Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

domingo, 26 de abril de 2009

Sementementalismo

Escrevi este soneto para um amor
Que me causou tanto sonho quanto dor...

Sementementalismo


Observo a noite de teus olhos vida
E o dia de teu constante sorriso;
O Sol canela de teu corpo liso
Aquecendo o meu, esta terra árida.

Tuas palavras como chuva cálida
E o teu ser com quem familiarizo
A substância do sentir faz vívida
A semente que em nós materializo.

E o Sol aquece e a chuva lhe modera;
E entre o dia e a noite se pondera
Em juntos vivermos unicamente.

Que vivamos tal tão eternamente
Como o dia, a noite, o Sol e quem dera
A chuva, o ar e a vida da semente.





sexta-feira, 24 de abril de 2009

O Admirador - Parte 2: Pesadelo?

(Maristela Scheuer Deves)
A noite fora horrível, com pesadelos nos quais poemas de amor se transformavam em tétricas canções de despedida junto a túmulos recém-cobertos. E ela as ouvia de dentro do túmulo, debaixo da terra. Acordou quando tentava gritar que estava viva, e a primeira coisa que percebeu foi o insistente odor das flores – o que só contribuiu para aumentar a sensação de irrealidade. "Estou ficando louca", repetiu para si mesma. Forçou-se a sair da cama e preparou um café, embora não tivesse apetite. Decididamente, não iria trabalhar nesse dia. Há quase uma semana não o fazia, apavorada demais desde que as coroas fúnebres passaram a persegui-la também na empresa.

Terminava de comer seus ovos mexidos quando percebeu o jornal do dia enfiado sob a porta. "Estranho", pensou, lembrando que normalmente precisava buscá-lo na caixa de correspondência do andar térreo. Querendo distrair-se, pegou o jornal e começou a folheá-lo, detendo-se aqui e ali para ler algo que parecia mais interessante. Sem conseguir concentrar-se na leitura, já ia fechar a publicação quando seus olhos bateram num anúncio, colorido, ao pé de uma página: a comunicação de seu próprio falecimento.

O jornal só não caiu de suas mãos porque ela ficou congelada. Olhando para sua foto (tirada na noite da formatura, recordou), questionou-se se não estava, ainda, sonhando. Mas o papel áspero em suas mãos não deixava dúvidas: ele estava ali, e, em destaque, o anúncio fúnebre em sua homenagem, assinado pelos "amigos que nunca a esquecerão". Rindo histericamente, pensou nos telefones – se eles não estivessem desligados, a essa altura deveriam estar tocando sem parar, em busca da confirmação da notícia.

A mãe! A sua mãe, meu Deus!, deveria estar enlouquecida à sua procura. Correu ao telefone e recolocou-o no gancho, na intenção de discar para a casa dos pais. Antes que o fizesse, no entanto, ele tocou. Do outro lado, em vez de algum conhecido aflito por saber se estava bem, uma voz rouca, desconhecida e algo risonha: "O enterro será às 17h." O fone foi parar no chão, com um estrondo, enquanto a cabeça começava a rodar. A página do jornal, aberta sobre a mesa, confirmava. Seria no Cemitério Municipal.

Deixando-se cair ela mesma numa cadeira, ficou mais de meia hora sem conseguir pensar em nada. Por fim, forçou-se a sair daquela letargia e olhou no relógio: 9h. Faltavam oito horas, então, para o seu próprio sepultamento. Deveria ir ao cemitério? E o que fazer até lá?
(continua no mês que vem...)





quinta-feira, 23 de abril de 2009

O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN- Jean Pierre Jeunet


Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain - Jean-Pierre Jeunet


Se o mundo inteiro, coubesse em um sorriso, seria de Amélie Poulain. Meu filme preferido: pelo conjunto e Audrey Tautou que interpreta a personagem título. Ela tem a graça de quem espia e nunca chega perto demais. Lembra as asas da borboleta, tocando de leve, arredia ... O vôo da libélula e dos pássaros.


Tudo em Amélie é perfeita sincronia. Aceitando o que a vida oferece, sem maiores preocupações: viver é o desafio diário. O resto é conseqüência. Descobrindo segredos e devolvendo esperança em gotas de lembranças. Caixinha de surpresas, pedacinhos de vida recortados. Olhar inesperado, surpreso e inocente. Resguardando sonhos de menina e brincando de ser mulher. Amélie traz descobertas, romance, jeito frágil e atitudes expressivas.


O que existe neste filme tão sutil e inexato? Talvez a personagem seja a brisa fresca que esperamos a vida inteira. O sopro que nunca chega; sempre adiado e no final permanece desconhecido. Vontade de sair passeando pelas cidades, ruas e avenidas. De amar e ser amada. A canção que toca o coração é som de chuva, ninho de passarinhos, flores e carinho.


A vida crua ficou lá trás, esquecida em uma esquina qualquer. Hoje é dia de Amélie. O importante, não é contar uma história coerente, o objetivo é despertar... Cenários lindos de Paris, o encando das botinas velhas e pesadas de Amélie. Como se o calçado, fosse o único fio que prendesse a personagem à terra. Ele está lá, para que ela não flutue, qual balão colorido...


O filme inspira o melhor da fantasia, o doce mais gostoso, beijos e abraços perdidos. Nostalgia. Finais felizes e sons que despertam a mágica de estar viva. O filme perfeito para qualquer estado de humor. O dom de ser agradável na medida certa. Como um café, no bistrô da rua pequena, cheiro de canela, açucar e infância.


Sinopse:
Amélie sai do subúrbio para o bairro parisiense de Montmartre onde começa a trabalhar como garçonete. Certo dia, encontra no banheiro de seu apartamento uma caixinha com brinquedos e figurinhas pertencentes ao antigo morador do apartamento. Decide procurá-lo e entregar o pertence ao seu dono. Ao notar que ele chora de alegria ao reaver o seu objeto, a moça fica impressionada e remodela sua visão do mundo.
A partir de então, Amélie se engaja na realização de pequenos gestos a fim de ajudar e tornar mais felizes as pessoas ao seu redor. Ela ganha aí um novo sentido para sua existência. Em uma destas pequenas grandes ações ela encontra um homem por quem se apaixona à primeira vista. E então seu destino muda para sempre...





quarta-feira, 22 de abril de 2009

O grito de Joana

Barbara Duffles

O. fez um esforço tão grande para abrir os olhos. Pareciam colados, como se há muito não ousassem piscar. Puxou pela memória e não se lembrou da última cena que viu antes de sentir as pálpebras descerem seu pano preto, indicando o fim do espetáculo. O. sentia que, se quisesse, poderia abrir os olhos de novo. Mas o grito de Joana ecoou em seus ouvidos como aviso, era um grito sem nexo e gutural, mas ele o ouviu como prenúncio. Fazia tempo que aquele grito havia saído da boca de Joana, mas, O. sabia bem, vozes são eternas, repetem-se exaustivamente na cabeça de quem tapa com as mãos os ouvidos.

"Não abra os olhos", era o significado daquele grito, vindo daquela Joaninha espevitada que voejou-lhe a vida por muitos anos e agora vinha pousar-lhe no nariz. Mas O. tinha os olhos fechados há muito, tanto que nem lembrava o porquê. Ignorou o ruído joanístico e de um só lampejo, escancarou os olhos até quase enroscarem-se cílios e sobrancelhas.

Neste exato momento entendeu o desespero de Joana, ela gritou faz tanto, mas o tempo passou e a voz dela tinha razão. Assombrado com o que viu, O. sentiu a vista turvar-se de lágrimas, até que fechou os olhos. Desta vez, por tempo indeterminado e por escolha própria: nunca mais iria enxergar, fosse o que fosse. Joana estava certa. "Mantenha-os fechados. Mantenha-se são". Era o que dizia para O., que a obedecia cegamente, em pleonasmo.

Texto originalmente publicado no blog "Não Clique"





segunda-feira, 20 de abril de 2009

Misantropia infecciosa

Léo Borges


– Falaram que é uma doença raríssima. Sempre desconfiei. Ele não se dá com ninguém, só com esses cachorros malditos. Vai ver é transmissível por contato ou, até pior, pelo ar! Eu é que não fico mais por aqui sem alguma razão – disse uma das mulheres da roda, ficando por ali sem alguma razão.

– Também ouvi isso. Um intelectual, aquele que perdeu a mão, diagnosticou a enfermidade como sendo doença que vem de berço! O menino evita as pessoas como se fôssemos leprosos. Ele deve ter parte com o capeta e a história dos cães só reforça minha teoria. Desde que seu livro foi lançado que os ataques dos cachorros às pessoas se tornaram coisa habitual.

– O livro que ele escreveu parece que foi ignorado pelos intelectuais por conta disso. O que ele narra é uma trama de cachorros brutais que despedaçam suas vítimas. Coisa absurda!

– Vendeu pouquíssimo. No início idolatraram-no, mas logo caiu no esquecimento.

– Isso mesmo. Quem leria tal heresia? Cães que atacam pessoas impiedosamente...

– Engraçado que dos cachorros do vilarejo esse menino é o único a não fugir...

– É mesmo. E os cães também não correm dele. Brincam, até.

– Curioso tudo isso. Esses animais da nossa circunscrição já mutilaram inúmeros paredros.

– Vai ver foram os perdigueiros que transmitiram esse cancro pro coitado do jovem escritor...

– Pode ser. Ele já foi atendido pelos médicos?

– Até onde sei, não deram jeito. A verdade é que o mal que se instalou em Andrews não afetou a sua pele, rins ou cotovelos. A coisa se manisfestou mesmo foi em seus pensamentos...

– Que esquisito! Como é mesmo o nome dessa doença terrível? – ousou perguntar outra fofoqueira, fechando o rosto com as mãos em concha, como se isso a livrasse da contaminação.

– Ninguém sabe ao certo... uma virose...

– Misantropia infecciosa – explicou o nobre que perdera o pavilhão auricular mas não a audição. – A doença é rara, mas sua característica principal é a insensatez. Ao deixar de ser tratada com o rigor necessário, pode levar a um estado completo de ignomínia não apenas o hospedeiro como quem com ele manteve contato.

Apesar de também não ser médico, o honrado homem acreditava que possuía conhecimento suficiente para comentar sobre o problema que afligia Andrews. O cão que decepara sua orelha tinha afetuoso vínculo com o garoto e isso marcou o aristocrata a ponto de fazê-lo interceder pelo sacrifício do animal. A corte deferiu e, mais que isso, ampliou a decisão, permitindo que outros cachorros fossem mortos. Muitos, a pedradas na praça central. O objetivo do ato em público foi chocar o menino, mostrar que seu amor por bestas-feras era uma afronta aos bons costumes e ao agradável convívio outrora reinante no vilarejo; amor este que tomava viés ainda mais dramático com a aversão que Andrews demonstrava ter das pessoas. Afinal, ele não mantinha relações nem mesmo com outros garotos de sua idade.

Andrews, esgueirado atrás da cortina de seu quarto, observava o burburinho na rua sabendo que falavam dele. Sabia que nesses momentos entravam em cena o debate sobre sua repulsa ao ser humano e o conflito deste sentimento com a sagacidade literária que ele demonstrara ter. Um menino que escreve livros deveria estar junto dos homens cultos da cidade e não ao lado de cachorros hostis e malcheirosos. Os bichos estavam sendo massacrados mais por represália ao isolamento em que o jovem prodígio se metera do que propriamente pelo fato dos intelectuais estarem sendo mordidos.

Os pais do menino emudeceram quando ouviram um ilustre decano da sociedade, este sem o pé direito, dizer que a misantropia de seu filho deveria ser encarada como grave problema de soberania distrital. Segundo ele, esta psicopatia estava intimamente ligada aos ataques dos cães. De acordo com estudiosos locais, estes seres pareciam querer defender o menino, sendo que, na realidade, o elemento ultrajante em toda aquela história era mesmo Andrews.

“A matilha marcial”, inicialmente, nasceu como um livro festejado pela elite. Quando souberam que quem o escrevera fora um menino, congelaram. Como poderia? Tentaram, mas não conseguiram cooptá-lo para o grupo. Com isso, a inveja sobre o fantástico jovem corroeu-lhes o ego. Somou-se a isso o estranho incidente envolvendo os cães de rua que passaram a atacar, sem motivo aparente, os intelectuais, arrancando-lhes pedaços do corpo. A carreira de Andrews foi, então, associada ao satanismo.

As edições encalharam. Ninguém mais queria saber do livro e Andrews acabou conseguindo o que queria quando viu tanto papel junto: criar um forro para os cães que dormiam ao relento pelas ruas do vilarejo. Ao contrário do que muitos pensavam, Andrews jamais se deprimiu com a queda das vendas. Comunicava-se por literatura, mas não fazia questão que fosse ouvido. Seu trabalho exauria-se em si mesmo, pouco importando a expectativa dos fãs ou a recepção dos críticos. Foi sua irmã quem quis mostrar para o mundo o potencial do irmão. Levou rascunhos de “A matilha marcial” para o soberbo dono da gráfica local – sujeito este que viria a perder o nariz alguns dias depois. Ao ler a obra crua, o sofisticado homem teria exclamado: “magnífico!”. O que ele não sabia é que, após a publicação, os ataques sangrentos começariam.

A irmã, acompanhando toda aquela situação, dizia para Andrews:

– Você pode não falar com ninguém, pode não querer conversar com ninguém, pode ser vetor desta doença, mas eu não o discrimino. Sei, mais que todo mundo, que você é inteligente e pode provar sua vocação. Escreva outro livro. Um livro decente, que prenda as pessoas de tal forma que elas não consigam se afastar das folhas. Um livro diferente deste primeiro, que era bom, mas cujo teor violento não agradou aos formadores de opinião. Que sirva de estímulo a nossa situação de poucas possibilidades. Nossa família carece de recursos, você sabe. Precisamos ganhar dinheiro e estar perto da nata social. Você não pode desperdiçar este talento com cachorros raivosos!

Ele não respondia. O asco que sentia dos humanos chegava à irmã com pouca intensidade. Com ela, o sentimento predominante era de pena. Dó daquela menina magra e de andar curvado que queria ser atraente e elegante como as amigas abastadas. Muitas dessas namoravam os intelectuais da cidade porque isto – apesar do incômodo que sentiam por estarem lidando intimamente com aleijados – era algo, acreditavam, que lhes emprestava grande status.

Andrews foi para o pátio brincar com alguns dos cachorros enquanto pensava na confecção de outro livro para prover algum acalanto às súplicas da irmã. Teria de ser um livro obediente aos ditames mercantis: quanto mais contrário aos padrões do jovem escritor viesse, mas comercializável seria. Algo que abastecesse com eterno entretenimento as mentes daquela cidade e que, com isso, fizesse dinheiro jorrar para a família. No novo arranjo os cães não poderiam ser ferozes. Deveriam ser mansos, tal como declarava o líder religioso, cuja metade do abdômen fora dilacerada por um já esperado ataque canino: “os mansos é que herdarão o Reino dos Céus!”.

Decidiu que iria além: os cachorros-personagens não atuariam somente como fofos coadjuvantes, seriam o motor da mudança, agiriam como verdadeiros insignes, trajando cartolas e fraques. E foi aí que surgiram os primeiros problemas. O menino teve dificuldade para iniciar o livro por não saber exatamente quais as atribuições dos nobres e ilibados cidadãos de destaque
. Qual era o papel deles na sociedade? Não curavam, pois não eram médicos. Não construíam pontes, pois não eram engenheiros. Não faziam doces, pois não eram confeiteiros. Além de afirmar que os outros estavam doentes, que seriam misantropos, que outra utilidade eles possuíam? Andrews viu que teria de usar muita imaginação nesta nova obra. Não para inventar persuasivos cães falantes, mas para conseguir dar algum sentido à vida dos intelectuais.

As pessoas souberam que Andrews estava preparando novo livro e especulavam se nesta nova versão os cães seriam dóceis, domesticáveis e obedientes. A mais feliz de todas era a irmã, que agora tinha certeza de que ficaria rica. O grupo dos intelectuais aplaudiu a idéia, pois viu que o incrível menino estava amadurecendo, aparentemente parando de se misturar com cães fétidos e, principalmente, dando mostras de que pretendia se unir à classe, deixando-a mais forte, quiçá com possibilidades de se tornar potência política.

Quando os papéis de “A matilha quimérica” ficaram prontos, a irmã foi correndo levá-los para o soberbo editor sem nariz que, ao ver o material, exultou: “esplêndido!”. Teve certeza de que todos, assim como ele, leriam. Só não sabia que não parariam mais de ler.

A irmã foi a primeira a ter acesso à obra pronta. Sentou-se na cadeira da sala e submergiu na admirável trama com grande atenção. Não parou mais.

– Andrews, sua irmã gostou mesmo do livro! Ela acreditou em você e você provou que estava certa: está relendo “A matilha quimérica” pela quarta vez. Ele será um sucesso! Com as vendas dessa obra pagaremos nossas dívidas! – disse a mãe com uma felicidade incontida.

Andrews não comentava. Limitava-se apenas a ir brincar com os cachorros na pracinha onde antes eram executados. O livro saiu rápido das livrarias e virou coqueluche. Todos liam e reliam. Andrews foi chamado para o meio intelectual e recebeu a medalha de nobreza. Teve seu rosto fotografado e estampado nos jornais. Mas mantinha sua introspecção, que agora era classificada como uma simples “timidez”. A misantropia do garoto, de acordo com os homens de grande cultura, fora curada.

Alguns sevandijas que adulavam o pequeno escritor queriam compartilhar de seu brilho, ainda que para isso precisassem abraçar a hipocrisia com desfaçatez.

– Seu livro é muito bom! – disse um dos bajuladores. Andrews sabia que ele mentia porque, se de fato
tivesse mesmo lido, certamente ainda o estaria fazendo.

Todos os leitores permaneciam sendo isso: leitores. Liam, reliam e liam outras dezenas de vezes. Abandonaram seus trabalhos e muitos começaram a perecer de fome, pois não largavam o exemplar nem mesmo para comer. O transporte público virou um caos com os motoristas absortos em sua leitura infinita. O mendigo não pedia mais esmolas, pois alguém lhe dera o incrível livro e ele agora se nutria de quimeras. A dançarina não se apresentava mais, maravilhada que estava com a obra de Andrews. Aposentados abandonaram os dominós e passavam os dias nos bancos da praça, sob sol ou chuva, mergulhados no “A matilha quimérica”.

– Andrews, sua irmã está há dias lendo seu livro ali na sala! Ela não se alimenta e está definhando. Não fala mais com ninguém. Todos que leram, ainda estão lendo. Viraram zumbis. O que você fez com nosso povo, meu filho? – perguntava o pai, chorando.

O pai de Andrews, antes pobre, ficou rico. Antes feliz, ficou triste. O que era um livro abençoado estava se tornando catastrófico. Os milhares de leitores sucumbiam. Nem mesmo operários munidos com pás e alicates conseguiam fazer os obcecados fãs soltarem as encadernações das mãos. Os poucos intelectuais que sobreviveram viram o quão perigoso era aquela literatura e fizeram fogueira com os exemplares restantes de “A matilha quimérica”. Passaram a acusar Andrews de ter contaminado a região com sua satânica misantropia infecciosa e concluíram que a praga derradeira não eram os cachorros selvagens, mas simples folhas de papel com mágicas letras impressas.

– O que está escrito nesse livro, pelo amor de Deus? – quis saber uma mulher que perdeu a filha, leitora morta por carência de vitaminas, debruçada sobre a página cento e quatro, após sua ducentésima trigésima nona leitura consecutiva. Assim como os demais, esta também foi para o sepulcro agarrada às folhas.

Quando lhe perguntavam coisas desse tipo, ele apontava para o livro em cuja capa havia a estampa de doces cães engravatados cumprimentando homens. “Leia-o” dizia Andrews com o olhar e saía de perto para poder conversar com seus cachorros. Ele só se comunicava com os humanos por meio de textos e, desta vez, parece que muitos não queriam mais parar de escutá-lo.





domingo, 19 de abril de 2009

Helena- Giselle Sato e Pedro Faria

Helena queria muito, por vingança ou prazer, provar o gosto de outra boca. Cansada demais, humilhada, uma sombra vagando pelo casarão decadente. Ela não sabia nada, casou aos dezoito com um homem com idade para ser seu pai. Seis anos se passaram e havia-se tornado empregada e eventual mulher.

Cheirando a desinfetante e cloro, sempre vestindo trapos e esfregando o chão encardido. Naquele dia seria diferente, esperou que o marido saísse e pegou o sabonete comprado às escondidas. Foi uma delícia usar o aparelho de barbear dele para depilar as pernas, axilas e virilha. Riu enquanto cegava a gilete, ele sempre gritava que era homem "da antiga" e não admitia plásticos.

A banheira ficou cheia de pêlos e ela nem se importou. Usou um resto de colônia e sorriu para o espelho amarelado. Nada naquele lugar prestava. Do encanamento às panelas herdadas da sogra, tudo era sucata. Lixo. O carteiro chegou na hora habitual e começou a enfiar os envelopes na caixinha. A mulher escancarou a porta, nua e com um sorriso provocante.

Há muito trocavam olhares, o máximo de intimidade aconteceu no Natal quando timidamente, ela entregou o envelope com a gorjeta. Tocou com a ponta dos dedos as mãos finas da moça tão bonita e maltratada. Agora eram apenas os dois e aquela urgência doída.

Havia o perigo de serem surpreendidos e logo estava dentro dela. Movimentando-se apressado, pretendia gozar e deixar aquele lugar o mais rápido possível. Não contava que ela fosse tão gostosa, não imaginava tanta doçura, perdeu a noção do tempo. A visão do corpo largado em cima da mesa, completamente à mercê de seus desejos era irresistível.
Repetia baixinho o nome, apaixonado e beijando Helena, dentro de Helena, aspirando o perfume de Helena... Helena... Helena... Helena...

*******
Ninguém gosta de traição. O vulto aproximou-se da casa. Deu a volta e entrou pela garagem, que estava aberta.
A traição não seria perdoada. Não mesmo. A porta da sala foi aberta.
O insulto seria vingado. O machado caiu pelo menos sete vezes.
O grito veio na primeira, que levou embora uma perna.
A segunda levou um braço.
A terceira levou a outra perna.
A quarta levou o outro braço.
A quinta cortou uma das coxas.
A sexta levou um dos ombros.
A sétima pôs o machado enterrado no abdômen.
O olhar injetado da morte caiu sobre o carteiro.
E em seu último suspiro, ele disse o nome dela. Agora começaria tudo novamente...





sábado, 18 de abril de 2009

O Milagre do Sol

Joaquim Bispo

Nas nossas sociedades muito afastadas dos tempos bíblicos, sentimos, por vezes, a nostalgia de viver situações como a de Abraão ver entrar três anjos tenda adentro, ver Cristo dar de comer a cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes ou assistir à revelação do anjo Gabriel a Maomé. Nos nossos tempos, não acontecem milagres – todos aconteceram há muito tempo e só tomamos conhecimento deles por fontes secundárias. A manifestação do sobrenatural mais recente que conheço é a aparição da Virgem aos pastorinhos em Fátima, Portugal. E só Lúcia garantiu que viu. Aconteceu, no entanto, um fenómeno extraordinário relatado pelos jornais e assistido por muitas das cinquenta mil pessoas presentes: o milagre do sol, na sequência da aparição de 13 de Outubro de 1917.

Segundo uma testemunha que na altura tinha nove anos, «eu olhava fixamente o astro; pareceu-me pálido e privado da sua deslumbrante claridade; dir-se-ia um globo de neve girando sobre si mesmo. Depois, subitamente, pareceu descer em ziguezague, ameaçando cair sobre a Terra. (…) Durante os longos minutos do fenómeno solar, os objectos colocados perto de nós reflectiam todas as cores do arco-íris… os nossos rostos ficavam ora vermelhos, ora azuis, ora amarelos. (…) Ao fim de dez minutos, o Sol retomou o seu lugar, da mesma maneira que dali tinha descido, sempre pálido e sem luminosidade.»

Outra testemunha disse: «O Sol começou a bailar e a dada altura pareceu deslocar-se do firmamento e em rodas de fogo, precipitar-se sobre nós.»

Outra, ainda: «coisa mais espantosa era poder olhar para o disco solar por muito tempo, brilhando com luz e calor, sem ferir os olhos ou prejudicar a retina. [Durante este tempo], o disco do sol não se manteve imóvel, teve um movimento vertiginoso, não como a cintilação de uma estrela em todo o seu brilho, pois girou sobre si mesmo num rodopio louco.
Durante este fenómeno solar, que acabo de descrever, houve também mudanças de cor na atmosfera. Olhando para o sol, notei que tudo se escurecia. Olhei primeiro para os objectos mais perto e depois estendi a minha vista ao longo do campo até ao horizonte. Vi que tudo tinha assumido cor de ametista. Os objectos à minha volta, o céu e a atmosfera, eram da mesma cor. Tudo perto e longe tinha mudado, tomando a cor de velho damasco amarelo. As pessoas pareciam que sofriam de icterícia e lembro-me de uma sensação de divertimento ao vê-los tão feios e repulsivos. A minha mão estava da mesma cor.
Então, de repente, ouviu-se um clamor, um grito de agonia vindo de toda a gente. O sol, girando loucamente, parecia de repente soltar-se do firmamento e, vermelho como o sangue, avançar ameaçadoramente sobre a terra como se fosse para nos esmagar com o seu peso enorme e abrasador. A sensação durante esses momentos foi verdadeiramente terrível.»


Como eu gostaria de lá ter estado, mas isso aconteceu há quase cem anos. Conversando sobre este assunto com uma tia devota, ela disse-me que há pessoas que afirmam presenciar um milagre do sol semelhante, durante a procissão de Santo António, a 13 de Junho, em Lisboa. Fiquei alvoroçado com a possibilidade de assistir a um fenómeno tão prodigioso e, na data indicada (há uns dez anos), lá estava eu integrado na procissão, atento, quer à ambiência celestial, quer à humana. Junho em Lisboa, às cinco da tarde é quente. A procissão movia-se devagar em frente da Sé. Então, comecei a ouvir algumas pessoas – uma aqui, outra ali – a chamar a atenção para o sol, a apontar, a dizer que viam o sol a girar. Uns e outros olhavam, tentando ver o fenómeno. O entusiasmo não era grande. Olhei também, de relance. O sol era uma bola de fogo, como habitualmente, perigoso para os olhos como sempre.

Então, julguei compreender tudo. Eu estava farto de assistir a milagres do sol, cada vez que jogava ténis quando, tendo que acompanhar alguma bola alta, dava com os olhos no sol: a minha retina ficava maculada com uma mancha, onde o sol a queimara e, durante um bocado, uma mancha com a mesma forma e de uma cor arbitrária, sobrepunha-se a tudo o que eu olhava. Para mim, aquela gente estava a queimar a retina irresponsavelmente, e foi isso que disse a algumas pessoas, levemente receoso de que me considerassem herege. Ninguém ficou escandalizado ou irritado, talvez só um pouco pesaroso de que o seu desejo não se concretizasse. Eu próprio fiquei um pouco desapontado, embora não esperasse outra coisa.

O «milagre do sol» de 1917 tem aspectos difíceis de enquadrar numa única explicação. Há até quem fale em Ovnis. Eu, por mim, fico dividido. Por um lado, gosto de cultivar uma atitude de abertura, conforme aprendi do astrónomo francês do século XVIII, Laplace:

«Estamos tão longe de conhecer todas as forças da Natureza e suas múltiplas modalidades de acção, que seria pouco filosófico negar a existência de certos fenómenos apenas porque não podem ser explicados no estado actual dos nossos conhecimentos.»

Por outro, irritam-me as explicações de base sobrenatural, que, até agora, só nos fizeram perder tempo precioso na compreensão do Universo. Gostei do que ouvi há dias a um cientista evolucionista:

«Não há conflito entre ciência e sobrenatural. Se houvesse fantasmas, fadas, duendes, a ciência teria de os investigar. O problema não é da ciência, mas do Universo que nos calhou, que não veio equipado de sobrenatural.»


Fontes:
Seomara da Veiga Ferreira, As Aparições em Portugal dos Séculos XIV a XX, Relógio d'Água, 1985.
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Milagre_do_Sol
http://www.fatima.org/port/essentials/facts/pmiracle.asp





A Visita do Saci


Sempre que ocorria alguma discussão em casa por causa de comida - quem comeria a última bolacha do pacote, ou a última fatia de pizza, ou o bife que havia sobrado -, minha mãe ressuscitava uma história de sua infância.
Contava ela que, quando criança, durante um jantar, houve uma briga entre ela e as irmãs por causa duma coxa de frango. Minha avó interveio, mas nenhum consenso foi possível. No entanto, depois de muito arranca-rabo, minha mãe e as irmãs descobriram que a coxa de frango havia desaparecido.
— Foi o Saci — sentenciou minha vó — o Saci viu a briga e veio pra instaurar a desordem.

Quem não conhece a figura do Saci não deve ter tido infância. Personagem presente nas obras de Monteiro Lobato, na série de TV "Sítio do Pica-Pau Amarelo" e até em gibis de Maurício de Souza, é um mito tradicional do folclore brasileiro: o negrinho perneta, gorro vermelho e cachimbo na boca. Dizem as lendas que ele adora roubar pertences das pessoas e que faz tranças nas crinas de cavalo; é um menino travesso.

Assim, toda a vez que sumia alguma coisa em casa, eu e minha irmã imediatamente repetíamos a sabedoria de vovó:
— Foi o Saci.

Não se tratava de acreditar ou não na existência dele, mas sim porque era algo que fazia parte de nossa criação e que era um tanto engraçado, mas isto até a viagem que fizemos para o sítio de vovó.
Viajar para o interior não era o meu programa favorito, mas era a obrigação de todo Natal e Ano-Novo. Durante a maior parte do tempo, permanecíamos na casa da minha avó na cidade, mas, por um dia ou dois, íamos também para o sítio dela, onde preparávamos um churrasco e podíamos pescar.
As crianças - eu, minha irmã, primos e primas - ficávamos todas acomodadas num dos quartos da velha casa de madeira e dormíamos em beliches. Logo ao chegarmos lá, alguém comentou, ao ver a tinta descascada na porta do nosso quarto:
— Olha, parece a figura do Saci.
E realmente parecia muito mesmo: da cintura para cima, havia uma silhueta na tinta descascada que mostrava o quadril, os bracinhos, a cabeça, o capuz e até o cachimbo. Era o Saci, só que sem perna (onde a tinta não havia descascado ainda).
Ninguém deu muita importânci ao fato, no entanto, à noite, após todos terem ido dormir, ouvimos um sussurro no nosso quarto das crianças; era minha prima nos chamando:
— Gente, olha lá pra porta!
E, como era de se esperar, havia a silhueta descascada do Saci, contudo, havia dois novos elementos: agora ele tinha a perna única e, aparentemente, saía fumacinha do cachimbo dele.
Todos ficamos apavorados, afônicos, tremendo embaixo dos lençóis.
De quando em quando, alguém, que estava de olhos fechados, perguntava:
— Ele ainda está lá?
Então um de nós era obrigado a enfrentar o medo e constatar que o Saci ainda estava lá, fitando-nos, fumando seu cachimbo.

Na manhã seguinte, este foi o assunto em casa, todos pondo a mão no fogo ao afirmarem que tinham realmente visto o Saci durante a noite. Para reforçar nossa certeza, a porta de casa havia sido encontrada aberta. Especularam que havia sido vovó quem havia saído, à noite, para ir ao banheiro (que era no quintal), mas ela jurou de pés juntos que não tinha acordado de madrugada. Portanto, indubitavelmente, era o Saci quem havia entrado.

Pareidolia é um termo usado para definir este tipo de fenômeno psicológico, quando a mente interpreta certos dados como sendo significativos e os relaciona a outros.
Pode até ser isto que ocorreu naquela noite, mas como nos convencer que não havíamos visto, de fato, o Saci, ou que não era obra dele o sumiço da coxa de frango de minha mãe?

Isto porque a explicação mais plausível nem sempre é a melhor explicação.





sexta-feira, 17 de abril de 2009

A Criação

Eduardo Galeano
trad.: Henry Alfred Bugalho


A mulher e o homem sonhavam que Deus os estava sonhando.
Deus os sonhava, enquanto cantava e agitava suas maracas, envolto em fumo de tabaco, e se sentia feliz e também estremecido pela dúvida e pelo mistério.
Os índios makiritare sabem que, se Deus sonha com comida, frutifica e dá de comer. Se Deus sonha com a vida, nasce e dá nascimento.
A mulher e o homem sonhavam que no sonho de Deus aparecia um grande ovo brilhante. Dentro do ovo, eles cantavam e bailavam e armavam muito alvoroço, porque estavam loucos de vontade de nascer. Sonhavam que no sonho de Deus a alegria era mais forte que a dúvida e o mistério; e Deus, sonhando, os criava, e cantando dizia:
— Rompo este ovo e nasce a mulher e nasce o homem. E juntos viverão e morrerão. Mas nascerão novamente. Nascerão e voltarão a morrer e outra vez nascerão. E nunca mais deixarão de nascer, porque a morte é mentira.
________________________________________
Fonte:
Eduardo Galeano, Memoria del fuego I. Los nacimientos, Casa de las Américas, La Habana, 1988.
Eduardo Galeano, Memoria del fuego II. Las caras y las máscaras, Casa de las Américas, La Habana, 1990.
Eduardo Galeano, Memoria del fuego III. El siglo del viento, Quinta edición, Siglo Veintiuno Editores, México, 1987.

fonte: http://www.patriagrande.net/uruguay/eduardo.galeano/memoria.del.fuego/index.html

***

Biografia
Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é um jornalista e escritor uruguaio.

Suas obras já foram traduzidas em diversas línguas. Costuma escrever seus livros no formato de pequenas histórias que contemplam desde assuntos políticos relevantes na história da América Latina até assuntos simples, como o cotidiano e o futebol. Galeano é comparado a John Dos Passos e Gabriel García Márquez.

Uma de suas obras de maior relevância política e importância é "As Veias Abertas da América Latina", livro em que relata o que considera a exploração sofrida pelas nações latino-americanas, desde a formação dos impérios hispânico e português, passando por uma influência inglesa e estadunidense, por meio de um arrocho imposto pela economia internacional (Divisão Internacional do Trabalho), até os dias de hoje.

Apesar da clara inspiração e relevância histórica da obra, o próprio escritor nega ser um historiador. Seu último livro, "Espelhos", também é baseado em fatos históricos, expondo-os de maneira diferente do usual, tal qual feito em "As Veias Abertas da América Latina".

Eduardo Galeano, foi agraciado com o título de primeiro cidadão ilustre do Mercosul.

fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Galeano





Cronópios e Famas

Julio Cortázar
trad.: Henry Alfred Bugalho

Instruções para chorar
Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de chorar, entendendo por isto um pranto que não ingresse no escândalo, nem que insulte o sorriso com sua comparação e torpe semelhança. O pranto médio ou ordinário consiste numa contração geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lágrimas e ranhos, estes últimos ao final, pois o pranto acaba no momento em que alguém se assoa energicamente.

Para chorar, dirija a imaginação para si mesmo, e se isto lhe resulta impossível por haver contraído o hábito de acreditar no mundo exterior, pense em um pato coberto de formigas ou nestes golfos do estreito de Magalhães nos quais ninguém entra, nunca.

Chegado o pranto, tapará com decoro o rosto usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças chorarão com a manga da blusa contra o rosto, e de preferência num canto do quarto. Duração média do pranto, três minutos.

***

Instruções-exemplos sobre a forma de ter medo
Em um povoado da Escócia vendem-se livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se um leitor desemboca nesta página ao dar três horas da tarde, morre.

Na praça de Quirinal, em Roma, há um ponto que conheciam os iniciados até o século XIX, e a partir do qual, com a lua cheia, se vê moverem-se lentamente as estátuas dos Dióscuros que lutam com seus cavalos empinados.

Em Amalfí, ao terminar a zona costeira, há um molhe que adentra o mar e a noite. Ouve-se ladrar um cão para mais além do último farol.

Um senhor está espalhando pasta de dentes na escova. De súbito, vê, deitada de costas, uma diminuta imagem de mulher, de coral ou talvez de miolo de pão pintado.

Ao abrir o guarda-roupa para apanhar uma camisa, cai um velho almanaque que se desfaz, desfolha-se, cobre a roupa branca com milhares de sujas mariposas de papel.

Sabe-se de um caixeiro-viajante a quem começou a doer o pulso esquerdo, justamente debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar-se o relógio, jorrou sangue: a ferida mostrava a marca de uns dentes muito finos.

O médico termina de nos examinar e nos tranquiliza. Sua voz grave e cordial precede os medicamentos, cuja receita agora escreve, sentado à sua mesa. De quando em quando, ergue a cabeça e sorri, consolando-nos. Não é de se preocupar, em uma semana estaremos bem. Ajeitamo-nos em nosso assento, felizes, e olhamos distraidamente ao redor. De súbito, na penumbra debaixo da mesa, vemos as pernas do médico. Havia erguido as calças até as coxas, e veste meias de mulher.

Textos extraídos da obra "Historias de Cronopios y Famas" de 1962.

fonte: http://www4.loscuentos.net/cuentos/other/1/3/

***

Julio Cortázar
(Bruxelas, 1914 - Paris, 1984) Escritor argentino. Nascido em Bruxelas, filho de pais argentinos, aos quatro anos, Julio Cortázar se mudou com eles para a Argentina, para morar na província andina de Mendoza.

Depois de completar seus estudos primários, cursou magistério e letras e durante cinco anos foi professor rural. Posteriormente, foi para Buenos Aires e, em 1951, viajou a Paris com uma bolsa. Ao término dela, seu trabalho como tradutor da Unesco lhe permitiu permanecer definitivamente na capital francesa.

Nesta época, Julio Cortázar já havia publicado em Buenos Aires o livro de poemas “Presencia” com o pseudônimo de Julio Denis, o poema dramático “Los reyes" e a primeira de suas narrativas breves, "Bestiário", nas quais admite a profunda influência de Jorge Luis Borges.

A literatura de Cortázar parte do questionamento essencial, aproximando-se de reflexões existencialistas, em obras de marcado caráter experimental, que o tornam um dos maiores inovadores da língua e da narrativa em língua castelhana. Como em Borges, suas narrativas mergulham no fantástico, mesmo sem abandonar de todo a referência à realidade cotidiana, fato que faz com que suas obras sempre tenham uma dívida em aberto com o surrealismo.

Para Cortázar, a realidade imediata significa uma via de acesso a outros registros do real, onde a plenitude da vida alcança múltiplas formulações. É assim que sua narrativa constitui um questionamento permanente da razão e dos esquemas convencionais de pensamento.

O instinto, o azar, o gozo dos sentidos, o humor e o jogo terminam por se identificar com a escrita, que é, por sua vez, a formulação do existir no mundo. As rupturas de ordem cronológica e especial tiram o leitor de seu ponto de vista convencional, propondo-lhe diferentes possibilidades de participação, de modo que o ato de leitura é convocado a completar o universo narrativo.

Tais propostas alcançaram suas mais perfeitas expressões nos romances, especialmente em “Jogo da Amarelinha”, considerada uma das obras fundamentais da literatura em castelhano, e em seus contos, entre eles “Casa tomada” e “A baba do diabo”, ambos adaptados ao cinema, e “O perseguidor”, cujo protagonista evoca a figura do saxofonista negro Charlie Parker.

Rapidamente, Julio Cortázar se converteu numa das principais figuras do chamado "boom" da literatura hispano-americana e desfrutou de reconhecimento internacional. À sua sensibilidade artística somou-se sua preocupação social: Identificou-se com os povos marginalizados e esteve muito próximo dos movimentos de esquerda.

Neste sentido, a viagem a Cuba, em 1962, significou uma experiência decisiva em sua vida. Graças a sua conscientização política e social, em 1970 se deslocou ao Chile para assistir à cerimônia de posse presidencial de Salvador Allende e, mais tarde, foi a Nicarágua para apoiar o movimento sandinista. Como personagem público, interveio com firmeza em defesa dos direitos humanos e foi um dos promotores e membros mais ativos do Tribunal Russell.

Como parte deste compromisso, escreveu inúmeros artigos e livros, entre eles “Dossiê Chile: O livro negro”, sobre os excessos do regime do general Pinochet, e “Nicarágua, tão violentamente doce”, testemunho da luta sandinista contra a ditadura de Somoza, no qual está o conto "Apocalipse em Solentiname" e o poema "Notícia aos viajantes". Três anos antes de morrer, adotou a nacionalidade francesa, mas sem renunciar a argentina.





Olhos de Cão Azul

Gabriel García Márquez
trad.: Henry Alfred Bugalho

Então, fitou-me. Acredito que me olhava pela primeira vez. Mas logo, quando deu a volta por detrás da luminária e eu continuei sentindo por sobre o ombro, às minhas costas, seu olhar esquivo e oleoso, compreendi que era eu quem a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei o fumo áspero e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas posteriores. Depois disto, vi-a ali, como se houvesse estado todas as noites, parada junto à luminária, olhando-me. Durante breves minutos fizemos nada mais do que isto: Olhamo-nos. Eu a olhava desde a cadeira, equilibrando em uma das pernas posteriores. Ela, de pé, com mão grande e quieta sobre a luminária, olhando-me. Via-lhe as pálpebras iluminadas como todas as noites. Foi então que recordei o de sempre, quando lhe disse: “Olhos de cão azul”. Ela me disse, sem retirar a mão da luminária: “Isso. Já não o esqueceremos nunca”. Saiu de órbita, suspirando: “Olhos de cão azul. Escrevi isto por toda a parte”.

Eu a vi caminhar até o toucador. Vi-a aparecer na lua circular do espelho, olhando-me agora ao final de uma matemática ida e volta da luz. Vi-a prosseguir fitando-me com seus grandes olhos de cinza incandescente: olhando-me enquanto abria a caixinha laminada de nácar rosado. Vi-a empoar o nariz. Quando terminou de fazê-lo, fechou a caixinha e voltou a se pôr de pé e caminhou novamente até a luminária, dizendo: “Temo que alguém sonhe com esta casa e mexa em minhas coisas”; e estendeu sobre o lume a mesma mão grande e trêmula que ficara aquecendo antes de sentar-se ao espelho. E disse: “Você não sente frio”. E eu lhe disse: “Às vezes”. E ela me disse: “Deve senti-lo agora”. E então compreendi porque não havia conseguido ficar sozinho na cadeira. Era o frio que me dava certeza de minha solidão. “Agora sinto”, eu disse. “E é incomum, porque a noite está quieta. Talvez me tenha enrolado o lençol”. Ela não respondeu. Começou outra vez a se mover até o espelho e rodopiei em direção a ela. Sem vê-la, sabia o que estava fazendo. Sabia que estava outra vez sentada diante do espelho, vendo minhas costas que haviam tido tempo para chegar ao fundo do espelho e ser encontradas pelo olhar dela que também havia tido o tempo exato para chegar ao fundo e regressar (antes que a mão tivesse tempo de iniciar a segunda volta) até os lábios que estavam agora untados de carmim, desde a primeira volta da mão diante do espelho. Eu via, à minha frente, a parede lisa que era como outro espelho cego de onde eu não a via — sentada às minhas costas — mas imaginando-a onde estaria se em lugar da parede houvesse sido posto um espelho. “Te vejo”, eu lhe disse. E vi na parede como se ela houvesse erguido os olhos e houvesse me visto de costas na cadeira, ao fundo do espelho, com a cara voltada para a parede. Depois, eu a vi baixar as pálpebras, outra vez, e ficar com os olhos quietos em seu corpete; sem falar. E voltei a dizer-lhe: “Te vejo”. E ela voltou a erguer os olhos desde seu corpete. “É impossível”, disse. Eu perguntei por quê. E ela, com os olhos outra vez quietos no corpete: “Porque está com a cara voltada para a parede”. Então, fiz girar a cadeira. Tinha o cigarro apertado na boca. Quando parei diante do espelho, ela estava outra vez perto da luminária. Agora tinha as mãos abertas sobre o lume, como duas asas abertas de galinha, assando-se e com o rosto sombreado por seus próprios dedos. “Acho que vou ficar resfriada”, disse. “Esta deve ser uma cidade gelada”. Voltou o rosto de perfil e sua pele de cobre a vermelho se tornou repentinamente triste. “Faça algo contra isto”, disse. E ela começou a se despir, peça por peça, começando por cima; pelo corpete. Eu lhe disse: “Vou me virar para a parede”. Ela disse: “Não. De qualquer modo, me verá como me viu quando estava de costas”. E não havia acabado de falar quando já estava desnuda quase por inteiro, com o lume lambendo-lhe a comprida pele de cobre. “Sempre quis vê-la assim, com o couro da barriga cheio de profundos furos, como se lhe houvessem sido feitos a pauladas”. E antes que eu me desse conta que minhas palavras se haviam tornado torpes diante de sua nudez, ela ficou imóvel, aquecendo-se na órbita da luminária e disse: “Às vezes, acredito que sou metálica”. Guardou silêncio por um instante. A posição das mãos sobre o lume variou levemente. Eu disse: “Às vezes, em outros sonhos, acreditei que você não era senão uma estatueta de bronze no canto de algum museu. Talvez por isto você sinta frio”. E ela disse: “Às vezes, quando adormeço sobre o coração, sinto que o corpo se torna oco e a pele como uma lâmina. Então, quando o sangue me golpeia por dentro, é como se alguém estivesse me chamando com os nós dos dedos no ventre e sinto meu próprio som de cobre na cama. É como se fosse como você disse: de metal laminado”. Aproximou-se mais da luminária. “Eu gostaria de ouvi-la”, disse. E ela disse: “Se alguma vez nos encontrarmos, ponha o ouvido nas minhas costelas, quando eu estiver dormindo sobre o lado esquerdo, e me ouvirá ressonar. Sempre desejei que o faça alguma vez”. Ouvi-a respirar fundo, enquanto falava. E disse que durante anos não havia feito nada diferente disto. Sua vida era dedicada a me encontrar na realidade, através desta frase identificadora: “Olhos de cão azul”. E, pela rua ia dizendo, em voz alta, que era uma maneira de dizê-lo à única pessoa que poderia entender:

“Eu sou aquela que chega em seus sonhos todas as noites e lhe digo isto: Olhos de cão azul”. E disse que ia aos restaurantes e dizia aos empregados, antes de ordenar o pedido: “Olhos de cão azul”. Mas os empregados lhe faziam uma respeitosa reverência, sem que houvessem se lembrado nunca terem dito isto em seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e inscrevia com a faca no verniz das mesas: “Olhos de cão azul”. E nos vidros embaçados dos hotéis, das estações, de todos os edifícios públicos, escrevia com o indicador: “Olhos de cão azul”. Disse que uma vez chegou a uma farmácia e identificou o mesmo cheiro que havia sentido em sua casa, uma noite, depois de ter sonhado comigo. “Deve estar perto”, pensou, vendo o piso limpo e novo da farmácia. Então, aproximou-se do atendente e lhe disse: “Sempre sonho com um homem que me diz: ‘Olhos de cão azul’”. E disse que o vendedor a havia fitado e lhe disse: “Na realidade, senhorita, você tem os olhos assim”. E ela lhe disse: “Preciso encontrar o homem que me disse em sonhos a mesma coisa”. E o vendedor começou a rir e foi para o outro lado do balcão. Ela continuou vendo o piso limpo e sentindo o cheiro. E abriu a bolsa, e se ajoelhou, e escreveu no piso, em grandes letras vermelhas, com o batom: “Olhos de cão azul”. O vendedor voltou de onde estava. Disse-lhe: “Senhorita, você sujou o piso”. Entregou-lhe um pano úmido, dizendo: “Limpe-o”. E ela disse, ainda perto da luminária, que passou toda a tarde ajoelhada, lavando o piso e dizendo “Olhos de cão azul” até quando as pessoas se reuniram à porta e disseram que estava louca.

Agora, quando acabou de falar, eu continuava no canto, sentado, equilibrando-me na cadeira. “Eu tento me lembrar todos os dias da frase com que devo encontrá-lo”, disse. “Agora acredito que amanhã não a esquecerei. No entanto, sempre digo o mesmo e sempre me esqueço ao despertar quais são as palavras com que posso encontrá-la”. E ela disse: “Você mesmo as inventou desde o primeiro dia”. E eu lhe disse: “Inventei-as porque vi seus olhos cinzentos. Mas nuncas me lembro delas na manhã seguinte”. E ela, com os punhos fechados sobre a luminária, respirou fundo: “Se pelo menos pudesse me lembrar agora em que cidade estive escrevendo”.
Seus dentes apertados reluziram sobre o lume. “Eu gostaria de tocá-lo agora”, disse. Ela levantou o rosto que havia estado fitando o lume: levantou o olhar ardente, assando-se assim como ela, com suas mãos; e eu senti que me viu, no canto, onde continuava sentado, mexendo-me na cadeira. “Nunca havia me dito isto”, disse. “Agora digo, e é verdade”, disse. Do outro lado da luminária, ela pediu um cigarro. A bituca havia desaparecido de meus dedos. Havia me esquecido que estava fumando. Disse: “Não sei porque não consigo me lembrar por onde escrevi”. E eu lhe disse: “Pela mesma razão que não poderei me lembrar, amanhã, das palavras”. E ela disse, triste: “Não. É que, às vezes, acredito que a isto também sonhei”. Pus-me de pé e caminhei até a luminária. Ela estava um pouco mais para lá, e eu sabia que, caminhando com os cigarros e os fóforos na mão, não passaria da luminária. Estendi-lhe o cigarro. Ela o apertou entre os lábios e se inclinou para alcançar a chama, antes que eu tivesse o tempo para acender o fósforo: “Em alguma cidade do mundo, em todas as paredes, têm de estar escritas estas palavras: ‘Olhos de cão azul’”, disse. “Se amanhã me lembrasse delas, iria buscá-lo”. Ela levantou outra vez a cabeça e já tinha a brasa acesa nos lábios. “Olhos de cão azul”, sugeriu, lembrando-se, com o cigarro caído sobre o queixo e um olho meio fechado. Aspirou depois o fumo, com o cigarro entre os dedos, e exclamou: “Isto já é outra coisa. Estou ficando com calor”. E o disse com a voz um pouco débil e fugaz, como se não o houvesse dito de fato, mas sim como se o houvesse escrito num papel e houvesse aproximado o papel do lume enquanto o lia: “Estou ficando”, e ela houvesse ficado com o papelzinho entre o polegar e o índice, virando, enquanto se consumia e eu acabava de ler: “...com calor", antes que o papelzinho se consumisse por completo e caísse ao chão enrugado, diminuído, convertido em insignificante pó de cinza: “Assim é melhor”, disse. “Às vezes, tenho medo de vê-la assim. Tremendo junto à luminária”.

Víamo-nos há vários anos. Às vezes, quando já estávamos juntos, alguém deixava cair lá fora uma colher e despertávamos. Pouco a pouco, fomos compreendendo que nossa amizade estava suborndinada às coisas, aos acontecimentos mais simples. Nossos encontros terminavam sempre assim, com o cair de uma colher na madrugada.

Agora, junto à luminária, fitava-me. Eu me lembrava que antes também havia me fitado assim, desde aquele remoto sonho no qual girei a cadeira sobre suas pernas posteriores e parei diante de uma desconhecida de olhos cinzentos. Foi neste sonho que lhe perguntei pela primeira vez: “Quem é você?” E ela me disse: “Não me lembro”. Eu lhe disse: “Mas acredito que nos vimos antes”. E ela disse, indiferente: “Acredito que alguma vez sonhei com você, com este mesmo quarto”. E eu lhe disse: “É isso. Já começo a me lembrar”. E ela disse: “Que curioso. É certo que nos encontramos em outros sonhos”.

Deu duas tragadas no cigarro. Eu ainda estava parado diante da luminária, quando fiquei olhando-a subitamente. Olhei-a de cima a baixo e ainda era de cobre; mas não mais de metal duro e frio, mas de cobre amarelo, brando, maleável. “Gostaria de tocá-la”, voltei a dizer. E ela disse: “Poria tudo a perder”. Eu disse: “Agora não importa. Bastará que viremos o travesseiro para que voltemos a nos encontrar”. E estendi a mão por cima da luminária. Ela não se moveu. “Poria tudo a perder”, voltou a dizer, antes que eu pudesse tocá-la. “Talvez, se você der a volta por detrás da luminária, despertaríamos sobressaltados, quem sabe em qual parte do mundo”. Mas eu insisti: “Não importa”. E ela disse: “Se virássemos o travesseiro, voltaríamos a nos encontrar. Mas você, quando despertar, terá esquecido”. Comecei a me mover até o canto. Ela ficou atrás, aquecendo as mãos sobre o lume. E eu ainda não estava perto da cadeira quando ouvi-a dizer, às minhas costas: “Quando acordo à meia-noite, fico rodando na cama, com os fios do travesseiro queimando-me o joelho e repetindo até o amanhecer: ‘Olhos de cão azul’”.
Então parei com a cara contra a parede. “Já está amanhecendo”, disse, sem fitá-la. “Quando deram as duas, eu estava acordado, e isto faz muito tempo”. Eu me dirigi até a porta. Quando tinha pegado a maçaneta, ouvi outra vez sua voz igual, invariável: “Não abra esta porta”, disse. “O corredor está cheio de sonhos difíceis”. E eu lhe disse: “Como você sabe?” E ela me disse: “Porque há um momento estive ali e tive que retornar quando descobri que estava adormecida sobre o coração”. Eu tinha a porta entreaberta. Movi um pouco a porta e um arzinho frio e tênue me trouxe um cheiro fresco de terra vegetal, de campo úmido. Ela falou outra vez. Eu dei a volta, movendo ainda a porta montada em dobradiças silenciosas, e lhe disse: “Acredito que não há corredor algum aqui fora. Sinto o cheiro do campo”. E ela, um pouco distante já, disse-me: “Conheço isto mais do que você. O que acontece é que lá fora há uma mulher sonhando com o campo”. Cruzou os braços sobre o lume. Continuou falando: “É essa mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca pôde sair da cidade”. Eu me lembrava ter visto a mulher em algum sonho anterior, mas sabia, já com a porta entreaberta, que dentro de meia hora tinha de descer para o café-da-manhã. E disse: “De toda maneira, tenho que sair daqui para acordar”.
Fora, o vento soprou por um instante, depois ficou quieto e se ouviu a respiração de um dormente que acabava de dar a volta na cama. O vento do campo cessou. Já não havia mais cheiros. “Amanhã, eu a reconhecerei por isto” disse. “Eu a reconhecerei quando vir na rua uma mulher que escreve nas paredes: ‘Olhos de cão azul’”. E ela, com um sorriso triste — que era um sorriso de entrega ao impossível, ao inalcançável —, disse: “No entanto, não se lembrará de nada durante o dia”. E voltou a pôr as mãos sobre a luminária, com o semblante obscurecido por uma névoa amarga: “É o único homem que, ao despertar, não se lembra de nada do que sonhou”.

1950
fonte: http://www.lajiribilla.co.cu/2007/n306_03/elcuento.html

Biografia
Gabriel José García Márquez nasceu em Aracataca (Colômbia), e foi criado na casa de seus avós maternos, que iriam influenciar o futuro literato com as histórias que contavam. O avô, coronel Nicolas Márquez, veterano da guerra civil colombiana (1899-1902), narrava-lhe suas aventuras militares, e a avó, Tranquilina Iguarán, relatava fábulas e lendas que transmitiam sua visão mágica e supersticiosa da realidade.

García Márquez, ou simplesmente Gabo, completou os primeiros estudos em Barranquilla e Zipaquirá, onde teve um professor de literatura, Carlos Julia Calderón Hermida, que desempenhou papel marcante em sua decisão de se tornar um escritor e a quem dedicaria seu romance "O Enterro do Diabo" (1955). Por insistência dos pais, Márquez chegou a iniciar o curso de direito na Universidade Nacional, em Bogotá, mas logo enveredou para o jornalismo, assumindo uma coluna diária no recém-fundado jornal "El Universal". Nunca se graduou.

Nessa época, final da década de 1940, publicou seus primeiros contos, "La Tercera Resignación" e "Eva Está Dentro de su Gato". Consagrou-se na carreira jornalística ao ingressar na redação de "El Espectador", onde se tornou o primeiro crítico de cinema do jornalismo colombiano e depois um brilhante cronista e repórter, que exerceu influência na vida cultural do país. Em 1955, viajou para a Europa como correspondente do jornal, após a publicação de uma extensa reportagem, "Relato de um Náufrago", que desagradou ao governo do general Roja Pinillas.

No final dos anos 50, de volta às Américas, trabalhou em Caracas (Venezuela), em Cuba, onde passou seis meses, e em Nova York, dirigindo a agência de notícias cubana Prensa Latina. Em 1960, García Márquez mudou-se para a Cidade do México e começou a escrever roteiros para cinema. No ano seguinte, publicou "Ninguém Escreve ao Coronel" e, em 1962, "O Veneno da Madrugada", que ganhou o Prêmio Esso de Romance, na Colômbia.

Em 1966, segundo depoimento do escritor mexicano Carlos Fuentes, quando voltava do balneário de Acapulco para a Cidade do México, García Márquez teve o momento de inspiração para escrever o romance que ruminava há mais de uma década. Largou o emprego, deixando o sustento da casa e dos dois filhos a cargo da mulher, Mercedes Barcha. Isolou-se pelos próximos 18 meses, trabalhando diariamente por mais de oito horas. No ano seguinte, publicou aquele que seria sua obra mais conhecida, "Cem Anos de Solidão" (1967) - unanimemente uma obra-prima da literatura em língua espanhola.

Com o sucesso, mudou-se para Barcelona, Espanha, onde permaneceu até 1975, passando temporadas em Bogotá, México, Cartagena (Colômbia) e Havana. Em 1981, voltou para a Colômbia. Acusado pelo governo de colaborar com a guerrilha, exilou-se no México. Nesse período, publicou novos romances, livros de contos e antologias de sua produção jornalística e de ficção.

Em 1982, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Segundo se soube posteriormente, a premiação foi disputada com o escritor inglês Graham Greene e o alemão Günther Grass. Diante da Academia Sueca e de quatrocentos convidados, pronunciou o discurso "A Solidão da América Latina", questionando os estereótipos com que os latino-americanos eram vistos na Europa e a falta de atenção dos países ricos ao continente.

O escritor retornou ao jornalismo em 1999, quando passou a dirigir a revista "Cambio". Em 2002, publicou "Viver Para Contá-la", primeiro volume de sua autobiografia. Entre outras obras de destaque, García Márquez é o autor de "Crônica de uma Morte Anunciada" (1981), "O Amor nos Tempos do Cólera" (1985), "O General em Seu Labirinto" (1989) e "Notícias de um Seqüestro" (1996). O último romance que publicou, em 2004, intitula-se "Memórias de Minhas Putas Tristes".

Alguns de seus textos foram adaptados para o cinema, como "Eréndira", de 1983, estrelado por Cláudia Ohana e dirigido por Ruy Guerra, e "O Amor nos Tempos do Cólera", de 2007, dirigido pelo inglês Mike Newell, e com a participação de Fernanda Montenegro.

Fontes: Banco de Dados/Folha de S. Paulo e edição comemorativa dos 40 anos de "Cien Años de Soledad", Madrid, 2007, Real Academia Española - via: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u87.jhtm





A Seita de Fênix

Jorge Luis Borges
trad.: Henry Alfred Bugalho

Aqueles que escrevem que a seita de Fénix teve sua origem em Heliópolis e a derivam da restauração religiosa que se sucedeu à morte do reformador Amenófis IV, alegam textos de Heródoto, de Tácito e dos monumentos egípcios, mas ignoram, ou querem ignorar, que a denominação de Fénix não é anterior a Hrabano Mauro e que as fontes mais antigas (as Saturnais de Flávio Josefo, digamos) só falam da Gente do Costume, ou da Gente do Segredo. Já Gregorovius observou, nos coventículos de Ferrara, que a menção da Fénix era raríssima na linguagem oral; em Geneva, tratei com artesãos que não me compreendiam quando inquiri se eram homens da Fénix, mas que admitiram, em seguida, serem homens do Segredo. Se não me engano, o mesmo acontece com os budistas; o nome pelo qual o mundo os conhece não é o que eles pronunciam.

Miklosich, numa página bastante famosa, comparou os sectários de Fénix aos ciganos. No Chile e na Húngria, há ciganos, e também há sectários; tirando esta espécie de ubiquidade, muito pouco têm em comum uns com os outros. Os ciganos são charlatães, caldeireiros, ferreiros e adivinhadores da boa sorte; os sectários só exercem felizmente as profissões liberais. Os ciganos configuram um tipo físico e falam, ou falavam, um idioma secreto; os sectários se confundem com os demais e a prova é que não sofreram perseguições. Os ciganos são pitorescos e inspiram os maus poetas; os romances, as estampas e os boleros omitem os sectários... Martín Buber declara que os judeus são essencialmente patéticos; nem todos os sectários o são e alguns abominam o pateticismo; esta pública e notória verdade basta para refutar o erro vulgar (absurdamente defendido por Urmann) que vê em Fênix uma derivação de Israel. Conjetura-se mais ou menos assim: Urmann era um homem sensível; Urmann era judeu; Urmann frequentou os sectários na judiaria de Praga; a afinidade que Urmann sentiu prova um fato real. Sinceramente, não posso concordar com esta asserção. Que os sectários em um meio judaico se pareçam aos judeus não prova nada; o inegável é que se parecem, como o infinito Shakespeare de Hazlitt, a todos os homens do mundo. São tudo para todos, como o Apóstolo; dias atrás, o doutor Juan Francisco Amaro, de Paysandú, ponderou sobre a facilidade com que se acriollavam.

É dito que a história da seita não registra perseguições. É verdade, mas como não há grupo humano no qual não figurem os partidários da Fênix, também é certo que não há perseguição ou rigor que estes não tenham sofrido ou executado. Nas guerras ocidentais e nas remotas guerras da Ásia verteram seu sangue secularmente, sob bandeiras inimigas; de muito pouco lhes vale indentificarem-se com todas as nações do orbe.

Sem um livro sagrado que os congregue como a Escritura a Israel, sem uma memória comum, sem esta outra memória que é um idioma, dispersos pela face da terra, diversos de cor e de traços, uma só coisa, o Segredo, os une e uni-los-á até o fim de seus dias. Certa vez, além do Segredo, houve uma lenda (ou talvez um mito cosmogônico), mas os superficiais homens da Fênix a esqueceram e hoje só guardam a obscura tradição de um castigo. De um castigo, de um pacto ou de um privilégio, porque as versões diferem e apenas deixam entrever o veredicto de um Deus que assegura a uma estirpe a eternidade, se seus homens, geração após geração, executam um rito. Comparei os informes dos viajantes, conversei com patriarcas e teólogos; posso dar fé que o cumprimento do rito é a única prática religiosa que observam os sectários. O rito constitui o Segredo. Este, como já indiquei, se transmite de geração em geração, mas o uso não requer que as mães o ensinem aos filhos, nem tampouco os sacerdotes; a iniciação ao mistério é tarefa dos indivíduos mais baixos. Um escravo, um leproso ou um pedinte se fazem de mistagogos. Também uma criança pode doutrinar outra criança. O ato, em si, é trivial, momentâneo e não requer descrição. Os materiais são a cortiça, a cera ou a goma-arábica. (Na literatura se fala de limo; costuma-se usar este também). Não há templos dedicados especialmente à celebração deste culto, mas uma ruína, um sotão, ou um saguão são considerados lugares apropriados. O Segredo é sagrado, mas não deixa de ser um pouco ridículo; seu exercício é furtivo e ainda clandestino, e os adeptos não falam dele. Não há palavras decentes para nomeá-lo, mas se entende que todas as palavras o nomeiam, ou, melhor dizendo, que inevitavelmente o aludem, e assim, no diálogo, eu havia dito uma coisa qualquer e os adeptos sorriram, ou se incomodaram, porque sentiram que eu havia tocado o Segredo. Nas literaturas germânicas, há poemas escritos por sectários, cujo sujeito nominal é o mar ou o crepúsculo da noite; são, de algum modo, símbolos do Segredo, ouço repetir. Orbis terrarum est speculum Ludi reza um adágio apócrifo que Du Cange registrou em seu Glossário. Uma sorte de horror sagrado impede a alguns fiéis a execução do simplíssimo rito; os outros os desprezam, mas eles se desprezam ainda mais. Gozam de muito crédito, em troca, aqueles que deliberadamente renunciam ao Costume e logram um comércio direto com a divindade; estes, para manifestarem este comércio, fazem-no com figuras da liturgia e assim John of the Rood escreveu:

Saibam os Nove Firmamentos que o Deus
É deleitável como a Cortiça e o Limo.

Mereci em três continentes a amizade de muitos devotos da Fénix; consta-me que o Segredo, a princípio, lhes pareceu frívolo, penoso, vulgar e (o que é ainda mais estranho) incrível. Não se conformavam em admitir que seus pais houvessem se rebaixado a tais práticas. O raro é que o Segredo não se tenha perdido há tempo; a despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos êxodos, chega, tremendamente, a todos os fiéis. Alguém não vacilou em afirmar que já é instintivo.

fonte: http://books.google.com/books?id=7vUfapNfESkC


Jorge Luis Borges - Biografia

"Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção".

O escritor Jorge Luis Borges nasceu na capital argentina, Buenos Aires. Bilíngüe desde a sua infância, aprendeu a ler em inglês antes que em castelhano, por influência de sua avó materna de origem inglesa.

Aos seis anos disse a seu pai que queria ser escritor e aos sete escreveu, em inglês, um resumo de literatura grega. Aos oito, inspirado num episódio de "Dom Quixote" de Cervantes, fez seu primeiro conto: "La Visera Fatal". Aos nove anos, traduziu do inglês "O Príncipe Feliz" de Oscar Wilde.

Em 1914, devido à quase cegueira total, seu pai decide passar uma temporada com a família na Europa. Em Genebra, Jorge escreveu alguns poemas em francês enquanto estudava o bacharelado (1914-1918). Sua primeira publicação registrada foi uma resenha de três livros espanhóis para um jornal de Genebra.

Em 1919, mudou-se para a Espanha e publicou poemas e manifestos na imprensa. Em 1921, retornou a Buenos Aires e redescobriu sua cidade natal, na efervescência dos anos 20. Nesse clima escreveu seu primeiro livro de poemas, "Fervor em Buenos Aires", publicado em 1923.

A partir de 1924, publicou algumas revistas literárias e, com mais dois livros, "Luna de Enfrente" (poesia) e "Inquisiciones" (ensaios), ganhou em 1925 a reputação de chefe da jovem vanguarda de seu país. Nos anos seguintes, ele se transformou num dos mais brilhantes e polêmicos escritores da América Latina.

Inventando um novo tipo de regionalismo, acrescentou uma perspectiva metafísica da realidade, mesmo em temas como o subúrbio portenho ou o tango. Nesta fase escreveu "Cuaderno San Martin" e "Evaristo Carriego". Mas logo se cansou desses temas e começou a especular sobre a narrativa fantástica, a ponto de produzir durante duas décadas, de 1930 a 1950, algumas das mais extraordinárias ficções do século, nos contos de "Historia Universal de la Infamia" (1935); "Ficciones" (1935-1944) e "El Aleph" (1949), entre outras.

Em 1937, Borges foi nomeado diretor da Biblioteca Pública Nacional, o que foi seu primeiro e único emprego oficial. Saiu nove anos depois, indignado com a inclinação fascista que estava tomando a Argentina.

No que se refere ao amor, o caso mais quente do escritor argentino foi com Estela Canto, que depois lançou o livro de memórias "Borges a Contraluz". Ele conta em sua biografia que a pediu em casamento. Moderna e liberada para a época, Estela respondeu: "Eu aceitaria, Georgie, mas não podemos casar sem antes dormir juntos". Borges ficou assustado e desapareceu.

Aos 50 anos, o escritor já havia perdido parcialmente a visão. Com o passar dos anos, quando a cegueira se fez completa, sua mãe, Leonor, passou a cuidar dele, lendo e escrevendo o que ditava.

O reconhecimento literário de Borges se solidificou em 1961 com a conquista do prêmio concedido pelo Congresso Internacional de Editores, que dividiu com Samuel Beckett. Logo receberia também prêmios e títulos por parte dos governos da Itália, França, Inglaterra e Espanha.

Em 1967, Borges casou-se com uma amiga de infância, Elsa Astete. O casamento durou três anos e acabou com Borges fugindo de casa, sem coragem para discutir a separação. Sua mãe, Leonor, morreu em 1975. Seu segundo casamento foi com a sua ex-aluna Maria Kodama que se tornou sua secretária particular em 1981. Kodama era de origem japonesa e tornou-se a herdeira de seus direitos autorais.

Em 1983, Borges publicou no diário "La Nación" de Buenos Aires o relato "Agosto 25, 1983", em que profetizava seu suicídio. Perguntado depois porque não havia se suicidado na data anunciada, respondeu: "Por covardia". Borges afirmava freqüentemente o seu ateísmo e falava da solidão como uma espécie de segunda companheira.

fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u221.jhtm





quinta-feira, 16 de abril de 2009

Juliana e o coelho

Mariana Valle

Juliana era casada há cinco anos, mas se sentia sozinha. Maurício viajava muito a trabalho. Então ela resolveu que merecia um vibrador. Ao ver um episódio do seriado Sex and the city, decidiu: queria o tal do rabitt, usado pela Charlotte.

E não é que ele era mesmo supimpa? Fazia serviço duplo, atacava em todas as frentes. E assim Juliana se refestelava todas as noites em que Maurício estava fora. Mas aquele negócio era tão bom que ela passou a usá-lo inclusive nos dias em que dormiria com o marido. E quando ele chegava em casa, doido para matar a saudade da esposa, recebia um bando de desculpas da mulher já saciada. Um dia era dor de cabeça, no outro cansaço... Até inventar que estava "naqueles dias", Juliana inventou. Tudo para fugir do sexo com o marido. Ela era fiel. O problema é que agora sua fidelidade se voltava para o tal coelhinho.

Maurício não sabia mais o que fazer. Já estava subindo pelas paredes. Chegou até a desconfiar que a mulher tinha um amante. E foi por isso que resolveu chegar mais cedo naquela quarta-feira. Pé ante pé, ele entrou pela sala e, ao chegar no corredor, notou a porta do quarto fechada. Tascou o olho na fechadura e não acreditou quando finalmente desvendou o segredo de Juliana. Ela o traía com o coelho. “Ela me paga!”, pensou, enraivecido.

Um mês se passou e Maurício teve que viajar para os Estados Unidos a trabalho. Na volta ao lar, trazia uma novidade na bagagem. E foi em cima da cama, de onde Juliana reclamava de sua usual enxaqueca, que Maurício abriu o presente. De dentro de uma caixinha, ele tirou um pedaço de plástico colorido, soprou dentro dele, e, pouco a pouco, ele cresceu, até ficar do tamanho de Juliana. Maurício então se deitou ao lado da boneca, e estava prestes a abracá-la, quando Juliana soltou um berro:
- Você não vai fazer com ela o que eu estou pensando, vai?
- Se eu não posso fazer com a minha mulher, eu tenho que dar um jeito, você não acha?
Juliana ficou desesperada.
- Não acredito numa coisa dessas, Maurício! Não acredito!
- É muito simples, Juliana. Basta você acabar com essa greve que eu rasgo a boneca.

Juliana não titubeou e se jogou nos braços de Maurício com paixão. Num minuto, a dor de cabeça foi embora. E o reencontro amoroso lembrou até aquelas transas de início de namoro, de tão apaixonado que foi. Quando tudo acabou, ainda em estado de êxtase, Juliana cobrou:
- E a boneca? Não vai rasgá-la?
- Claro, meu amor, farei isso já.

E assim, com a boneca em pedaços e o orgulho restabelecido, Juliana finalmente pôde dormir em paz. Mas Maurício ainda não estava com sono. E tinha uma providência muito importante a tomar. Levantou-se da cama em silêncio e correu para o armário da mulher. Bem ali onde ela havia escondido o coelho mais cedo. Pegou aquele “bicho” com raiva e o levou até o tanque da cozinha. Depois sacou a caixa de fósforos do bolso e tacou fogo no troço. Agora sim, ele poderia dormir feliz.

No dia seguinte, Juliana não comentou nada, mas ele percebeu que ela estava estranha. Ela não sabia o que pensar. “Será que Maurício tinha descoberto meu segredo? Mas então por que ele não comentara nada? Então quem haveria de ter sumido com meu coelho?” Juliana estava agoniadíssima, mas fazia a maior força do mundo para não demonstrar.

Na hora de dormir, Maurício virou para o lado e nem sequer ensaiou procurar o carinho da esposa. E foi assim durante um mês inteiro. Juliana não estava entendendo nada. “Será que ele tem outra? Será que estou gorda? Por que ele não me procura mais?” E num desses dias de incertezas, Maurício chegou do trabalho feliz da vida. E, já vestindo o pijama, repetiu o ritual daquele dia fatídico. Pousou a caixinha na cama, tirou o plástico lá de dentro e rapidamente inflou a boneca. Depois, fez com ela aquilo que não fazia com a mulher há um mês e, quando acabou, se virou para o lado e dormiu como um anjo. Juliana não deu um só pio. E ainda teve que dividir a cama com a boneca.





quarta-feira, 15 de abril de 2009

Entrevista: Katia Suman e Claudia Tajes, do Sarau Elétrico

O que é o Sarau Elétrico?


O SARAU ELÉTRICO é um encontro literário-musical que ocorre todas as terças-feiras, desde 1999, no bar Ocidente, em Porto Alegre. Já incorporado ao calendário cultural da cidade, o evento reúne, todas as semanas, um público fiel e disposto a ouvir leituras sobre os mais variados temas e dos mais diversos autores nacionais e estrangeiros. Participam os professores Luís Augusto Fischer e Cláudio Moreno, a escritora Claudia Tajes e a radialista Katia Suman. O músico Frank Jorge fez parte deste time de 1999 a 2005. 

A principal característica do SARAU ELÉTRICO é tornar a leitura acessível a todos os públicos através da combinação de boa conversa, entrevistas interessantes, muito humor e informação. O SARAU ELÉTRICO tem mostrado, ao longo de seus quase dez anos, que a cultura também pode ser pop.

Os temas são escolhidos a partir de assuntos do momento (a comemoração de alguma obra, o aniversário de um lugar, o centenário de um autor, por exemplo), ou das grandes questões do homem –e da literatura: a saudade, a melancolia, o medo, o sexo, o amor, entre elas. Estilos como o conto, a crônica, a poesia; autores da grandeza de Manuel Bandeira, Baudelaire e Carlos Drummond de Andrade, movimentos  (literatura beat, modernismo, romantismo) ou épocas, como os Anos de Chumbo, já iluminaram as noites do Sarau Elétrico. Pode-se ainda delimitar o tema geograficamente (literatura norte-americana, literatura francesa, literatura gaúcha) ou fazer qualquer recorte que seja apropriado para contemplar autores ainda não visitados. Tudo o que sempre rendeu, e continua rendendo, boa literatura, é tema para o SARAU ELÉTRICO.

Os integrantes do SARAU ELÉTRICO intercalam leituras de textos relacionados ao tema com comentários, garantindo a descontração e o interesse da platéia. É dessa forma que, nas terças-feiras do bar Ocidente, a literatura perde todo e qualquer ar distante e incorpora-se à vida de Porto Alegre. No meio de tudo, o professor Moreno, responsável pela ‘coluna grega”, narra alguma história extraída da mitologia dos gregos, estabelecendo uma improvável, e sempre divertida, conexão com o tema da noite. Para encerrar, há sempre um “pocket show” de artistas locais.

O objetivo do SARAU ELÉTRICO é incentivar o hábito de ler, recuperar a palavra, o bom papo, a boa prosa, a poesia, a literatura, a letra da canção popular. É desse jeito que o SARAU ELÉTRICO tem contribuído para espalhar o prazer da leitura.

Em dez anos de atividades, o SARAU ELÉTRICO já realizou cerca de 500 edições, atingindo um público de cerca de 40 mil pessoas interessadas em literatura, cultura e educação. Nomes consagrados como Luís Fernando Veríssimo, Lya Luft,
Martha Medeiros, Fausto Wolff, Marçal Aquino, Fabrício Carpinejar, Donaldo Schüller, Jorge Furtado, Moacyr Scliar e tantos outros, já participaram do SARAU.  Responsáveis pelo show da noite, músicos como Vitor Ramil, Nei Lisboa, Bebeto Alves, Papas da
Língua, Nenhum de Nós, Júlio Reny, quartetos de cordas, grupos de chorinho, de samba e de rock, mostram a diversidade da programação e a simpatia dos músicos pelo
projeto.

Participantes fixos:
Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira na UFRGS, doutor em Nélson Rodrigues, escritor, cronista e jornalista nas horas vagas. Autor de vários livros de crônicas, ensaios e contos, com destaque para o já clássico Dicionário de Porto-Alegrês e a premiada novela Quatro Negros.

Claudia Tajes trabalha em criação publicitária, escreveu alguns roteiros para televisão e tem 6 livros publicados, entre eles Dez (Quase) Amores, As Pernas de Úrsula, A Vida Sexual da Mulher Feia e Louca por Homem.

Cláudio Moreno, professor de português do Unificado e Leonardo da Vinci, escritor e cronista. Especialista em mitologia grega. Autor do best-seller Tróia, entre outros. Mantém o site www.sualingua.com.br

Katia Suman, graduada em Ciências Sociais, mestre em Comunicação, radialista e apresentadora da TV COM.


A entrevista a seguir é com as meninas do SARAU ELÉTRICO: Kátia Suman e Claudia Tajes.

 

(as respostas em vermelho são da Claudia, as em preto são da Katia)

SAMIZDAT: Nestes anos de atividade do SARAU Elétrico, vocês notaram que tipo de mudança, seja por parte dos ouvintes, seja por parte dos artistas participantes, em relação ao trabalho de vocês? 

Claudia: Eu, que participo há menos de dois anos do time, notei que muita gente que me conheceu no Sarau e que não havia lido nada que eu escrevi se interessou pelos meus livros.

Katia: As pessoas vão se renovando, o público vai mudando. Sempre tem gente nova aparecendo, embora haja um grupo de “fiéis” bem expressivo. Mas não consigo detectar um tipo de mudança, acho mais fácil falar no imutável, que é precisamente o gosto pela leitura. É isso que leva o público ao sarau. E é isso que há em comum entre eles.


SAMIZDAT: Qual é o principal público do SARAU: quem já gosta de literatura e possui o hábito de leitura, ou quem não tem o hábito, mas que busca um incentivo e uma orientação inicial? 

Claudia: Imagino que seja quem já se interessa por leitura, e gosta desse formato que junta literatura e diversão na mesma noite.

 

SAMIZDAT: O Rio Grande do Sul possui uma tradição de grandes autores e de importantes iniciativas culturais. A que vocês atribuem este fenômeno? 

Claudia: Dizem que a praia do gaúcho é a livraria. Acho que eu concordo, ainda mais quando se vê o Sarau e outras iniciativas até parecidas com grande público, mesmo em tempo de verão e férias.

Katia: Acho que tem a ver com geografia, um povo mais isolado, tem a ver  com o clima, mais propenso ao recolhimento, tem a ver com a formação histórica, marcada por peleias e enfrentamentos. Sei lá, acho que dá pra ir por aí.

 

SAMIZDAT: O livro é um bicho desconhecido - e amedrontador - para uma boa parte da população brasileira. Que tipo de iniciativas você acreditam que poderiam contribuir para aproximar as pessoas da leitura? 

Claudia: Primeiro, o colégio poderia rever as tais leituras obrigatórias e sugerir aos alunos livros mais dentro dos interesses deles, para não traumatizar a criançada com os clássicos que, se tudo correr bem, todos terão o prazer de ler mais tarde. E projetos como o Sarau certamente aproximam o leitor do livro e apresentam muitos autores interessantes para o público.

 

SAMIZDAT: Como foi que surgiu a idéia do projeto? Ele sempre teve o formato atual?

Katia: A idéia surgiu da vontade de ter um espaço para leituras e comentários, para falar de literatura sem ranço acadêmico. Desde o começo a idéia era ler, conversar e encerrar com música. Quando pensei na idéia, veio junto o local: só podia ser no Ocidente. Por tudo que representa, pelo astral. E pensei no Fischer, que recém tinha conhecido e no Frank, que na época fazia um lance na Ipanema, que eu tinha inventado, as Crônicas Frankeanas.

 

SAMIZDAT: Existe literatura além do livro? 

Claudia: Para mim, o livro é a expressão máxima da literatura. E mesmo os autores que surgem na internet, em algum momento, acabam publicando seus livros. 


SAMIZDAT: Falam muito da baixa qualidade dos livros que vendem muito, e da qualidade ainda pior de algumas traduções de bestsellers pelas editoras brasileiras. Sem falar do problema da falta de um público leitor, e ainda mais de um público leitor capacitado, pergunta-se: desde que esteja vendendo, faz alguma diferença que esteja bem ou mal escrito? 

Claudia: Talvez desse pra dizer: desde que as pessoas estejam lendo, não importa o que elas estão comprando. Mas se a gente lê para conhecer ideias bacanas, para descobrir coisas novas e enriquecer com os textos que escolhe, então dá uma certa pena ver a Bruna Surfistinha vendendo milhares de livros.

Katia: Faz diferença sim. Textos ruins não levam a nada. Podem até desestimular o incauto leitor, que não levará adiante a experiência da leitura.

 

SAMIZDAT: Há algum registro dos encontros? Já publicaram - ou pensam em publicar - um livro de memórias do Sarau?

Katia: Há centenas de gravações do áudio de saraus. Pensamos sim em publicar um livro. Talvez esse ano, quando ele completa 10 anos. O projeto está caminhando, mas tem a crise, a marolinha que virou tsunami e deve dificultar a empreitada.

Mas vamos tentar.

 

SAMIZDAT: Que acharam da versão do Fernando Meirelles para Ensaio sobre a cegueira?

Claudia: Eu gostei. Mas sou fã do Fernando Meirelles, talvez mais que do Saramago. Minha visão (ou falta de) é parcial.

Katia: Não vi.

 

SAMIZDAT: [Para a Claudia] Achei genial o trecho inicial da resenha feita pelo Fabrício Carpinejar ao seu A vida sexual da mulher feia

A Vida Sexual da Mulher Feia (2005, Agir, 136 págs.) já provocou gafes em algumas livrarias. Algumas pensaram que era auto-ajuda, um manual prático para as mulheres pouco abençoadas fisicamente. Outras acreditaram que se tratava de uma biografia. Difícil conciliar a estante biográfica com a fotografia de Claudia Tajes, publicitária gaúcha, bela morena de 42 anos e autora de outros quatro livros de ficção, Dez quase Amores; Dores, Amores e Assemelhados; As Pernas de Úrsula e Vida Dura.

 

A pergunta: Como você, enquanto autora, percebeu a receptividade do público ao romance? Não teve gente querendo o dinheiro de volta (pensando tratar-se de “outro gênero de livro”)? 

Claudia: A maior reclamação que eu ouvi foi: pô, me disseram que era uma comédia e é um livro triste. E acho que é mesmo, dá até pra fazer humor com a rejeição, mas o assunto é amargo. Eu pensei que talvez o livro pudesse chamar a atenção, mas fiquei surpresa com a boa aceitação dele. E mais ainda por ter tanta gente que se identificou com o livro.

 

SAMIZDAT: [também para a Cláudia] Antes de escrever um romance, em que momento decide se o protagonista será masculino ou feminino? Há um planejamento para esse tipo de coisa? 

Claudia: Eu gosto mais de protagonistas masculinos, mas às vezes me faltam ideias (e talento) para dar vida a um homem. Há pouco comecei a escrever sobre um ator pornô que tem o membro pequeníssimo. Acho que vai ser meu próximo livro, um dia.

 

SAMIZDAT: [Geral, mas direcionada para a Kátia]: Li a entrevista do dono da Jovem Pan, o Tutinha Amaral, à Playboy, em que ele afirma que na rádio dele nunca teve jabá, e sim "acordos comerciais". A Katia fez um trabalho acadêmico - a sua dissertação de mestrado... tá lá no Lattes - precisamente sobre esse assunto, o jabá nas rádios FM no Brasil. A pergunta: o mercado "artístico" funcionaria sem o jabá? 

Katia: Funcionaria, claro. E de maneira muito mais saudável, sem o desequilíbrio de forças entre um artista independente e sem grana e um artista de uma grande gravadora disposta a qualquer coisa para ter seu “produto” executado nas rádios, se apresentando na TV, nas capas dos suplementos culturais de jornais e revistas, etc.

Mas a fila anda e o mundo está mudando muito rápido. Hoje as gravadoras perderam a força, perderam grana, os independentes estão cada vez mais se impondo e a relação de forças se inverteu, a partir da internet e da música digital. O jabá está em extinção.

 

SAMIZDAT: Encontrei um dos romances da Claudia na íntegra em um site para leitura online. Nesse caso, há toda a referência aos copyrights, mas ainda assim, não precisei pagar um centavo para lê-lo (eu li só dois capítulos, tá! prometo que vou comprar o livro...). Que acham disso?

Claudia: Por mim, não precisa pagar nada. Lendo já está bom!

Katia: Do ponto de vista dos músicos, que é o que conheço mais, sei que o artista, historicamente, nunca ganhou dinheiro com a venda de discos. Não ganha aqui, não ganha na Europa, nem nos Estados Unidos. Artista ganha dinheiro fazendo show. Quem ganha dinheiro com venda de disco é a gravadora. Ora, se assim é, o artista se tiver uma distribuição grande pirata, ou seja, vender horrores nos camelôs, dificilmente vai reclamar da vida. Porque vai ter muito mais gente querendo ver seus shows.

 

SAMIZDAT: E a respeito de copyright, copyleft e das licenças Creative Commons

Claudia: Ainda estou em fase de consolidar alguma coisa. Se não me pagarem mas distribuírem meus livros por aí, eu ainda me acho no lucro (é por isso que eu tenho que trabalhar tanto em outra atividade...).

Katia: Sou totalmente a favor. Liberar geral.

 

SAMIZDAT: Houve, dia desses, o "Sarau das Listas". Vocês poderiam eleger, entre os brasileiros contemporâneos, ainda em atividade (i.e., vivos), uma lista dos cinco melhores escritores de ficção e os cinco melhores poetas?

Claudia: Na ficção, só medalhões: Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Marçal Aquino, Moacyr Scliar, Milton Hatoum e ainda a Cíntia Moscovich. Poetas: sou bastante ignorante no assunto. Gosto muito do Fabrício Carpinejar e conheci na semana passada, graças ao pelotense Vitor Ramil, a poeta de Pelotas Angélica Freitas, que lançou o livro Rilke Shake em 2007. Guria muito boa. Também leio a poesia das minhas amigas Martha Medeiros e Paula Taitelbaum.

 

Katia: Ficção: Trevisan, Rubem Fonseca, Daniel Pellizzari, Chico Buarque de Hollanda. Luis Fernando Veríssimo. Poesia: Adélia Prado, Fabrício Carpinejar, Gonçalo M. Tavares (português é quase brasileiro), Paula Taitelbaum e Martha Medeiros.

 

SAMIZDAT: Oficinas e cursos de formação de escritores ou de “escrita criativa”, como por exemplo as do Assis Brasil, funcionam? É possível ensinar alguém a escrever, ou tais encontros servem para “descobrir talentos”? 

Claudia: É possível ensinar a escrever. A partir daí, a sensibilidade e o talento de cada um é que decidem.

Katia: Acho que sim. Acho que escrever é uma habilidade que se pode desenvolver.

 

SAMIZDAT: Que pergunta deveria ter-lhes sido feita e não foi, considerando que esta é uma entrevista elaborada por aspirantes a escritores? 

Claudia: Tem a clássica: existe espaço para tanto escritor no Brasil? E eu responderia: até acho que não. Mas não é por isso que a gente vai desistir.

Katia: Ai, essa eu vou passar.



_____________________

Esta entrevista foi coordenada por Volmar Camargo Junior. 

As perguntas foram feitas por: Carlos Barros, Henry Alfred Bugalho e Volmar Camargo Junior.