrias, impedindo que vidas se enveredem por cenas paralelas, fossem estas a plasticidade de um suicídio, conforme bem demonstrou Hemingway, ou através do prazer orgíaco, pecador por definição cristã, desde sempre confirmado por Calígula. Nesse sistema perverso onde democracias são impostas e necessidades são criadas, eu era apenas mais uma peça. Toda a cegueira nessa crença mentecapta fazia com que não deixassem de comprar meus livros medíocres sobre esse Mal. O último, então, com um belo e embusteiro título – "A liberdade que nos rege" – vendeu bastante.

Assim que Laura foi embora mergulhei no triunvirato que sublima a vida de qualquer escritor de sucesso: álcool, tabaco e bordéis. Essas experiências foram boas para minha metamorfose. Autodestruição, obviamente, não significa liberdade, mas é o melhor caminho para compreender sua inexistência. Chegava carregado por estranhos ao meu apartamento e vomitava sobre rascunhos de minha próxima obra, "Alavancando o sonho de ser livre". Meu público-alvo, normalmente mulheres na casa dos cinquenta, adora essas picaretagens literárias. E eu, o pilantra maior, preso ciente desta sina cruel de forjar histórias românticas e assépticas com o objetivo espúrio de ser reconhecido como "o escritor da liberdade". A imprensa soube de minha separação, mas não os detalhes. “Parece que sua esposa mantinha um caso homossexual há anos”. Alguns criticaram pesadamente a decisão de Laura, não conseguindo nem mesmo esconder a homofobia das declarações. Queriam ser solidários, mas eu sentia pena deles. Por sorte minha, escritores de uma forma geral não têm sua vida tão esmiuçada na mídia como os pobres artistas de TV. Estes sofrem muito mais com fotógrafos amaldiçoados, fãs histéricos e outros entes hediondos.

Foi quando resolvi que não iria mais sair do meu apartamento. A partir daí comecei a perceber algumas coisas não identificáveis do tempo em que eu acreditava na liberdade. Nesta pequena sucursal de cárcere da vida entendi melhor o formato deste perverso sistema. Minha sala era claramente claustrofóbica, mas, ao mesmo tempo, eficiente em me dar respostas: com meu corpo confinado, eu podia enxergar melhor a prisão da alma. Meu lar, então, se tornou o escritório ideal para meus livros não-escritos. Não saía para mais absolutamente nada. Abria a porta para pegar a comida com o entregador e pagava com cheques que eram trazidos, por sua vez, pelo contínuo do banco. Ninguém mais me visitava. Minha promotora tratava de minhas publicações através do telefone ou de mensagens pelo computador. Minha sogra, dona Célia, que infantilmente repudiou a idéia separatista de sua filha, morava no mesmo andar e insistia na tese de que eu estaria com a chamada Síndrome do Pânico e que precisava de auxílio médico.

Ah, os médicos! Descompromissados com o calor dos sentimentos, assim como os cientistas que inventam remédios, passam suas vidas trancados em frios e limpos ambientes ministrando pílulas que, pretensiosamente, seriam a cura de todos os males. A indústria farmacêutica é um dos tentáculos desse monstro invisível que aprisiona nossas almas, que fomenta esse massivo ataque a seres inofensivos como a dona Célia. Dava pena ver as suas tentativas de me “salvar” desta doença perniciosa. Como eu não queria encontrá-la, ela, vez por outra, soltava o Guardião, seu gato preto, para que, sorrateiramente, ele viesse me fazer companhia. O que mais me causava comoção, porém, era outra curiosa iniciativa sua: ela comprava e mandava o entregador da farmácia trazer para mim uma caixinha de Rivotril a cada quinze dias. A atitude da Laura fez com que dona Célia se roesse em remorsos e, então, ela procurou esforçar-se para cuidar do maluco aqui. Quando estava cansado de escrever minhas baboseiras líricas sobre liberdade eu deitava no sofá, arrancava uns comprimidos da cartela e ficava tentando acertar Libertad, um pequeno camundongo que resolveu fazer morada entre o amontoado de livros, reboco de parede, papéis rasgados e roupas por lavar que eu zelosamente mantinha num dos cantos da sala. O alvoroço desesperado de Libertad, ao ser incomodado pelo bombardeio de remédios, era sempre angustiante, pois sugeria que ele precisava de alguém o acossando para se manter vivo, como se estar sendo perseguido fosse a melhor, ou talvez única, saída para a sua sobrevivência. Uma perfeita parábola sobre liberdade.

Na tal “vida livre” que eu levara até poucos anos atrás nunca havia refletido com seriedade sobre a praça em frente ao meu edifício e nem sobre os casais de namorados que esculpiam coraçõezinhos no corpo das árvores rodeadas por cercas metálicas. Para eles, tatuagens como aquelas deveriam significar o chamado "amor infinito"; coisa tão besta quanto a liberdade que os solteiros se regozijam em acreditar que saboreiam. As grades circundando os troncos, antes de serem incongruentes celas para caules depredados, representavam um modelo de prisão empírica, não da planta como estava óbvio, mas de seus reais detratores – nós. A clausura em maior amplitude, aliás, podia ser contemplada com um mínimo de esforço: prédios cercados por telas eletrificadas, o comércio repleto de cadeados e travas eletrônicas, paredes e muros cobertos com arames farpados. A própria alameda se encontrava asfixiada em meio às cinzentas construções, entrecortadas por agressivos neons de publicidade.

O mendigo catando lixo para comer, um cachorro acompanhando-o de perto; crianças correndo entre os tubos de ferro do brinquedo enferrujado; o vendedor de algodão-doce com olhar triste; a babá sem expressão empurrando o carrinho de bebê; o executivo engravatado apressado com sua maleta marrom. Havia ali o espectro de uma sociedade desconfiada, aprisionada dentro de si. Claro estava que aquele imaculado e entediante espaço arborizado necessitava – em caráter de urgência – de uma tragédia que o livrasse da angustiante e demoníaca candura a que fora submetido. Algo que reconduzisse todos aqueles passantes de comportamento mecânico, e as complacentes copas das árvores artesanalmente podadas, a um estado natural; que interrompesse todo aquele burocrático ciclo no qual pessoas lutavam, minuto a minuto, por coisas supostamente indispensáveis, cumprindo destinos como se lobotomizadas estivessem. Mas o conceito de liberdade funciona desta forma, com esse ardil ­– uma filosofia difícil de ser enxergada e que não admite nenhum tipo de contestação.

De minha janela eu passava muitas horas observando aquele aflitivo vai-e-vem de personagens do meu livro não-escrito, principalmente dona Célia, cuja vida era olhar vitrines de lojas. Naquela noite pensei muito em minha sogra enquanto mirava, com um remédio entre o polegar e o indicador, uma camisa roída no chão, local por onde o ratinho aparecia. A gola suja de sangue lembrou-me do incidente: Libertad já não vivia entre nós. Ele havia sido destruído por Guardião numa de suas visitas, e eu me esquecera disso. Eu não costumava sentir o coração apertado por qualquer coisa, mas naquela tarde senti. Pela saudade do camundongo e, depois, por dona Célia. Minha cabeça estava presa nela por isso: a frequência de seu gato em meu cárcere diminuíra bastante desde que ele destroçara o pequeno roedor. Teria ela descoberto o assassinato e proibido o bicho de vir-me fazer companhia? Era uma idéia absurda, mas deveria ser respeitada.

Notei que o entregador da farmácia também passou a entregar o Rivotril em datas incertas, com intervalos maiores. Achei que dona Célia estava, finalmente, esquecendo seu genro escritor. Ela era uma leitora assídua de minhas “liberdades para dondocas” e gostava de mim com uma sinceridade maternal. Estaria certa ela em querer esquecer um cara pessimista, possivelmente doente, intimamente derrotado e ir atrás da pseudo felicidade da filha e seu bonito amor homossexual? Um amor condenado pela sociedade não poderia ser também repudiado por nós. Sabíamos da leviandade dos sentimentos e engrossar essa lista seria seguir o script mundial da hipocrisia. Naquele instante me senti profundamente infeliz; uma tristeza torpe, totalmente incompatível com o que eu vinha descobrindo desde a minha separação.

Tentava escrever mais alguma bobagem para preencher o último capítulo de mais uma obra, mas o cursor não saía do lugar e deixava estática na tela a única frase daquela página: “E aquela doença parecia livrá-la da prisão conjugal”. Eu não sei se teria coragem de concluir esse livro. Eu não aguentava mais trapaças, desonestidade e incompreensão comigo mesmo. O fim de um escritor miserável estava perto. Despejado de meu cárcere, iria viver como uma das personagens que criei, catando restos para sobreviver.

Meus dedos se afastaram do teclado e apertaram meus ouvidos. Aturdido dentro de mim, por pouco não escutei a campainha. Eram três horas da manhã. Quem iria importunar um escritor em pleno horário de trabalho? Todos sabiam que eu não recebia quem eu não esperava – normalmente os entregadores de comida ou de remédio. Porém o barulho da campainha insistiu e uma curiosidade mórbida levou-me até à porta. Não acreditei quando, pelo olho mágico, vi Laura chorando do outro lado. Chorava como se ela própria também houvesse acabado de descobrir que a liberdade realmente não existe.

– Minha mãe! Minha mãe... ela está com Alzheimer... meu Deus... ela não lembra da Silvia, nem quando está ao meu lado... e só lembra de meu nome quando falo dos seus livros. Meu Deus! Ela se tornou uma prisioneira em si...

Laura me abraçou apertado. Seu choro era tão estridente e convulsivo que mal conseguia respirar. Tentei acalmá-la levando-a para o sofá e oferecendo um comprimido que ainda não havia sido arremessado sobre o camundongo. Fomos até o apartamento da dona Célia e lá eu tomei uma de suas mãos com carinho. Guardião, cujo penetrante olhar felino era detentor de uma acusatória expressão, acompanhava o pesaroso arrastar de corpos pela sala de sua dona. Silenciosamente e sem lhaneza, éramos apontados pelo taciturno animal como os verdadeiros culpados por toda aquela incômoda situação. Quem sabe culpados até por toda a mesquinhez humana.

Minha sogra desenterrou um sorriso como se estivesse diante de alguém que, inadvertidamente, fugira de sua prisão. Naquele quarto de paredes escurecidas pelo tempo eu percebi, com uma alguma felicidade, que novamente Laura errara: dona Célia não estava virando refém de sua doença, não estava se tornando uma prisioneira dentro de si. Ao contrário, estava ela própria se libertando de toda a uma doutrina nefasta, impiedosamente sistematizada, que nos humilha desde que nascemos.

– Trouxe o seu último livro?

A pergunta da minha sogra fez com que eu iniciasse meu segundo livro não-escrito. A doença de Célia a estava fazendo entrar em contato com algo que não podemos conquistar por nossa vontade. Na verdade, ela estava me provando que a liberdade, sim, a liberdade existe. O desligamento lento e progressivo da mente daquela mulher me apresentava uma nova percepção do que seria a cristalina possibilidade de se estar livre. Quando questionara – em minha mente – o seu esquecimento sobre os remédios e sobre a soltura do gato, estava, mais uma vez, a serviço desse Império que procura arruinar a verdadeira liberdade, liberdade esta que agora estava sendo provada. A dor de todos a sua volta não iria encontrar alicerce em sua felicidade interior. Dona Célia estava, ela própria, construindo o prefácio de minha nova obra fantasmagórica, enfim, livre de dogmas, culturas, verdades e certezas.





sexta-feira, 19 de junho de 2009

A poética do Poema Blavino

Juliana Ruas Blasina & Volmar Camargo Junior


Em um papo madrugado e MSNico entre Jú (Juliana Ruas Blasina) e V (Volmar Camargo Junior.) nasceu o blavino.

Discutíamos sobre a possibilidade de criar um poema que fosse sugestivo tanto em sua composição textual quanto na sua aparência gráfica, concreta, sobre a folha. Juliana tinha em mente uma "pirâmide" construída por 13 versos, mas não conseguia concretizar sua divisão em estrofes de modo a alcançar a forma esperada. Após o debate, eis que surgiu a ideia de um modelo que contemplasse as seguintes características:

- número de estrofes: 7

- numero de versos: 13, distribuídos a partir dessa sequência: 1-2-3-1-3-2-1

- tamanho dos versos: o objetivo é que o poema comece e termine com uma palavra, crescendo até o verso-estrofe central e maior (7) e decrescendo até o último. Resultando assim numa aparência piramidal, triangular, ou em seta – sempre alinhado, à esquerda ou à direita (nunca central), conforme a preferência do autor.

- decidimos que o "blavino clássico" corresponderia somente às três regras anteriores. O "blavino heróico", adicionalmente, deve ter como verso central um decassílabo heróico: 10(6-10) [dez sílabas,
acentuando-se a 6ª e a 10ª].

- uma regra adicional seria a de que o "blavino perfeito" seria aquele que pode ser lido na ordem direta e na ordem inversa perfeitamente.

- uma variação, criada pela Marcia Szajnbok – que também aderiu ao blavino, é o formato “abismo” (ou “abissal”), cujo verso central, ao contrário da forma padrão, é composto por uma única palavra (assim como ocorre nos versos 1 e 13).


Assim, por exemplo, seria um blavino clássico:


Fugaz
(Juliana Blasina)


Tão

Frágil
E fugaz

Que quebra
Ao menor toque,
E sem razão se desfaz

A beleza que mora em mim

Embalada neste corpo
É invisível ao olhar
Estranho, procuro

Resquícios do
que ainda

Sou



Já um blavino heróico – ou uma tentativa de - seria algo como este:


[conforma-te]
(Volmar Camargo Junior)

conforma-te
ei-la, como pediste,
a praia longa e branca
basta de ritos funerários
basta de tormentas marinhas
basta de esperar ser consumido
conforma-te, é o fim da vida no mar
sente, o sol aqui é mesmo o sol
o chão caminha com o vento
e a paisagem, por si, muda
a praia longa e branca
ei-la, como pediste
conforma-te




Um blavino abissal seria assim:


cat on a hot tin roof
(Marcia Szajnbok)

luzes

teus olhos
que brilham
de mar e de estrelas
percorrem-me a pele
me buscam, me despem

fico

um pouco escondida
à espreita, à espera
do gesto, da vinda

do bote
da fera

faminta



Algo que é digno de nota é que, em pouco tempo, este formato ganhou adesão por parte de vários poetas, notadamente os participantes da comunidade Estúdio de Criação Poética, onde foi apresentado. Deste grupo, já produziram blavinos Beatriz Moura, Caio Rudá, Carlos Barros, Marcia Szajnbok, José do Espírito Santo, Renata de Aragão Lopes e Taty Nascimento. Nesta edição da SAMIZDAT é possível encontrar alguns exemplos de blavinos, publicados por Juliana, Volmar e José do Espírito Santo. E, até o final da edição, talvez haja mais alguns. E se você que está lendo, gosta de escrever poemas e tiver gostado do blavino, sinta-se à vontade. Sirva-se! O blavino está aí, para quem quiser desfrutá-lo. Apenas gostaríamos que os interessados entrassem em contato conosco aqui na SAMIZDAT, mostrassem seus poemas, para que, quem sabe, esse formato se torne algo tão interessante - e grande! - como o poetrix e o indriso.


Para mais informações sobre as criaturas e os criadores, visite:

Um resto de café frio (Volmar Camargo Junior): http://restodecafefrio.blogspot.com/

P+2T: Poesia + dois tantos (Juliana Ruas Blasina): http://jublasina.blogspot.com/

Estúdio de Criação Poética http://estudiocriacaopoetica.blogspot.com/









Quando Nietzsche Chorou, de Irvin D. Yalom


Eu ainda trabalhava numa livraria na época em que o romance "Quando Nietzsche Chorou", do escritor americano Irvin D. Yalom se tornou um sucesso no Brasil.

Lembro-me de ter sido atraído pela ideia de uma obra de ficção abordando a psiqué de Friedrich Nietzsche, um dos mais importantes filósofos de todos os tempos. Contudo, o simples fato de ser um best-seller já me deixava um pouco desconfiado.
Qualquer um que conhece um pouco da biografia do filósofo já deve ter se deparado com as imensas contradições internas de Nietzsche, um vulcão enquanto teórico, mas um homem fragilizado em sua vida pessoal. Um destruidor de ídolos como filósofo, mas um homem oprimido pelo jugo daqueles que o cercavam: sua irmã Elizabeth, o compositor Richard Wagner, ou a poderosa figura de Lou Salomé.

O psicoterapeuta Irvin D. Yalom estreia como romancista unindo dois importantes personagens da História dos saberes:, Josef Breuer, o protagonista, incumbido da tarefa de curar Friedrich Nietzsche de suas dores.
A pergunta primordial do livro é: como curar alguém que não deseja ser curado?
A segunda pergunta, não menos crucial é: como desenvolver uma cura para as dores da alma?

Josef Breuer foi um dos pioneiros da psicanálise, graças a seus estudos sobre histeria, em parceria com Sigmund Freud, no famoso caso de Anna O.
Nietzsche e Breuer nunca se encontraram de fato, apenas na ficção de Yalom, mas a proposta de unir duas das mais brilhantes mentes de seu tempo é instigante.

No entanto, Irvin D. Yalom recai em algumas falhas do romancista iniciante. O enredo demora a engrenar, são 50 páginas até a aparição de Nietzsche, que é sem dúvida o charme da obra e está presente nos momentos mais empolgantes; depois disto, "Quando Nietzsche Chorou" é uma sucessão de altos e baixos, de interessantíssimos diálogos entre Breuer e Nietzsche, e de tediosas digressões sobre a vida pessoal do protagonista. Yalom se esforça demais para demonstrar sua erudição e apresentar o resultado de suas pesquisas para compôr a obra, e acaba negligenciando o enredo.
O resultado final é um romance bastante desigual, com trechos inspirados, mas recheado de excessos. Todavia, é um primeiro passo interessante para quem deseja se aproximar do pensamento nietzschiano, pois há várias referências a conceitos recorrentes na obra do filósofo, bem como a antecipação do que viria a ser sua obra-prima, "Assim falava Zaratustra". Ao mesmo tempo, é também uma lição sobre os primórdios da psicanálise e da busca por um método científico para tratar patologias psicológicas.

"Quando Nietzsche Chorou" está longe de ser um primor literário, mas certamente Yalom realizou um profundo trabalho de pesquisa histórica.





Fluxo de consciência, a literatura dentro da mente

Os mistérios da mente e dos pensamentos sempre despertaram a atenção dos sábios e filósofos, desde a Antiguidade grega e das primeiras investigações teóricas sobre o Homem e o Universo; no entanto, apenas durante os séculos XIX e XX que a ciência se debruçaria, primeiro cautelosamente, depois com um fervor extraordinário, sobre as questões da Psicologia. É neste momento, na virada do século, que pesquisadores basilares como Wilhelm Wundt, William James, C. G. Jung e, principalmente, Sigmund Freud consolidaram suas carreiras e apontaram os rumos desta nova ciência que se engendrava.

A Psicologia e suas ramificações influenciaram vários estratos da sociedade e da cultura, e encontraram um solo bastante fértil na Literatura. Imediatamente, os autores deste período de ebulição científica trouxeram para dentro de suas obras conceitos psicológicos e inverteram o eixo que predominava anteriormente, de eventos externos estimulando os personagens à ação para motivações internas compelindo-os a uma tomada de atitude.

Raskolnikov e sua intensa vida mental são um grande exemplo desta apropriação; Dostoievski utiliza com maestria o conhecimento científico de seu tempo para desenvolver um personagem psicologicamente complexo e intrigante, divido entre a certeza de sua superioridade intelectual e moral e o jugo da medíocre vida comunal.

Dostoievski foi, aliás, um dos primeiros autores a utilizar, ainda embrionariamente, o que ficaria conhecido como “fluxo de consciência”.

As características do fluxo de consciência

O conceito de “fluxo de consciência” foi cunhado por William James e se referia ao turbilhão de pensamentos na mente consciente, isto é, toda a gama de impressões, sensações, raciocínios que se desenrolam em nível superficial.

A definição básica de William James é a seguinte:

O primeiro e mais importante fato concreto que cada um afirmará pertencer a sua experiência interior é o fato de que a consciência, de algum modo, flui. “Estados mentais” sucedem-se uns aos outros nela. Se pudéssemos dizer “pensa-se”, do mesmo modo que “chove” ou “venta”, estaríamos afirmando o fato da maneira mais simples e com o mínimo de presunção. Como não podemos, devemos simplesmente dizer que o pensamento flui. (JAMES, William. The Stream of Consciousness. 1892)

E William James ainda enumera quatro características deste fluxo mental: 1 – cada estado tende a ser parte duma consciência pessoal; 2 – dentro de cada consciência pessoal os estados estão sempre mudando; 3 – cada consciência individual é sensivelmente contínua e 4 – é interessada em algumas partes de seu objeto em detrimento de outras, e acolhe ou rejeita – escolhe-os, numa palavra – o tempo todo.

A grosso modo, o que se propõe é que a consciência está em constante mutação, ininterruptamente, concentrado-se sobre determinadas impressões e sensações, enquanto ignorando outras.

A primeira aplicação óbvia na Literatura é através dum narrador em primeira pessoa, que expõe seus pensamentos e vivências numa sequência contínua e abrupta, alternando seu foco de acordo com a corrente mental.

A revolução joyceana

Poucos autores enfeixaram tanto as propriedades do mundo moderno quanto James Joyce. Este autor irlandês, que viveu grande parte de sua vida no exílio, introduziu na Literatura um novo universo de possibilidades estéticas, temáticas e linguísticas, digerindo a tradição e abrindo as portas para toda uma geração futura, que encontraria em Joyce a inspiração para inovar.

E o grande diferencial de Joyce foi justamente a apropriação do “fluxo de consciência” como técnica narrativa, que também ficaria conhecido como “monólogo interior”, quando os pensamentos do personagem são apresentados, de maneira ilógica, ao contrário do solilóquio, quando um personagem expõe oral e logicamente suas reflexões.

Na antologia de contos “Dublinenses”, James Joyce realizou os primeiros experimentos com esta forma, mas ainda com timidez.
Mas foi em seu primeiro romance, “Retrato do artista quando jovem”, que narra a juventude de Stephen Dedalus e seu processo de ruptura com a Igreja Católica e com o provincianismo dublinense, que Joyce realmente desenvolveu a sua técnica de “fluxo de consciência”, cujo ápice se deu no romance “Ulisses”, publicado em 1922.

Numa espécie de releitura do enredo da “Odisseia” de Homero, “Ulisses” é a história do anti-herói Leopold Bloom, que vaga pelas ruas de Dublin atormentado pela suspeita de que sua esposa o trai, mas sem coragem para tomar atitude. Nesta obra, James Joyce apela para vários recursos narrativos, desde o monólogo interior, passando por um narrador onisciente em terceira pessoa, até a estrutura dramatúrgica. O autor transita por estes vários registros estilísticos, eliminando os limites do gênero romanesco, e também une a fala da rua e dos bares ao mais sofisticado discurso teórico.

“Ulisses” tenta abarcar a totalidade do mundo através da linguagem, e isto passa necessariamente pela dissecação da mente dos personagens. Três momentos antológicos do romance são também três grandes monólogos interiores, ou “fluxos de consciência”: o primeiro deles ocorre no terceiro capítulo e se passa na mente de Stephen Dedalus (o mesmo personagem de “Retrato do artista quando jovem”); o segundo deles no quarto capítulo, no qual Leopold Bloom é mostrado em sua vida cotidiana, despertando e saindo para comprar o café-da-manhã; e o terceiro deles é o gigantesco monólogo interior, sem sinais de pontuação e com pouquíssimos parágrafos, que encerra o livro e se tratam dos pensamentos da esposa de Leopold, Molly Bloom.

O biógrafo Richard Ellmann, em seu livro “James Joyce”, afirma que o desenvolvimento da técnica joyceana de “fluxo de consciência” ocorreu acidentalmente. Joyce era professor de inglês em Trieste, na Itália, e um de seus alunos, o também escritor Italo Svevo, tinha dificuldade para pontuar suas redações em inglês, escrevendo assim um texto contínuo. Joyce teria achado engraçada esta peculiaridade, mas logo percebeu as implicações literárias duma estrutura como esta, adotando-a em sua escrita quase imediatamente.

Outros fluxos de consciência

Paralela e simultaneamente a Joyce, vários outros autores também mergulhavam neste turbilhão interior das psiques de seus personagens, fossem eles influenciados pelos trabalhos de Freud, Jung ou Henri Bergson.

Na França, o grande expoente foi Marcel Proust e sua monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido”, dispersa em vários volumes e relatando, de maneira bastante pessoal e autobiográfica, as rememorações do narrador, Marcel, desde a infância até a idade adulta.
Na Inglaterra, Virginia Woolf experimentava novas formas narrativas através de enredos cotidianos ambientados nos círculos da alta classe média britânica. Enquanto que, nos EUA, o fluxo de consciência apareceria nos trabalhos de Faulkner e T. S. Eliot.

O impacto desta técnica narrativa foi avassalador. Ela se disseminou entre os autores das gerações seguintes, perpassando todo o movimento modernista da década de 20 e chegando até os nossos dias, acolhida pelos arautos da pós-modernidade.

A lista de autores que namoraram “o fluxo de consciência” é imensa: Albert Camus, Hermann Hesse, Salinger, Samuel Beckett (herdeiro direto de Joyce), William Burroughs e vários outros autores da geração beatnik, Milan Kundera, Julio Cortázar e alguns outros escritores do Boom latino-americano.

O Brasil também possui os seus representantes, como Clarice Lispector, Paulo Leminski, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, para citarmos alguns, dentre inúmeros autores contemporâneos, que se munem deste mergulho ao íntimo do ser humano para expressarem o assombro dum sujeito cindido, desorientado, esmagado pela rapidez da era digital.

Para saber mais:

- ELLMANN, Richard, James Joyce. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1989.
- JAMES, William, The Stream of Consciousness. 1892. http://psychclassics.yorku.ca/James/jimmy11.htm
- JOYCE, James, Dubliners. New York: Dover Thrifts Editions, 1991.
Portrait of the artist as a young man. New York: Penguin Books, 1982.
Ulysses. New York: Random House, 1946.
- Wikipédia: stream of consciousness - http://en.wikipedia.org/wiki/Stream_of_consciousness_(narrative_mode)





Algumas pistas para escrever mistérios

(Maristela Scheuer Deves)

Embora tenham por muito tempo sido tratados como subliteratura ou como um gênero menor, os livros policiais ultrapassaram esse preconceito e garantiram seu lugar entre os mais vendidos no mundo todo. Mesmo abominando o crime na vida real, o ser humano encontra prazer em ler obras que mostram assassinatos e outros delitos, bem como o esforço de alguém (policial, detetive particular ou mesmo uma pessoa comum) para solucioná-lo.

O que atrai o leitor para o livro policial, no entanto, não é somente essa luta entre o bem (representado pelo detetive) e o mal (representado pelo assassino), e sim a forma como essa batalha é narrada. O suspense é fundamental nesse gênero literário e é ele que vai prender o leitor da primeira à última página, sem conseguir dormir antes de saber o final.

Mas como esse suspense é construído? O que fazer para prender a atenção do leitor dessa forma? Embora não existam receitas prontas ou garantidas para escrever um romance policial que prenderá o leitor, vários escritores e estudiosos já tentaram estabelecer regras básicas para quem quer se aventurar no gênero. François Fosca, citado por Paulo de Medeiros e Albuquerque na obra O mundo emocionante do romance policial (Francisco Alves Editora, 1979), listou seis delas, que teriam sido aplicadas pelo escritor Edgar Allan Poe, o pai do romance policial:

- O caso apresentado é um mistério aparentemente inexplicável.
- Uma personagem, ou várias, simultânea e sucessivamente, é considerada erradamente culpada porque os indícios superficiais parecem indicá-lo.
- Minuciosa observação dos fatos, materiais e psicológicos, após o depoimento das testemunhas e, acima de tudo, um rigoroso método de raciocínio triunfam sobre as teorias apriorísticas e apressadas; o analista não adivinha, ele raciocina e observa.
- A solução que concorda perfeitamente com os fatos é totalmente imprevista.
- Quanto mais um caso parece extraordinário, tanto ele é mais fácil de resolver.
- Eliminadas todas as impossibilidades, o que resta, se bem que incrível à primeira vista, é a solução justa.

Outro autor que publicou um conjunto de regras para se escrever mistério foi Willard Huntington Wright, mais conhecido como S. S. Van Dine. Para Albuquerque, "algumas dessas regras são válidas; outras, positivamente acacianas; e algumas até mesmo ridículas". Mesmo assim, vale citar a introdução a elas escrita por Van Dine e reproduzida por Albuquerque:

"A história policial é uma espécie de torneio intelectual. Mais do que isso, é um torneio esportivo. E o autor tem de comportar-se corretamente com o leitor. Não pode recorrer a truques e escamoteações sem comprometer a sua sinceridade, assim como não pode usar tapeação num jogo de cartas. Tem de superar intelectualmente o leitor e prender o interesse do mesmo usando seu engenho. Existem leis definidas na feitura de entrechos policias; leis que não foram escritas, talvez, mas ainda assim imperativas, e todo autor de mistérios literários atende a essas leis."

A seguir ele lista 20 leis para o gênero, que, segundo ele, seriam baseadas na prática dos grandes autores. Entre elas, as que se destacam são que o leitor deve ter a mesma oportunidade do detetive, com todas as pistas claramente descritas, e que o culpado deve ser encontrado por meio de deduções lógicas e não por confissão, coincidência ou acidente. Ele também condena as soluções não naturais, como reuniões espiritualistas ou dispositivos fictícios, como o assassinato da vítima por um veneno desconhecido, ou a imputação do crime a um criminoso profissional, a exemplo de um assaltante.



Um dos conselhos que mais se aproxima do ideal e que resume inúmeras outras regras talvez seja esse de Nardejac: "é necessário que os enigmas propostos ao detetive sejam, ao mesmo tempo, verdadeiras provas. As situações dramáticas deverão, por conseguinte, ser numerosas e bem conduzidas".
Uma outra regra não-oficial mas praticamente institucionalizada entre quem escreve mistério é que o crime em torno do qual se desenvolve a trama deve ser algo com o qual as pessoas se importem, usualmente um homicídio. Ou, como disse Van Dine:

"É necessário que haja um cadáver na novela de detetives, e quanto mais defunto esse cadáver, melhor. Afinal, o trabalho que tem o leitor precisa ser recompensado. Os leitores são criaturas humanas e, portanto, um assassinato desperta neles o sentimento de vingança e horror. Desejam levar o assassino à justiça, e com isso se inicia a perseguição com todo o entusiasmo."

Uma vez cometido o crime, seja ele assassinato ou não, entra em cena outro elemento imprescindível, o detetive. Nesse ponto, deverá ser tomada uma das primeiras decisões importantes do escritor de mistério: quem será o seu detetive. Um policial? Um detetive profissional? Um semi-profissional, como um advogado ou um jornalista? Ou um outro personagem qualquer, uma pessoa comum que irá se confrontar com o crime e tentará resolvê-lo?



Cada um tem suas vantagens, entretanto a opção por um investigador que não é profissional tem para o eleitor um atrativo a mais, parecer-se com ele. Prova disso é o sucesso de um dos personagens criados pela Rainha do Mistério, Agatha Christie: sua inesquecível Miss Marple é uma solteirona que mora numa cidade pequena e que sempre acaba solucionando crimes e enigmas complicados.


Outro fator a ser considerado na escolha do detive ideal para a história é o público para o qual se escreve. Se em uma obra voltada a adultos a identificação com o protagonista já exerce papel importante na hora de cativar o leitor, isso é ainda mais verdadeiro quando se trata do leitor jovem. Afinal, qual o adolescente que não gosta de ler sobre outros jovens da sua idade envolvidos em aventuras, investigando crimes e solucionando mistérios?


Tão importantes quanto o detetive, talvez, são os suspeitos. Eles são todos que podem ter um motivo para cometer o crime, seja esse motivo financeiro, passional ou outro qualquer. Com o desenvolvimento da trama e o surgimento de pistas, novos suspeitos vão sendo acrescentados, enquanto outros saem dessa condição.


No livro Prelúdio para matar, considerado sua obra-prima, a escritora britânica Ngaio Marsh usa esse recurso com maestria. Detetives e leitores desconfiam ora de um, ora de outro personagem. A vítima é uma pessoa, mas acredita-se que o alvo poderia ter sido outra; como alguns envolvidos no caso teriam motivo para matar uma delas e outros, para matar a outra, cria-se um clima de tensão, que aumenta a curiosidade do leitor para saber quem foi, afinal, o perpetrador do assassinato. Essa curiosidade, que faz o leitor virar páginas e mais páginas sem conseguir para de ler, é um sinônimo do procurado suspense.



Para fazer o leitor desconfiar de um ou de outro personagem e mantê-lo preso ao livro até o final, é preciso fazer uso de pistas. Essas pistas não são apenas elementos concretos, como objetos deixados no local do crime ou pegadas ao lado do corpo da vítima. Podem ser palavras, diálogos, situações. São elas que vão guiar o trabalho do detetive, e também o do leitor, que estará concorrendo com esse detetive (e com o autor) para tentar descobrir o culpado antes da última página.


As pistas podem ser verdadeiras ou falsas (red herrings). Essas pistas falsas podem ser plantadas pelo próprio criminoso ou por algum outro personagem que tenha algo a esconder, ou ainda serem fatos que, mesmo parecendo suspeitos, nada têm a ver com o crime. Isso fará o detetive (e o leitor) ir por determinado tempo para o lado errado, suspeitando de alguém que não tem nada a ver com o crime, até outra pista levá-lo de volta ao rumo certo.



Da mesma forma, algumas pistas devem estar totalmente visíveis para os leitores e para o investigador que é o protagonista da trama, enquanto outras devem estar escondidas em meio a outros fatos ou objetos. O importante, destacam estudiosos e escritores do gênero, é jogar limpo com os leitores, proporcionando a eles as mesmas informações a que o detetive da história tem acesso (embora alguns escritores, como Agatha Christie, por vezes escondam pistas que só são reveladas no final).


Outra visão defendida por vários autores é que o desenlace da história deverá se dar a partir das pistas. O autor não deve recorrer a uma saída fácil que se apresenta miraculosamente para solucionar o mistério. Se a solução não vier através das pistas e do trabalho intelectual do detetive, o leitor se sentirá traído, enganado. Como disse Van Dine: "O culpado deve ser encontrado mediante deduções lógicas e não por acidente, coincidência ou confissão. Solucionar um problema criminal desse modo é como mandar o leitor numa empreitada inútil".


É novamente o conceito de jogar limpo com os leitores, que, dessa forma, têm as mesmas condições do investigador ficcional de descobrir o culpado a partir das pistas que vão sendo apresentadas. Voltando à orientação de Van Dine reproduzida por Albuquerque:

"A verdade do problema deve estar à vista, em todos os momentos – desde que o leitor seja arguto o bastante para percebê-la. Com isso quero dizer que se o leitor, depois de tomar conhecimento da explicação para o crime, voltar a ler o livro, perceberá que a solução de certo modo estivera bem clara, que as pistas realmente indicavam o culpado. E que, se tivesse sido tão perspicaz quanto o detetive, poderia ele próprio ter solucionado o mistério antes do último capítulo. Se a história de detetive for legitimamente construída, será impossível manter a solução afastada de todos os leitores antes das páginas finais. Existirá, de modo inevitável, certo número de leitores tão argutos quanto o autor, que poderão, mediante análise, eliminação e raciocínio lógico, indicar o culpado assim que o detetive o fizer. E aí temos o sabor do torneio."

Paralelamente às pistas, outro elemento é necessário para fazer o leitor desconfiar de um ou de outro personagem e, principalmente, para mantê-lo interessado na história: pontos de virada no decorrer da trama. Como foi dito anteriormente, se o detetive seguir sempre em uma direção, o livro terminará (ou perderá a graça) logo nos primeiros capítulos.


Para que ocorra essa virada, um ponto é básico: fazer algo acontecer. Esse fato novo pode ser um outro crime (talvez até mesmo do suspeito), uma nova pista que aponta para uma direção totalmente nova, etc. Outra tática consagrada e usada pela maioria dos autores de romances policiais é encerrar os capítulos com um algo novo, uma informação instigante que fará o leitor começar o capítulo seguinte imediatamente para saber o que vai acontecer.


A leitura, no entanto, não pode ser uma contínua tensão. É preciso saber dosar os picos de suspense com momentos em que o clima é aliviado. Isso pode ser feito por meio de tramas paralelas, mostrando outras partes da vida do detetive-protagonista: trabalho, namoro ou até mesmo problemas comuns, como um vizinho chato.


Além de todos esses elementos inerentes à história, tão essencial quanto ter uma boa trama para contar é como ela é contada. A escolha da palavra exata é importantíssima para garantir o efeito desejado, ensina Francine Prose em Para ler como um escritor (tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, Jorge Zahar Editor). Por isso, vale reler o texto com atenção, pesando palavras, frases e até mesmo capítulos enquanto se pergunta: era isso mesmo que eu queria dizer? Teria outra palavra, outro verbo, outro adjetivo que poderia exprimir melhor esse momento da trama?
Da mesma forma, detalhes por vezes considerados insignificantes podem ser tornar muito importantes para dar verossimilhança e credibilidade à história. "São os detalhes que nos convencem de que alguém está falando a verdade – todo bom mentiroso sabe disso (...) E que alívio é quando um detalhe nos assegura que um escritor está no controle e não caçoa de nós", diz Prose. Ela cita, para ilustrar, pequenos pontos que tornam mais crível a situação de Gregor Samsa em Metamorfose, de Franz Kafka: uma gravura na parede, roupa espalhada pelo quarto, etc. Acreditando nessas pequenas insignificâncias, salienta, passa-se a também "acreditar" na transformação de Samsa em inseto. Vale lembrar que, no romance policial, é ainda mais importante essa confiança do leitor no autor, essa sensação de "poderia ser verdade".



Para finalizar, uma dica sempre citada em oficinas literárias e que talvez resuma tudo o mais que foi dito aqui: ao sentar-se para escrever seu conto ou romance de mistério, pense no que você gostaria de ler. Recorde seus autores prediletos no gênero, tanto os que são considerados mestres quanto outros menos conhecidos mas que o agradam, e tente precisar o que exatamente torna seus textos interessantes, bem escritos e repletos de suspense. Você terá, então, tudo o que é preciso para dar início à sua história de mistério. O resto só depende de você...





quinta-feira, 18 de junho de 2009

Um monte de papel

Volmar Camargo Junior







Exame de gravidez "positivo", exame pré-natal, baixa hospitalar, prontuário médico, teste do pezinho, certidão de nascimento, carteira de vacinas, matrícula escolar, boletim escolar (um a cada dois meses durante onze anos), carteira de identidade, carteira de trabalho, cadastro de pessoa física, título eleitoral, certificado de curso de informática, certificado de curso de datilografia (sim, sim... no meu tempo se fazia isso...), histórico escolar, inscrição para o vestibular, vestibular, divulgação do resultado do vestibular, matrícula na universidade, alistamento militar, certificado de dispensa do serviço militar (excesso de contingente), renovação da matrícula na universidade (4), contrato de financiamento estudantil, contrato de trabalho, contrato de estágio na universidade, caderno do cartório civil como testemunha de casamento, inscrição para concurso público, inscrição para segundo concurso público, certificados de participação em cursos (dezenas), encerramento de contrato de trabalho, encerramento de estágio na universidade, diploma universitário, contrato de trabalho para professor em escola municipal, contrato de trabalho para professor em escola estadual, outro contrato de trabalho para professor em escola municipal, primeiros contracheques com um salário decente, folhas de chamada de dezenas de turmas de alunos, cartão-ponto, ata de reunião com professores, ata de reunião com pais de alunos, telegrama "você está sendo convocado para avaliação médica e psicológica referente ao segundo concurso público", bateria de exames, pedido de demissão de todos os cargos de professor (champanha e foguetes!), contrato de experiência, contrato de trabalho por tempo indeterminado, pedidos de transferência de lotação, efetivação de transferência de lotação, certidão de casamento, contrato de hipoteca de imóvel, novo pedido de transferência de lotação, efetivação de transferência de lotação, contrato de locação de imóvel (outro, não o primeiro), inscrição em segundo vestibular, aprovação em segundo vestibular, matrícula em segunda universidade, mas desta vez, tudo pelo computador. Desistência da vaga na segunda universidade, com firma reconhecida, enviada para o centro de registro acadêmico, por correspondência registrada com confirmação de entrega.

E eu ainda quero publicar um livro.





Crônica de uma cidade adormecida

Caio Rudá de Oliveira

É quando a cidade dorme que consigo pensar. Quando acordada, é o capitão-do-mato que nos mantém na linha conforme a vontade do senhor; não tolera atraso, desculpas ou ineficiência, e está atenta, regendo uma vida compulsória.

Nasce o dia e acordamos, não porque o sono já nos bastou, mas pelas obrigações diárias. Desempenhamos nossas funções e esquecemos de todo o resto. Eis o viver. Para nos tirar da rotina, nada como uma insônia inesperada. Levanto, vou à janela, tomo emprestado um pouco de ar, agora menos carregado de poluição, e sento em frente à TV - monótona programação aberta. Vou à cozinha, bebo um suco e volto a deitar. Já não sei se é insônia ou calor. Dessa vez um leite quente com chocolate, enquanto olho uns blogues sem sal. Por fim, outra passada na janela. A avenida lá na frente, vazia. Não é a mesma das horas de sol. Um carro ou outro percorre o asfalto cansado, insone como eu. Tento advinhar para onde vai uma hora dessas. Talvez já esteja retornando. De todo modo, ambas as alternativas não me dizem respeito.

Olho a passarela em que fui assaltado há alguns dias. Agora parece ser um lugar seguro. Mas só parece. Escondido em algum lugar que eu, nem a possível vítima, possamos ver deve estar o bandido, como o que levou meu celular. Ofício de assaltante - hora extra ociosa. E bandido lá sabe o que é ócio?

Os pontos de ônibus estão desertos, diferentes dos formigueiros que são durante o dia. Não é o caso dos que vejo, mas algum em outro canto da cidade pode servir de abrigo para um mendigo. Abrigo contra o quê? Nem contra os perigos da madrugada, nem contra o frio. Talvez contra a chuva, porém não chove hoje.

Os prédios vizinhos dormem. Sequer uma janela acesa, o que me faz pensar que sou o único acordado da cidade. Isso é falso. Há os motoristas que passam maltratando o asfalto, o assaltante à espreita não se sabe onde e o mendigo que dorme por aí. E há também meu companheiro de apartamento que se levantou agora. Foram os meus pensamentos? Ele passa, mudo com se ainda dormisse, e vai à cozinha, caminho certo. Também não puxo papo. Esse sou eu, também calado, não dado a conversas desnecessárias. É por isso que respeito o silêncio alheio. Sei o quanto é importante. E aí me dou conta de que pode ter sido a TV dele ligada que tenha colaborado com minha insônia. A princípio sinto raiva, que se esvai. Não fosse ele, ainda que involuntariamente, eu não estaria aqui, pensando, vendo a cidade adormecida. Os capitães-do-mato também dormem. E enquanto o fazem eu sou livre. Livre para ver, sentir, pensar, perceber cada detalhe de uma paisagem tão costumeira porém surpreendente.

O sol se aproxima. Eu posso vê-lo, não em seus primeiros raios, mas nas luzes que começam a iluminar cômodos nos prédios ao lado, na fumaça da padaria que começa a subir, no caminhão de lixo e seu barulho característico que vão ao longe. É quando ouço os capitães vestirem suas roupas e empunharem suas armas. Daqui a pouco eles estarão atentos, colocando-nos nos eixos. Tudo bem. Hoje eu tive minha pequena alforria.





Obama matou a mosca

Maristela Scheuer Deves

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, matou uma mosca. E daí? Daí que a imagem desse gesto tão simples e corriqueiro (quem nunca matou, ou ao menos nunca tentou matar, um desses insetos tão inoportunos?) correu o mundo, virou notícia. Notícia lida, comentada e obrigatória em todas as TVs, sites, jornais, rodas de conversa com os amigos...

Pois é. Nada contra falar da mosca do Obama, eu também falei, e aqui estou escrevendo sobre ela. Confesso que achei engraçadinho até, quando vi a "notícia" sobre isso na TV, ao meio-dia desta quarta-feira. Jornalista que sou, pensei logo que o tema realmente rendia uma materinha ou nota curiosa - afinal, Obama é nada mais, nada menos do que o homem mais poderoso do planeta, e demonstrou uma pontaria certeira ao liquidar com o inseto.

No entanto, o que me assusta é pensar que esse gesto comum e natural, do qual o presidente talvez já tenha até esquecido passadas algumas horas, possa vir a ser outro campeão de acessos na sites de vídeos na internet. Não se trata, repito, de condenar essa curiosidade simples que nos faz querer ver cenas engraçadas ou inusitadas de vez em quando. O que eu estranho é por que essa mesma curiosidade não se repete, na maioria dos casos, quando o que está em pauta são assuntos ditos mais "sérios". Ou alguém aqui acredita que o pacote que o mesmo Obama anunciou nesta mesma quarta-feira, o maior dos EUA desde os anos 1930, terá o mesmo índice de leitura que a mosca?

Da mesma forma, outros assuntos que nós - e por "nós" quero dizer os jornalistas, mas também os intelectuais ou membros de uma camada supostamente detentora de maior conhecimento e cultura - julgamos imprescindíveis muitas vezes são solenemente ignorados pelo público leitor ou telespectador. Que prefere saber quem o ator tal está namorando, quando começam as inscrições para o próximo BBB, quem fez mais gols na rodada de futebol da semana ou simplesmente quem foi que morreu (sim, os obituários continuam figurando entre as seções mais lidas dos jornais, batendo muitas vezes manchetes de economia e política). Ou que Obama, aquele cara do qual se falou tanto quando se elegeu presidente ano passado e que cada pouco está lá no jornal, matou uma mosca.

Isso se repete também na internet, basta ver o que tem mais leitura em sites e blogs. Um exemplo apenas: textos nos quais apareçam, mesmo que incidentalmente, palavras ligadas ao sexo costumam ter índice de leitura várias vezes maior do que outros, mesmo que não sejam tão bem escritos.

O que concluir disso tudo? Que o "povo", esse ente ao qual pertencemos mas do qual muitas vezes nos excluímos, está errado? Que só se deve falar de coisas mais sisudas? Ou talvez que devemos deslanchar de vez para o circo pedido pela maioria? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Creio que devemos ter, sim, as duas coisas, o"importante" e o inusitado. Devemos publicar, e ler, uma e outra. Afinal, gostos não se discutem, e a vida é feita tanto de momentos sérios quanto de momentos de riso (que graça teria sem eles?).

O que não deveria ocorrer, apenas, é usar as milhões de opções de coisas "interessantes" que existem por aí como desculpa para não ler ou ver outras coisas que talvez não sejam tão engraçadas ou curiosas ou excitantes, mas que influenciam no nosso dia a dia (como a política ou a economia).

Se você leu este texto até aqui, independente de como chegou até ele, sugiro apenas que reflita sobre esse assunto. Não deixe de ver o vídeo do Obama matando a mosca, eu também vi e gostei, mas tire um tempinho para ler também sobre a crise mundial ou sobre a situação política da sua cidade. Você vai descobrir que isso pode ser igualmente muito interessante.





O que você quer ser quando crescer?

Eu pensava muito sobre o que queria ser quando eu crescesse. Afinal de contas, esta é a pergunta que todo adulto faz às crianças; como se nosso destino já tivesse de estar traçado desde sempre.

Meu primeiro desejo era que eu pudesse fazer algo que gostasse, que nunca me entediasse, que apresentasse desafios, que fosse instigante.
No entanto, não poderia ser trabalho pesado, nada braçal, nada estafante. Assim como para muitos, o trabalho ideal era aquele que pagasse bem e que exigisse pouco esforço.

Tirando os projetos absurdos (absurdos hoje, pois à época eram bastante plausíveis), como bombeiro, piloto de caça, astronauta, franco-atirador, jogador de videogame profissional, havia uma sensação interior de que, em qualquer ramo que eu seguisse, sempre estaria ligado às artes.
Eu até que desenhava bem, mas não bem o bastante; aprendi piano, mas também sem vestígios de genialidade ou talento extraordinário; apenas a escrita parecia estar presente o tempo todo, mesmo que paralelamente, sutilmente.

Meu herói da infância era o Indiana Jones, por isto, por um bom tempo também almejei ser arqueólogo. Quando descobri que a realidade da profissão estava bem longe das aventuras em ruínas, enfrentando nazistas ou povos exóticos, sem tumbas remanescentes de faraós para serem descobertas, o encanto diminuiu, e me enveredei por outro tipo de arqueologia, talvez aquilo que Foucault chamaria de "arqueologia do saber", a Filosofia.

Formei-me, só que não me via naquela profissão que aspirava quando criança. Tornar-me professor não era uma questão de escolha, era a única saída para a minha formação. Ou eu fazia isto, ou ficaria desempregado.
Todavia, a vida é cheia de surpresas e tudo pode mudar a qualquer instante. Tudo mudou...

"O que eu queria ser quando eu crescesse?", esta é a pergunta que me fiz hoje, ao terminar de assistir ao programa "Profissão Repórter" na Globo.
A candidata que conseguiu ocupar uma das vagas para o programa, ao responder qual era o sonho dela, disse: "fazer, na semana que vem, exatamente isto que estou fazendo hoje".

E não é o que todos nós sonhamos? Encontrar algo na vida que gostaríamos de fazer todos os dias de nossas vidas? Encontrarmos a profissão perfeita para nós, ou a companheira pra toda a vida, a casa do sonhos, a viagem de nossos projetos?

Não nasci para ser bombeiro, nem astrounauta, nem sequer arqueólogo como o meu herói de outrora; descobri que o quero fazer por toda a minha a vida era aquilo que estava de lado, tão natural, tão comum, tão instrumental: escrever.

Não me tornei o que queria, mas faço justamente aquilo que sei que gostaria de continuar fazendo sempre; não é dinheiro fácil, mas não é trabalho braçal; sem reconhecimento instântaneo, mas tão essencial que, para mim, é impossível me pensar sem exercê-lo.

Entre a criança que fui e o homem que sou há anos e separação; somos muito diferentes, com projetos e sonhos diferentes, mas tenho certeza de que o eu-criança se orgulharia de mim agora.

E correndo o risco de imitar os maus cronistas ou filósofos, que adoram acabar um texto com uma interrogação para forçar o leitor à reflexão, também lhe pergunto: "E você? O que queria ser quando crescesse? Você-criança teria orgulho de você-adulto? Você faz hoje o que gostaria de fazer amanhã?"

Se a resposta for não, não se desespere, nem tudo está perdido... A vida pode mudar a qualquer instante. Às vezes, muda até sem querermos.