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quarta-feira, 27 de junho de 2012

Publicação de um livro: desafios e soluções

Bom dia!

Inicio a minha participação neste espaço com algumas dicas para os autores que estão em início de carreira ou que, mesmo já tendo algumas publicações, sentem-se, em relação ao processo de publicação, como o operário retratado por Charles Chaplin nos Tempos Modernos: alheio ao processo produtivo - sem entender as etapas que vão além da escrita.

No dia 1º de junho de 2012, durante o 3º Cafetel Literário, evento organizado pelos sites O Bule e Página Cultural, ministrei uma palestra sobre as etapas, as dificuldades e as possíveis soluções no processo de produção de um livro. A conversa foi repleta de dicas, tanto para os autores que buscam uma editora quanto para os que querem seguir o caminho - cada vez mais viável - da produção independente.

Aos que se interessarem, segue abaixo um resumo (clique em "Arquivo" para fazer o download em formato pdf):



Além disso, trago também outra importante dica para autores de todas as idades e calibres, conheçam o blog Concursos Literários - apelidado por Cristovão Tezza de "google dos concursos literários" - e participem das premiações realizadas por todo o Brasil e pelo mundo.




Mais adiante, publicarei textos em verso e prosa e, quando cabíveis, mais dicas para os colegas escritores.


Abraços,


Rodrigo Domit






terça-feira, 26 de junho de 2012

Metro


- Mas tu disseste-lhe?
(…)
- Ó pá, mas se não lhe disseste como queres que ele adivinhe?
(…)
- Eu sei, mas tu também tens que ser mais calma, começaste logo a mandar vir, não é?
(…)
- Sabes muito bem que ele gosta de ti, os homens são mesmo assim, ficam logo ouriçados (ouriçados?! Caramba, não ouvia esta expressão há anos)
(…)
- Então e agora?
(…)
- Tens de ter calma. Ele
(…)
- Sim mas tu também tens de ter calm
(…)
- Não, não estou a tomar o partido dele, só te estou a dizer q
(…)
- Sim, estou no metro
(…)
- Não queres pensar melhor? Diz-lhe que queres um tempo e depois
(…)
- Não, Tita, tu é que é minha amiga mas eu ach
(…)
- Ó Tita mas tu sempre disseste q
(…)
- Os homens são assim, tens de explicar porque é que ficaste chateada…
(…)
- Mas tu não lhe disseste!
(…)
- Ó pá, mas o gajo não adivinh
(…)
- É a mãe dele, que é que tu dizias se fosse ao contrário? Até o matavas se ele dissesse que a tua m
(…)
- Não, Tita
(…)
- Está bem mas olha que acho que estás a fazer asneir
(…)
- É claro que sou tua amiga, é por isso que te estou a dizer
(…)
- Estás parva? Sabes muito bem que para mim o Pedro é que conta
(…)
- Eu quero lá saber do gajo, acho é que estás a ser injust
(…)
- Olha, vai-te lixar. Tu nem sabes o que é ser amiga de alguém!

Desligou o telefone, furiosa. Mas não pude deixar de notar a grossa lágrima que lhe escorreu pela bochecha.
Quando saí, ela teclava furiosamente no telemóvel e eu pensei “Coitada da miúda!”

Estava um calor de rachar, quando saí da estação de Metro. 





segunda-feira, 25 de junho de 2012

Do céu

Joaquim Bispo


O moço era estranho.

Jogava futebol na divisão principal. Quando entrava em campo, fazia uns trejeitos com a mão direita sobre o peito. Ninguém se atrevia a perguntar-lhe se era tique ou comichão.

Às vezes, puxava um fio dourado, atado ao pescoço, donde pendia um T, e beijava-o. É certo que o nome dele é Teodoro, mas tanto narcisismo parecia um bocado bacoco.

Quando falhava um golo à boca da baliza, havia mais bizarria. Em vez de verificar as botas, olhava para o céu e levantava os braços. Após uma dessas vezes declarou que contava com uma graça que não surgiu. Aparentemente, era um auxílio que devia vir de cima. Ninguém entendeu que um jogador tão experiente esperasse que um golo que entrasse na baliza com ajuda externa pudesse ser validado pelo árbitro.

Era estranho.


Há quatro anos, foi vítima de uma daquelas coincidências em que alguns insistem em ver intencionalidade: quando levantou os olhos ao céu, em vez da graça esperada, veio uma garça. Foi atingido em cheio no olho direito por uma cagadela fétida e volumosa. A força do impacto e uma infeção posterior reduziram-lhe consideravelmente a visão.


Sem visão binocular, teve de abandonar o futebol e renunciar a qualquer outro desporto com bola. Agora dedica-se ao xadrez. Quem o quiser ver, vai encontrá-lo de cabeça baixa, atento ao tabuleiro, sem temer as armadilhas do acaso. No xadrez não há acasos, só a luta de duas mentes perante um jogo totalmente exposto. Nunca mais ninguém o viu a fazer trejeitos sobre o peito ou a levantar os olhos ao céu.





domingo, 24 de junho de 2012

Micronarrativas de Edweine Loureiro

CIDADE MARAVILHOSA
Na praia, e cercado das mais lindas mulheres, o milionário brasileiro concluiu: que excelente ideia havia sido aquela de comprar uma ilha artificial em Dubai…
****

QUE SEJA ETERNO ENQUANTO DURE!
Soube que aquela era a mulher de sua vida, quando ela abriu-lhe o coração e uma polpuda conta bancária.
****

GRANDES EXPECTATIVAS
Atirou-se do vigésimo andar, na esperança de que, quando despertasse, estaria num mundo melhor. E espatifou-se no asfalto.
****





quinta-feira, 21 de junho de 2012

Caim Está Entre Nós


Levava vida insignificante em uma cidadezinha do interior. Jovem filho de um político local, não foi difícil arranjar colocação no único jornal daquela comunidade provinciana. Sob o grosso manto do emprego intermediado pelo pai, produzia artigos verborrágicos que julgava admiráveis. Aos sábados, semanário dobrado e encaixado sob a axila esquerda, desfilava sua arrogância pelos bares da cidade.
 Era alvo constante dos louvores do seu chefe, um editor atolado em dívidas com o tal político e tão medíocre quanto ele. Em verdade, o destino — este sarcástico incurável — ligara as três personalidades apagadas: o Pai, o Filho e o Espírito Pouco Santo do editor.
Acreditando estar escorado pelo prestígio paterno, ficou abalado quando, certa tarde, o editor lhe fez uma pequena crítica. Construtiva ou não, o chefe lhe dissera que faltava vida no artigo que escrevera. Voltou para casa amuado, deitou-se na cama, encarou o teto e chorou seu primeiro fracasso.
As críticas se tornaram cada vez mais frequentes. Tentava argumentos que imaginava sólidos, mal disfarçando sua irritação. Cheio de mimos, odiava ser contrariado, pois crescera desconhecendo o significado de uma negativa aos seus caprichos. Em seu íntimo, estabeleceu assim que o editor não passava de um incomensurável cretino, esquecendo que o considerava genial quando antes o elogiava.
Dando sequência a sua orgia de rancores, decretou que o editor era o maior idiota já parido pela humanidade quando ele passou a desfiar elogios aos textos de uma estagiária de pernas grossas, recentemente contratada.
Neste dia embebedou-se e vomitou o seu despeito.
Passou a acompanhar com avidez as matérias escritas pela estagiária, apontando defeitos nos textos da mocinha e, em contrapartida, auto-elogiando-se. Já não era bem visto no jornal e começou a ser evitado pelos colegas na redação que o travavam pelas costas de Caim, o invejoso.
Ao ser foi publicamente censurado pelo editor ao trocar em uma matéria o nome de uma autoridade estadual em visita a cidade, voltou para casa furioso, ligou para o amante clandestino e exigiu prazer naquela noite como tentativa de apagar sua sensação de derrota.
Todo o ódio reprimido explodiu ao saber que o editor tinha um caso amoroso com a estagiária de pernas grossas. Como nutria uma paixão platônica pelo chefe, sentiu-se duplamente traído em sua vida sentimental e jornalística.
Naquele dia, não voltou para casa, não chorou seu fracasso, não vomitou o seu despeito em álcool e muito menos aplacou suas frustrações nos braços de um rapaz. Matou a estagiária com cinco facadas e, vestindo as roupas da vítima, bateu na porta da casa do objeto de sua paixão. Ao atender, o editor pasmou-se com aquela caricatura de mulher, sangue maculando as mãos, rosto desfigurado pela insânia, desesperadamente a gritar: “Eu te amo!”.





quarta-feira, 20 de junho de 2012

A barba e o banho


Toda vez que faz a barba,
Onofre Badia toma coragem.
Se acha bonito e confiante,
joga no bicho, acerta um milhão.
Dá voltas ao mundo, entra em campo,
faz gol da vitória, fala em público,
compra carro zero, zera prestações,
chuta o chefe, xinga o guarda,
zomba do médico, enche a cara,
come torresmo e baba de moça,
Elege seu candidato, muda o governo,
escreve artigos, protesta na porta do quartel,
briga com o síndico, denuncia o bandido,
o político corrupto, o lixo na rua
e a dona do cachorro porcalhão,
Namora a vizinha atriz,
desfila com a vizinha atriz,
faz questão de que todos saibam
que está namorando a vizinha atriz.
Provoca ciumeira na vizinha Cristina Pri,
termina o namoro com a vizinha atriz.
Consegue, enfim, um sorriso da vizinha Cristina Pri,
anota o telefone da vizinha Cristina Pri,
jura ligar para vizinha Cristina Pri.
Enche o peito, prende a respiração, dispara o coração,
 - coragem, irmão -, deixa o telefone tocar cinco vezes.
Até desistir.
Enxugando o rosto já liso e macio,
Onofre Badia reza.
Para barba crescer logo.


Toda vez que entra no banho,
Cristina Pri vira expedita,
baixa o santo da determinação.
E resolve tudo. A solução da equação,
a idéia da reunião, a próxima viagem,
quem vai dormir com quem,
o destino dos claudicantes,
a escalada dos miseráveis,
a sentença dos patifes, o caso da Palestina,
a obviedade dos enigmas,
o mistério das profundezas,
o voto, o imbróglio,
o problema, o dilema,
o presente da amiga, o menu da festa,
o lugar das flores, a pauta do seminário,
a ordem da entrada, a hora da saída,
o futuro do Brasil, do planeta e o seu destino.
Enquanto a água cai, é decidida e resoluta.
Jura para espumas e ladrilhos que,
dessa vez, tudo será diferente.
Se resolve atender aos sorrisos do vizinho Onofre Badia,
decide, então, planejar.
O flerte, o olhar, o beijo.
O toque, o abraço, o encaixe perfeito.
A roupa despida, o corpo oferecido.
O passeio das mãos, os pelos ensaboados, a respiração.
O vai e vem, o entra e sai, a dança sem fim.
O suspiro, o gemido, o ái.
Nem se dá conta do telefone que toca.
Cinco vezes, até desistir.
Fim do banho. Torneiras torcidas,
pingos escassos, toalha na mão.
A vida esfregando lá fora.

E assim são Onofre Badia e Cristina Pri.
A cada barba, a cada banho, o sonho de ser o que não é.







segunda-feira, 18 de junho de 2012

... E O TREM NEM PASSARIA


Otávio Martins 

   Ela não costumava pegar o trem quando ia visitar o pai; naquela tarde, porém, dirigiu-se à estação da Estrada de Ferro, a pé. Não pensou no carro. Ou nem lembrou. Como um autômato, tomou o caminho que a levaria até lá. Na plataforma, escolheu um daqueles bancos, sentou-se e ali permaneceu sozinha; viajava no tempo. Nenhum movimento de passageiros ou de carga. Nem atentou para esses detalhes. A enorme plataforma, bem dizer vazia. As lembranças, de quase uma vida inteira, foram-se instalando bem à sua frente, como se estivesse a assistir um filme. Não atinava para mais nada. O olhar estendia-se, parecendo perdido. Atenta a si mesma, puxava pela memória, a qual ia lhe trazendo uma enxurrada de imagens relacionadas a fatos e tempos passados. Nalgumas se detinha um pouco mais, noutras, um rápido olhar, só de passagem.

  Quando deu de cara com as três crianças - duas meninas e um menino - sabia, perfeitamente, que a menor era ela. Além do olhar, a cor dos cabelos e, também, os trejeitos. Ora, como não iria reconhecer a si própria? Mesmo que estivesse brincando com muitas outras crianças, saberia muito bem identificar-se. Tinha vivo na memória o modo que ajeitava os seus cabelos, além do tipo de vestido que costumava e gostava de usar. A parte central, na altura do peito, quase sempre, “fechada” por quatro pedaços de fita, formando um quadrado de, invariavelmente, cores vivas. Gostava, nessa época, lembra bem, daquele bege, de listas vermelhas; fora a sua tia Amélia quem havia feito para o seu aniversário de sete anos. A outra menina, que estava junto, conviveu com ela ainda por algum tempo. O pai da Katira, por motivos profissionais, teve que mudar-se para a Capital. Somente agora é que dera pra pensar. Nunca mais ouviu falar da sua amiga de infância. O Calito, seu irmão, costumava estar sempre na volta. Parece que gostava mais de andar e brincar com as meninas. Vivia a dizer que não achava graça nenhuma naquelas brincadeiras de seus coleguinhas.

   Lembrou, também, do dia em que Katira, com toda a família, embarcou, ali mesmo, naquela estação. Ela e o Calito, ainda que não tivessem que se despedir de alguém, gostavam de andar ali pelas redondezas da Estrada de Ferro. Os trilhos, mesmo que parecessem apenas duas simples paralelas colocadas a esmo, guardavam lá a sua magia. Quando sabiam que não era horário da passagem de trem, ela e o Calito caminhavam, se equilibrando, lado a lado, por vezes até de mãos dadas, sobre os trilhos. E, assim, costumavam percorrer grandes distâncias. Os trilhos se impunham, e era para isso mesmo, como a indicar por onde seguir em frente. Aquela palanca que ficava ao lado do entroncamento, ela sempre procurou uma maneira de dar-lhe algum sentido. Num simples manejo de um dos ferroviários, a máquina e toda a composição trocavam de suas bases, sem mudar a direção.   Chegavam à mesma estação, apenas um pouco mais ao lado. O rumo, por assim dizer, permanecia o mesmo. Pensava sobre essas coisas, mas, sem nem saber por quê.

  No colégio interno, o qual ficava noutra cidade, porém, bem próxima dali, sempre se lembrava dos passeios e das brincadeiras pelo pátio da Estrada de Ferro. Aquela palanca haveria de ter algum significado, ainda que não conseguisse defini-lo. Afinal, por que a sua imagem permanecia sempre em meio aos seus pensamentos, lá no colégio? Talvez - tentando deduzir – como a estabelecer alguma relação com o que lhe estivera ocorrendo durante aquele período da sua vida. Por diferentes que fossem sempre lhe pareciam os mesmos caminhos. Continuou estudando e sonhando o seu futuro, porém, as bases já não eram as mesmas. Calito ficou com o pai. Era dois anos mais velho que ela. Com a doença da mãe a vida dos dois, continuava, mesmo assim, na mesma direção.

 Sentia saudade de uma coisinha à toa, como andar sobre os trilhos. A única preocupação era se viria algum trem fora do horário de costume, ou, mesmo um daqueles troles, usados pelos ferroviários quando se deslocavam até um determinado lugar, onde fariam algum reparo na linha ou, simplesmente, buscar alguns de seus companheiros que estivessem aguardando num ponto qualquer, ao longo dos trilhos. Mas, ainda que inconscientemente, contavam com o aviso, que viria através de um apito, o qual daria para se escutar muito bem a uma boa distância. Era só esperar pela sua passagem e, logo, retornariam às suas brincadeiras sobre os trilhos, dormentes e, também, um pouco de brita espalhada pelos limites do percurso.

 Sua mãe já estava acostumada com as incursões dos dois lá pelo pátio da Estação. No começo ficava preocupada e apreensiva; eram muito pequenos e, por isso, talvez, temesse por eles. Porém, com o tempo, foi-se acostumando; por ali terem nascido e, assim, estarem crescendo, teriam criado lá os seus próprios meios para as brincadeiras e passeios por aquelas imediações.

   Depois que adoeceu, a mãe viu-se obrigada à internação na Capital. Naquelas cidadezinhas do interior a situação era precária com relação à saúde. Não que na Capital os cuidados fossem melhores, mas, os equipamentos, de qualquer forma, eram mais modernos e ela precisaria, mesmo, se submeter a uma série de exames. Sabia que seu caso era um tanto grave e, então, se deixou levar. Costumava cuidar de toda a lida da casa. O marido, nem que quisesse poderia ajudá-la, pois o trabalho lá no seu emprego lhe consumia o dia inteiro. Pelo que ganhava, teria que ir levando daquele jeito, mesmo. Mais, bem mais do que oito horas por dia. Mas, precisava “engordar” o salário para poder alcançar um valor que garantisse a sobrevivência dos quatro.

 Calito, apesar de seus dois anos a mais, estava somente uma série à sua frente. Mesmo assim, ela, por vezes, se valia do irmão para que a ajudasse nalgumas lições de casa. Isso, eles faziam, até, sobre os trilhos. Andavam, praticamente, sempre juntos. Uma aproximação natural, desde a casa e o gosto pelas mesmas brincadeiras e passeios por aquelas bandas. Por mais que saíssem por outros lugares ali do bairro, acabariam o dia no pátio da estação da Rede Ferroviária.

Depois que a mãe morreu, por algum tempo acreditava-se que os dois pequenos pudessem cuidar da casa, além de freqüentarem a escola. O pai, como de costume, chegava a casa somente à noite. Não teria condições de estender, ainda mais, o seu horário de cada jornada. Assim que – sua tia Amélia foi quem conseguiu – numa alternativa ou possibilidade de continuarem ir tocando a vida, seu pai resolveu por mandá-la para o internato. A cidadezinha, onde ficava o internato, era logo ali, ao lado de onde morava. Porém, apesar da pouca distância, se sentia longe. Tudo o quanto se acostumara - principalmente a companhia de Calito - lhe escaparam, de uma hora pra outra. Calito ficou com o pai e tinha uma vizinha que passou a ser uma espécie de empregada-faz-tudo; permanecia algumas horas na casa, até o momento em que Calito saía para a escola. Depois da escola, como era costume, continuava com os seus passeios lá pelo pátio da Rede Ferroviária. Assim como acontecia com a sua irmã, sentia falta da companhia e, também, das coisas que haviam criado para passarem os finais de tarde. Depois de alguns anos, quando o pai deixou aquele emprego, resolveu vender a casinha e mudar-se para a cidade onde ela continuava, já pelo terceiro ano, no internato. A situação era quase a mesma. Porém, nos fins de semana, pelo menos até que acabasse o ano, poderia ir para casa. Mas, já não era a mesma coisa. Por vezes, até preferia ficar lá no internato, mesmo. No internato tinha as suas colegas e sempre alguma coisa ou outra para arrumar, as quais iam se acumulando durante a semana.

  Foi-se tornando uma moça e, depois, uma mulher, quase independente. Quando começou a namorar com o Juliano, que morava lá em sua cidade natal, sentia que usava aquilo somente como uma válvula de escape. Precisava tocar a vida. Calito, agora, demonstrava outros interesses, ir para a Capital, onde gostaria de tentar uma boa faculdade. Seu pai, depois de seu novo emprego, acomodou-se por ali. Quando se casou com Juliano, voltou a morar em sua cidade. Aos seus olhos, porém, parecia outra. Mesmo que andasse pelos mesmos lugares de quando ainda era pequena, já não os sentia mais do mesmo jeito. Foram-se com o tempo. Juliano era um bom companheiro, porém, nem por longe imaginaria que ela já não tinha o menor entusiasmo por qualquer coisa que a vida estava a lhe apresentar. Deixava o tempo passar, apenas. Ainda tendo que dissimular a sua inconformação.

   Era como se estivesse em outro lugar. Outras pessoas, outras atividades. Somente o que reconhecia era o aspecto físico da cidade, que muito pouco mudara. E isso só servia para lhe trazer certas lembranças e uma incômoda nostalgia. Tanto que sonhara o futuro como algo dinâmico a lhe empurrar para frente, trazendo novas experiências. Ali, estava patinando. Pior, retrocedendo.

   O agente da Estação, não que quisesse se intrometer aproximou-se – já tinha observado que ela estava a um bom tempo ali sentada – com a maior delicadeza, depois de perguntar se esperava algo, informou que naquele dia o trem não passaria pela Estação, somente nos dias pares da semana, incluindo o domingo. Ela agradeceu, como se tivesse plena consciência de estar ali sentada por todo aquele tempo, dizendo que ainda ficaria por mais alguns instantes (e pra si, que continuaria a rever as suas lembranças, enquanto a memória estivesse, assim, instalada).

  O senhor afastou-se, ela lançou novamente o olhar a um ponto qualquer e continuou a sua viagem.





domingo, 17 de junho de 2012

quê??

 Marcia Szajnbok

que tanto quê tem esta língua!
por que tanto porquê
a confundir quem escreve
quem se atreve
até quem lê?

por que separado junta
quando responde
porque sim
ou talvez
ou porque não aguento?

por que regra esquisita
no fim da frase
sem quê nem porquê
o diabo do quê tem que ter acento?

- Por que eu tenho que saber isso, mãe?
Gramática não serve pra nada...
- Menino, sua língua é sua pátria...

língua doce, tem saudade, tem mestiço
mameluco alvar na antropofagia inventada...
língua viva, movediça, ganhou letras, perdeu trema
última flor, que seja inculta
nem por isso menos bela
não há recorte de mundo
mais lindo do que o dela!





sábado, 16 de junho de 2012

O ladrão e a alma

O nome, Francisco de Assis, recebeu em homenagem ao santo. Virou Fininho por acaso, no seu primeiro assalto. Na hora da fuga, como era magro que nem vara, foi o único a escapar, esgueirando-se por entre as barras de uma grade de ferro. Daquele dia em diante, o apelido pegou e o santo ficou enclausurado na certidão de nascimento.
A mãe, Dona Cidinha, cozinheira de grandes prendas, dentro do possível, deu vida boa a Fininho, porque queria que o menino virasse “um homem de bem”. Não virou. Firmou-se na vida como ladrão e especializou-se em furto a residências.
Fininho adorava a mãe, mas tinha medo dela. Mulher de bondade farta, virava uma fera com os malfeitos que chamava de “coisa do demo”. Quando pegava Fininho chegando muito tarde da farra, ou sentia nele o cheiro de pinga, obrigava o rapaz a ajoelhar-se em frente à imagem de Nossa Senhora das Graças e a rezar duas Ave-Marias em penitência.
Ele protestava, mas ela, irredutível, respondia:
— Reza logo, menino! Uma pelo pecado, outra pelo pecador.
Dona Cidinha jurava que depois das duas Ave-Marias no capricho a Santinha pedia a Deus para perdoar o delito. Por outro lado, se o pecador não se arrependia, e nem rezava, a Senhora pedia às almas do outro mundo para virem atormentá-lo sem sossego. Fininho rezava pelo pavor às almas.
Então, aconteceu o roubo à casa de dois andares.
Era ainda cedo quando Fininho encostou o veículo em frente ao jardim. Proprietário de férias, rua tranquila, tudo corria bem. Usava como fachada para os furtos um utilitário branco, com adesivo de floricultura, e nunca estacionava dentro das casas para não despertar suspeita. Além do mais, desde que Zé Gaguinho, seu primo, tinha se juntado ao negócio, as coisas estavam mais calmas, porque enquanto um vigiava, outro furtava.
Entrou facilmente na casa e foi direto para o andar de cima. Por experiência, sabia que começar por ali era sempre mais seguro. No primeiro quarto, um aparelho de TV e um de DVD. No segundo, apenas material de costura. Ansioso, abriu a porta do terceiro aposento, esperando encontrar alguma coisa que valesse mais a pena.
Na cama, uma mulher idosa parecia dormir. Fininho estacou, sem reação, permanecendo assim por alguns instantes. Mas alguma coisa ali não estava certa. Aproximando-se sem ruído, verificou e comprovou que a coitadinha não respirava. Morta, completamente morta.
Automaticamente, fez o sinal da cruz e rezou duas Ave-Marias. E já pensava em sair quando enxergou sobre a cômoda um colar de pérolas pequeno e uma aliança de ouro. Indeciso, voltou-se para a defunta e desculpou-se:
— A senhora me perdoe, mas isso aqui não vai mais lhe fazer nenhuma falta mesmo.
E agarrou as duas joias.
— Devolva! Isso não é seu! — advertiu uma voz tremida de mulher.
Fininho deu um pulo para trás, apavorado.
— Quem está aí? — perguntou, tirando a arma de brinquedo da cintura.
— Eu, ora bolas! — respondeu a voz.
— Eu, quem? — insistiu ele, sentindo o pelo arrepiar nos braços.
— A pobre senhora de quem você está roubando as joias.
Fininho se apoiou na parede, sentindo-se desorientado e tonto. Mas, recuperando-se um pouco do susto, imaginou que aquilo era alguma brincadeira de Zé Gaguinho para pôr medo nele. No auge da raiva, ligou para o primo, reclamando, mas o rapaz, colérico, respondeu:
— Oooolha peeela jaanela paara a r-r-rrua, seu be-besta! Eu eeestou aaqui na es-es-quiiina, tra-traabalhando! Nãão aaamola!
Tentando impedir que o medo tomasse conta do seu corpo todo, agachou-se, procurando pela voz debaixo da cama. Abriu a porta de madeira do closet e espiou; depois, mexeu nas cortinas. E enquanto o terror tomava novamente conta dos seus músculos, escutou a mulher irritar-se:
— Como é, vai devolver o colar e a aliança ou não vai? — cobrou a voz que parecia de outro mundo.
Jogando os dois objetos de volta na cômoda, Fininho apressou-se em sair do quarto, mas antes que seus pés obedecessem, a voz gritou:
— Nem pense em ir embora agora! Se sair daqui, vai se arrepender!
As almas! As almas de Nossa Senhora tinham vindo persegui-lo pelos pecados, pelos furtos, pela vida de ladrão! Só podia ser isso! Bem que a mãe tinha avisado!
Parado no meio do quarto, tremendo, perguntou, num fio de voz:
— Dona alma, o que a senhora quer que eu faça para me deixar em paz? Diga!
— Pouca coisa. Uma penitenciazinha aqui, outra ali e você pode ir embora, perdoado.
— É só falar, dona alma! O que a senhora quiser, viu? — continuou, sem coragem de olhar para a defunta.
— Vamos lá. Vou lhe dizer tudo o que tem a fazer. Preste a atenção. Primeiro, arrume as camas dos três quartos.
— Como é que é?! — estranhou o rapaz.
— Isso mesmo, e ande logo antes que o meu filho chegue, porque se ele pegar você aqui é cadeia na certa!
De onde é que Zé Gaguinho tirou a informação de que os moradores desta casa estavam viajando? — remoía-se Fininho — Ah, Zé Gaguinho, você hoje vai se ver comigo!
— Alôô! Você ainda não se mexeu, é?
— Mas arrumar as camas lá é penitência, dona alma?
— Ufa! Você nem sabe o quanto! E obedeça logo, que eu não vou ficar aqui discutindo penitência com você não!
Acostumado a ajudar a mãe em casa, Fininho colocou rapidamente em ordem as camas dos três aposentos.
— Posso ir? — perguntou timidamente.
— Que pressa é essa? Você não estava com pressa quando entrou aqui, estava? Ainda tenho mais duas tarefas para você, antes de deixá-lo partir.
— Duas? — ele espantou-se, mas logo se lembrou dos riscos de contrariar uma alma — Então, diga, por favor, dona alma, diga que eu faço!
— Primeiro, varrer a casa. Segundo, preparar o almoço. Só isso. Depois, pode ir embora.
Mas que alma folgada! Folgada e estranha. Arrumar, cozinhar...
 — Está pensando em quê? — interrompeu a voz da defunta — Em desistir?... É isso, não é? Ué, tudo bem. Eu posso começar a atormentar a sua vida agora, quer ver?
— Nem pensar, dona alma, nem pensar! Calminha aí! Só estou achando esquisito esse negócio de a senhora ficar me pedindo pra limpar e cozinhar! Isso não parece penitência... É muito esquisito.
Com uma risadinha que deu calafrios em Fininho, a voz explicou:
— Hehehehehe! É que eu fui empregada doméstica. Trabalhei aqui nesta casa durante muitos anos, até hoje, quando morri. E não consigo pensar num castigo pior do que as tarefas domésticas, hehehehehe! E ande logo! Ao trabalho, meu rapaz! E se quiser falar comigo, volte aqui em cima, porque como eu desencarnei há pouco tempo, ainda não consigo ir para longe do meu corpo. Acho que a missa de Sétimo Dia vai dar um jeito nisso...
Encharcado de suor, aterrado pela companhia da alma, prometendo à Santinha que iria se emendar, correu a se desempenhar das penitências solicitadas. Em menos de uma hora, o cheiro de casa limpa se misturava ao de um almoço simples, mas apetitoso. Retornou ao quarto e chamou a alma, na esperança de ela ter ido embora:
— Dona alma? Dona alma, cadê a senhora?
— Terminou tudo?
Ali estava ela, esperando por ele. Alma chata!
— Terminei. Posso ir agora?
— Pode. Agora pode.
Fininho alcançou a porta em duas passadas, mas, antes de sair, a curiosidade que o atormentava falou mais alto:
— Dona alma — perguntou, sem se virar — a senhora pode me responder uma coisa?
— Depende, meu rapaz, depende do que você quer saber.
— A senhora é uma alma do outro mundo, dessas que só aparecem quando a gente faz coisa errada, ou é uma alma penada, que não encontra rumo e fica por aí vagando eternamente e perseguindo as pessoas? — perguntou de um fôlego.
— Também depende, meu rapaz, depende.
— Do quê? — insistiu Fininho.
— Assim que a gente desencarna, tem que começar a ajudar os vivos a encontrar o seu caminho. Se corre tudo bem, a gente vira alma do outro mundo e vai embora. Agora, se o sujeito é teimoso, insiste nas coisas erradas, a gente vira alma penada e persegue o infeliz para sempre. — disse, dando ênfase ao "para sempre".
As pernas empurraram Fininho escada abaixo, aos tropeções, mas antes que alcançasse a porta da rua, ouviu de novo, bem distante, a voz da alma:
— E precisa rezar, viu meu rapaz? Rezar muito para as almas!
Saiu dali um homem de bem. Sem fazer caso do carro que o esperava com Zé Gaguinho ao volante, desceu a rua feito um louco, repetindo: “Um rosário inteiro, minha Santinha, um rosário inteiro, eu juro!”.

Na casa, uma senhora de cabelos brancos desligou o moderno e potente circuito de comunicação que interligava o closet do seu quarto, onde estivera escondida no último par de horas, ao closet do quarto ao lado, ocupado pela defunta que havia sido sua empregada, companhia e amiga pelos últimos 40 anos.
Entrou no quarto da morta pela porta camuflada atrás das prateleiras do closet, colocou no seu pescoço o pequeno colar de pérolas e, com um ar zombeteiro, disse:
— Quem diria, hein, minha amiga? Afinal, a tal geringonça que o meu filho tanto insistiu em instalar entre os nossos quartos teve a sua utilidade!
Soltando, por fim, uma risada, completou:
— Eu não lhe disse que você podia partir tranquila que eu dava um jeito de me virar?





sexta-feira, 15 de junho de 2012

laços

desde a Páscoa do Senhor que elas resolveram ir-se sem aviso
e eu que não sei de deuses e nem de infernos, céus ou paraísos,
e nem de um amor imaculado que interceda pelo seu descanso eterno,
e a mim console a alma,
escrevo a tentar o que de outro modo não consigo


despedida



estou aqui sem peça de roupa que agasalhe
a tristeza desabrochou-me
erecta
firme
desejosa de deitar ramos
aspergir-me de lágrimas
reflorir em choros

no interior do que nem sei onde
eu sou um novelinho cor de palha
um rolinho de penas que os pardais deixaram
um novelo das cartas
que nem nos escrevemos

estou aqui sem fato
não tenho nada que me identifique
espraiada como a areia
tomada pela maré enchente
nada na pele me assinala
nada no meu rosto traduz
e eu morri um tanto
morri um pedaço enorme

onde tu existias
onde te dizia até um dia destes
ficou vazio
e eu nunca te disse
nem uma palavra
e hoje
fico apenas muito triste
muita coisa ainda para dizer-se
muita mão ainda para apertar-se
e aquele etéreo
(tão etéreo que somos)
esvai-se no passado que fomos


o seu chá

Sentou-se como se ainda fosse. E já não era.
O chá soube-lhe demasiado à erva de que era feito, ardendo a água como se fosse isso apenas: água fervente.
E como pesava a chávena de uma loiça cara em azul debruada a oiro.
Maria Inácia entrelaçara o bojo com a mão inteira. A mão dela com os dedos nodosos de uma artrite antiga.
Sentia escaldarem-lhe cada um dos veios. Até nos ossos ela sentia o quente da água. Apertou mais um pouco. Aquele calor a trespassá-la braço acima, e a encolherem-se num desassossego os músculos de todo o corpo.
Um prazer estranho, pensou ela, a chávena muito apertada na mão esquerda.
E o fio de lágrimas que lhe marejou os olhos seria do imenso esforço.
Bebeu um minúsculo gole e sentiu aquele sabor estranho.
Eram seis sentados em redor da mesa. Ninguém bebera o chá fervente antes que ela tivesse bebido aquele golinho.
Foi só quando se ouviu o tinir dos talheres. O bolo de nozes a ser partido em fatias estreitinhas, o açucareiro a passar de um a outro. E o mel. E a casquinha de limão. E o ruído, raro, de algum sorver mais descuidado.
Maria Inácia serviu-se de manteiga numa torradinha de pão de centeio.
Amparou com a outra, a mão que segurava a chávena pelo bojo. Maria Ináca no esforço de colocar aquilo sobre o pires.
As mãos dela, cada vez mais inseguras do que fizesse uma e fizesse a parceira, tinham aprendido a entreajuda mesmo nos pequenos gestos em que nem deviam, que mais não fosse por uma questão de etiqueta à mesa.
Dentro em breve, seria o costume: lembra-se, tia? lembra-se mãezinha? sabe como foi avó, sabe? uma enchente de questões e ainda: conte-nos, Dona Inácinha na fala de uma amiga que estava lá por casa como se fosse da família. E Maria Inácia se contasse seriam recontos. Ou inventaria. E sorriu-se, os olhos perpassando cada um deles.
Quase distraída, foi erguendo a chávena. Subiu aquela loiça muito azul até à altura do colo e mais um pouco. A mão a segurar a asa, dois dedos apenas, e ela muito hirta, muito direita na cadeira.
Maria Inácia muito contente de conseguir executar aqueles gestos.








terça-feira, 12 de junho de 2012

Poemas (Mariana Valle)

Fonte de vida

Preciso de outra fonte de renda.
Preciso que renda a minha fonte de vida.
A minha frente, na minha fronte,
sem renda, só vida
e dívida,
em fonte arial,
nessa página
preenchida.
Poesia dá renda?
Não sei,
mas é transparente.
Você não a sente?
Minha frente colorida?
O verso também convida,
com vida.
Preciso de outra fonte de renda.
Preciso que renda a minha fonte de vida.


Nunca é tarde

Nunca é tarde pra se dedicar a verdadeira vocação.
Nunca é tarde para sair da voz e partir pra ação.
Nunca é tarde para se descobrir.
Nunca é tarde pra redescobrir.
Nunca é tarde para cobrir o corpo de nada,
com o vazio do desapego.
Nunca é tarde pra começar de novo.
Nunca é tarde para um novo chamego.
Repito: nunca é tarde,
meu nego,
nunca é tarde.
Porque se a manhã é cedo
e a noite é longe, a noite arde,
as nossas tardes vivemos hoje, não tem segredo.
Pra bem viver nunca é tarde,
meu nego,
nunca é tarde.





segunda-feira, 11 de junho de 2012

Imperfeição - Anticorpos da alma

 
 
 
(Em homenagem à Violeta Parra)


Eu não quero a perfeição

quero a imperfeição dos grãos de areia esparramados, inundando o mar

quero a terra vermelha, cheia de vermes, enrubescendo o horizonte

como o musgo das pedras que solidifica águas paradas


como o céu escuro, cheio de nuvens, quero o meu avesso...

quero as poeiras  férteis das sensações  que lubrificam os sentidos

como o olhar enevoado que acelera os sentimentos

como a merda expelida  que dá o toque de lavanda do corpo


como as cinzas do carvão que aquecem caminhos


Eu quero me divertir com a minha desgraça

como amores em vão, esquartejados na esquina do pecado

quero o sangue que escorre da alma, alimentando veias sanguinárias

eu quero o ser frágil em suas imperfeições e impermanências


No acovordamento  com as minhas decisões,

quero amargar  na decepção comigo mesma

o êxito para mim, tem um sentido adverso

Só no abandono consigo sentir a pulsação do existir

como um raio de sol obstruído pela noite que chega

"A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste".

 
The end





domingo, 10 de junho de 2012

A escrita e as redes sociais, indo aonde os leitores estão



Qualquer autor em início de carreira, e com isto me refiro aquele que acabou de ter um estalo e dizer para si "vou me tornar um escritor", pensa que a maior dificuldade da carreira literária é escrever um livro.

Escrever livros é o que há de mais fácil, tudo que você precisa é de um pouco de tempo e desenvolver a trama página após página. E nem precisa ser um livro muito grosso, se já tiver umas 80 páginas, você já tem uma obra em mãos.

A maior dificuldade da escrita, o maior desafio de todos é ser lido, conquistar os leitores e, o pior de tudo, convencê-lo a comprar este seu livro.

Quem são os leitores?

Os leitores estão por aí, espalhados pelo mundo, e não são muito diferentes de você. Alguns leem porque gostam; outros gostam de ler, mas não tem dinheiro para comprar livros; há os que leem ocasionalmente, quando não há mais nada para se fazer; e existem aqueles que leem por obrigação, seja para a escola ou para o trabalho.

Além disto, existem todos os tipos de gostos de leitura, uns preferem ficção científica, outros romances românticos, terror, aventura, mistério, fantasia, livros técnicos, de filosofia, de política, jornalísticos, de auto-ajuda ou espiritualidade.
Para cada gênero literário ou tema, existe pelo menos um leitor neste planeta.

E como é feita ponte entre o leitor e um livro que talvez o interesse?

Este é o grande mistério do negócio. Alguns simplesmente vão a livrarias, folheiam as obras e escolhem uma que parece ser instigante, outros recebem indicações de amigos ou professores, outros leem as críticas em jornais ou revistas, ou se empolgam com alguma obra de um autor e resolvem ler as outras que ele escreveu.
Mas, no fundo, tudo se resume a uma questão de visibilidade. Aquilo que está em evidência, na moda, ou abordando um assunto polêmico atual tem muito mais chances de chamar atenção para si.

Os seres humanos se articulam em padrões, esta é uma estratégia de sobrevivência e um dos segredos da nossa adaptabilidade. Temos instintos, pois somos animais, e também somos racionais, todavia, muitos de nossos comportamentos são determinados por padrões externos: "se os outros fazem, então é bom e eu deveria fazer também".
Todas as pessoas tem uma "Maria vai com as outras" dentro de si e esta é a chave de vários sucessos fenomenais que vemos por aí. Às vezes, sentimo-nos obrigados a ver um filme, ler um livro ou ouvir uma música, simplesmente porque todos estão comentando e não queremos ficar de fora, mesmo que seja para falar mal depois.

E onde entram as redes sociais nisto?


O autor estreante, e neste caso me refiro a alguém que escreveu pelo menos um livro e talvez até o tenha publicado, tem grandes dificuldades para se tornar visível no mercado.
Primeiro, porque está disputando espaços nas prateleiras das livrarias, na mídia e no orçamento dos leitores com best-sellers, isto é, com aqueles que já tem visibilidade.
Depois, justamente por ser desconhecido, seu livro não pertencerá àqueles padrões de consumo das pessoas, que compram o que faz sucesso apenas porque é o que está fazendo sucesso, ou melhor, ele estará no ciclo inverso: "se ninguém está comprando, é porque deve ser ruim".

Como autor estreante e desconhecido, a fidelização dos leitores precisará de um corpo a corpo muito mais agressivo do que no caso de autores de sucesso (que provavelmente tiveram de suar muito a camisa antes de emplacarem um hit) e, em nossos tempos, isto implica em saber utilizar as ferramentas virtuais, ou as redes sociais.

Um termo que passou a ser utilizado muito na era digital é "viral". Quase toda campanha de propaganda online deseja ser como a gripe, ou como o ébola, isto é, contaminha um, que contamina outros e, quando se vê, estão todos infectados.
Enquanto que uma pandemia destas proporções é o terror da medicina contemporânea, este é o sonho de qualquer marqueteiro, fazer uma campanha viral.
O desempenho viral nada mais é do que o boca a boca elevado à enésima potência. Se você, enquanto sujeito concreto, gosta de um livro, você o indicará para uma meia dúzia de pessoas, parentes e amigos mais próximos.
No entanto, através das redes sociais, você estará indicando para suas centenas de amigos virtuais (quase todos nós temos centenas ou milhares de amigos, ninguém quer ter menos do que 50 para não correr o risco de ser considerado antisocial!), que, se gostarem da sua indicação, repassarão para as centenas de contatos deles e assim respectivamente.
Na internet, a informação se propagada com uma velocidade e com proporções inacreditáveis, tanto para o bem quanto para o mal.

Qualquer autor estreante deveria dedicar alguns minutos de seu ofício de escritor para estabelecer uma boa comunicação com seus leitores online.
Você logo descobrirá que é muito mais fácil conseguir um seguidor no Twitter ou um amigo no Facebook do que é vender de fato um livro. Mesmo assim, você estará criando um vínculo com um leitor potencial, mesmo que este leitor esteja no fim de uma cadeia viral.

Não se pode jamais desprezar o poder do boca a boca.

Os revezes das redes sociais

É óbvio que nem tudo é uma maravilha neste mundo virtual, longe disto.

É fundamental estabelecer um limite de interação nas redes sociais, pois cada linha escrita na internet é uma linha a menos em sua obra literária.
Entendo que alguns prefiram criar diretamente em ambiente virtual, como os nanocontos que se proliferaram nos últimos tempos, mas se você é adepto da narrativa longa, como romances ou novelas, quanto mais tempo você passar online, menos tempo você estará criando.
E é muito fácil deixar-se seduzir e acabar protelando outras coisas mais importantes, às vezes sem relação nenhuma com a escrita, para ficar horas papeando ou vendo vídeos na internet.

Além disto, a repercussão ao que você escreve, isto quando você já obteve um número significativo de leitores, é instantânea. Basta um deslize, uma frase fora do contexto ou de mal gosto para arruinar sua reputação. Autocrítica é essencial antes de publicar qualquer coisa na internet, pois, mais do que nunca, "há quatro coisas que não voltam atrás: a pedra atirada, a palavra dita, a ocasião perdida e o tempo passado".
Qualquer coisa que você escrever na internet pode se voltar contra você um dia, e isto é um fato.

Por fim, quase todas as relações na internet são bastante efêmeras. A maioria dos seus amigos em redes sociais está longe de ser seus amigos de fato. E o mesmo vale para os leitores.
Ter leitores em blogs não quer dizer que você terá leitores para seus livros.
No entanto, para muitos, o simples fato de haver gente interessada no que você escreve, mesmo que não se ganhe um tostão com isto, já é a maior das recompensas.

Conclusão

Na era digital, o autor deve estar mais próximo do que jamais esteve de seu público potencial.

A quantidade de leitores neste mundo é imensa e, certamente, haverá alguns que se interessarão em conhecer e ler sua obra, basta fazer um esforço e tentar encontrá-los.

A internet e as redes sociais são, ao mesmo tempo, aliadas e inimigas dos escritores. Por um lado, permitem o contato direto com os leitores e a divulgação viral, por outro, devora parte do tempo da criação e, por seu efeito instantâneo e imediato, pode acabar se voltando contra o próprio autor.

São duas ferramentas que os autores contemporâneos precisam dominar. Numa era onde a publicação independente tem se tornado muito mais fácil e frequente, o escritor tem de ser também o criador de sua própria imagem e seu próprio divulgador, enfeixando mais estas dentre várias outras atribuições.

Escrever livros é fácil, o difícil é e sempre foi encontrar os leitores.

(Publicado originalmente em http://blogdoescritor.oficinaeditora.com/2012/03/escrita-e-as-redes-sociais-indo-onde-os.html)



Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

http://www.henrybugalho.com/





sexta-feira, 8 de junho de 2012

ao poema que se quer fazer numa noite fria





ao poema que se quer fazer numa noite fria
cumpre:

estar no meio dela
dentro dela
senti-la doer nos ossos
adoecer por sua causa
lutar para manter em si o [calor] que ela vai roubar
[estranho equilíbrio de forças]
saber como fato [não possibilidade] que é da noite o ar que se respira
permitir sem resistência [ou resistindo; importa pouco]
que se complete a adesão aos odores próprios da noite
aos sussurros, assovios de lábios rachados e
ao respiro nublado de seus habitantes
ser a letargia do cansaço diurno 
e o desejo por cair na intimidade das luzes acesas dentro dos vidros

de posse de tais ares
por eles possuído
enrodilhando-se como o gato que teme não ter para onde ir
voltar-se sobre si

[que aconchego há para um poema
que se quer fazer numa noite fria
que respira num silêncio grosso
que atravessa estações inteiro
que corta um a um os meses
?]

sem escolha
nem dúvida
[há esses direitos, sabe-se, mas não são seus]
dentro e no meio da primeira noite fria de verdade
um poema que se quer fazer
se faz

 
 
 
 
 
publicado originalmente em: http://poeticaipsisverbis.blogspot.com.br/#!/2012/06/66-ao-poema-que-se-quer-fazer-numa.html





procedimentos técnico-administrativos em caso de desordem na gaveta dos papéis involuntariamente esquecidos




a vida é organizada em livros

do início ao fim
tudo dividido em volumes
tudo impresso em sinais gráficos reconhecíveis
tudo atravessado num dos cantos da página por um número
de um ao [isso varia de caso a caso]
e se vai-se à frente
ou se volta-se
o lugar marcado na história estará no mesmo lugar
a exceção é a saudade

a saudade é uma pilha de folhas soltas

vez ou outra bate sobre quem as juntou a vontade de revê-las
como bate sobre elas o ar movido por uma janela esquecida aberta
ou por uma porta que de propósito se fecha

o amontoado se espalha pela casa toda
as folhas misturam-se aos outros livros
e vai-se encontrar saudade no meio do livro das contas a pagar
do de certificados de cursos de sessenta horas
do livro de visitas prometidas e nunca feitas
daquele dos primos distantes que só se viam no natal
e – como não? – do livro dos amores mal-resolvidos

então – e de geral é o que acontece – 
é-se tomado por essa má boa coisa lusófona amarga e doce
vai-se ver
sentir
retraçar com os olhos – úmidos –
com as pontas dos dedos – trêmulos – a grafia de cada letra
re-significar cada palavra
reformular o sentido de cada sentença
mas o pior
o realmente doloroso nas páginas amarelecidas da saudade
é o vazio entre os ditos e os não-ditos

a coisa passa
como o ar que as moveu pára
o tempo que se tem para reordenar o ordenável

é o tempo que o tempo dá
[e isso também é variável, que inferno!]

qual é o procedimento?

na melhor hipótese
reuni-las de qualquer jeito
enfiá-las na mesma – ou noutra – gaveta
e evitar com força pôr os olhos na que ficou por cima

[eis um processo fadado ao fracasso:
não se sabe de nenhum caso em que nele tenha tido êxito]

outra possibilidade seria costurá-las
entretanto ninguém ousa fazê-lo
porque só estando quem as sente inerte
é que se pode uni-las definitivamente

porém, nesse caso, o indivíduo já não sente mais nada






publicado originalmente em: http://poeticaipsisverbis.blogspot.com.br/#!/2012/05/65-procedimentos-tecnico.html

























quarta-feira, 6 de junho de 2012

E TENHO DITO! (Tirinhas Literárias Nº 1)













































Marcelo Soriano: m.m.soriano@gmail.com





Pronunciamento literário




Pronunciamento literário


(por Ramon Barbosa Franco)


Havia acabado de presenciar uma série de fatos cotidianos ideais para as composições de contos. Sento à mesa da livraria ainda com as barras da calça molhadas pela lama, poça de enchente e sujeira que a enxurrada tinha levado para dentro de 10 casas da periferia de Marília, me coloco a conversar com o entrevistado. Me perdi nas perguntas, no motivo inicial da vinda daquele escritor e de seu colega para um evento literário na biblioteca municipal, acabando por levar uma chateada do literato. "Você, antes de sair da redação, precisa ler o release para saber sobre o assunto que irá escrever", me disse.
Só nestas linhas escritas há pouco já estariam assuntos suficientes para um romance social, uma análise do impacto ambiental causado pelo desordenamento da urbanização, matéria jornalística para a ocupação irregular de áreas de preservação ou que apresentem risco externo aos moradores, e, ainda, um manual de como um repórter deve abordar entrevistados com ares poucos amistosos diante de certas circunstâncias.
Este é um traço comum do conto, gênero literário conciso que encontra campo fértil na obra do recluso Dalton Trevisan, o brasileiro de Curitiba que acaba de ganhar o Prêmio Camões 2012. A comissão organizadora do prêmio, a mais elevada distinção literária para os escritores do idioma português (que, no passado, contemplou brasileiros como Ferreira Gullar, Autran Dourado, João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado, além do português José Saramago), garantiu que o 'Vampiro de Curitiba' está ciente da conquista, mas não irá se pronunciar. 
Em tempo de pós-modernidade, com a duplicidade de vida, na quase antagônica relação do ser real (do corre-corre diário) para o ser plural e amistoso do ambiente virtual (com perfis em Orkut e Facebook), Dalton Trevisan, que no próximo dia 14 de junho completa 87 anos de idade, se mostra fiel ao seu voto de silêncio e à clausura midiática, feito irmãs clarissas que não deixam o convento nem mesmo para missa celebrada pelo papa.
Trevisan não se pronuncia, só escreve. 
O entrevistado da chateada ao repórter que acabara de deixar  a lama das inundações da favela do Linhão, no bairro Santa Antonieta, se revelou admirador de Dalton. "Eu não quero tomar café com o Dalton ou com o Rubem Fonseca (outro avesso à imprensa). Deles eu tenho o que há de melhor, ou seja, seus textos".
Ao contemplar o curitibano com o Prêmio Camões, o idioma português só valoriza ainda mais um dos gêneros que se encaixou perfeitamente ao pós-moderno. O conto, na velocidade da vida de hoje, é uma das formas mais eficientes do público ter acesso ao conteúdo literário de um autor. Se gostar, buscará outras variações de sua produção, seja em romance ou em novela. 
Independente deste comportamento atual, Dalton sempre fixou seus pés e sua literatura na narrativa concisa e, claro, na Curitiba de homens e mulheres. Extrai dos chamados fait-divers, os acontecimentos diários, a trama do próximo conto, da próxima escrita enxuta. Tudo isso sem ao menos ser reconhecido fisicamente pelo público: é apenas mais um que passa e olha, despercebido. Entretanto, quando chega em casa, surgirão novelas, todas exemplares. Está nesta toada, nesta composição ficcional do fait-divers o seu pronunciamento literário. Como disse, Dalton não fala, escreve. E perfeitamente, diga-se de passagem.
Ao homem que se ver um jornalista ou um repórter-fotográfico por perto, enchendo o saco, é bem capaz de ser mais incisivo do que o entrevistado que orienta repórter a ler o release antes de deixar a redação, parabéns e obrigado.








terça-feira, 5 de junho de 2012

Longe

Foto: Alexandre Neutzling

Aqui estou
Com os pés fincados no chão
Olhar atravessando a janela da sala
O pensamento longe
Longe

Que horizonte ele há de contemplar?
Quantas respostas irá obter?
Quantas janelas vão se abrir?
E sorrir
Para livrá-lo da solidão

Aqui não estou
Apenas resquícios do que não fui
E fragmentos do que não sou
Despejado no céu
Jogado nas nuvens.