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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O Prefeito e O Estagiário


I
“Sentaram-se no chão ao lado dele por sete dias e sete noites, sem dizer-lhe palavra, pois viam como era atroz a sua dor.” (Jó 3: 13; tradução da CNBB.)

            Carlos atravessou silencioso o corredor que conduzia ao seu gabinete: o gabinete do prefeito. De cabeça baixa e passos lentos, mal via os funcionários pelos quais passava. Porque eles não passavam. Ao avistá-lo, paravam e o olhavam em silêncio, sem se atreverem a dizer nada. Parou diante da porta e não entrou, porque naquele momento a faxineira estava limpando justamente diante da porta que fechava seu gabinete. De olhos baixos no chão que limpava, só percebeu a presença do governante da cidade quando o trapo que envolvia a sua vassoura tocou o par de sapatos importados que estava ali parado sem que seu dono tivesse se animado a pedir licença. Ergueu os olhos e seu olhar cruzou com os olhos baixos do prefeito. Em um segundo, a mulher, até então curvada, esticou-se como um soldado em posição de sentido e quebrou o silêncio do mausoléu em que se tornara a prefeitura naquela manhã:
 – Deus te abençoe, senhor prefeito.
Os olhos do prefeito rebentaram em lágrimas e ele abraçou a faxineira, que até então era invisível.
Sem palavras diante da inesperada reação do governante, os funcionários que viam a inesperada confraternização aplaudiram – as palmas foram tão prolongadas que deu tempo para a faxineira repetir várias vezes no ouvido do prefeito “Jesus te ama” e para um estagiário do curso de Administração Pública tirar uma foto com o celular para, minutos depois, enviá-la para uma jornalista por quem se apaixonara. – Como sua deusa agradecer-lhe-ia essa foto inusitada?

II
O prefeito ficou por um tempo imensurável trancado no gabinete, à espera de que o vice viesse até ele. Não olhava o relógio, olhava apenas uma imagem de São Francisco de Assis que o sobrinho, seminarista, deixara como presente em seu gabinete quando lá estivera com o pároco da igreja matriz, quando ele assinara o decreto tombando uma imagem de São José de Anchieta, esculpida em pau-brasil no século XIX, doada por um devoto espanhol. Naquela manhã fria de junho, com o tempo parado, não saberia dizer se o vice demorou a dirigir-se à sua porta. As batidas na porta não interromperam suas orações, pois não tinha disposição nem mesmo para isso, pois a dor, ao invés de espanar a poeira que encobria sua fé, parecia disposta a terminar de enterrá-la.
 – Espero não tê-lo feito esperar muito. O presidente da Câmara me reteve mais tempo do que eu desejava. Ele, naturalmente, aprova seu afastamento por um mês, como Vossa Excelência pediu-lhe ontem por email.
 – Você...
– Pois não?
 – Me trate por você. Estamos a sós e você é meu amigo dos tempos de escola. Você me dava cola nas provas de Matemática. Nada de formalidades aqui.
 – Oh, meu amigo! – fez o vice, abrindo os braços para abraçar o correligionário.
Era o segundo abraço do dia. Mas se Carlos não teve palavras para responder à faxineira desconhecida, tinha muitas para o seu fiel vice. Estavam numa folha de papel que lhe entregou quando soltou-se dos seus braços.
 – O que é isso, Carlos?
 – Minha renúncia. Está assinada com a data de amanhã. Amanhã, neste horário, quando eu estiver em minha casa de praia, respirando o ar marítimo enquanto escuto minha família rezar o terço em busca de algum conforto, você lê para os jornalistas.
 – Não é para tanto. Você se afasta um mês, dois, depois volta para reassumir seu cargo.
– Essa dor eu não vou deixar no litoral, Ricardo. Ela vai me acompanhar enquanto eu viver.
 – Eu não faço ideia da dor que você sente, meu amigo. Nem posso imaginar. Mas essa dor não é apenas sua. Muitas outras pessoas vivem com essa mesma dor. Perder um filho...
 – Ricardo, meu filho não morreu de câncer nem foi devorado por um tubarão. Ele cometeu suicídio. O que me resta fazer aqui?
– Pense bem, Carlos. Eu não vou me precipitar e mostrar essa carta amanhã. Ela vai ficar bem guardada esperando você voltar da licença e você então verá que no dia de hoje não está pensando direito, não pode tomar decisões.
 – Ricardo, qualquer pessoa tem o direito de sofrer a dor de perder um filho dessa maneira. Mas não um prefeito. Um prefeito não tem esse direito. O que as pessoas vão dizer de mim? “Se ele não soube cuidar do próprio filho, como cuidará da cidade?”
– Carlos...
 – Os jornais não dizem, a ética dos jornalistas – sim, eles têm ética – os impede de dizê-lo na imprensa, mas basta ler as redes sociais. O cidadão comum pensa isso...
– Em outras circunstâncias eu lhe diria que o partido quer você candidatando-se ao Senado, mas isto não é hora de falar de política. Aliás, eu não deveria falar nada com você, apenas ouvir. E cuidar para que você não faça bobagens... – disse Ricardo, rasgando a carta da renúncia.


III
Uma semana depois, Carlos enviou carta a todos os vereadores, declarando sua renúncia, prontamente aceita pela Câmara; três meses depois a jornalista ganhava um prêmio nacional pelo artigo que escrevera a partir da foto do estagiário. Ela foi comemorar o prêmio com seu noivo numa pousada em Ilha Bela e o estagiário, após tentar afogar com vodka a dor do abandono, colidiu sua moto com uma ambulância que cruzou seu caminho.
Quando foi visitar a sepultura do filho, Carlos lembrou-se do estagiário e separou do buquê uma flor para a sua lápide, que ficava mesmo ali ao lado.
(2 de maio de 2018)





terça-feira, 29 de outubro de 2019

Inácio



Inácio olhou para o espelho. Havia um rosto cansado e macilento, com olheiras profundas e barba por cortar.
Sentia-se a mais miserável das criaturas, quando atirou a água fria para a cara, numa vã tentativa de expulsar os vapores do álcool do dia anterior.
Abandonou a toalha descuidadamente, em cima do lavatório e tropeçou para fora da casa de banho.
O mortiço sol de inverno parecia apostado em ferir-lhe os olhos, através das lentes coloridas, enquanto se arrastava pela calçada, em direção ao emprego, de que estava farto.
Não tomara banho, nem desfizera a barba... não conseguira convencer-se a entrar no chuveiro, mesmo sabendo que se iria sentir melhor.
Parou no pequeno quiosque da esquina e não precisou de pedir o maço de tabaco, pois este foi de imediato colocado em cima do balcão, pela mulher rechonchuda, de ar maternal.
— Bom dia Inácio. — Sorriu-lhe de trás do balcão.
Oscilante, procurou nos bolsos o dinheiro para o tabaco, que contou na mão direita.
Sem responder, mas esboçando um sorriso que mais parecia um esgar, pousou as moedas em cima do balcão enquanto grasnava:
— Dê-me uma raspadinha de um euro. Quem sabe se a minha sorte não mudou de ontem para hoje.
Com um ar de reprovação, a mulher pousou o impresso sobre o maço de cigarros. Recolheu as moedas, sem contar, mesmo sabendo que não eram suficientes, enquanto perguntava:
— Foste para as cartas ontem, outra vez, não foste?
A raspar o impresso, ele deitou-lhe um olhar de soslaio enquanto respondia:
— Que quer, mãe? Já sabe como eu sou...
— Perdeste muito? — Ela tinha lágrimas nos olhos.
— O costume... demasiado.
— Meu filho... não ganhas juízo, valha-te Deus. Que queres fazer da tua vida?
Ele atirou raivosamente com a raspadinha inútil para o chão, mesmo ao lado do cesto dos papeis.
— Recebi o ordenado anteontem e já f** tudo. — Lamentou-se. — Parecia estar a correr tão bem. Tinha duplicado o dinheiro, mas, de repente, foi como me fizessem um mau-olhado e não ganhei mais... foi-se o relógio também… Não vou conseguir pagar a prestação da casa outra vez.
— A Alice já sabe?
— Não… estava a dormir quando cheguei e quando acordei, já tinha saído para o trabalho... — Ele atirou-lhe com aquele olhar de criança perdida, que lhe recordava as tropelias, que ela não conseguira castigar.
— Meu filho, amo-te muito, mas não vou emprestar mais dinheiro.
O rosto de Inácio transfigurou-se numa máscara de desdém.
— Quem pediu dinheiro? — Vociferou.
— Ias acabar por pedir. — A mãe tinha os olhos com lágrimas.
— Não te ponhas com choraminguices! — Gritou-lhe virando as costas enquanto tirava um cigarro do maço e o acendia, com as mãos trementes. — É por causa disso que até vou comprar o tabaco a outro lado!
Não, meu filho. — A mulher assoou-se ruidosamente. — Vens aqui quando não tens dinheiro que chegue. — Fez-se um silêncio pesado entre ambos, enquanto ela retorcia a revista que tinha sobre o balcão e tentava espreitar-lhe o rosto. — Como vais fazer então?
— Não sei. — Inácio soltou uma baforada, sem se voltar, o olhar perdido na avenida que se estendia à sua frente. — Pedi um adiantamento no emprego, no mês passado. Não posso pedir outra vez.
— Já te emprestei mais de mil euros, meu filho. Que pensas fazer da tua vida? Eu não sou rica!
— Vais-me atirar com isso à cara, agora? — Inácio voltou-se, de repente, erguendo os braços em impotência. — Que queres que faça? A sorte não me ajuda! Olha que já ganhei muito dinheiro às cartas…
— Nunca vi nenhum! — Respondeu a mãe amargamente, enquanto abria a máquina registadora. — Quanto precisas para a renda da casa?
Ele atirou-se sobre o balcão e deu-lhe dois sonoros beijos no rosto, mas quando tentou chegar à caixa, foi uma palmada decidida que lhe estalou na mão.
— São trezentos e oitenta "paus" do mês passado e outro tanto deste mês. — Sorriu divertido, fingindo-se envergonhado, enquanto esfregava a manápula.
— Tens aqui quatrocentos, vai pagar o do mês passado, ante que te tirem a casa. — Ela pousou as notas em cima do balcão, sentindo-se imensamente velha. — A culpa de seres como és, é principalmente minha. Sempre tentei esconder as tuas velhacarias do teu pai, pobre coitado, que se matou a trabalhar.
— Deixa lá estar o velhote sossegado. — O homem fez uma careta. — Podia ser muito trabalhador, mas as mãos não eram para fazer carícias, mas para me moerem o lombo.
— Nunca tas deu, que as não merecesses! — Ela defendeu o marido com ardor. — E não levaste mais, porque escondi eu muita coisa e tirei dinheiro de casa para pagar os teus estragos. Nunca fizeste por melhorar, tentavas corrigir uma patifaria com outra ainda maior. Agora que deixaste os bandidos dos teus amigos, gastas o que tens e o que não tens, em cerveja, tabaco e jogo!
— Ora, mãe, deixa-me! Pareces a porra da Alice, sempre a moer-me o juízo! — Ele contou as notas de vinte euros e meteu-as ao bolso, com um sorriso de satisfação.
— Essa pobre criança também tem sofrido bastante nas tuas mãos… — Por uns instantes, o aspeto maternal tornou ao rosto dela.
— Deixa-te disso! Nunca gostaste dela!
— Nunca gostei do aspeto dela, é verdade, de saia curta e sempre pintada, se tem marido em casa, não precisa de se arranjar como se andasse "à caça". — A mulher apontou o dedo acusador ao filho. — Mas ela e o emprego mal pago que tem, é o que vos tem valido para corrigir os teus constantes desatinos! Se te ajudo, não é por ti, nem por ela, é para o meu netinho, que vai passar necessidades, se vocês não tiverem dinheiro.
— Oh, pá, pronto, vai começar a ladainha. Vou-me embora, que vou chegar atrasado ao trabalho.
— Não te dou mais dinheiro, ouviste? — A matriarca gritou-lhe enquanto ele se afastava.
— Sim, sim, ouvi! Até pode ser que hoje já não precise dele! — Ele parou junto da passadeira. — Posso ter sorte!
— Ah, bandalho, que dás cabo de mim! — Gritou a mãe. — Só levas o da renda deste mês, quando vier cá a Alice dizer-me que está pago o atrasado, ouviste?
— A Alice, não sei onde para. — Inácio respondeu-lhe, com uma expressão revoltada, antes de se afastar em passos largos.  — Foi-se embora na semana passada e não voltou mais.





sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Cadeias



Em todos os tempos, ostentar ouro concedia estatuto, demonstrava sofisticação. O ouro de uma mulher do interior há 80, 70, 60 anos valorizava-lhe a beleza, conferia-lhe estatuto social, dava-lhe segurança, como a outra de qualquer época, mas também concedia a quase sempre ignorada liberdade económica da própria. O ouro de uma mulher, sobretudo aquele que ela trouxe de dote, era dela, era um bem a que podia recorrer, em último caso, para um desígnio pessoal. Um cordão podia ajudar um filho, às escondidas do marido; uns brincos de que já não gostasse podiam comprar uma peça de vestuário para levar a um casamento.
O ouro acompanhava-a, compondo uma imagem de si. Tendo-o por testemunha, vinham os filhos, vinha a labuta, passavam os bons e os maus momentos. O cabelo branqueava, vinham os netos, chegavam as doenças. Por fim, já nada interessava, nem o ouro. Só a viagem sem retorno ganhava o centro da angústia conformada.
Passam dias, passam meses, os filhos fazem as partilhas. Tentam equilibrar os valores, mesmo nas pequenas coisas. Dividem-se as roupas aproveitáveis, as loiças, os bibelôs. Muita coisa não tem préstimo, muita coisa se guarda por valor sentimental. A vida vai-se recompondo, sem a ausente. Ainda vem muitas vezes à ideia, enquanto viva; lembram-se os tempos penosos do hospital; quem foi prestável e atento, a tia mais nova que foi lá todos os dias e até ajudava a dar-lhe o jantar. Um deles põe a hipótese de presenteá-la com algo que pertenceu à morta, algo de algum valor, mas que seja sobretudo evocativo. Aquela pulseira dela, que lhe era característica, que aparece nas fotografias de solteira? Sim, sem dúvida; parece bem, parece mais que justo; resolvem dar-lha.
Inesperadamente, a tia não quer a pulseira, faz muita resistência a recebê-la. Começa a parecer exagerada tanta cortesia, a parecer estranho não querer ficar com uma lembrança da irmã. Finalmente, explica-se, conta uma história; a pulseira tem uma história secreta.
Não te lembras que eu era muito enfermiça desde pequena? Qualquer corrente de ar me deitava à cama. Desde a minha terceira classe até ser já quase adulta, eu era muito fraca dos brônquios. Quase que não podia sair de casa. Então a tua mãe, a ver-me assim, e a ver a tua avó a ficar cada vez mais velha — algum dia a não poder dar-me proteção —, acho que fez uma promessa a Nossa Senhora: que, se eu ficasse boa, lhe dava uma pulseira de ouro, esta mesma.
O sobrinho surpreende-se, não sabe desta história. Parece-lhe que tem um resquício de memória, uma miragem incerta, mas foi há muito tempo: a maior parte das recordações desvaneceu-se. Quer saber mais, os “quandos”, os “comos” e os porquês. A tia não se retrai:
Não sei que idade é que eu tinha quando ela fez a promessa, mas o que é certo é que aí pelos dezanove anos passei a andar sempre boa, tanto que fui fazer o segundo ano, nas freiras, e depois o Liceu, quase sempre dois anos num. Então a tua mãe, vendo que eu estava boa de vez, dispôs-se a pagar a promessa. E deve ter falado disso numa matança do porco. Então a tia Ana disse que o ouro é do melhor que uma mulher tem e que não deve desfazer-se dele. Que, se calhar, a tua mãe podia pagar a promessa em dinheiro. «Vais ao ourives, perguntas-lhe quanto é que vale a pulseira — podes mesmo explicar-lhe o caso — e dás esse valor à Nossa Senhora.» Ora a tua mãe ficou a pensar naquilo, mas tinha medo que a promessa não ficasse paga. Então foi-se confessar e perguntou ao padre se podia fazer assim, como a tia Ana tinha dito. E o padre disse que sim, que o que contava era o valor da promessa e a vontade de a pagar. E foi isso que a tua mãe fez. Portanto, estás a ver, eu não posso ficar com esta pulseira, não quero.
Mas porquê, tia? A promessa foi paga; é como se tivesse sido dada a própria pulseira. Outra como esta.
Mas eu sei que esta é que foi prometida. É como se eu estivesse a aceitar o pagamento devido à Nossa Senhora.
O sobrinho calcula que ela terá medo de voltar a ter os achaques da juventude, por via da pulseira recebida: ela tinha sido beneficiária uma vez; ser beneficiária duas vezes deve parecer-lhe um abuso, quase uma blasfémia ou um pecado.
Tia, não é como se estivesse a usar o que lhe não pertence; seria antes honrar a memória da sua irmã — argumenta.
Ela acaba por aceitá-la, mas passados uns dois anos volta a tentar devolvê-la. Com tanta veemência que o sobrinho a recebe de volta.
Que fará ele com aquela pulseira, aquele objeto mediador do amor fraternal de sua mãe pela irmã dela? Não precisa do dinheiro, felizmente, mas, mesmo que precisasse… Pergunta-se qual o significado profundo da pulseira de ouro. Lembra-se, então, da ideia tradicional: o ouro de uma mulher é a sua liberdade económica pessoal. Pensa: “a pulseira é da mãe, sempre foi; ela que decida qual o caso ou o momento adequado para ser usada. E por quem”.
Manda escavar um estreito sulco na parte posterior da moldura com o retrato da mãe, que tem na sala, e esconde lá a pulseira. Um dia, ele ou alguém decidirá retirá-la. Para o que decidir. Ou que pensar que decidiu.

Joaquim Bispo

*
Este texto foi um dos selecionados no concurso literário da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) de 2018 e integrará, se vier a ser editada, a coletânea resultante do concurso.

*

Imagem: Carlos Reis, O batizado, anterior a 1941.
Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), Rio de Janeiro, Brasil.
* * *







quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A GOTA D'ÁGUA



                                         
                                           
         Na manhã cinzenta, fria, céu carrancudo de meados de maio, Olga ajeita o casaco tentando driblar o frio que insiste em lhe martirizar o peito. A garoa fina e persistente incomoda a vista, embaçando as lentes dos óculos. Caminha apressadamente pelas calçadas estreitas e molhadas, com a bolsa a tiracolo, apertando contra o peito a pasta transparente que traz os documentos da mãe, e luta para controlar o guarda-chuva que bamboleia ao sabor do vento, de um lado a outro.
         Hospedada em casa de parentes, ali, no extremo da zona sul da cidade de São Paulo, e agora precisa do transporte coletivo para chegar à Praça da República. Fica lá o escritório do plano de saúde do qual é beneficiária titular há mais de vinte 20 anos, e dele participava, como beneficiária dependente, a sua mãe. Empurrada pela burocracia infame, está ela ali, depois de tantos transtornos e de uma longa viagem, para entregar pessoalmente os documentos que atestam o óbito da mãe e, só assim, excluí-la do plano.
         Olga conhece muito pouco a capital, e chegando ao terminal dos ônibus urbanos, pergunta a uma senhora, que aguarda na plataforma, como deve proceder para chegar à Praça da República. A gentil senhorinha sugere que Olga embarque no ônibus que traz o letreiro “Praça da Sé”, pois lá chegando tudo estará perto. Olga agradece, remexe a bolsa para retirar uma cédula de cinco reais, e a segura firmemente enquanto aguarda a chegada do ônibus que a levará ao destino.
         Não demora muito...
         Olga embarca, cumprimenta o motorista e estende a mão com o dinheiro para que o cobrador faça o troco da sua passagem. O cobrador olha fixamente para Olga, e com a maior simplicidade do mundo lhe diz:
         - A senhora não paga, não! Pode passar pela roleta e sentar ali, nas cadeiras reservadas para os idosos...
         De início, Olga enrubece, fica meio sem jeito, não sabe o que fazer com a mão erguida que segura o dinheiro. Mas, diante da atitude cordial, simplória, natural, e observando que o cobrador usa um tom reservado, falando baixinho, com delicadeza, apenas agradece. Guarda o dinheiro, passa pela roleta e se acomoda em uma poltrona da ala dos idosos. A ala está quase deserta, só há um senhor. As outras sete poltronas estão vazias.
         Olga escolhe a poltrona da frente, lado contrário ao do motorista, o que facilitará a ela conversar com ele, caso seja necessário, para pedir orientação quanto à chegada ao seu destino, mesmo sabendo da proibição.
         Acomodada, ajeita o guarda-chuva no canto, rente à janela, coloca a bolsa sobre os joelhos, e fica observando a pasta transparente que traz na superfície alguns respingos da garoa. Passa a manga da blusa sobre ela para secar as gotículas, e consegue ler na parte de baixo do papel expedido pelo hospital: “causa mortis: morte natural”. Melhor assim. Apesar da dor da perda, Olga agradece pela passagem feliz, pela passagem digna que foi concedida à mãe. Partiu durante o sono, depois de 87 anos bem vividos. Morte santa!
         Imersa em seus pensamentos, Olga nem se dá conta do trajeto percorrido pelo ônibus, das sacudidelas, do movimento das pessoas. Olha pela janela e tudo é cinza. Continua cinza. Céu carrancudo...
         A ala dos idosos está mais povoada! Velhinhos e velhinhas simpáticas, e Olga os cumprimenta com um aceno, um meneio de cabeça, um sorriso. Apenas a poltrona, ao seu lado, continua vazia.
         De repente, uma senhorinha aparentando bem mais de 70 anos, miúda, gordinha, de fartos cabelos branco-acinzentados de brilho intenso, de olhinhos claros e muito bem vestida, bem agasalhada, trazendo sobre os ombros um xale tricotado com lã da mesma cor dos cabelos, aproxima-se de Olga, senta ao seu lado, e segurando fortemente em seu braço lhe diz:
         - Preciso da sua ajuda, por favor!
         De pronto, após um susto danado, Olga responde:
         - Claro! Em que posso ajudar?!
         Olga percebe que a senhorinha é portuguesa. Fala lindamente.
         E a senhorinha, então, lhe diz:
         - Preciso chegar à Casa de Portugal. A senhora leva-me até lá?
         Olga sente-se incomodada. Como poderia levar a senhorinha até a Casa de Portugal se não conhece nada, se não sabe mesmo nem como chegar ao seu próprio destino?!
         E a senhorinha continua:
         - Preciso ir à Casa de Portugal para receber a ajuda que o governo português envia todos os meses. A senhora leva-me até lá?
         O motorista, que a tudo ouvia, percebe que Olga está aflita, embaraçada, e diz:
         - A senhora pode acompanhá-la. Fica perto da Praça João Mendes...
         Olga responde quase gritando:
         - Não, meu senhor! Não posso acompanhá-la. Não conheço nada por aqui, sou do interior e só estou aqui porque preciso entregar uns papéis da minha mãe no escritório do plano de saúde.
         A senhorinha, quando ouve a negativa de Olga, volta a segurar-lhe o braço com força, e diz:
         - A senhora não vai me acompanhar até a Casa de Portugal? Vai deixar-me só, perdida aqui na cidade?
         Olga fecha os olhos, suspira fundo, procura se acalmar. Sente os dedos da senhorinha apertando o seu braço, e olha para ela. Os olhinhos suplicantes e marejados enternecem Olga. Como dizer não a uma súplica tão cristalina?!
         Olga coloca a mão sobre a mão morna que lhe aperta o braço com tanta força que, das pontas dos dedos, o sangue foge, e a afaga. Percebe as unhas bem cuidadas. Claro que não iria abandoná-la. Esta senhorinha havia se perdido. Deve ter saído de casa sem que ninguém percebesse, e não soube achar o caminho de volta. A família devia estar à procura dela. De alguma maneira, Olga a ajudaria.
         Primeiro tenta confortá-la, repete várias vezes que não a abandonará, e quando vê que aquele ar angustiado, aquele olhar de súplica deixou o semblante da senhorinha, Olga pergunta:
         - Qual é o seu nome, minha senhora?
         A senhorinha, aliviada, responde:
         - Meu nome é Maria Leontina. Um minuto que vou pegar o meu documento...
         E sentada ao lado de Olga, a senhorinha começa a remexer a bolsa, nervosamente. Após retirar vários objetos e colocá-los desordenadamente sobre as pernas, consegue, enfim, achar o documento pessoal e o entrega nas mãos de Olga.
         Um documento antiquíssimo, datado de 1970, totalmente avariado, com a chancela do governo português, apresenta a informação de que o documento foi expedido em nome de Maria Leontina de Jesus Machado, nascida em 24 de janeiro de 1930, em Aveiro.
         Depois de analisar o documento, Olga percebe que Dona Maria Leontina, apesar de não aparentar, é uma senhora de 85 anos, e fica ainda mais apreensiva ao vê-la ali, ao seu lado, pedindo-lhe guarida, sozinha numa metrópole tão impiedosa.
         Olga vira-se para o motorista e pergunta se ele pode orientá-la a levar Dona Maria Leontina até a Casa de Portugal. Nisso, uma senhora que também ouviu a solicitação de Olga, e percebendo a sua insegurança, pede licença e argumenta:
         - Minha senhora, a Casa de Portugal não abre durante o dia. É um ambiente para festas, confraternizações, jantares, bailes, e funciona apenas no período noturno. Esta senhora deve estar procurando a Embaixada de Portugal no Brasil.
         Dona Maria Leontina, abruptamente, fala:
         - Não! Eu quero ir à Casa de Portugal para receber o meu pagamento!
         Diante de mais esta informação desencontrada, Olga não consegue ordenar os seus pensamentos. Nem lembra o motivo que a trouxe até ali, nem se preocupa com o tempo, com a urgência de entregar os papéis do óbito da mãe. Está aflita tentando achar uma solução para amparar Dona Maria Leontina.
         Para tentar organizar a situação, Olga pergunta a Dona Maria em que lugar ela mora, e então a senhorinha volta a remexer a bolsa em busca de um papel que prontamente mostra a Olga. Uma conta de água do ano de 1979, papel muito manuseado, com endereço quase ilegível, tendo apenas o nome do bairro bem visível. O bairro era Campo Limpo.
         Então, Olga pergunta:
         - Dona Maria Leontina, a senhora mora no bairro do Campo Limpo?
         Ela pensa um pouco e responde:
         - Eu moro lá. Isso mesmo!
         - E a senhora sabe o nome da sua rua, o número da sua casa, ou o número do seu telefone residencial? – pergunta Olga.
         - O meu endereço está neste papel que lhe dei. E o número do meu telefone é 3879-2218. Não! É 3591-8827... Não! Eu confundo os números. Antes eu sabia direitinho, mas agora está tudo embaralhado na cabeça. – Dona Maria fala sem qualquer convicção, com ar confuso, com o rostinho assustado, e mostra o medo de encarar Olga, o medo de perder o seu amparo.
         Olga a acarinha e diz:
         - Pode ficar tranquila. Só me separo da senhora quando houver uma solução, prometo!
         Dona Maria suspira aliviada, dá um sorriso e finalmente relaxa o corpo sobre a poltrona.
         Olga olha pela janela. A garoa continua lá, persistente, o céu continua sisudo, cinza. E Olga sabe que terá que resolver uma situação que nem consegue entender.
         Depois de muitas retas, muitas curvas, inúmeros semáforos, freadas bruscas, o motorista para no ponto, vira-se para Olga e diz:
         - A Praça da Sé está próxima, a senhora pode descer aqui e pedir informação lá, naquele ponto de táxi. As pessoas ensinarão como fazer para chegar à Casa de Portugal.
         Dona Maria Leontina coloca-se de pé, Olga pega o guarda-chuva, recoloca a bolsa a tiracolo, abraça a pasta transparente com os documentos da mãe, e segue em frente pelo corredor do ônibus até a saída. Desce e toma a mão da senhorinha para ajudá-la a descer do ônibus e a firmar os pés na calçada.
         A garoa está fraquinha, mas sem trégua. Olga abre o guarda-chuva e coloca o braço sobre os ombros da parceira para abrigá-la da garoa fria. Atravessam a rua e dirigem-se ao ponto de táxi. Ali há uma cobertura acrílica e Olga acomoda Dona Maria Leontina no único banco em que apenas um velho encontra-se sentado. Rapidamente aproxima-se dele e pergunta se sabe onde fica a Casa de Portugal. O velho, mesmo sem olhar para Olga, responde de maneira ríspida que não sabe e que ela pergunte a outra pessoa.
         Assustada com a reação agressiva do velho, Olga percebe a presença de um jovem bem vestido, em pé rente ao meio-fio, com um enorme guarda-chuva aberto, e o serviço dele parece ser abrir a porta para o passageiro que chega com táxi, ou que com ele parta. Realmente, um serviço diferenciado!
         Procurando se aproximar, Olga espera, entre um passageiro e outro, uma brecha para perguntar se o jovem pode informar qual rumo deve tomar para levar Dona Maria até a Casa de Portugal.
         A falta de interesse do jovem em ajudar faz com que Olga perca a paciência, e alterada começa a falar:
         - Por favor, encontrei esta senhorinha no ônibus, eu não sou daqui, não conheço a cidade, e preciso levá-la até a Casa de Portugal. Como faço? Por que ninguém pode me explicar?!
         O rapaz, assustado, fala:
         - A Casa de Portugal não abre durante o dia, minha senhora. Só à noite, quando as festas acontecem, as reuniões...
         - Impossível! A Dona Maria precisa ir até lá para receber a ajuda mensal que o governo português repassa a ela, como pode ser?! – diz Olga.
         - Senhora, ela deve estar procurando a Embaixada de Portugal, que fica nos Jardins, muito distante daqui. – responde o jovem, com ar enfadonho.
         Olga olha para Dona Maria Leontina e percebe que ela está chorando. Para a conversa com o rapaz e corre até ela.
         - Dona Maria, não chore, por favor! Tudo vai acabar bem, tudo vai dar certo! – fala Olga.
         A senhorinha, trêmula, diz não estar se sentindo bem. Percebe-se que ela tem dificuldade de respirar. Olga, muito aflita, volta a falar com o velho que a tudo assistiu, sempre alheio.
         - Por favor, o senhor não poderia me ajudar?
         - Dona, virando a esquina tem o prédio da Procuradoria. Pergunta lá quem pode ajudar, ora! – responde o velho.
         Olga pede à Dona Maria Leontina que se acalme, que tenha mais um pouquinho de paciência, que não saia dali de maneira alguma, e que irá buscar ajuda na Procuradoria. Sai quase correndo, atravessa a rua novamente, vira a esquina como o velho a orientou. No meio do quarteirão vê um prédio antigo, preto de fuligem, e entra ansiosamente. Na recepção, uma jovem pergunta-lhe em que poderia ajudar. Olga, sofregamente conta de novo toda a história. A moça ouve impacientemente e diz:
         - Sinto muito, mas não podemos ajudá-la. Não há nada que nos cabe fazer...
         Olga olha para os vigilantes, ou seguranças, trajados em seus ternos pretos e suplica por ajuda. Um deles, com um sorriso irônico, fala:
         - Dona, aqui é a Procuradoria... A senhora precisa da ajuda da polícia!
         Olga leva um susto. Por que não pensou nisso antes?!
         Indignada, Olga sai apressadamente pela imensa porta do prédio, esforçando-se para ignorar o riso dos três funcionários que ali permanecem. Nenhum deles fica tocado com a situação.
         Antes de chegar à esquina, pergunta ao dono de um bar onde encontraria uma viatura policial por ali, é informada de que em frente à Praça da Sé há várias viaturas que lá mantêm guarda durante todo o dia.
         Pensando em Dona Maria, preocupada se ela continuaria lá passivamente à espera, Olga resolve vê-la antes de seguir para a Praça da Sé. Passa correndo pelo ponto de táxi. Dona Maria continua trêmula, respirando com dificuldade. Olga explica a ela que irá até a praça buscar uma viatura, e que tudo será rápido. Faz um carinho em sua cabeça, e toma a direção da Praça da Sé.
         Há três viaturas estacionadas na praça, com as portas abertas, e com os policiais dentro, abrigando-se da garoa. Apenas um policial está de pé junto ao último carro. Olga aproxima-se rapidamente dele e narra novamente toda a história. O policial, enquanto ouve Olga, balança a cabeça negativamente. Percebendo o desinteresse dele, Olga altera a voz e diz que Dona Maria Leontina está muito mal, que pode morrer se não tiver atendimento médico, que certamente ela havia saído de casa e não conseguiu encontrar o caminho de volta, que ela está confusa, desorientada, e que a família deve estar aflita sem saber do paradeiro dela.
         O policial interrompe a fala de Olga, e retruca:
         - Minha senhora, se a viatura ficar atendendo casos de pessoas perdidas nesta cidade, não sobrará tempo para outro serviço. Se ela está passando mal, a senhora deve procurar uma ambulância, um resgate...
         - Eu, não! – grita Olga. - O senhor é que tem a obrigação de auxiliá-la no que for possível. Por favor, leva a Dona Maria para um hospital mais próximo e peça que a atendam com urgência! O senhor pode entrar em contato com a Central da Polícia aqui da capital e verificar se existe o registro do desaparecimento de uma senhora de 85 anos no dia de hoje. O senhor pode e deve fazer isso! – Olga desabafou.
         O policial faz um sinal com a mão para que Olga aguarde ali, e vai falar com os outros policiais que estão nas outras viaturas. De longe Olga percebe que todos resistem a prestar o socorro, disfarçam o olhar, dão as costas. E Olga continua ali, aflita, aguardando... Pensa na senhorinha sentada naquele banco, sozinha, exposta ao frio e ao vento, trêmula, insegura, confusa.
         Demora um tempo até que o policial retorne, e, rispidamente, se dirige a Olga.
         - A senhora pode seguir o seu caminho. Não se preocupe com a Dona Maria. Daqui a pouco eu irei até lá e a levarei a um hospital. – diz o soldado.
         - Daqui a pouco?! Quando?! – interpela Olga.
         O policial suspira fundo, e irritado, dando as costas para Olga, diz:
         - Pode ir, pode ir... Eu não demoro!
         Ela nem agradece. Encaminha-se rapidamente para o ponto de táxi, rezando para que Dona Maria Leontina ainda esteja lá, e bem. É um trecho razoável a ser percorrido, e quando é preciso ter pressa parece que a distância fica ainda maior. Depois de uma boa caminhada, e ainda do outro lado da rua, Olga avista a viatura estacionada diante do ponto de táxi. Corre, atravessa a rua, e quando chega ao carro, Dona Maria já está acomodada no banco traseiro, com os olhinhos assustados, chorando baixinho e tremendo muito. Olga agacha-se no meio-fio, pega as mãos dela entre as suas e tenta acalmá-la.
         - Dona Maria, pode ficar tranquila. Os policiais vão levá-la ao hospital, a senhora será atendida e eles irão procurar a sua família, pode confiar! – fala Olga, docemente.
         Dona Maria Leontina, demonstrando muita dificuldade para respirar, aperta as mãos de Olga e as beija, em sinal do mais profundo agradecimento.
         - Que a vida seja generosa com você, minha filha! Que os seus dias sejam plenos de luz! Com tantos acontecimentos no dia de hoje, nem o seu nome você me disse! – fala a senhorinha.
         - Olga, Dona Maria. Meu nome é Olga. Agora vá com eles, e tudo acabará bem. – diz isso, beija o rosto de Dona Maria, faz um afago em suas mãos, e fecha a porta da viatura.
         O policial faz um barulho estrondoso pisando fortemente no acelerador antes de arrancar violentamente e parar logo à frente, obrigado que é em respeitar a passagem de pedestres.
         Olga olha a viatura pela última vez, e enxerga a mãozinha espalmada de Dona Maria no vidro do carro, como a despedir-se e agradecer. Logo a viatura dobra a esquina levando a doce senhorinha.
         Olga continua ali, no meio-fio, olhando sem nada ver... No peito, uma mistura de tristeza, de conforto, de decepção. Vira-se para o banco, sob o teto de acrílico. Lá está o velho impiedoso, amargo, da mesma maneira, olhando o nada. Só então, Olga percebe que precisa seguir, precisa encontrar a Praça da República. A garoa não dá trégua. O sol continua amoitado, e as mesmas nuvens negras encarrancam o céu. Tudo cinza, gelado. Olga puxa a bolsa, que traz a tiracolo, na altura do peito, comprime-a com a pasta de plástico transparente que traz os documentos da mãe, o guarda-chuva em punho, atravessa a rua e entra num bar para tomar um café e pedir orientação de como chegar ao seu destino. Tem as mãos frias. A alma também.
         A moça do bar diz a Olga que, seguindo a calçada do bar, sempre em linha reta até chegar ao final da descida, encontrará uma banca de revista, e lá estará o início de uma passarela imensa, tortuosa, que a levará à Praça da República. Olga agradece e começa a descer pela rua indicada. Em sua cabeça vai reconstituindo tudo o que aconteceu naquela manhã. Rapidamente o rostinho aflito de Dona Maria Leontina forma-se em sua mente. Quanta desumanidade, quantos seres miseráveis, desprezíveis... De repente, toda aquela aflição reprimida, aquele pavor que sentiu quando achou que não conseguiria ajuda, toda a insegurança de procurar em lugares que não conhecia, sem perceber, Olga desata a chorar. Um choro convulsivo, sem controle, raivoso. As pessoas que passam por ela procuram se desviar, preservam certa distância. Os soluços podem ser ouvidos de longe, e Olga caminha vagarosamente...
         Quando chega à banca de revistas, segue em direção à passarela sinuosa. Ao longo do percurso, acomodadas rente aos muros de proteção, várias pessoas deitadas, abrigadas sob caixas de papelão abertas, andarilhos descalços, enrolados em cobertas molhadas. Tudo triste...
         Finalmente está em frente ao prédio do escritório do plano de saúde. Olga retira os óculos, enxuga os olhos com a manga da blusa, recoloca os óculos ainda embaçados e vai ao balcão de atendimento. É preciso deixar a carteira de identidade ali na portaria, tirar uma fotografia no computador, e então, fica liberada para subir pelo elevador.
         A sala de espera está repleta. A maioria, idosos. Olga retira a senha e procura uma cadeira desocupada. Acomoda-se. Olha novamente a pasta transparente. Vê o nome da mãe, a data e o horário do óbito, a causa mortis. E novamente o rosto de Dona Maria Leontina aparece em seus pensamentos. Como estará? Será que recebeu atendimento médico? Será que os policiais a trataram bem? E chora... Um choro calmo, silencioso, cheio de indignação.
         Olga fica sentada ali por mais de duas horas. Repensa a vida. E chora baixinho. Quando o atendente chama pelo seu número, sobressalta-se. Estava longe. Dirige-se ao guichê com os olhos molhados, retira os papéis da pasta e os passa ao funcionário.
         - Sou associada ao plano de saúde há muito tempo, e com o falecimento da minha mãe, preciso que você faça a exclusão dela como minha dependente. Tentei resolver isso por telefone, mas como não deu certo, fui orientada a comparecer aqui, pessoalmente, munida dos documentos que aí estão. – fala Olga.
         O atendente, sem dizer absolutamente nada, verifica os papéis, um a um, refaz o procedimento. Depois de analisar tudo pela terceira vez, sob o olhar apreensivo de Olga, diz:
         - Sinto muito, minha senhora, mas o atestado de óbito não está autenticado. É impossível excluir a sua dependente desta maneira!
         Olga pensa não ter entendido, e pergunta:
         - Como? Não é possível fazer a exclusão?
         - Isso mesmo! A senhora precisa apresentar cópia autenticada do atestado de óbito da sua mãe. – responde o atendente.
         Olga coloca-se de pé, afasta a cadeira com as pernas, e com voz alterada fala:
         - Meu senhor, por favor, aí estão todos os documentos que comprovam a morte da minha mãe. O senhor pode ver que há o atestado original expedido pelo hospital comprovando a morte, a data, o horário, há a autorização para o sepultamento, e quando eu liguei aqui, apenas foi solicitado que eu apresentasse a cópia do atestado de óbito, nada foi dito sobre autenticação. – esbraveja Olga.
         - Eu sinto muito, minha senhora! – completa o atendente.
         - Sente nada! O senhor não sente nada! O senhor é como todos os outros. O senhor não se abala com nada, os problemas dos outros não mudam a sua rotina! Não sei de que maneira, mas a exclusão da minha mãe vai ser feita hoje! – grita Olga.
         - Senhora, infelizmente a exclusão não vai ser feita agora. Fica na dependência do atestado de óbito autenticado. Quando for apresentado, ela será excluída. – diz o atendente, com veemência.
         Olga fica ensandecida. Esmurra a mesa, chuta a cadeira, joga o guarda-chuva em direção da janela de vidro, estilhaçando-a. Grita, chora. Passa a mão no teclado sobre a mesa, agarra-o e o arremessa contra o armário, empurra o computador com tamanha força que ele se espatifa no chão, e o atendente, apavorado, esconde-se ao lado do armário, fica recostado à parede.
Aquela foi a gota d’água para dar vazão a tudo.
         As pessoas que aguardavam o atendimento estão todas procurando a saída, numa correria infernal, quando Olga sente as mãos fortes de dois seguranças apertando-lhe os braços, e mesmo assim ela esperneia, bate com a cabeça nos ombros dos seguranças, tenta mordê-los, e faz tudo isso aos berros. Grita e chora sem parar.
         De repente, sente uma picada no braço e tudo começa a ficar embaralhado. Olga não consegue mais falar, não controla mais a boca, a língua fica grossa, as pernas afrouxam-se, as pessoas cada vez mais distantes, pequeninas...
         E tudo sumiu.


Regina Ruth Rincon Caires


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