Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

sexta-feira, 28 de março de 2014

Alucinadamente veloz



 “O pior é a velocidade vertiginosa. Nessa vertigem,
nada frutifica nem floresce”
                                                                                                         (Ernesto Sábato)  

Alucinadamente veloz. Assim o tempo. Assim as máquinas. Assim as pessoas. Anteontem o Réveillon. Ontem o Carnaval. Daqui a pouco a Páscoa. E o dia das mães. E a copa. E a Flip. E o dia dos pais. E o dia das crianças. E as eleições. E o Natal. Eis 2014 no fim. Mas calma! Por enquanto é fim de março. As águas de março já fecharam o verão. Águas demais no Norte. Águas de menos no Sul. E um verão daqueles que não se via há tempos. Agora é outono. Daqui a pouco, inverno. Logo a primavera dará o seu recado. E de novo o verão. Outra vez, calma!! Fiquemos no outono. Difícil não ser pego pela velocidade. Difícil não se enredar nesse universo de solicitações incessantes. Tudo se rende ao imperativo da instantaneidade. É tudo pra já. O que conta é o que rola na onda do instante, no exato instante em que se rola a tela do Face, por exemplo. O que se passou há minutos atrás já não interessa. Olhos postos no agora – e no instante a vir. Olhos postos na quantidade de curtidas, de seguidores. Tá todo mundo, a toda hora, lançando fios de si nesse emaranhado sem fim da rede. E esses fios sem fim mais nos enredam que nos ligam um ao outro. É assim em todas as redes sociais. É assim no Twitter, no Instagram, e no que mais vier. E tem o Whatsapp. E tem os outros zilhões de apps que é preciso conhecer – e baixar. Onde o espaço para a lentidão? Onde o tempo para a contemplação? Nas tais redes sociais só o raso se multiplica – ou vira viral, como dizem por aí. O que quer que tenha substância, passa batido. A tela é lugar para se deslizar, não para se mergulhar. Deslizar exige superfície plana, lisa, sem qualquer obstáculo. Mergulhar no poço de um texto mais alentado? Jamais!! E assim rolamos telas e telas em busca do que fisgue nossa atenção. E só nos fisga o efêmero, o fugaz, o que traz em si a promessa do total esquecimento tão logo se cumpre o frisson de rolar a tela. Detém-se um instante, curte-se, compartilha-se, eventualmente comenta-se. E pronto. Já foi. Já era. Só se quer o agora, um eterno agora. E o agora não existe. Só existe a memória que o agora nos deixar. Correndo sempre atrás do agora, não dá tempo de o agora se fixar em nós como memória. Estamos sempre em busca do próximo agora. E agora? Agora é hora de parar. Parar de correr. É tempo de lembrar que a pressa pode levar a lugar nenhum. E relembrar que devagar se vai ao longe. Vem comigo?  






quinta-feira, 27 de março de 2014

Ímpeto


Aquela paixão
- todos diziam
era atraso de vida


o que ninguém sabia

é que não tenho pressa


Tela de Roseval Rocha





quarta-feira, 26 de março de 2014

A TV

A jovem repórter explicava aos telespectadores que “a pobreza, o risco de pobreza, é terrível, já há imensas famílias que não podem comer carne todos os dias e as crianças não podem brincar porque os pais não têm dinheiro para pagar ATL”. Estava genuinamente chocada, a jovem repórter.

Deu uma gargalhada. “Excelente exemplo de relativismo”, pensou. Certamente que aquela moça era boa pessoa, estava tão triste com o problema das crianças que não podiam brincar…
Já a estação era outra coisa, as estações de TV apesar de não serem boas pessoas e viverem principalmente do mal e do desgosto, têm alguma obrigação de serem minimamente realistas e não confundirem não comer carne todos os dias com não comer todos os dias. Deveriam ter editado o texto da rapariga.

Encolheu os ombros. Era tempo de voltar à realidade - a sua realidade, não a realidade televisiva. E a sua realidade não era famosa, nem ele vislumbrava no horizonte um bom caminho.
Com a redução de horário no trabalho, pura e simplesmente não era possível esticar o dinheiro para chegar para as despesas. A única solução que lhe ocorria era gastar as 3 horas diárias que agora ficariam livres numa outra actividade remunerada; o problema era arranjar essa actividade e quem lha pagasse.

Riu-se outra vez – “comer carne todos os dias”… Talvez valesse a pena descobrir a moça e casar-se com ela! Só que não se aguentaria limpo e saudável o tempo necessário para a cativar.
Tinha passado a semana anterior a visitar centros comerciais e a Baixa, para descobrir que hoje em dia, os empregados de loja devem ser bonitas raparigas e não homens maduros e pouco bonitos, só que os anúncios nas montras nunca o diziam. Se calhar era proibido dizerem, seria discriminação sexual explícita – claro que a implícita também era ilegal mas sendo virtualmente impossível de provar podia-se fazer. Claro que não perceber nada de moda nem de meias de malha também não tinha ajudado, não há dúvida que qualquer conhecimento pode vir a ser útil.

Também já correra os supermercados todos que conhecia mas os horários não eram compatíveis e o ordenado praticado também não o decidira a sair de vez do trabalho actual.
Os call centers tinham flexibilidade de horário mas fora recusado por ter “algumas dificuldades de expressão”. Na verdade, foram simpáticos por não se rirem por um gago concorrer ao lugar… Compreenderam perfeitamente que uma pessoa tem que tentar tudo.

Hoje iria visitar os McDonalds. Certo, certo é que tinha de arranjar qualquer coisa antes de perder a casa – 2 dias na rua e nem ele se contrataria a si próprio, sabia isso perfeitamente pois já o tinha visto acontecer. 2 dias na rua e passaria a não achar piada nenhuma à moça boazinha da TV e ao relativismo do espírito humano.
Deu novamente uma gargalhada – esses dias ainda não tinham chegado, por ele não chegariam nunca e o que distingue um homem é a capacidade de se rir de coisas tristes.





MANJEDOURA

Amélia se emociona quando assiste, na TV, a qualquer reportagem de recém-nascido resgatado de lata de lixo. A criaturinha roxa de hipotermia, choro já estancado, enrolada em pano ralo, num canto putrefato, abandonada ao léu, sob os perigos da noite; e, de repente, algum ser caridoso que intercede por ela, trazendo-a de volta à tona da vida.

“Deixe de bobagem” — reclama o marido de Amélia. “Pare com essa aflição, que o fato não lhe diz respeito”. E a mulher continua em seu sofrer desgraçado, atenta ao repórter e aos mínimos detalhes até a história desfechar. Emotiva, essa Amélia. Adora início de história aparentemente triste que logo engrena em roupagem de final feliz. Ama o milagre. Acredita na iminência dele.


O homem não entende. Ninguém suspeita. Só Amélia sabe de si, de seu passado. Só Amélia se autoflagela no silêncio de uma culpa que arde pra nunca acabar. 


Não é pela falta de humanidade dos outros que ela sofre e chora. Nem por causa de mais uma criança deserdada. Trata-se de algo mais próximo e particular. O que a perturba é a semelhança daquelas histórias com sua própria vida. O abandono de bebê lhe aconteceu de forma muito privada. E ela não foi a vítima — como talvez você tenha imaginado —, mas o algoz. 


Tinha dezesseis precoces anos quando deixou ao deus-dará a criaturinha que acabara de dar à luz. Não deixou pistas. Mas, como em todos os casos de abandono de incapaz, a anônima foi apedrejada pela opinião pública. Só escapou de sumária execução porque não descobriram seu paradeiro.


Soube por um jornal que uma família decente havia acolhido a menina e lhe presenteado com nome e sobrenome. Mas desde então, sua vida é insônia, pesadelo e uma angústia que se renova. Corpo ileso e consciência pra lá de açoitada.


Sente ainda uma raiva doída por ser mulher. Uma mágoa, um despeito, um flagelo. Afinal, se fosse homem, não seria acusada, tampouco perseguida, porque nada resvala no varão. O pecado é exclusivo de Amélia, a fêmea irresponsável que, depois de se dar ao desfrute, descartou com facilidade o fruto.


Ninguém soube da gravidez. Amélia mesma só se convenceu de que iria parir quando da ausência completa do sangue mensal, poucos dias antes do nascimento da criança. Virara mocinha há tão pouco! Não parecia hora de se tornar mulher, nem muito menos mãe. Preferiu não contar o azar para o pai da criança — um mocinho de bigode ralo e voz encorpando com quem se encontrou meia vez para um coito sem graça, sem amor nem explicação. Não parecia justo que um ato tão carente de história pudesse gerar um bebê de verdade. A mãe de Amélia, sempre ocupada em assear e nutrir os quinhentos filhos menores, também não foi notificada. 


A natureza, então, se incumbiu de ajudar a mocinha a expelir a criança. E quando ainda fraca, após dolorosa paridura, Amélia se muniu de combustível reserva para se despojar da linda filha pequetita.
Antes de deixar o pacote de vida naquela via pouco movimentada, beijou muito a boneca que chorava e cheirou seu cabelinho, com intenção de eternidade. Quem poderia acreditar que a despedida lhe doeria mais que o parto, e sem esperança de cicatrização?


Mas o tempo corre e, além de agregar cicatriz, acaba rendendo algum prêmio. Redenção! Hoje Amélia tem família própria: dois meninos saudáveis e um marido bom que há pouco era também um bom marido. Conserva a beleza natural das mães amorosas e protetoras. Numa encenação da igreja, já se passou por Maria, a Mãe de Deus, e emocionou os fiéis.


E a vida — esse novelo de nós que se ligam para suster o sopro — de repente mostra a ponta! Amélia vibra com a manjedoura recém-montada ao lado de sua cama: será avó em breve e adotará a neta como filha.





MARIA AMÉLIA ELÓI, 40 anos, é brasiliense. Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília, ela foi premiada em 2009 no III Concurso Literatura para Todos, do Ministério da Educação, com a obra Poesia Torta, no prelo. Em 2001, ganhou o Prêmio Nestlé/MEC pelo ensaio Idéias a Mais!: a crítica literária no JB e na Folha de S.Paulo no ano 2000. Seu livro de crônicas Um milagre para cada corcova deverá ser lançado ainda neste ano. Há nove anos, é servidora da Câmara dos Deputados.







terça-feira, 25 de março de 2014

Uma noiva para o João do Campo


Joaquim Bispo



Era uma vez um rapaz que vivia sozinho no campo e raras vezes ia à cidade. Falava apenas com as cabras, os pássaros e as árvores, a não ser na festa dos rebanhos. Chegado à idade de casar, não conhecia ninguém que quisesse viver com ele, e pensava que todas as raparigas preferiam ficar na cidade, em vez de ir viver para o campo, onde, às vezes, faz muito calor e muito frio, e não há luz à noite. Então o João – assim se chamava o rapaz – foi falar com o rei, dizendo:
– Meu rei, já tenho vinte anos e ainda sou solteiro. Não sei de ninguém que queira casar comigo. Peço-te que me arranjes uma noiva para viver, dia e noite, lá no campo onde moro.
O rei ficou muito admirado por alguém do seu reino não ter com quem casar e disse:
– Daqui a três dias, volta aqui, mas traze a coisa mais bonita que o campo tem, como prenda para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias, voltou ao palácio com um braçado de malmequeres. Ao lado do rei estavam três pretendentes, que ele tinha arranjado, entre as solteiras da cidade. Uma disse:
– Não gosto de malmequeres, que me fazem espirrar!
A segunda disse:
– Tenho muitos, lá em casa, mais bonitos que esses!
A terceira disse:
– Os malmequeres são as minhas flores preferidas. Caso contigo.
No dia seguinte, fez-se uma grande festa e casaram-se os noivos que, por fim, partiram para o campo. Durante uma semana, viveram os dois muito alegres. Corriam, rebolavam nos prados, jogavam às escondidas e riam-se a valer. Depois, o casal começou a ficar triste, porque esperava que o casamento fosse diferente. A rapariga dizia que o João não gostava dela, o que era um pouco verdade. Achava-a muito delicada, muito “menina da cidade”. Começou a desejar que a sua noiva fosse mais robusta e gostasse de jogar à bilharda, à pedrada, e a outros jogos de rapazes do campo. Resolveram pedir ao rei que os descasasse e lhes arranjasse outros noivos. Assim fizeram. Contaram ao rei o que tinha acontecido e ele ficou muito pensativo. Disse ao João:
 – Volta daqui a três dias, mas traze a coisa mais saborosa que o campo tem, como presente para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias voltou com uma saca de peras, muito cheirosas e suculentas. Ao pé do rei, estavam três pretendentes. A primeira disse:
– As frutas doces fazem-me engordar.
A segunda disse:
– Para comer peras, fico em minha casa!
A terceira disse:
– As peras são a minha fruta preferida. Caso contigo.
Assim se fez e, depois da festa, os noivos partiram para o campo. Durante uma semana correram, saltaram, riram e brincaram muito. Depois começaram a ficar tristes. A rapariga dizia que o João já não gostava dela, e era verdade. Achava-a demasiado suave e frágil. Parecia-lhe que havia de preferir uma que fosse mais vigorosa e gostasse de jogar às quedas e ao jogo do pau. Contaram tudo ao rei, que os descasou e que, depois de pensar um bocado, disse ao João:
– Volta cá daqui a três dias, mas traze a coisa mais divertida que há no campo, como lembrança para a tua noiva.
João voltou no dia combinado, com um par de cajados. A primeira das novas pretendentes disse:
– Que jogo tão rústico! Eu só gosto de jogos de tabuleiro.
A segunda disse:
– Que bruto; ainda alguém se magoa!
A terceira disse:
– O jogo do pau é o meu favorito. Caso contigo.
O rei, então, disse:
– Ide para o campo e voltai só daqui a um mês. Se então me disserdes que continuais a querer casar-vos, assim farei, mas só se gostardes de viver um com o outro.
Os noivos assim fizeram. Durante a primeira semana, não fizeram outra coisa senão jogar ao jogo do pau. Depois jogaram à pedrada, ao braço-de-ferro e ao salto a pés juntos, zonzos de alegria. João estava feliz. Finalmente encontrara alguém com os mesmos gostos. E também gostava do seu corpo, que era musculado e rijo, à maneira do campo. Passaram a dar muitos beijinhos e decidiram dizer ao rei que, agora sim, estavam bem um para o outro e queriam casar. Mas, antes, a noiva confessou:
– João, eu, na verdade, não sou uma rapariga; sou o filho do rei. O meu pai, avisado por um mágico, fez que eu sempre me tenha vestido de princesa e ninguém no reino sabe que eu sou, na verdade, um príncipe. Quando te vi, gostei do teu ar campestre, e quando soube das tuas dificuldades com as outras raparigas, percebi que talvez fosse eu a pessoa que te pudesse contentar. E realizar-me contigo. Eu próprio, também me queria casar. Então, pedi ao meu pai para me deixar vir para o campo contigo.
João, apesar de surpreendido, aceitou e beijou apaixonadamente o amor da sua vida. Estavam ambos felizes e isso era o que na verdade interessava.
Quando se completou um mês, voltaram ao palácio e contaram ao rei que estavam decididos a casar. Houve uma grande festa e o rei, em pessoa, casou a princesa com o João, perante todo o povo. Todos se divertiram e um dos mais animados era o rei, que, finalmente, via o seu filho feliz.



–––––––   –––––––   –––––––

A perceção tradicional sobre a homossexualidade considerava que esta orientação se devia a erros de educação e outras influências do meio e que, portanto, evitando esses erros e essas influências se obtinham indivíduos heterossexuais, ou que, reeducando os já afetados, seria possível a “cura”. A reflexão sobre esta problemática, no entanto, tem vindo, aos poucos, a considerar que a tendência para se ter atração sexual por pessoas do mesmo sexo tem origem genética, sobretudo. Estudos neste sentido vão sendo divulgados e o crescimento desta conceção na mentalidade geral da sociedade vai fazendo compreender o sofrimento de quem nasce homossexual e se vê discriminado em muitos dos direitos de cidadão comum. Algumas sociedades levam a tentativa de melhorar este estado de coisas às leis.
Há quatro anos, o parlamento português instituiu o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A lei foi aprovada na especialidade no dia 11 de fevereiro de 2010 e entrou em vigor a 5 de Junho. Deste modo, Portugal passou a ser o oitavo país do mundo a realizar, em todo o território nacional, casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo, juntando-se aos Países Baixos (2001), Bélgica (2003), Espanha (2005), Canadá (2005), África do Sul (2006), Noruega (2009) e Suécia (2009). Posteriormente também Islândia (2010), Argentina (2010), Uruguai (2013), França (2013), Nova Zelândia (2013) e Brasil (2013) optaram por semelhante consagração legislativa.





segunda-feira, 24 de março de 2014

ALDRAVIAS

Amigos, nos últimos meses venho exercitando bastante um novo estilo de Poesia Minimalista, que me foi apresentado pelos autores de Minas Gerais – é a ALDRAVIA, que, entre outras características, consiste em: seis versos (uma palavra em cada verso); ausência de título; e valorização do uso da metonímia e da sinédoque, além do uso moderado da metáfora.

Para conhecer mais sobre o estilo e seus poetas, convido-os a visitarem a página do Jornal Aldrava Cultural e da Sociedade Brasileira dos Poetas Aldravianistas:

http://www.jornalaldrava.com.br/pag_sbpa.htm

E, abaixo, algumas de minhas tentativas no novo estilo poético.

Espero que gostem.

Saudações poéticas.

Edweine Loureiro

***

ALDRAVIA 01

do
céu
da
poesia,
chovem
aldravias

*

ALDRAVIA 02

conquisto
mundos
com
soldados
de
chumbo

*

ALDRAVIA 03

vendo
a
queimada
Curupira
chora
brasas

Nota: A aldravia 03 foi selecionada no Concurso “Cardápio Poético” do Movimento Ativista (Fevereiro/ 2014):
http://movimentoativista.blogspot.com.br/2014/01/concurso-cardapio-poetico-fevereiro.html

***





sábado, 22 de março de 2014

Porto Solidão



Eu tenho essa dor funda e molhada, espalhada, ardida, gelada. Que a gente quando fica muito tempo no mar se destempera. Encaranga, mesmo. E eu não sei viver noutro lugar nem doutro jeito. Até sou homem de chão, de areia batida, mas bem antes de raiar sol já arremanguei as calça e empurrei o caíco pra dentro da lagoa atrás de camarão. Todos dia é assim. Tenho uns companheiro de arrasto, é verdade, mas é solito que gosto de ir. Pro mar. Fico sozinho, organizando as ideia, até sentir falta da mulher, da comida da mulher, da cama com a mulher. É bom. É difícil, mas é bom. A gente vai levando a vida. Ou ia.

Faz um tempo, que eu nem sei dizer quanto, que eu ando na volta. Repito tudo, tudinho mesmo, e me acho aqui, parado, descendo do trapiche, tentando chegar em casa, uma saudade medonha. Não sei que acontece, quando a mulher me vê grita que nem condenada, parece que viu assombração. Diz que é impossível, impossível, que não aguenta o meu fedor, que a virgemaria me leve pro céu, que eu descanse em paz. Não minto, esse berreiro me dá uma gastura. Eu consigo chegar bem pertinho da patroa, quase toco os ombro dela, e então ela se sacode de chorar me mandando embora em nome de Deus. Aí, eu sinto uma tontura e quando me dou conta tô de novo deitado de bruço, emborcado no meio do junco, o vento fazendo bater água na minhas costa.

Então, vem alguém de caíco e me desvira no remo, assobia – um curto e dois comprido - para avisar que me achou. O céu por cima é cinza, fumaça, cor da minha alma inchada de tanto molho. Levam o meu corpo para velar, para enterrar, para terminar comigo. Bem rápido para a patroa não me ver assim. Mas eu não sigo. Nem esqueço. Tem muita vida pra viver, peixe pra pescar, a cara do meu filho pra ver, a mulher tá barriguda quase parindo. Preciso ficar. Tento vê ela mais um pouco. Ela me corre. Fico sentado no trapiche de madrugada pensando que acertaram direitinho no nome desse porto: Solidão. Já sei o que isso é. Se não pisasse tanto o peito até que era bonito, as estrela, o vento no nariz, os lampião aceso, ficar sozinho vendo a vida passar sem fazer barulho.

E quieto eu me recordo, uma lembrança dentro da outra, que naquela manhã cedinho a mulher me puxava da camisa aberta e pedia chorosa pra eu ficar, que ela tinha sonhado coisa ruim. Na minha frente já iam os outros cinco, pegando as rede, não quero me atrasar. Beijo ela e peço que me espere com tainha ensopada, não vou me demorar. Só que me enganei. Feio. Umas parte do que teve mesqueci, ficou perdida da memória, acho. Teve uma briga, uns vagabundo querendo se criar, meio que lebrinava, era difícil de ver. Me derrubaram com um soco no cucuruto. Não deu pé. Afundei. Sumi. E pronto. Agora fico fazendo esforço de voltar pra minhas coisa, contar do que foi, sarar dessa ferida descascada, mesquentar. Quase dá. Quase. Daí a mulher foge, agoniada, que não pode com o barrigão e os olho branco que fiquei, que assim não me quer mais. E eu volto de onde parei: descendo do trapiche... 





sexta-feira, 21 de março de 2014

Bodas de Outono

Consultou o relógio cogitando a hipótese de Janete haver desistido. Ele sabia que o atraso das noivas fazia parte de um ritual cumprindo a risca por dez entre dez mulheres, mas aquela demora o consumia em incertezas.  Motivos para temer o abandono em pleno altar não ele não poderia deixar de tê-los, afinal, houve muita oposição da parte dos parentes da noiva em relação aquelas bodas. “Onde já se viu? Unir-se a um homem que mal conhecia?” tornou-se um bordão entre boa parte dos familiares da noiva que também definiam o casório como “um gesto de irresponsabilidade em dose dupla”. Entretanto, a futura companheira dobrara a todos se utilizando daquilo que Nestor logo percebeu ser uma das suas maiores virtudes: a teimosia. Casariam-se e ponto final. O resto “que se danasse” como Janete costumava dizer com singela naturalidade.
O noivo afrouxou levemente o incomodativo nó da gravata enquanto matutava sobre a possibilidade de Janete haver de véspera pesado os prós e os contras de uma união com aquele quase desconhecido e concluir pela desistência. Encarando de cima do altar as incontáveis cabeças humanas a congestionar o átrio da igreja, Nestor pensou no papel mais ridículo que ele representaria em sua vida medíocre caso a cerimônia não se realizasse.
Recordou-se do primeiro encontro entre dois, em uma feira-livre, há algumas semanas, quando ele ainda lutava para acostumar-se ao vácuo provocado pela ausência da sua esposa. Desde a sua partida, Nestor descobrira o quanto fora dependente da mulher e o resultado desta submissão o tornara incapaz de lidar com as mais corriqueiras tarefas domésticas. Sempre fora homem da rua, provedor de uma casa que, ausente de filhos, funcionava satisfatoriamente sob o comando da companheira. Agora, além da dolorida saudade, tinha que, resignado, adaptar-se a sua nova vida e tentar vencer e o desafio que uma banal feira-livre poderia representar.
Foi dela a iniciativa de aproximar-se e perguntar ao homem atrapalhando diante do dono da barraca de temperos se precisava de ajuda, depois de observá-lo confundir de modo patético um molho de salsa com outro de hortelã. Janete em minutos desvendou-lhe os segredos das especiarias, apresentadas a Nestor embrulhadas por cativantes sorrisos. Tímido, o homem agradeceu o que a princípio lhe pareceu certa intromissão de uma desconhecida, mas a simpatia que aquela mulher suburbanamente trajada e puxando um carrinho de feira emitia desfez a sua prelúdica má impressão. Em minutos, Nestor deixou a feira-livre com a leve sensação de estar apaixonado.
E era paixão mesmo, das boas. Desde que conhecera Janete, a ida semanal à feira tornou-se um acontecimento especial na vida de Nestor. Arrumava-se como se a um importante evento fosse, trajando roupas da melhor maneira aceitável para aquele ambiente, tomando cuidado de não destoar dos outros freqüentadores e tornar-se uma figura caricata entre as barracas de frutas e legumes. Quando avistava Janete, seu coração galopava de ansiedade. Forçava a coincidência do encontro e ia feliz em companhia de sua amada, trocando simpatias entre odores de peixes, reclamando dos preços em meio a temperos e hortaliças, falando mal do governo tendo como fundo musical o pregão dos feirantes.
Um dia, Janete o convidou para irem ao cinema. Apesar de surpreso pela audácia do convite, ele alegremente aceitou. Nestor gostava de comédias açucaradas, Janete adorava filmes de terror. E na escuridão do cinema, entre gritos histéricos da mocinha perseguida por um psicopata na tela em cinemascope, o casal trocou o primeiro beijo. Na semana seguinte, no alto de uma roda-gigante, ela o pediu em casamento. Novamente surpreendido pela ousadia feminina, Nestor aceitou sem pestanejar.
Pendurado naquele altar, imerso em verdes recordações, Nestor envergava seu terno de missa, ensopado pelo suor que o calor daquela tarde-noite de verão produzia. Associava-se ao desconforto do clima quente o seu nervosismo em protagonizar aquele espetáculo sob risco de não se realizar.
Suas dúvidas foram sepultadas ao ouvir os primeiros acordes da marcha nupcial invadindo a nave com Janete surgindo na entrada da igreja. Uma linda noiva, conduzida com seriedade pelo seu irmão preenchendo a lacuna deixada pelo pai falecido. Para Nestor, pareceu uma eternidade a distância percorrida pela futura esposa até o altar. Seu cunhado, um tanto contrariado, a entregou e, diante do sacerdote, os dois selaram sua união perante Deus e os mortais.

 Festa simples. Bolo minúsculo onde não faltaram o casal de noivinhos no topo, sidra ordinária estourada e votos de felicidades. Lua-de-mel mais parcimoniosa ainda, no quarto onde de agora em diante eles iriam morar. Estavam casados. Era o que interessava. O resto “que se dane”, pensou Nestor com sorriso maroto estampado na cara, deitado na cama de casal, na companhia do seu pijama novo, comprado especialmente para a ocasião. Janete saiu do banheiro vestindo sua camisola de núpcias encobrindo o corpo magro. Sorriu para ele. Nestor estendeu o braço direito e ofereceu o ombro para a esposa aninhar-se. Passaram a noite assim, abraçados, trocando confidências e juras de amor até que o sono os assaltasse. Quem precisava de sexo aos oitenta anos? Ambos haviam experimentado destes prazeres com seus respectivos primeiros cônjuges. Para aquele casal de agora ex-viúvos bastava a mútua companhia. O resto, inclusive os idosos, testemunhas da sua noite de núpcias, que ocupavam aquela ala dos dormitórios do asilo onde eles se internaram para viver o outono de suas existências, que se danassem.





quinta-feira, 20 de março de 2014

A paixão de Horácio

Ártemis Plaka, a suprema soprano, no Municipal.
Assim anunciou-se. Assim tremeu o coração de Horácio,
fã apaixonado pela diva grega.

Brava paixão. De sonhar com sua beleza pura.
De imitar seus gestos embriagantes.
De colar retratos no espelho do armário.
De postergar amores menores em nome de uma fantasia lírica.

Com antecedência de séculos, Horácio comprou duas poltronas
na primeira fila. Uma para ele, outra para a amiga Leda.
Caso desmaiasse.

Chegou o dia.
Camisa social nova, blazer resgatado das naftalinas,
barba escanhoada, cabelos empastados de gel.

Quem sabe ela olharia para ele?
Quem sabe ela sorriria para ele?
Quem sabe ela cantaria só para ele?
Quem sabe ela ouviria bravo! como se fosse só dele?
Quem sabe depois do espetáculo ignorariam a segurança,
o solene e o protocolo?
Quem sabe flores no camarim se transformariam
em champanhe em camarins mais íntimos?
Quem sabe ela se desse ao tiete como as tietes se dão aos roqueiros?

Não careceria tradutor. O sotaque a la grega do inglês de Horácio
seria mais um ponto de sedução. Fora, claro, o despejar de encantos e elogios,
próprios de quem conhece o universo da estrela tanto quanto a própria estrela.
E experimentariam noite adentro solfejos ferozes,
tremores e ondulações nuas, mordiscares errantes,
gostos novos em bocas aflitas, mãos atrevidas,
línguas arqueólogas, cheiros estrangeiros à flor das peles.
Pelos embaralhados de tanto roçar
dançariam soltos pelos lençóis.
E explodiriam os dois em suspiros suaves,
como se aplaudissem exaustos um ao outro.

O que faria com Leda, a fiel escudeira, companheira, alcoviteira,
fornecedora de coragem? Um taxi de luxo providencial na porta do teatro
e a promessa de que contaria tudo em detalhes.
A cama com Artemis só mereceria ser a dois. Mas os segredos, a três.

Chegou a noite.
Suavam as mãos de Horácio.
Ferviam as maçãs do rosto de Horácio.
Tremiam a pálpebras de Horácio.
O ensaio desencontrado dos violinos soava como prólogo
de um amor à primeira vista - da parte dela, claro, porque ele já
viera devidamente enfeitiçado.

Chegou a hora.
Brota na ribalta a suprema soprano.
Não se percebe respiração no peito de Horácio.
Leda olha para o amigo, que arregala os óculos de aro fino
e se empertiga como um perdigueiro que vislumbra a perdiz.

Ártemis é a delicadeza comprovada.
Canta a primeira ária a metros de um Horácio petrificado.
Só o fosso da orquestra separava aqueles corpos.
Só um fiapo imaginário separava o desejo do êxtase.
O tempo do sonho encosta na beira do possível.
Por que não?

E a diva vai cantando, cantando, cantando.
E a ópera vai seguindo pelas mãos do maestro elegante.
E Horácio vai murchando, murchando, murchando.
A gola engomada da camisa social nova desaba lentamente,
junto com o olhar perdido atrás dos óculos de aro fino.

Como assim?
- Vamos embora, Leda.
-  Está passando mal, Horácio?
- Não. Olha quantos dentes de ouro ela tem.
E repara debaixo do braço: como transpira a infeliz.

Saíram de fininho. Abaixadinhos.
Como convém ao Municipal.





quarta-feira, 19 de março de 2014

Alice através de si

Era manhã de domingo, rodovia calma. Lá do alto de um viaduto, Alice olhava para os pés descalços, cambaleantes, brincando de equilibrar-se. 
Num minuto Alice vivia, no outro, Alice no chão. Era estranho olhar-se daquela forma. Imaginava que as pessoas, quando caem de altas distâncias, teriam apenas um crânio rachado e muito sangue em volta de si. 

Enfim, esperou um tempo até que encontrassem seu corpo, estranhamente todo retorcido. as pernas formavam um 'v'. Os olhos estavam abertos, vidrados. 

Mas era domingo, havia de demorar. Queria chamar o motorista do ônibus que trafegava por uma via distinta. Decerto, se a visse ali naquele estado, poderia chamar uma ambulância e avisar a família e amigos, para que pudessem todos chorar a perda. Ninguém viu. 

Por sorte, Alice viu aproximar-se um carro. Uma família! Ótimo! Pessoas que vivem em famílias unidas (parecia ser o caso daquela gente em questão) possuem um coração grandioso. Iriam chamar médicos, polícia, a mãe o pai e o irmão de Alice e iriam dizer palavras de pesar "era tão bonita!", "como era jovem...", "quem será que fez isso com ela?"

O sangue que tomava conta de seu corpo - pois certo tempo já havia se passado -  estava viscoso, grudento no asfalto. O carro parou. 

Alice deliciou-se com o estardalhaço feito pela matriarca. Agia como se estivesse vendo um dos próprios filhos estirado no chão. Sim! Se a moça desconhecida protestava daquela maneira, certamente os seus pais e amigos também sentiriam o vazio profundamente, talvez até mais. Quem sabe até quisessem ir para o outro lado apenas para não suportar a vida sem ela. 

Não demorou muito para que a multidão se chegasse. Agora, passava das nove e meia. O domingo começava a tomar forma.O sol ficara mais forte, os mais dispostos saíam para a rua. Havia um dia inteiro para aproveitar. 

Algumas pessoas diziam "burra! garanto que fez isso por causa de homem!" ou então simplesmente Alice ouvia as palavras "covarde!" ou "e a família agora é que sofre! pobre mãe!" 

Era tão injusto pensar daquela forma. Mais um tempo se passou e a mãe de Alice chegou até o local. Desmaiou. O pai e o irmão tiraram forças das profundezas de um lugar desconhecido dentro de si mesmos para conciliar a tragédia da morte de Alice e o estado emocional partido da mãe. 

No entanto, Alice sorria. Sorria olhando aquela cena. Ela importava. Independente do que pudesse um dia poderia ter pensado, ela era alguém. 


- Alice? 

- Ahn?

- Então, como eu estava te dizendo, você precisa assinar essas duas vias para que possamos começar a quimio semana que vem. Você entendeu todos os passos? Tem alguma dúvida? 

- Nâo, claro que não. Começamos semana que vem. 

Alice sorriu com dentes aguados.

E saiu do consultório satisfeita com o trágico fim de si mesma desenhado em sua mente. 





segunda-feira, 17 de março de 2014

Dez perguntas para Maria Giulia Pinheiro

1 – Para começar, quem é Maria Giulia Pinheiro?
Começamos difíceis! Risos. Acho que estou perto demais de mim e que me movimento o suficiente para não conseguir fechar os contornos e ver as formas... o mal da juventude. Se for doença do tipo que o tempo cura, um dia eu respondo! Risos.

2 – Por onde sua poesia anda?
Venho do teatro. Talvez, por isso, pra mim, a poesia é também materialidade. Mas, no caso específico da poesia, materialização abstrata do fluxo da vida, um atrito gentil entre som e sentido na construção de mistério e silêncio. O que é mais radical no que estou buscando como estética, é a ideia de literatura como sangue e carne - jamais como osso. A ironia é ser, de longe, o João Cabral de Melo Neto o meu poeta predileto. Mas passo muito por Drummond, por Bandeira, Mario de Andrade, Pagu, e o modernismo como um todo, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Cecília Meireles... Para ser sincera, acho que meu caminho é um pouco o histórico, mas não cronologicamente. Risos. Quando eu era mais nova, lia bastante os clássicos. Tive minha fase Homero, inclusive, há uns quatro anos, de extrema paixão pela Odisseia. Depois uma fase que queria tatuar Camões por todo o corpo... Passo por fases e paixões com os escritos dos escritores, fico querendo engolir tudo, dormir com os textos. E aí, neste momento da obsessão, me alimento profundamente do outro e minha poesia passa a passar por ali...
Há uns dois anos, mais ou menos, me deparei com uma cena de poetas contemporâneos maravilhosos e sedentos. E aí percebi o óbvio (que eu, juro, não sabia): é tão possível quanto potente trocar com pessoas vivas, em movimento, a serem tão transformadas quanto a gente mesmo. Parece uma besteira – ainda mais porque acabei de contar que venho do teatro - mas a gente é tão treinado pela escola e pela academia e pela cultura a achar que só tem que criar sozinho e, no máximo, ouvir os livros (e, ainda por cima, no caso da música ou do cinema, os estrangeiros)... isso sim que é besteira. Um dos meus maiores aprendizados recentes foi o de notar que meus heróis estavam também ao meu redor. Isso, quando aterrei, humanizou até quem estava distante. Aí você consegue ver um deus, como Pessoa, por exemplo, como um universo, com suas contradições e visões de mundo, seus movimentos, fragilidades, forças e até genialidade, mas não em um pedestal.
O Facebook é um facilitador e tanto para conhecer o trabalho dos poetas contemporâneos. Vira e mexe alguém propõe conversa. Isso não é muito massa? Claro, claro, tem as suas sombras também. Mas, no saldo, é positivo. Porque tem diálogo e isso é o que pode mudar o mundo. Dá pra conhecer e trocar com poetas em eventos como os Saraus, os Slams (ZAP! e o Menor do Mundo são os que frequento, por enquanto), os próprios lançamentos de livros (vou sempre nos da Patuá, editora-amiga-querida com boa literatura e cerveja garantida), os eventos no Clube Literário Hussardos (onde, em dois meses aberto, já conheci pessoas e projetos interessantíssimos, a ponto de querer estar sempre por lá), as noites na Brisália (casa de escritores-amigos-queridos, onde a conversa é sempre uma inspiração)... enfim, as ruas são ótimos lugares para encontrar bons poetas. Aliás, bons Artistas. Minha poesia anda pelas ruas.
Fora as referências na literatura, sou brasileira e não posso dizer que a música não me influencia muito. Influencia. Muito. A música brasileira, do cacuriá ao Chico, passando por Axé e Vila Lobos, são bases importantíssimas para a minha criação. No atrito entre radicais opostos, sai faísca. Comecei a aprender violoncelo para uma peça e, neste processo, me apaixonei por música clássica, entendendo não a chatice e o pedantismo que podem existir ao redor dela, mas a potencialidade de criar sensações que só a música tem. As artes plásticas também têm influencia enorme no que penso e crio. Ou seja, a minha influência é contemplar, seja o que for, engolir, digerir e criar. Como na vida. Risos.
Mas acho engraçado pensar que, quando me perguntam influencias na dramaturgia, a primeira resposta que me vem à mente é “Eu venho da poesia...”. O fluxo de materialidades que o teatro e a poesia propõem, apesar de serem totalmente distintos (para mim, teatro é carne, poesia é sangue), são profundamente complementares. Uma influencia enorme minha é o Artaud. A ruptura na linha entre linguagem e vida, entre poesia e ação, entre arte e experiência. Acredito profundamente nisto. Estou escrevendo meu segundo manifesto artístico – que é um texto para tentar me entender no que penso/sinto/quero, nada mais - e, nele, há um trecho assim: “Palavra que é carne, que, se fundo, jorra sangue. Não osso, carne. Palavra feita de fragilidades e de sagrado. Literatura que é Deus, porque dança, como Deus. Um Deus que é Amor, porque não morre e está entre nós, dançando. Poesia que é ritmo, como o peito é. É forma, como o peito é. É volume, textura e dor, como o peito é. Som e sentido. Amar para não morrer, amor a deus, um deus visto em você, na calçada. Dramaturgia que habita o corpo que dança o corpo. Texto que terra.  Que pisa o mesmo chão que eu e mostra onde estou. Que desce, às vezes, à posição fetal e sobe sambando e olha o céu. Literatura de transgredir o erotismo. Não só ir além do movimento fatal, mas feder e continuar vivo. Estética da luz na sombra do belo. Estética de abrir espaços entre as costelas.”
Acho que, até que mude de ideia, é por aí que ando.

3 – Quais as dificuldades de escrever poesia, literatura, hoje?
A princípio, quatro. Um: dinheiro. Mas esta é, provavelmente, a mesma dificuldade há anos. Dois: a contradição entre a vontade/necessidade de ser radical nas propostas estéticas versus a necessidade/vontade de comunicação com pessoas cada vez menos dispostas a cultivar o espírito. Lê-se mais e pior, é a impressão que tenho. A vulgarização da criticidade, a falta de disponibilidade para cuidar constantemente da própria sensibilidade e o excesso de violência, racionalização e informação no qual estamos submetidos acaba criando uma massa de seres um tanto quanto superficiais e duros. Além de indispostos. Ao mesmo tempo, há carência, demanda por espaços interiores que a poesia regenera. Então, esta segunda dificuldade é, também, extremamente motivadora: como acessar - mais do que comunicar - como acessar cada ser?
Três: escrever sem ser “uma mulher que escreve”. Criar sem ser “uma mulher que cria”. Virginia Woolf, em Um Teto Todo Seu, torce para que, em cem anos após aquela conferência, ou seja, em um 2028 longínquo para ela, a irmã de Shakespeare possa criar livremente. Mas esta irmã não poderia ainda. As amarras ganharam novas formas, tão cruéis quanto as passadas.
A quarta é uma enorme. Todo o discurso do Ruffato em Frankfurt. Acho que ele colocou questões essenciais. Escrever é compromisso, é a necessidade de existir na própria singularidade enquanto exerce a compreensão do outro, enquanto contempla a alteridade. E nunca, nunca, apagar a história como ela foi, nas suas violências, contradições e riscos. Tudo isso para SER. Ter identidade, forma, força dentro de si. Estar no Brasil do século XXI, ser uma mulher branca de classe média no Brasil do século XXI, tem responsabilidades que não podem ser transpostas impunimente. Eu também acredito no papel transformador da literatura, como ele. E acho que o triunfo da arte é libertar, é descontruir. Como ser humano. É encontrar o eu-outro e poder sentir amor pelo mistério entre nós e pelo absoluto vazio barulhento que está dentro de nós. Isto é a beleza. Mas este processo de libertação mutua não pode, jamais, ser inocente e apagar as contradições, lutas, lutos, mistérios, riscos e dor. São 5000 anos de força feminina reprimida. Eu não posso esquecer isso enquanto escrevo mas, como bem disse a Virginia Woolf neste mesmo texto que citei, também não posso me lembrar apenas disso...

4 – Pergunta indigesta: como é seu processo criativo?
Quando dou sorte, começa com uma frase sussurrada por alguma musa passageira, passa ao desespero de escrever como se alguém ditasse e termina no banho. Geralmente, é assim com poesia. Quando é dramaturgia ou prosa ou teoria (que acredito ser também um ato criativo), são horas em frente a uma tela em branco em desespero, sabendo que eu preciso fazer isso e não conseguindo e entrando no Facebook de 5 em 5 minutos enquanto me arrependo e sofro e mando mensagem e choro. Uma dureza. Existe um momento em que consigo focar. E aí é só isso que importa e as frases saem de mim.  No fim, banho. Sempre resolve.
Quanto mais atarefada estou, mais produzo. Mas também, quanto mais atarefada estou, mais a ansiedade me consome. Deve ser por isso que faço tanta questão de trabalhar em 8000 projetos simultâneos, porque prefiro a ansiedade à angustia. E a ansiedade tem um remédio infalível: os outros. Conversar sobre uma história ou sobre diretrizes, falar falar falar, trocar trocar trocar, perguntar perguntar perguntar. Jogar ar nas questões para que a criatividade se movimente. A arte é viva. E nisso eu dou bastante sorte. Tenho parceiras incríveis para criação. Tanto meu grupo de teatro, Companhia e Fúria, onde tenho o prazer de trocar com três artistas que me transformam diariamente, quanto com as minhas parcerias na escritura de roteiros e projetos, quanto muitas outras parcerias criativas que já tive e tenho e que agradeço muito pelo processo... Acho que isso é regra: quando o grupo é bom e disposto, a coisa sai.
E, depois, a solidão, esta paz. O trabalho de confrontar-se com o que ficou consigo e o que vai pra tela em branco.

5 – Seus poemas tem algo de existencial. Existencialismo tem hora, limite?
Não. Morro de preguiça e inveja de gente que consegue ver futebol de domingo. Preguiça de quem não vê mais do que o futebol, inveja da paixão. Sinto tristeza na hora errada, ciúme de quem não conheço, alegria em desgraça. Se vamos nos divertir, quero que seja dionisíaco. Entendo muito pouco de diversão passiva, sem entrega. Acredito profundamente na morte. Lembrar o fim é como poder recriar o tempo. É ir contra todo o sistema sofrer, se apaixonar, é ir contra todo o sistema se relacionar verdadeiramente com as pessoas e com as ideias e com a arte, este inutilidade. É ir contra tudo ser intensa, entregar-se verdadeiramente ao risco de viver, desapegar-se até da vida e, principalmente, ter o poder de indignar-se e agir. Acho que esta é minha maior ação política. Não aceitar este autoritarismo que vivemos que nos obriga a fingir que somos todos idiotas contentes. Eu entendo o ridículo disso tudo, mas me recuso a ser passiva diante da dor. Enfrentar a dor, transgredir o erotismo, que é essa pulsão vital que desorganiza absolutamente todos os nossos órgãos na tentativa de movimentar-se, que reclama nossa atenção, é nisso que eu quero fincar o meu pé. No desequilíbrio de forças que faz com que um dançarino nunca caia, por mais que esteja no chão. Claro que há humor nisso. Há muito humor, inclusive. Há até a leveza inevitável de quem nasceu no auge pop dos anos 90, depois das duas guerras, da guerra fria, da ditadura e durante a impressão de que tudo é máscara. Acho que vivemos o tempo menos inocente e, concomitante, mais leviano de todos. Acho também que o humor é destruidor e é no caminho dele que busco a liberdade. Porque ele tira o chão e nos faz caminhar no que fica. Então, a identidade é criada numa base que oscila, mas nunca cai.
O comezinho, o medíocre, me tira do sério. Não entendo como alguém pode, diante do mistério, procurar certezas ou distrações ou simplesmente aceitar e esquecer. Acho que Deus está entre nós, querendo dançar conosco, entre nós, e não buscar o sagrado é passar pela vida sem pisar no chão dela. Política, enquanto jogo de relações, não me interessa. Política enquanto vontades conflitantes buscando os limites éticos para existir em plenitude, me alimenta. Não há separação possível entre o discurso e a prática. E isto tem que estar em tudo, até no futebol, por isso digo que, sim, boa parte das minhas poesias tem algo de existencial e, não, não há limites para o contemplar da existência. O que eu quero dizer com este “futebol de domingo” é uma distração inerte, sem transformação. E que pode ser futebol ou literatura ou teatro ou cinema... Este tipo de relação com a vida me cansa enormemente.

6 – Rilke fez a seguinte pergunta no seu livro Cartas a um jovem poeta: morreria, se lhe fosse vedada escrever?
Não sei se morreria, mas honestamente não teria muita razão pra viver. Tenho escrito na parede do meu quarto a frase de Flaubert: “A única maneira de suportar a existência é refugiar-se na literatura como numa orgia perpétua.”. Acredito tanto na orgia perpétua quanto na literatura. As duas são essenciais e complementares.

7 – Existe diferença entre a poesia escrita por um homem e por uma mulher?
Ser mulher na arte não é uma questão de gênero. A minha pesquisa estética tem sido ligada a busca da pulsão criativa feminina, mas eu entendo a energia criativa feminina como uma manifestação, uma lógica, que foi sufocada por outra lógica, a do patriarcado. Isso não tem absolutamente nada a ver com o ser humano ter ou não ter um órgão sexual aparente. Tem a ver com a capacidade de desmontar padrões impostos e com a criação de fluxos diferentes das formas que reafirmam os valores patriarcais. Vide Joyce. Ele é uma das mulheres mais geniais que já li. Tanto que escrevi depois de lê-lo um texto chamado “Carta à Joyce”, assim, com crase *. 
Ou seja, não há diferença entre textos escritos por homens ou mulheres. Há diferenças entre propostas artísticas. No meu caso, busco um processo radical de identificação numa linguagem. Da Poeta ao Inevitável, o meu primeiro livro de poesias, é consolidação desta primeira parte da minha pesquisa estética. Coordenei durante o ano de 2013 um grupo de pesquisas ligado a esta minha busca. Dele saiu o último caderno do livro, chamado “Seis deusas”. São seis poemas em que cada um deles tem como eu-lírico uma das seis do Olimpo (Hera, Afrodite, Artêmis, Atena, Perséfone e Deméter). O meu objetivo com isso é a criação de imaginários ditos “femininos”. De novo, uso aqui “feminino” mas não tem a ver, necessariamente, com mulher.
Escrevi também, em outubro de 2012, o meu primeiro manifesto artístico, chamado Por um imaginário *  em que explico melhor a minha pesquisa estética de pulsões femininas.  Me incomoda muito o uso deste termo, “feminina”. Uso por não ter encontrado um melhor. Acontece que associamos, por um processo de dominação histórico longuíssimo, o que não é racional-aristotélico ao universo feminino. E isso é extremamente redutor. Quantas lógicas/energias estão por aí querendo se manifestar e acabam sem expressão?

8 – O amor ajuda ou atrapalha na hora de escrever?
O que afeta inspira. É profundamente mais divertido e potente escrever com paixão. Aliás, só é possível, a mim, escrever se for com paixão. “Pathos”. Mas a verdade é que pouco importa se a paixão é por alguém ou não. Adoro quando dizem que a minha poesia é “sincera” ou que “escrevo para me entender”. Mas, na maioria das vezes, é um grande fingimento (sincero) o que escrevo. São emoções e sentimentos que passam por mim e, enquanto estão em mim, eu os acredito e os sinto da forma mais profunda e intensa que um ser humano pode se entregar a algo. Mas essas emoções e sentimentos, no fundo, acho, não me pertencem. Eu sou apenas o canal deles. No momento em que é necessário surgir em mim a função fria da literatura, a parte artesanal, eu já não sinto mais nada.  É um processo, em certo sentido, sagrado, de entrar em comunhão com algo maior. Eu escrevo muito sobre o amor. Talvez, meu Deus seja ele e, se sim, pouco importa o rosto que ele toma...

9 – Você está sempre escrevendo ou tem mais o que fazer?
Qualquer dia eu morro de caneta na mão, neném.

10 – Para terminar, gostaria de dizer algo?
Eu minto muito.






domingo, 16 de março de 2014

Santinha

Terminou as orações da manhã e levantou-se devagar, com a ajuda da bengala ao lado da cama. Voltou-se por uns instantes para olhar o homem que dormia ao seu lado havia 65 anos e deu uma risadinha abafada por causa do barulho engraçado que os lábios murchos do marido faziam: papapa papapa. Todas as noites, desde que passara a usar dentadura, Bartolomeu a retirava para dormir. “A higiene é tudo, Santinha”, repetia a três por quatro. “Não tem nada pior que um velho com a boca fedorenta”. Na verdade, Santinha bem sabia que o verdadeiro motivo para tanta higiene e zelo era o medo que ele tinha de engolir a dentadura enquanto dormia e morrer sufocado. Que coisa! Oitenta e nove anos e ainda tem medo de morrer!, pensou, se divertindo mais uma vez com o papapa do marido adormecido.
Fosse por higiene ou por medo, o fato é que sobrava para ela, todos os dias, a tarefa de limpar e guardar a tal dentadura. A idade avançada deixava Bartolomeu confuso sobre ter ou não ter feito alguma coisa e, pior, sobre onde guardara os objetos. Para evitar ao companheiro a humilhação, esperava com paciência que ele largasse os dentes postiços sobre a pia, toda noite, para então voltar silenciosamente ao banheiro e limpá-los. Pela manhã, entregava-os ao marido, junto com uma muda de roupas para o dia.
Ainda nem eram 7 horas quando ela tomou o café fresquinho, acompanhado de pão francês. Naquela manhã, sentia-se tentada ao exagero e, por isso, em vez de um, foram dois pães besuntados com a manteiga de Minas que ela usava apenas nas carnes assadas. Recheou-os, ainda com duas fatias gordas de queijo. Em seguida, lavou toda a louça. Nunca deixava nada na pia para a empregada. Era uma mulher de virtudes. Economizava o dinheiro do marido, mantinha a casa em ordem. Nada faltava. Nem sobrava. Pagava à empregada o justo e controlava para que a moça não fizesse comida demais. Uma mulher de virtudes e de pouco luxo.
Recolheu as migalhas da mesa num potinho de plástico azul e, dirigindo-se ao pequeno jardim na parte da frente da casa, distribuiu-as aos passarinhos Depois, sentou-se na poltrona de bordar no pequeno alpendre, ajeitou sobre a roupa uma manta leve e fechou os olhos para meia hora de sol.
Acordou, morta, num local que nunca tinha visto. Nada ali se 
parecia ao que ouvira dos padres ou da mãe. O lugar era comum, com gente comum. De cara, nem se deu conta de que estava morta, até que alguns anjos passaram voando por ela e um deles, parando, cumprimentou-a: 
— Chegou, Santinha? Que bom!
Completamente à vontade, ela sorriu para a criatura de asas, que passou a elogiá-la.
— Dá gosto receber uma alma como a sua por aqui, minha amiga. Prendada, zelosa dos preceitos, boa filha, boa mãe, boa esposa. Faz tempo que não recebo alguém que vá direto para o lado direito do Pai, sem purgatório nem nada.
Orgulhosa, porém não muito para que isso não acabasse por se tornar um pecado, perguntou, já cheia de intimidade:
— Direto mesmo, meu amigo?
— Sem escalas e sem volta.
Curiosa, quis saber que de que volta falava o anjo. Ele explicou que algumas almas precisavam ficar voltando para o mundo material, sob a forma de aparições, para poderem resolver assuntos inacabados, problemas, pendências humanas. Gente que não conseguia se desligar do que deixou para trás. Impressionada, declarou que não tinha pendências e que fizera tudo certinho durante a vida para poder merecer o céu após a morte. No entanto, novamente curiosa, arriscou outra pergunta:
— Mas como é que vocês, anjos, sabem quem está pronto de verdade?
— A gente fica provocando para ver a reação. Tem aqueles que nem se importam. Mas tem os que não resistem, se descontrolam, brigam e... e... soltam até palavrão, você acredita, minha amiga?
Santinha horrorizou-se. Logo ela que nunca dissera nem um merda em toda a sua vida! O anjo prosseguiu:
— Ih, minha amiga, nem queira saber quantos eu escuto por aqui! E ainda digo mais: sabe aquele... aquele que tem três letras juntinhas? É o preferido!
Desconcertada, ela quis saber mais.
— Três letrinhas...?
— É! Aquele que começa e termina com a letra “p”!
E assim seguiram em direção ao Céu. Ele, contando como funcionavam as coisas por lá; ela, sentindo-se cada vez mais esquecida da vida que deixara no mundo material. Até que cruzaram os portões gigantescos da Casa do Pai, escancarados à espera dos dois, e o anjo anunciou que, enfim, estavam na morada eterna. Apressado, começou a fechar às suas costas os pesados portões que haviam acabado de transpor, tentando isolar rapidamente o Céu do Purgatório. Mas aconteceu que, naquele instante, um vento forte soprou, fazendo bater contra o portão as imensas argolas de ferro que funcionavam como puxadores. Um som familiar chegou aos ouvidos de Santinha: papapa, papapa, papapa... Transtornada, agarrou o anjo pela veste longa e branca e disse, angustiada:
— Eu preciso voltar!
Assustado, ele sussurrou:
— Mas o que é isto agora?! Nunca! Daqui, ninguém sai! Eu avisei à senhora!
— A dentadura, meu amigo, a dentadura do meu velho!
Sem entender, mas armando-se de paciência angelical, pediu à Santinha que explicasse. Com um profundo suspiro, ela disse de um fôlego:
— O meu Bartolomeu é um pobre homem velho e caduco. Se eu não entregar na mão dele, toda manhã, a dentadura, ele passa o dia sem ela. Aí não come e fica doente, triste, com vergonha de conversar com as pessoas. É por isso que eu preciso voltar, pra mostrar a ele onde estão os dentes. Aliás, pra falar a verdade, eu preciso aparecer para a empregada também, porque é ela quem vai cuidar da dentadura daqui para a frente, entendeu?
Batendo as asas com força, ele abanou a cabeça em negativa. Ela insistiu. Novamente, ele negou. Mais uma tentativa. Mais um não — e dessa vez acompanhado de um olhar gelado. Santinha, então, correu em direção ao trono sagrado, onde Deus a aguardava. Parou, decidida, encarou o Criador olho no olho e com uma voz gutural passou a repetir, como um eco:
— Pqp! Pqp! Pqp! Pqp! 
Chocado, o anjo tentou tampar-lhe a boca com as asas, mas ela, driblando as penas da criatura imensa, gritou para todo o Paraíso:
— E da próxima vez vai ser é por extenso!






sábado, 15 de março de 2014

tanto tempo, minha mãe




 

 

Oiçamos primeiro a Palavra:

 

 

Tudo neste mundo tem seu tempo;
cada coisa tem sua ocasião.
Há um tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir;
Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar:
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar e tempo de afastar;
Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.
Há tempo de amar e tempo de odiar
tempo de guerra e tempo de paz.

 

 
 

 

Ah! se um ser divino não tivesse colocado ordem no caos primitivo

se o homem nunca o tivesse imaginado,

feito dele convenção…

O tempo que passa correndo ou nunca mais termina…

 

Ah! se o tempo não tendesse para um limite como tendem as séries…

O tempo indo, e indo, e indo ao infinito

e Aquiles nunca encontrando a Tartaruga…



Um tempo que se repete e repete e repete…

cíclico tal como as marés, as luas, a gestações das fêmeas

Um lamat.

Um calendário.

Dele o poeta cantou:

Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão

 

Um tempo circular

perfeito, num universo também ele perfeito…

Ou uma seta dirigida ao futuro num universo aberto?

 

Ah! não sabê-lo senão para nós mesmos…

Esse tempo que nos perpassa em rugas de pele e em cansaço …

e em morte…

Um tempo na medida exata da nossa mente, da nossa pele…

 

 

O tempo que sentimos tanto e o santo filósofo não ousou mais do que dizer dele:

se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei

 

Ah! a certeza de tudo ser o mesmo nas mesmas condições

um tempo absoluto e uniforme, exacto para cada um, e igual para todos

Disse dele o físico, que flui igualmente sem relação com nada externo

 

Ah! o homem sempre a interrogar-se!

Será desigual o tempo de quem fica e o tempo de quem parte?!

o tempo de quem se move e o tempo de quem está parado?!

Será o tempo diverso para diferentes forças da gravidade?!

 

Ah! existir mais do que um tempo para o mesmo fenómeno!

sermos presente e sermos também futuro, e o tempo a fluir para sei lá onde…

 

Ah! Aquiles descobrir que consegue alcançar a tartaruga, mas é já demasiado  tarde …