Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Lançamento: D'antes, Ricardo Thadeu


SINOPSE
“A poética de Thadeu é, sobretudo, criativa, e nos limites semânticos desse adjetivo vulgar estão: acidez, irreverência, inteligência, ironia e surpresa. Com a bandeira hasteada, Breton encarnado, uniforme de poeta, batera no peito e dissera: imaginação querida, o que amo em ti é não perdoares. E assim escreveu seus versos tão-somente sobre cotidiano, mas um cotidiano visto de outro ângulo cujo acesso se dá pela leitura de D’ANTES. Somos levados por labirintos e paradoxos, respirando uma atmosfera surreal do habitual que nossos olhos virgens viriam apenas como um dia em que nada importante acontecera.”
Caio Rudá de Oliveira


FICHA TÉCNICA
Autor: Ricardo Thadeu
Título: D'ANTES
Editora: Virtual Books
ISBN: 9788579530647
Ano: 2009
Edição: 1
Número de páginas: 51
Acabamento: brochura
Formato: 14x20 cm



Para comprar ou para mais informações, entre no blogue do autor: clique para o 100 Fundamentos.





domingo, 24 de janeiro de 2010

Sempre há uma verdade.... (Parte 1)

(Maristela Scheuer Deves)

Se você não acredita, por que olha para os lados disfarçadamente durante o filme de terror, ou se assusta se lhe tocam o ombro no momento em que o vampiro persegue a vítima na tela? Se é tudo invencionice, por que olha embaixo da cama ou dentro do guarda-roupas antes de deitar, "só para ter certeza que está tudo ok"? Por que evita passar à noite em frente aos cemitérios, já que garante ao seu filho pequeno que fantasmas não existem e os mortos não podem fazer nada aos vivos?

Precaução, diz você. Mas... estranho perder tempo se precavendo contra algo que não existe. Você também não acredita em feitiços, "trabalhos" e vodu, mas prefere não pisar em uma galinha deixada numa encruzilhada, e não se sentiria nada bem se soubesse que um boneco com o seu rosto recebeu agulhas de um desafeto...Será que, no fundo, não há uma centelha de herança ancestral dentro de você, que guarda uma sabedoria primitiva e ensina que sempre há algo de verdade nas lendas? Será que, sem que você perceba, você não se questiona de onde surgiram vampiros, lobisomens, bichos-papões e outros personagens que povoam as histórias feitas para assustar?

Você nunca se perguntou, mesmo que de brincadeira, como é que esses mitos se espalharam por todos os recantos do mundo há centenas e centenas de anos, quando não havia internet, televisão ou outro meio rápido para difundir as idéias? Como é que simples histórias puderam chegar a diferentes povos, de idiomas distintos e de lugares distantes, mas unidos pela mesma crença no sobrenatural, pelo mesmo medo?

Pois eu acredito nas lendas. Agora, eu acredito. Depois de anos tentando esconder a verdade de mim mesma, fechando os olhos às evidências, eu fui obrigada a acreditar. E não só pela lógica que acabei de enumerar; lógica, por melhor que seja, não são fatos. Mas, quando os fatos apontam que o invisível é real, também não há lógica que os possa destruir – infelizmente.

Da mesma forma, sei que ter um depoimento sobre um fato não é o mesmo que vivenciá-lo. Assim, antes mesmo de contar o que me aconteceu, conformo-me antecipadamente de que você não acreditará no que eu digo. Mais uma lenda apenas, sorrirá. Como Tomé, só acreditaria se a vivesse. Então, e sou sincero, prefiro de todo meu coração que você não acredite no que vou dizer. Mesmo assim, tenho a obrigação de fazer esse relato.

Como eu dizia, também era cético até algum tempo atrás – até bem pouco tempo atrás, na verdade. Para ser mais preciso, até duas semanas atrás. Até que minha vida virou de cabeça para baixo, de uma forma que cheguei a pensar seriamente em me internar voluntariamente em um asilo para loucos. E o teria feito, acreditem, se eu pelo menos tivesse a certeza de que aquilo que descobri deixaria de ser verdade. Mas eu sei que a realidade não pode ser mudada assim, à nossa revelia. Por isso, decidi que contar a minha história era a única forma de salvação possível. Se não para mim, pelo menos para outros que possam aprender com ela.

No momento em que escrevo, estou escondida, encerrada num esconderijo distante. Não que esconderijos possam evitar o pior, mas tenho esperanças de que possam pelo menos adiá-lo. Não tenho muito tempo, por isso preste a máxima atenção no que eu estou lhe dizendo: não irei repetir essa história.

(continua no próximo mês)





sábado, 23 de janeiro de 2010

Segredos do tempo- Giselle Sato

Quando o tempo sussurrou em segredo:- Para você, é o bastante?
A soberba tornou-me cega e retruquei de malgrado um resmungo qualquer, sem prestar atenção às palavras. Apressada, como toda jovem, cheia de sonhos e planos. Ousada, destemida, a vida fluindo por todos os poros. Mal sabia o que queria, quanto mais o que me faltava...

Anos mais tarde, a idade trouxe o arrependimento. Infelizmente, já não havia volta, vi as brumas envolvendo a paisagem e desejei dentro delas, encontrar o casulo e abrigo. Mas apenas a ilusão gelada da existencia, me acompanhava:- Para você foi o bastante? -Ele me questionou novamente, desta vez, havia ironia e uma ponta de sarcasmo:
-Não! Queria ter ousado mais, dançado, cantado, viajado e vivido muito... Muito mais!Não fui feliz por completo, não amei o suficiente nem tive tudo que quis, acabou rápido demais, mal desfrutei ... Maldito tempo! Como te odeio! – Ouvi a risada pelos corredores vazios, e ainda os ouço... ainda.

O silencio é a companhia com quem reparto solidão e lembranças. Prendo as linhas no tear enquanto a lã macia escorre entre meus dedos e penso na vida. O xale toma forma, lentamente passo e repasso os fios e perco a noção do tempo. Sonho e repito cenas inteiras, cheia de saudades e carinho. Sinto-me prisioneira e meu algoz não tem pressa. Anos, meses, semanas, dias, horas, minutos e segundos. Testemunhas.
Cinza chumbo é a cor do mar agitado, ao longe um navio apita e o som estridente é apenas um adendo. A chaleira esquenta , o bolo recém saído do forno atiça o paladar e a madeira queima lentamente, espalhando calor e aconchego. Um gato preguiçoso me espia do sofá, acompanhando os movimentos.

O som dos saltos assustam, assim como a cara sisuda:- Hora do seu remédio. Depois jantar e cama. Hoje está frio demais! A senhora esqueceu a janela aberta? Sei que compreende perfeitamente e pode responder. Podíamos conversar...
Não respondo, há anos deixei de falar e dizem que meu olhar é o bastante. Aguardo a visita derradeira para, quem sabe, reencontrar meu companheiro, parentes e amigos.Dizem que existe esta possibilidade, não sei se acredito, ou se haverá apenas o vazio e mais solidão. Não resta muito, aos 100 anos de idade , não resta quase nada...





O Sapateiro, A anatomia de um psicótico - resenha de Giselle Sato

Se você pensa que já leu tudo sobre grandes assassinos psicóticos e não conhece O Sapateiro, com certeza deixou passar uma grande oportunidade.
A autora é Flora Rheta Schreiber, psiquiatra e autora de Sybil.

Em O Sapateiro, A anatomia de um psicótico, Flora não foge a regra e, mais uma vez, conta, com destreza, um dos raríssimos casos, em se tratando de serial killers, em que foi possível diagnosticar com precisão a origem de sua psicose.

Aos cinco anos de idade, Joseph foi submetido a uma cirurgia de hérnia. Seus pais adotivos, um severo casal de alemães, explicaram a operação para a criança de uma forma bem original: eles disseram que havia um demônio no “passarinho” de Joseph, e o demônio fazia com que o passarinho crescesse e ficasse duro, obrigando Joseph a fazer coisas ruins com ele.

Mas agora o doutor havia expulsado o demônio com a faca, de modo que o passarinho de Joseph ficaria sempre pequeno. Na noite deste mesmo dia, Joseph teve a sua primeira visão: o seu próprio pênis, amputado, pendendo da lâmina da faca de sapateiro de seu pai adotivo. A partir daí, Kallinger passou a associar facas e sexualidade de tal forma que, mais tarde, só conseguiria manter uma relação sexual e mesmo chegar ao orgasmo se estivesse segurando uma faca.

Ele começou a desenvolver um quadro de esquizofrenia paranóide, talvez a mais penosa e avassaladora dentre as doenças mentais. As visões começam a se multiplicar, Kallinger, agora exercendo a profissão de sapateiro, como seu pai, recebe a visita de Deus, que o ordena que salve a humanidade através da construção de um sapato apropriado, com a propriedade de curar as enfermidades da alma.

Após cerca de 40.000 experimentos ortopédicos que obviamente fracassaram, Kallinger tem outra visão, desta vez do Diabo. O Diabo lhe diz que, já que havia falhado em salvar a humanidade, sua missão agora seria exterminá-la: ele deveria matar cada homem, mulher ou criança na face da Terra através da mutilação de seus órgãos genitais.

Sua primeira vítima foi seu filho mais velho, que depois passou a assombrar o pai, na figura de Charlie, uma cabeça flutuante sem nariz ou boca que o incitava a cometer novos crimes. Outra alucinação freqüente era a Voz do Poço, uma cantilena fantasmagórica em um idioma desconhecido: Kryos Mary Kristos Kristorah Kristorah.

Em companhia de seu outro filho, Michael, na época com doze anos, Joseph Kallinger matou ainda três pessoas antes de ser preso. Após algumas tentativas de suicídio e ataques a outros presos, finalmente morre em 1996. O mais fascinante nesta história são as questões que ela nos coloca: até que ponto o mal é uma opção? Somos realmente senhores de nosso destino? Kallinger espalhou dor e sofrimento por onde passou, mas ele próprio sofria e precisava desesperadamente de ajuda.

O Sapateiro é um livro onde o personagem principal explica sua tendência homicida, o que o impele a ir além de todas as convenções e limites. A alma humana é dissecada, exposta sem pudor de chocar pelos detalhes sórdidos. O relato, nos mínimos detalhes, do mais brutal dos assassinos, aconteceram quando este estava na cadeia, no condado de Camden, em 1977. Em forma de confissões, Joseph procurou alívio aos seus tormentos, através de longas conversas com a autora.

Segundo a Dra. Schreiber , o assassino psicotico é muito diferente de um assassino psicopata. Este ultimo mata por dinheiro ou pelo prazer de matar,enquanto o primeiro o faz por causa de sua psicose. Isto não significa que todo psicótico seja um assassino, mas sim que o assassinato foi o efeito inevitável da psicose de Kallinger. Incapaz de saber a diferença entre suas visões e a realidade, entre os fantasmas que o assombravam e as pessoas que pensava estarem tentando destruí-lo. Era repleto de paradoxos.

O relato é rico em detalhes da infância e criação, do ódio e os motivos que o levaram a tornar-se um monstro aos olhos do mundo. Uma criança, moldada por pais doentios, anos a fio, torna-se um ser sem qualquer traço de comoção ou piedade. Toda a infância de Joseph é dissecada, o poder aterrorizante da fantasia e desejo sexual, dominam e distorcem a personalidade do menino. O órfão que desde o nascimento só recebeu rejeição e brutalidades, castigos e humilhações, retribuiu ao mundo o que aprendeu.

Capaz dos piores atos, do sadismo, crueldade pura e distorção da realidade, Joseph Kallinger é tanto poeta quanto homicida. Transita entre a fantasia, horror e obsessão, com a desenvoltura da loucura, lutando contra seus próprios demônios. A proposta é um mergulho nas profundezas do horror humano, o leitor é mero expectador da narrativa vívida dos atos praticados.

E uma obra obrigatória para quem busca compreender a verdade sobre o assombroso mundo interno de um psicótico arrastado para a insanidade e o assassinato. Sem dúvida, estimulará qualquer um que se interesse pelo estudo do comportamento humano e criminologia.


Algumas poesias de Kallinger em versão original, valem a pena serem lidas, nelas ele demonstra claramente sua instabilidade emocional.


Enraged

Hot anger has coursed through me
all my life,
I see it now,
I had not recognized the signs
before.
Anger, my biographer tells me,
began even before my birth
Not anger then, but
that of my mother who
wished I had not been conceived.
My anger came when
at the age of one month
my mother gave me up,
turning me over to the care of
starngers; a private boarding home,
an orphanage
and then my adoption by a middle-aged
childless couple that kept reminding me
they were my benefactors.
They were also always threatening
to send me back to the orphanage.
Each time they did, my anger flamed,
but I held back the expression of it
when I could
There were times that I couldn't:
times of beating my head against
the wall and running wild with rage.
I didn't fight other kids;
when I didn't my adoptive mother
called me chicken and yellow;
but if I had, she would have
been angry
generating anger in me.
Anger turned like a water wheel;
my adoptive parents' anger feeding
mine and mine theirs.
I carried a rage into manhood,
although when I first married,
I dreamed of a normal life.
But things went sour and my wife,
angry for reasons of her own,
walked out on me after taking
up with another man.
I cannot know, but I believe
he had more sexual power than
I had to offer.
Once my wife was gone, my anger
grew and grew.
My second marriage led to angers
of its own,
culminating when my children,
the three total gods of my doom,
had me locked up.
In time my anger found an
outlet in what the world calls crime,
and to me was the command
of God, a vengeful,
wrathful God.
He was telling me I could
become God myself by destroy
us I had been destroyed.
My anger, hot and piercing,
had led to what I wish
I had not done.
And, despite God's promise
that I would become God,
I am not God today.
All I am is a mental patient
on leave from prison,
out of the world that fed my rage





Disappointments In My Life


When I was a little child
I was put in an orphanage
for adoption , my first
disappointment. After I was
adopted my adoptive parents
never gave me any love
and were cruel to me,
child abusers, my second
disapointment in my life.
I was never allowed to play with other kids or have
friends in my adoptive parents
house all of my young life
with them, my third disappointment,
in my life. When I grew up and got
married and had children
she ran around with other men,
and neer took care of our
children and finally left me
for another man and I had
to raise the children alone, my
fourth disapointment in my life.
Later when I remarried and
had more children, She was
childlike and always on the
fringes of everything. She didn't
love our children and never took
care of them and finally left me,
My fifth disappointment in my
life. After that I learned I was
severely mentally ill and it had
started already in childhood.
My sixth disappointment in my life.
From then on my life got increasingly
worse, I went on a six month
crime spree. I robbed and murdered
people, My seventh disappointment
in my life. Shortly after that I was
arrested and tried for my crimes
and sent to prison for the rest of my
live, My eighth disappointment in my
life. My whole life started out in
disappointment and ended in disappointment
disappointment is all i have to remember
for a lifetime



My Final Walking Bell


As I rise this morning
I roll out of bed
to the noise of the food cart
being rolled on to the
head of the block,
the banging sound of the large
stainless steel lids
being taken off the trays,
being laid on top with a bang:
These sounds open my eyes
and as I look around
the guards march by
with three trays of food
for the men back in the main hole
of this prison,
and then I hear the clanging sounds
of each spoon being counted, each
being dropped against the stainless
steel tray: my final waking bell.



Odd Man

odd man at the trial
odd man all the while
what journalist's eye
could write my fearful fright?




My Home

My home is my
castle and I pray
nothing evil will
ever come cross my door



End-Time Song

I shall arise from the east to rule the world,-----
for I am a Beast, ---- they say!
a Man of sin, ----they say!
Yes! that's right, I am the Antichrist
The Antichrist,!----
Yes!-I will be, your worlds Dictator:
who will rule this, Your Unaverse
as your Antichrist,!-----
and during the, Great Tribulation, Period
I will enter into the new temple,
in Jerusalem,----
and proclaim my self as your God
for I the Antichrist am God,!----
and there will be put, ----
as I put in the New temple, ----
a statue of myself---
The Antichrist!-----
God--Your God--I-the-Antichrist,!
for I then your God, ----
Will rule the World,------
as your only God!---
and Dictator,!----
for I am the Antichrist,!-----
I am,!---& The Antichrist! of End-Time





quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Fragmentos: I. O Tempo


Marcia Szajnbok


Acordou sobressaltado pelo silêncio absoluto. Naquele instante, não sabia onde estava. Será que morri? Mas logo desfez-se da dúvida, os olhos pouco a pouco divisando a grande sombra a seu lado, o contorno retilíneo da janela filtrando para dentro do quarto raios da luz esbranquiçada do alvorecer. Há quanto tempo não ficava assim, estático no escuro e no silêncio, acompanhando as batidas do próprio coração? Anos a fio. Décadas, talvez. Noite após noite acordava incomodado pelo ronco daquela mulher. Aquela mulher. Estranho pensar nela assim: aquela mulher, sem função e sem nome. Quem era ela, afinal? Depois de tanto tempo compartilhando a mesma cama, respirando o mesmo ar viciado e malcheiroso do quarto, acostumado a todos os detalhes olfativos, sonoros e táteis da criatura a seu lado, certificava-se de que não sabia quem ela era. No que pensava quando os longos silêncios levavam seu olhar para o infinito? Com o que sonhava quando, no meio da madrugada, emitia sons de gozo e fragmentos de riso, há muito ausentes da vida desperta? O que sentia? O que desejaria? O silêncio do quarto amanhecendo fazia eco à ausência de respostas. Não sabia. Naquela cama antiga havia um buraco. Um buraco escuro e sem fundo. Uma fenda. Um abismo. Não a alcançava. Não a compreendia. Nem tampouco conseguia se fazer ouvir. Silêncio. Sempre o silêncio. Tateou no escuro a grande sombra gorda. Um arrepio varreu-lhe o corpo e o espírito. Gelada. Ela estava gelada. Gelada, silenciosa e imóvel. Levantou-se num pulo e o jato de vômito lavou a parede e o chão do quarto. Morta. Que raiva, meu deus, que ódio! Essa rameira morreu! Morreu sem responder, morreu engolindo o mistério de seus risos furtivos e olhares enviesados. Morreu! A filha de uma puta morreu! Sem saber o que fazer, deitou-se novamente, puxou a coberta até quase cobrir os próprios olhos e fingiu que dormia. Passou horas ali, no silêncio morto do quarto, entre o fingimento e o choro. Fingira tanto, ah como fingira... Fingira que não via, que não ligava, que ela não existia. Outras vezes fingia que ia embora. Devaneava. Via-se saindo, porta afora com a roupa do corpo e adeus! E agora, diante do adeus verdadeiro, fingia dormir, como se tudo continuasse igual, que o dia fosse mais um, como ontem e anteontem. Mas o choro não era fingimento. Nem se sabia ainda capaz de chorar... Mas, naquele início de dia recém clareado, chorou de verdade. Chorou de raiva, de tristeza, de solidão e saudades. Sobretudo de saudades. Sobretudo de saudades de si próprio.


Fragmentos é uma série de textos curtos, em geral de parágrafo único, que descrevem uma situação da realidade e seus ecos no mundo interno dos personagens, como se, num documentário da vida real, uma voz de fundo narrasse o que se passa no íntimo dos atores-autores, que aliás poderiam ser qualquer um de nós...





quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Bar dos Homenzinhos

Léo Borges



O machado de cortar lenha começava a pesar, perdendo sintonia com o ódio que seus olhos ainda deixavam transparecer. Mas, mesmo muito cansado, Menandro mantinha Mary Flower acuada atrás da mesa de jantar, procurando trucidá-la da mesma forma como fizera com as outras três vítimas dentro daquela bucólica casa. O ciúme de Menandro o impelia à crueldade: pretendia não apenas matar como também comer o coração de sua última vítima.


– Não me mate, não mereço morrer!


– Humm... “Não me mate, não mereço morrer!”­ de novo. Isso já foi usado no conto erótico – murmurou Libório, incomodado com a repetição e tentando encontrar algo que a substituísse.


– Você já morreu antes, papai? – perguntou Astolfo, atrapalhando, outra vez, seu raciocínio.


O escritor percebeu que foi um erro pegar o filho com a ex-mulher justamente no fim-de-semana do famoso e difícil desafio literário da editora Selbstgeben (“Auto-publicado”, em alemão). O concurso relâmpago, uma ótima oportunidade para escritores iniciantes, exigia que cada autor estivesse totalmente concentrado na elaboração de três diferentes textos. Quem determinava isso era o prazo, bastante exíguo, posto pelo edital da Selbstgeben: apenas 48 horas para os concorrentes produzirem as obras e enviarem pela internet. Desta vez estavam em pauta os gêneros conto – erótico e terror – e poesia.


– Claro que não, né, Astolfo? Para a infelicidade da sua mãe eu nunca morri! Eu estava era falando comigo mesmo – disse exasperado, mas adotando, logo em seguida, um tom didático. – Se você continuar interrompendo o papai, os homenzinhos das histórias não vão fazer o que deve ser feito e aí não vamos ganhar o prêmio, por isso, silêncio, tá?


Como Astolfo ainda insistia com novas indagações, Libório pegou uma folha em branco, uma caneta e as entregou para o menino:


– Tome, meu filho. Passe o tempo desenhando alguma coisa.


– Eles descansam, papai?


– Quem?


– Os homenzinhos.


– Não. Não descansam.


Duas e quarenta da manhã. Enquanto Astolfo desenhava preguiçosos rabiscos, Libório ia perambulando entre um texto e outro. O calor e o sono eram inimigos declarados, mas o perseverante escritor relutava em parar, pois não apenas o prêmio era bom como a competição por si só era bastante excitante.


Cintura fina, coxas grossas e um belo rosto. Nada mais habitava a mente de Mauro além da vontade de possuir Jéssica. Ela era casada, mas isso nunca foi obstáculo, pois, casamento, como ele sabia, não passava de mero papel assinado. E, assim, a aliança no anelar esquerdo da mulher servia apenas como a alavanca de um tesão pervertido. Todo esse clima, porém, fez Mauro se lembrar do desespero de sua ex-mulher quando descobriu uma de suas perfídias:


– Não me mate, não mereço morrer!


Lá estava a maldita. Suprimi-la sem dó poderia ser boa ideia, até porque nenhuma mulher morre ao descobrir uma traição. Passa-se um tempo e tudo volta ao normal ou, então, separações acontecem e, neste caso, outros contratos são assinados. Libório, anos atrás, assinara um desses até-que-a-morte-os-separe, que depois de indevidamente maculado, passou a lhe morder trinta por cento no contracheque. Por isso, para o autor, o estilo de vida despreocupado de Mauro é que era o ideal. Este não queria saber de folhas assinadas, queria era rabiscá-las, assim como Astolfo sonolenta e inocentemente fazia com o papel recreativo.


Nunca bebeu o amor,
sempre preferiu o mar,
a dor de Agenor,
marinheiro sem lar.
“Não mereço morrer,
não sem antes provar,
a embriaguez do viver,
destilada naquele bar”.


“Será que a banca vai entender? Sem lar, pois não bebia o amor, e aí ele precisou de um bar”, tentou explicar mentalmente o arranjo poético.


– Não se explica poesia! Poesia se sente e você sabe disso, Libório! – corrigiu-se, dessa vez em voz alta, preocupado com os problemas no último texto, logo o seu gênero predileto. – “Não mereço morrer..., não mereço morrer neste bar...”. Que coisa! Parece que os textos estão se homogeneizando. Deve ser o calor deste lugar que está furtando minha capacidade criativa, ou, então, é o sono. Preciso de um café. Ou de uma cerveja num bar...


– Um bar, papai, isso mesmo! Fiz um bar para os homenzinhos descansarem – disse o menino, cujo sono sumira súbita e misteriosamente, feliz com o desenho finalizado.


Libório viu que o filho estava sendo mais eficiente que ele em produzir obras artísticas. Desviou o olhar para o alegre Astolfo e, com paciência, compartilhou de sua alegria pela criação.


– Que bom, filho, tomara mesmo que descansem. Vamos dormir agora. Papai está igual a eles: cansado. Amanhã eu termino isto.


Antes de sair, o garoto largou seu desenho sobre os rascunhos do pai. Alguns traços lembravam uma cabana e outros se assemelhavam a mesas e cadeiras. Com pequeno esforço, lia-se sobre o amontoado de listras o nome “Bar”, e, embaixo, “dos Homenzinhos”.


* * *



– Cara, que calor!


– Ainda bem que criaram um boteco aqui pra gente passar essa noite.


– Verdade. Senta aí. Você está vindo de onde?


– Do erótico. Meu nome é Mauro. E o seu? – perguntou o homem vestido com uma bermuda e uma colorida camiseta.


– Agenor, da poesia – respondeu o indivíduo que ostentava a tatuagem de uma âncora no braço esquerdo.


– Poesia? Legal. Coisa bem romântica isso, né? Ouço falar que as mulheres adoram quem é poeta.


– Cara, apesar de atuar no ramo, eu não curto muito... prefiro gêneros com mais ação. E outra: eu não sou poeta, sou marinheiro. Poeta é o cara que me criou e me enfurnou entre rimas de qualidade duvidosa como “amor” e “dor”. Não combino com esse perfumado esquema diáfano da poesia, gosto do terror, onde você sente o cheiro de sangue, onde há a alegria de matar alguém, ou então esse seu gênero, lugar em que acontecem coisas, literalmente, muito gostosas. Estou certo?


– Mais ou menos. Nem tudo no meu mundo é verdadeiro.


– Como assim?


– As mulheres, por exemplo. Já viu conto erótico com alguma garota que não possuísse “cintura fina, coxas grossas e um belo rosto”?


– Não. Mas a sua parceira tem essas qualidades, né?


– Nada. A Jéssica é até muito simpática, mas está longe dessa perfeição propagada pelos discípulos de Anaïs Nin.


Nisso, aproxima-se outro homem, expressão extenuada.


– Opa, pode chegar, meu nobre – cumprimentou Mauro. – Vem de onde?


– Do terror. Menandro, muito prazer.


– Beleza, Menandro. Deixe ali o seu machado, meu velho. Aqui, em princípio, você não pretende matar ninguém, não é mesmo?


– Até porque, como vejo, o amigo aí já deu cabo de alguém: o machado está todo sujo de sangue – completou Agenor. – Conte aí, Menandro, como andam as coisas lá no teu interessantíssimo setor?


– Bem, esta noite já matei três. O último, inclusive, esperneou um bocado. Tudo, entretanto, dentro do previsto. Agora estou tentando matar a Mary, mas está difícil e cansativo. Esse negócio de matar, mata a gente. Sem trocadilho.


– Calma... em breve você vai picotá-la toda – profetizou Mauro.


– Verdade – completou Agenor. – Acho bacana, inclusive, que em muitos contos de terror o sujeito esquarteja a vítima e come seu coração. Nada contra. Aliás, torturar muito me compraz! Perdão pela rima. Força do hábito.


– Normalmente, quando isso ocorre, é porque o algoz está com fome. No meu conto acho que é porque ela não quis se entregar. Só mesmo o escritor para saber.


– “Se entregar”? Aí já entrou na minha área – disse Mauro.


– Falo em um sentido romântico-trágico – explicou Menandro. – Minha ação se traduz em “não é minha? Então, não será de mais ninguém”.


– E as outras mortes? – questionou Mauro.


– O sogro, a sogra e o cunhado.


– Claro. Nada mais natural – concluiu Agenor.


Os homens conversavam tão distraidamente que demoraram a perceber dois vultos femininos numa outra mesa.


– Cara! Olha lá a Jéssica conversando com uma gostosa! – excitou-se Mauro.


– Aquela é Mary Flower, a mulher que devo executar – observou Menandro.


– Que isso, rapaz? Matar aquela delícia?! – inflamou-se o protagonista da obra erótica. – Acho que esse nosso escritor se confundiu. Essa tal de Mary deveria estar é atuando comigo e não tentando se safar do amigo aqui com este machado rudimentar de cortar lenha...


– É, tem razão. E talvez ficasse ainda melhor na poesia: “...tantas flores e uma só Flower...” – suspirou Menandro, surpreendendo os colegas.


– Acabei de descobrir o porquê de nossas histórias estarem empacadas – irrompeu, de repente, um entusiasmado Agenor, como se resolvesse explicar sua teoria para uma pessoa invisível. – O assassino do machado tem uma queda pela lírica na mesma intensidade em que o Casanova aqui tem pela Mary, entretanto, estão impedidos de consumar seus desejos, pois atuam em papéis que não lhes agradam! E meu caso ainda é mais dramático: gosto de uma boa violência, mas estou nadando em poemas! Por isso sugerirei aos senhores uma troca ousada: vou para o terror, Menandro vem para a poesia, e a Jéssica morre pelas minhas mãos no lugar da senhorita Flower, que passaria para o erótico. O importante é findarmos os textos, da forma mais prazerosa possível, para que o cara que nos criou vença esse concurso e, assim, possamos descansar com honrarias. Que acham?


– Por mim, ótimo! E vou revelar algo que vai animá-lo, meu bom marujo: a Jéssica é casada – disse Mauro, sarcástico, referindo-se ao enlace da garota como um macabro palpite para a morte.


– Nesse caso, melhor ainda – asseverou Agenor, entendendo o toque funesto. – Achei sua companheira mais suculenta que a magricela da Mary. E uma boazuda como ela não poderia jamais cometer o erro fatal de contrair matrimônio!


Menandro e Mauro se entreolharam assustados. Longe de ser pelo fato de Agenor querer o massacre de Jéssica instigado por seu estado civil, pois quanto a isso um acordo tácito já havia sido firmado, o que chocou a dupla foi a impensável classificação da gordinha com o termo “boazuda”. Agenor parecia ter o perfil ideal para incorporar o papel de estripador.


Enquanto o ex-funcionário da poesia mexia com carinho no machado tingido de sangue, Mauro tomou a palavra.


– Já que é assim, não percamos mais tempo: vou chamar a Mary Flower e informá-la de sua saída do terror e seu ingresso no erótico. Faremos o que tem de ser feito, aqui mesmo no bar, que com o perdão da rima, veio bem a calhar.


– Bom – disse Menandro –, para abrir minha mente aos belos poemas que pretendo recitar, vou pegar uma caninha ali no balcão. Por sinal “balcão” rima com “coração”. Isso não te diz nada, Agenor?


– Muita coisa. Meu novo trabalho me aguarda – disse o marujo com um sorriso diabólico, ao tempo em que erguia o machado. – Nosso autor vai gostar de ver que adiantamos seu ofício, ainda que com pequena modificação nos papéis.


O intrínseco poder de sedução de Mauro o ajudou no contato com a bela Mary, que não resistiu e se entregou a ele sobre uma das mesas. Menandro, aproveitando o clima, desceu a lenha em algumas bloody marys misturadas a vodkas que nunca experimentara e concebeu rimas que seu inventor parecia ser incapaz de bolar. Com Jéssica Agenor teve mais trabalho. Convencer a carismática personagem do conto erótico de que teria de trocar alguns orgasmos por uma morte a machadadas foi um tanto complicado. Mas, susto maior levou Libório quando chegou ao seu escritório e viu seus homenzinhos misturados de forma aviltante num texto único, culminando no clichê que tanto combatia:


O Bar dos Homenzinhos transformara-se num grande congraçamento literário entre personagens de estilos diferentes, mas de espíritos idênticos.


Mauro e Mary Flower, deixando de lado a razão, se entrelaçaram vivendo uma insólita aventura, muito mais erótica do que aterrorizante.


Menandro, a quem o bar proporcionava grande prazer, mergulhava sem escafandro em versos que espontaneamente tirava ao beber.


Jéssica, por sua vez, cercada por Agenor e o indefectível machado sanguinário, implorava – não sem algum deboche – por sua vida:


– Não me mate, não mereço morrer! Não neste bar...





terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Sobre escritores e suas drogas

Caio Rudá de Oliveira

As drogas desde há quase um século, pelo menos, tem sido um assunto de total rejeição social. Nem sempre foi assim, no entanto. Desde os primórdios, a humanidade faz uso dessas substâncias, e somente no último século devido a aspectos legais o proibicionismo veio a ser a tônica do discurso popular e científico.

Esse artigo tenta fazer um pequeno estudo acerca da literatura da droga, isto é, acerca da relação entre drogas, escritores e Literatura. Como aponta Marcus Boon em sua obra The Road of Excess, “literatura e drogas são dois domínios dinâmicos da atividade humana que evoluíram em paralelo e estão ligados com muitos outros campos, sejam eles humanos ou não”.


Realidade social da droga
O universo científico ainda é relutante em deixar de lado o determinismo farmacológico das substâncias psicoativas, mas tem havido sérias mudanças no direcionamento dos estudos, muitos dos quais têm formado um novo paradigma para o entendimento do consumo de tais substâncias. Significa dizer que não mais se acredita que todas as pessoas estejam condicionadas aos mesmos efeitos, e que esses resultam de uma combinação da substância, expectativas do usuário e meio sócio-cultural¹.

Esse modelo tripartido do uso de psicoativos foi e é sustentado por várias autoridades, médicos, antropólogos e psicólogos, a citar o psiquiatra estadunidense Norman Zinberg, que ao desenvolver o trinômio ¹drug-set-setting, provou que não há protótipos de usuários, contribuindo assim para a diminuição do preconceito diante deles.

Com efeito, a tendência da ciência é cada vez mais fazer ir por terra a informação aterrorizante, unilateral e preconceituosa do antigo discurso médico. Em outras palavras, busca-se atualmente substituir a visão das drogas enquanto causa dos problemas sociais. Alguns teóricos do assunto, inclusive, escrevem que os psicoativos em si não são bons nem ruins. Mais uma vez cita-se Boon, quando ele diz que “as drogas não tem sentido fora do contexto nas quais são usadas”.


Drug literature
O fato é que se não se aceita a interpretação científica atual para o fenômeno das drogas, condena-se figuras ilustres da História. Imperadores, intelectuais e escritores, todos eles se revelam, em alguma medida, consumidores de psicoativos. Mas o que vem a ser a literatura da droga, ou drug literature? Essa é uma pergunta que Boon traz, com a reserva de considerar esse conceito amorfo, dado que, ainda que seja excluída a literatura científica da catalogação, não se chega à sua definição exata. Para o presente artigo, a literatura da droga consolida-se como o conjunto de textos artísticos ou não que mantêm alguma relação com o uso de substâncias psicotrópicas, seja como matéria de escrita ou artifício do modus operandi do autor.

Encontrar um ponto de partida para o estudo da drug literature não é tarefa em que todos costumam ser unânimes, mesmo porque essa seria uma ocupação arbitrária. Alguns vêem no poeta inglês Coleridge um divisor de águas nesse sentido, um introdutor da noção de exploração do mundo interior através do uso de psicoativos. Porém, Boon credita ao também inglês Thomas de Quincey e sua obra Confessions of an English Opium Eater o pioneirismo nessa relação simbiótica entre drogas e literatura.

A partir dessas considerações, surge outra questão. Sendo Coleridge e De Quincey contemporâneos e precursores, seria a literatura um campo livre das drogas antes deles? Absolutamente não. Estudiosos apontam que as drogas sempre tiveram e ainda possuem uma função na sociedade que, provavelmente, permanecerá ao longo de toda a existência humana.
Homero, na Odisséia, faz menção a um analgésico provavelmente derivado do ópio. Também Marco Aurélio, imperador romano e filósofo nas horas vagas, supostamente está entre um dos antigos consumidores de ópio. E esses são apenas dois exemplos do comuníssimo hábito do ópio, na Antiguidade.

Durante a Idade Média, devido às circunstâncias da época, não é de se admirar que se encontre pouca ou nenhuma referência às drogas. Sequer falar nelas era risco de ser ligado a rituais de magia e ir parar na fogueira, conseqüentemente.

Na época seguinte, no entanto, com o Renascimento, já não se fala no binômio drogas-concupiscência, associação perigosíssima séculos antes, e vestígios de liberdade passam a ser esboçados. A partir desse tempo o ópio ressurge com força total: Goethe, Novalis, Coleridge, Shelley, Byron, Wordsworth e Keats, mostram consumo regular de ópio. Por sua vez, Baudelaire, Rimbaud, William James e Nietzsche interessam-se ou escrevem sobre a ebriedade.

Avançando a linha do tempo, Sir Arthur Conan Doyle foi um famoso consumidor de cocaína, cujas condições de usuário ele transfere para seu personagem mais ilustre, o detetive Sherlock Holmes. Ainda sobre a cocaína, cita-se Freud e seu entusiasmo com a substância, da qual foi um defensor em parte de sua vida, e provavelmente um usuário durante toda ela; ainda assim, um dos mais brilhantes sujeitos de todos os tempos.

Tem-se, então, os clássicos casos de Balzac e Jean-Paul Sartre: em comum, o abuso de substâncias estimulantes, hábitos de vida pouco saudáveis e excesso de trabalho num ritmo alucinante. Acredita-se que Balzac tenha consumido em torno de 50.000 xícaras de café em seus 51 anos de vida. Também Marcel Proust e Francis Fitzgerald, George Buffon, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau eram grandes bebedores de café. Vários fatores parecem explicar esse fato, como a legalidade do produto e a facilidade de preparo, além de ser uma bebida aprazível ao paladar.

Kerouac aparece como um nome forte, quando o assunto é uso de anfetaminas. Diz a lenda que ele escreveu sua obra principal, On The Road, em apenas duas ou três semanas.

O filósofo Jean-Paul Sartre é frequentemente lembrado pelo seu uso constante de drogas, entre as quais corydrane, composto de anfetamina e aspirina. Segundo a biógrafa Annie Cohen-Solal, ele acordava com uma xícara de café e um tablete de corydrane, depois dois, três – quantos fossem enquanto durasse a escrita. Dessa maneira foi escrito toda A Crítica da Razão Dialética.
No outro lado da rua, em contrapartida ao speed das anfetaminas, tem-se a maconha e o haxixe e sua “serenidade” induzida. Na coleção As Mil e Uma Noites, clássico da literatura persa, há pelo menos duas histórias envolvendo o haxixe. Porém, é na França do século XIX que o consumo essa droga parece ter sido comum entre alguns grupos.

Moreau de Tours é acreditado ter introduzido o haxixe na cena artística parisiense, através do Club des Hashishins – entre os artistas que freqüentavam estavam Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Eugène Delacroix, Honoré Daumier, Alphonse Karr, Gautier, e Baudelaire.

Há também um manuscrito publicado por um jornal austríaco, supostamente escrito por Goethe, em que ele narra uma experiência com o haxixe. O texto seria, inclusive, a primeira menção à fome aguda provocada pelo consumo de tal substância, conhecida como “larica”. De acordo com Boon, Coleridge e De Quincey não tem seus nomes associados apenas ao consumo do ópio, mas também teriam experimentado haxixe em alguma oportunidade.

O artigo não poderia estar completo sem tocar nos psicodélicos. Visto que esse seria um campo muito fértil, estão relatados aqui apenas alguns casos de autores e suas “viagens”. Nesse sentido, encontram-se nessa galeria a obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e sua evidente referência ao cogumelo alucinógenos amanita muscaria, a aletheia de Heidegger, Jünger – utilizavam LSD –, Foucault e Deleuze, o escritor Witkacy, o surrealista Artaurd, o belga Henri Michaux, e, óbvio, Aldous Huxley e seu grande interesse sobre a percepção humana. Muitos outros artistas, músicos e escritores, de alguma maneira ou de outra, estiveram ligados com os psicodélicos, especialmente no século passado, mas a lista é tão grande e tão diversa que seria insuficiente enumerá-la aqui, merecendo maior e destacada atenção numa outra oportunidade.

Considerações finais
Conforme foi visto, ao longo da história da humanidade, drogas e literatura estiveram de algum modo conectadas, embora seja comum entender a arte literária como uma zona pura, etérea, em cujos domínios nada parecesse imperar senão a criatividade e o esforço da técnica. No entanto, a droga aparece na história da literatura como uma ferramenta para expandir a percepção e conceber histórias fascinantes ou pontos de vista aguçados, ou para intensificar o ritmo de escrita. De todo modo, as drogas em suas mais diversas representações estiverem e provavelmente estarão presentes no fazer literário, simplesmente porque sendo essa uma atividade humana torna-se impossível ver o autor como uma entidade sobrehumana.

Foi possível identificar determinados padrões de uso de certas substâncias, o que confirma a idéia da droga enquanto elemento social, e como tal sujeito às transformações que as sociedades passam. Os escritores opiômanos refletiam uma crise da subjetividade, os célebres usuários de cocaína, como Freud, desafiaram paradigmas, as anfetaminas foram coadjuvantes em várias obras em um século XX marcado pela rapidez. Enfim, escritores e suas obras são resultado do seu contexto sócio-cultural, ao mesmo tempo em que o transformam. Em última análise, a escrita, ato tão individual, é sempre moldada pelo social.


* Esse artigo foi adaptado de um pequeno ensaio acadêmico para a disciplina Sócio-antropologia das Drogas, ministrada pelo professor Edward McRae, do curso de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Para consultar as referências, clique aqui.





O escritor como personagem

(Maristela Scheuer Deves)

Escrever sobre o que se conhece é um conselho constantemente dado a quem sonha em se tornar um escritor. Coincidência ou não, não são poucos os livros que têm escritores como protagonistas. Dos mais variados gêneros, essas obras dão um gosto extra à leitura: a sensação de penetrar, um pouquinho que seja, no universo de quem cria universos.

O costume de utilizar esse recurso, que serve também para humanizar a figura do escritor, fazendo com que se aproxime mais do leitor, não é de hoje. Um exemplo é o romance de terror Os Mortos Vivos, de Peter Straub, escrito no final dos anos 1970. Nele, um escritor, Donald Wanderly, não apenas narra a ação como é também um dos personagens centrais.

Ainda no terror, quem rotineiramente utiliza escritores como protagonistas é o mestre Stephen King. Um dos livros em que o personagem/autor aparece é na obra Angústia, também publicada com o nome de Misery. Nela, o fato de o protagonista ser escritor tem suma importância para os rumos da narrativa, já que o escritor fictício Paul Sheldon é mantido preso por uma fã que quer que ele escreva um livro ressuscitando um personagem. O recurso aparece também em outras obras de King, como no recente Love - embora o livro seja teoricamente a história de Lisey, a mulher de um escritor morto, a figura do criador de histórias ainda está presente e muito forte.

Do suspense/terror ao suspense psicológico, alguns bons exemplos do que falamos aqui são os livros End of Story (Fim da história, em tradução livre), de Peter Abrahams - no qual a escritora iniciante Ivy vai ensinar escrita criativa em um presídio e descobre lá dentro um talento maior do que o seu - e Quase o autor, de John Colapinto, que conta a história de um jovem aspirante a escritor que, ao descobrir o original inédito e muito bem construído de um amigo morto, resolve publicá-lo como se fosse seu. Esse mote do escritor que rouba o livro de outro também dá a tônica de Inveja, de Sandra Brown: nele, uma editora se envolve com um misterioso autor cujo livro fala sobre um escritor que roubou a obra de outro.

A lista de livros com personagens/escritores segue com os ótimos Vertigem, de Erica Spindler, O vendedor de histórias, do consagrado Jostein Gaarder, e Oscar Wilde e os Assassinatos à Luz de Velas, de Gyles Brandreth. Esse último tem ainda o atrativo a mais de transportar para a ficção dois escritores reais, os célebres Oscar Wilde, autor de O retrato de Dorian Gray, e Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes.

E se um escritor fictício é bom, o que dizer de dois, tendo de quebra ainda uma editora? É o caso do divertidíssimo Um bestseller para chamar de meu, de Marian Keyes, que traz a escritora famosa Lily, a escritora iniciante Gemma e a editora Jojo.

A lista de exemplos poderia seguir indefinidamente. No entanto, o que vale destacar é que o atrativo dos escritores-personagens está no fato de eles fazerem com que o leitor veja os escritores como alguém real, concreto, "gente como a gente" - além de mostrar um pouquinho como é a rotina de quem vive da escrita.





Teorizando o concludo

Caio Rudá de Oliveira

O concludo não é resultado de um esforço teórico para desenvolvê-lo. O empenho, no sentido de lapidá-lo, surgiu quando de uma sequência de poemas em que vi repetido um relativo padrão no número e arranjo de versos. Tal relativa despretensiosidade serviu para que somente após a organização desse artigo a nova forma poética ganhasse nome, antes existindo somente em sua funcionalidade.

Certamente, apenas reunir suas características enquanto poema num texto expositivo seria de um reducionismo completamente oposto à sua natureza poética. A origem do concludo está diluída em alguns poemas e compreende um modus operandi acidentalmente delineado. Assim, falar em gênese do concludo é também discutir a própria atividade artística.

Ironicamente, a casualidade em questão, fundamental ao amadurecimento da nova fórmula poética, parece em xeque quando se remonta ao primeiro poema escrito com o arranjo característico dos versos – um simples 6 – 3, isto é, uma primeira estrofe com seis versos e uma segunda com três – na medida em que o poema trata da questão do fazer poético:


poiesis
poesia é mais que rimar
meia-dúzia de vocábulos,
não é um mero brincar
com as palavras,
tampouco expressão
dos sentimentos.

poesia é quando você olha
para o papel e não consegue
deixá-lo em branco.


Escrever um concludo envolve, portanto, o desenvolver de uma idéia, reflexão, elucubração, dúvida, questionamento, posição ou asserção em uma estrofe e posterior e imediata conclusão na segunda. Esse valor semântico identificado em poiesis e em outros poemas abrangidos pela proposta, encontrou institivamente na fórmula 6 – 3 a construção ideal, justificada pela adequação rítmica da quebra de estrofe. A retomada na brevidade de três versos significa, além do eficaz efeito sonoro, uma adequada composição estética. Dessa forma, o rápido intervalo entre estrofes, o hiato essencial, é componente importante, que condiciona uma pausa com a qual o poeta trabalha na percepção do leitor e que antecede surpresa, decepção ou outro sentimento desejado pelo poeta.

O desfecho, em que o poeta realmente diz concludo¹, é pontual. A última estrofe não pode ser uma proposição, mas atestamento, uma conclusão encerrada no limite do poema. Ainda que, de maneira geral, restem incertezas acerca da matéria debatida, o poema precisa ser finalizado em seu último caractere.

Assim, após vários versos terminados, surgiu o primeiro concludo deliberadamente escrito como tal, Insônia:


Um desassossego à noite me veio qual peça de arte.
Não me concentrava senão no balançar
da cortina ao vento, uma rubra pintura expressionista
em penumbra, cena fatídica de filme noir.
Desconfiei de contratempos em sol na bexiga,
minha mera gaita de foles desafinada.

Romance meu sem início nem fim,
somente acompanhado meio repentino,
a concepção sorrateira desse poema.


Somente para finalizar, o concludo é um projeto poético que desperta a reflexão, não se preocupa com métrica e embora seja uma forma fixa, por dar ênfase à questão dos significados, acaba proporcionando ao poeta grande liberdade de abarcar o que quiser com o bônus de chegar a um objetivo no fim das contas. Em última análise, o concludo é mais uma fórmula do que uma forma; suas características centrais são o apelo ao ato de reflexão no limite das 9 linhas. Nessa receita, mais importam os ingredientes do que a tigela.


¹ Concludo é a conjugação do verbo latino concludere (concluir) na 1ª pessoa do presente indicativo.





Dez anos de ofício literário

“Por detrás de um sucesso instantâneo, há dez anos de trabalho duro”, este é um ditado corrente em Hollywood.
Enquanto que, por um lado, serve de aviso aos novatos para que estudem, aperfeiçoem-se e batalhem muito até chegarem ao estrelato, por outro lado também é a constatação que o sucesso não vem de graça, é fruto de muitos sacrifícios e trabalho diário. Não existe vitória sem luta.
Neste mês de janeiro, completo dez anos de carreira literária, desde o momento em que conscientemente decidi que, um dia, eu me tornaria um escritor.
No calor da batalha, não há tempo para pararmos e refletirmos sobre as derrotas e conquistas, pequenas ou grandes; todos os nossos esforços destinam-se ao próximo desafio, ao próximo combate a ser encarado.
No entanto, dez anos depois, sinto que posso compartilhar um pouco do que aprendi neste percurso e, mais do que isto, que eu também necessito desta ponderação para reforçar uma vez mais minha escolha, pois ser escritor no Brasil não é uma tarefa fácil, não é para quem tem dúvidas, não é para fracos.

Escrever? Por quê?
A escrita, como ofício, entrou acidentalmente em minha vida.
Da infância até a adolescência, quis ser desenhista, depois, dediquei-me exaustivamente ao piano, mas, ao me mudar da casa da minha mãe, fiquei vários meses sem praticar, sem ter como pagar o transporte do piano.
Foi na escrita que encontrei a minha forma de expressão, quando nada mais me restava. Assim como ocorre com várias outras pessoas, pensei que escrever era simples — bastava uma folha de papel e uma caneta.
Eu tinha apenas dezenove anos e acreditava, à época, que tinha muito para contar. Como muitos, escrevi minha autobiografia. Mal escrita, desinteressante, mal estruturada, mas que serviu como catarse. Acredito que pude exorcizar muitos dos meus medos, dos meus fantasmas, dos meus entraves subconscientes naquele livro que jamais verá a luz do sol.
Mas o prazer de ver um livro pronto, de ler minhas palavras, de ver meus pensamentos exteriorizados e perpetuados numa obra me motivou a escrever outros.
Prazer... Escrevo por prazer.

Contos e romances
Os primeiros anos foram os mais difíceis. Todo escritor iniciante se depara com os mesmos questionamentos: o que escrevo tem valor? É bom? Os leitores gostarão?
E disto deriva o desespero para fazer seus textos chegarem às mãos das outras pessoas, de receber comentários, de confirmar suas expectativas de que ali está o futuro Prêmio Nobel. Sim, todos os escritores almejam um dia receber o Nobel, mesmo que seja para recusá-lo, como fez Sartre!
Mas os outros não estão interessados no que escrevemos. Poucos podem dedicar seus preciosos minutos lendo as bobagens dum autor desconhecido. Os poucos que se prestam a este papel nada acrescentam — pais, avós, irmãos ou amigos raramente serão sinceros, raramente lhe dirão na cara que o seu livro é um lixo.
Produzi vários contos e dois romances nestes primeiros anos. Acreditava que, um dia, revolucionaria a Literatura, mas, relendo tais textos hoje, percebo como eram crus e ingênuos. Estava engatinhando ainda, precisando de orientação, ainda atrelado aos autores que eu lia ou admirava.
Mas esta constatação leva anos para ocorrer; naquele tempo, eu ainda me indignava quando, ao ver o resultado de um concurso literário, descobria que meu nome não estava entre os primeiros colocados, e me revoltava ainda mais ao ler os contos ganhadores e ter a certeza de que os meus eram muito melhores. Será que todos eram cegos? Ou será que minha genialidade os cegava?
Nada disto, eu apenas estava no processo de formação, de desenvolvimento, de aprendizado.
Mesmo assim, o meu primeiro romance bateu na trave da publicação por duas vezes. Na primeira, uma aluna do curso de editoração da USP procurava um autor para publicação. Tratava-se do projeto de conclusão de curso dela e ela precisava editar uma obra. Enviei-lhe o manuscrito de “O Canto do Peregrino” e, no dia seguinte, recebi a resposta: ela queria publicar o meu primeiro romance!
Fui até a USP, encontrei-me com ela e com o diretor da Editora Com-Arte e assinei a autorização para a publicação. No entanto, a aluna se formou, os anos se passaram, e jamais tive notícia da publicação. Logo depois, Chloris Casagrande Justen, a escritora — acadêmica da Academia Paranaense de Letras — que havia prefaciado o romance, tentou encaixá-lo numa série de publicações organizada pela Câmara de Deputados de Curitiba. Entreguei o original no escritório de editoração, mostraram-me o boneco das publicações, mas nada, até hoje parece que este projeto não saiu do papel.
Neste mesmo período, recebi minhas primeiras cartas de recusa para o segundo romance, “O Rei dos Judeus”, que chegavam com tamanha rapidez que eu só podia acreditar que ninguém havia sequer folheado o manuscrito.
Todavia, uma das editoras demorou tanto tempo para responder que cheguei a acreditar que, daquela vez, eu seria publicado. Tremia todas as vezes que abria a caixinha do correio. Após onze meses de espera, recebi a resposta: o livro havia sido recusado.
Esta sequência de negações, a sensação de patinar no lugar, me angustiava. Será que eu tinha talento? Deveria continuar?
Já estava investindo nisto há uns quatro anos e apenas recusas, só fracasso, só batendo a cara na porta...

Internet
Em 2004, publicar na internet ainda era arriscado. Todos falavam em cópia, plágio e outras violações de direitos autorais.
Só é vítima de plágio ou cópia aquele autor que tem algo a perder.
Eu não tinha nada perder, não tinha leitores, mas tinha na gaveta uma porção de textos. Por que não lançá-los na rede e pagar para ver? Por que não ingressar neste mundo e experimentar a escrita num blog?
Por que não?
Criei um blog, depois outro, e, num intervalo de meses, já tinha meia dúzia deles. E, pela primeira vez, também tinha leitores.
Que sensação extraordinária esta de chegar em casa, acessar seu blog e encontrar nele alguns comentários. Elogios ou xingamentos, tanto fazia, o importante era saber que havia alguém lendo o que eu escrevia, e que se comovesse tanto, positiva ou negativamente, a ponto de ter de me escrever de volta. O mais incrível era pensar que, naquela imensidão da internet, alguém havia encontrado meus textos e gasto alguns instantes para lê-los. Entre milhões de sites, blogs e textos, alguém havia escolhido os meus!
Nesta época, escrevi um romance diretamente num blog, “O Covil dos Inocentes”, que devia ter uns quinze leitores fiéis e, depois, tornou-se um livro. Quase todos os meus contos, depois de revisados, também iam ao ar.
Eu ainda não era conhecido, mas saciava o meu desejo por ser lido.

Oficina da E-TL e Revista SAMIZDAT
Eu havia constatado, desde o princípio, que o importante, na escrita, era estudar sempre. Além de ler livros sobre a escrita, estudar inclui ler obras de outros autores — reconhecidos ou não — e, principalmente, praticar.
A escrita, como qualquer outro ofício artístico, exige a prática quase diária. Quanto mais tempo dedicamos ao ofício, maior é o domínio sobre ele.
Com este intuito, foi criada a comunidade “Escritores – Teoria Literária” na internet, para debates sobre a escrita, para o aperfeiçoamento mútuo dos escritores e, posteriormente, a “Oficina da E-TL”, uma oficina literária virtual para produção e leitura de textos.
Acredito que tenha sido esta última a grande responsável pelo escritor que hoje sou, que me fez perceber quais eram meus erros e vícios de escrita, e na qual pude receber, pela primeira vez, pareceres sinceros sobre meus textos.
O valor deste tipo de leitura para um escritor é inestimável. Ouvir elogios é ótimo, motiva-nos a continuar, mas a crítica é essencial. É apenas quando alguém toca nossas feridas expostas que descobrimos como remediá-las.
Foi com vários escritores desta oficina que criamos a “Revista SAMIZDAT”, uma revista digital que hoje considero como o projeto literário que mais me dá motivos de orgulho. São dois anos de publicação mensal ininterrupta, com textos de altíssima qualidade, mas que voa bem mais baixo do que poderia.

Mãos-de-Vaca
Apesar dos vários romances e da quase centena de contos escritos, o meu projeto que realmente obteve algum reconhecimento nada tem a ver com Literatura.
“Nova York para Mãos-de-Vaca” foi um dos inúmeros blogs que criei, junto com minha esposa, trazendo dicas baratas de Nova York. O número de leitores cresceu exponencialmente e, em menos de um ano, estávamos dando a primeira entrevista para a Globo Internacional. Em três anos de publicação, este trabalho foi assunto para entrevistas e reportagens na Revista TAM, no portal Terra, no jornal “O Globo”, no jornal “Estado de S. Paulo”, na Tribuna de Santos, no SBT, em várias outras publicações e sites nacionais e internacionais. Atualmente, o “Jornal da Record” está preparando uma matéria sobre nós.
Do mesmo modo que minha carreira na escrita havia começado acidentalmente, também foi por acidente que concebi e realizei meu primeiro projeto bem-sucedido.
Aliás, foi este trabalho que gerou meus primeiros trocados com a escrita, após muito tempo gastando dinheiro com papel, correio, cartuchos de impressora, ou inscrições para concursos. Inicialmente, foram apenas poucos centavos por mês, mas, em breve, graças ao “Nova York para Mãos-de-Vaca”, poderei realizar o objetivo de viver exclusivamente da escrita.

Considerações finais
Há mudanças drásticas entre o que escrevi nos primeiros anos e o que escrevo hoje. Acredito que hoje escrevo mais e melhor. E também é mais fácil organizar meu tempo e concluir um livro.
Aos poucos, descobrimos alguns macetes, alguns atalhos, o que funciona e o que não funciona tão bem. E não é tão difícil prevermos se uma ideia dará um bom livro, ou se encalhará e acabará no lixão.
Ainda erramos, é óbvio; ainda nos dedicamos a projetos que fracassarão, mas a experiência nos ajuda a compreender melhor onde falhamos, e lidar mais humildemente com os sucessos.
A carreira literária não é como o lançamento de um foguete, que num minuto está no solo e, logo em seguida, deixando a atmosfera rumo ao espaço. A carreira literária é uma longa caminhada, um passo após o outro, sob sol escaldante, cheio de pedras e buracos no trajeto.
Não há metáfora mais batida, tampouco mais apropriada.
Neste período, percebo que obtive algumas conquistas, mas muito ainda há para ser feito. Diretamente, desde os meus blogs ou sites, meus textos foram acessados por mais de 600 mil leitores, indiretamente, imagino que por mais de um ou dois milhões. Não sou um “sucesso instantâneo”, tal qual no ditado hollywoodiano, mas este ano de 2010 promete!

Coisas que aprendi sobre a escrita nestes 10 anos
1 – Leia, estude e escreva sempre. Ninguém aprende a escrever melhor lendo; aprende-se a escrever melhor escrevendo. Mas leitura e escrita são indissociáveis.
2 – Poucos autores vivem exclusivamente com o lucro de sua escrita, e mais raros são os que enriquecem com Literatura; portanto, não se martirize por jamais ter ganhado um centavo com seus textos, você não é o único.
3 – Jamais subestime os leitores. Eles sabem muito bem o que gostam e o que querem ler. Comumente, o autor é o único culpado pelo próprio fracasso.
4 – Jamais menospreze o poder da propaganda, seja na mídia ou no boca-a-boca. Ninguém lerá o que você escreve se não souber onde encontrar seus textos.
5 – A era de domínio das editoras passou. Se nenhuma quer publicá-lo, disponibilize suas obras na internet, ou imprima seus textos e deixe-os em bibliotecas, ou cole-os em postes. Se você quiser realmente ser lido, deixe de ser invisível.
6 – O conceito de sucesso é relativo: alguns querem ficar ricos, famosos, admirados, realizados, ou qualquer outra definição. Descubra o que significa ser bem-sucedido para você e persiga esta meta. Nada garante que você conseguirá, mas é muito mais fácil ter um objetivo do que ficar vagando a esmo.
7 – Todos os escritores gostam de receber elogios, não existe motivação melhor. No entanto, aprenda a conviver com as críticas. Muitos o criticarão por inveja, simplesmente para destruí-los, mas outros apontarão seus erros na expectativa que você os corrija. Saiba discernir entre a crítica maldosa e a benéfica. É melhor ter por perto alguém para corrigi-lo, do que centenas de aduladores que o incentivem a continuar errando.
8 – Escreva corretamente e com clareza. Utilizar sua língua de maneira correta é muito mais fácil do que parece e, acredite em mim, seus leitores perceberão e apreciarão um texto bem escrito. A língua é sua matéria-prima, por isto, é fundamental conhecê-la e respeitá-la.
9 – Assim que você concluir uma obra, seja um conto ou um romance, deixe-o descansar por uns dias ou semanas. Quando você o ler novamente, encontrará erros e problemas que nem imaginava. Nada é tão bom que não possa melhorar. Contudo, saiba quando pôr o ponto-final e avançar para o próximo projeto.
10 – Quase todo mundo quer, ou já quis uma vez na vida, ser escritor. Nem todos conseguirão, nem todos têm o talento necessário. Assim como nem todos podem ser astronautas, engenheiros ou médicos. Alguns conseguirão; a maioria não. Mas isto é algo que só descobriremos tentando...





segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Saramago em Concerto

Joaquim Bispo

Na última passagem de ano, desloquei-me com o grupo familiar habitual ao espaço fronteiro à Torre de Belém, onde a autarquia prometia música e fogo de artifício. A surpresa foi muito agradável. Até à meia-noite, actuou um conjunto muito curioso: é formado por três violas, bateria, piano e três metais, só tocam músicas dos Beatles, copiam-nos em tudo, até nas roupas. Dão pelo nome de «Get Back Beatles» e são brasileiros. O esforço rende resultados: abstraindo-nos um pouco, quase acreditamos que estamos a ver e a ouvir os autênticos, quarenta anos depois, em Lisboa, todos vivos e jovens.

Admirei estes fulanos por terem conseguido arranjar um nicho de mercado original e rendoso.

Este revivalismo vem acontecendo com outras formulações. Tomei conhecimento que, num clube privado, um grupo fazia a passagem de ano só com a banda sonora de uma novela brasileira. Uma passagem de ano temática.

Sempre atento às oportunidades de ganhar dinheiro com a literatura, dei por mim a pensar como se aplicaria o conceito ao ramo literário:

Seria possível encher um pavilhão, a pagar, para ver um autor a criar um conto? Várias câmaras captariam a folha onde o escritor alinharia as palavras, apresentando em grandes ecrãs panorâmicos, com que palavras começava, quais cortava, mostrando o conto a nascer e a crescer paulatina, mas inexoravelmente. Outras câmaras mostravam que apoios consultava, que palavras procurava nos dicionários, que partes ia aproveitando. Seria de evitar que o escritor usasse computadores, que embora tornassem a história visualmente mais limpa, fariam desaparecer as partes rejeitadas, que no papel se conservam riscadas como cicatrizes do lutar literário. Quando muito, uma secretária, bonita e eficaz, iria passando a computador e mostrando em ecrã próprio a história num evoluir limpo. O frenesi no público aumentaria, à medida que algumas variantes da história eram abandonadas, nem sempre recompensado com uma variante mais interessante. Por fim, a história atingia o seu fim e o público rebentava em aplausos, a cujos “bis” o autor se mostrava surdo.

Numa fase de esgotamento da receita, o espectáculo podia incluir, como novidade, a apresentação em ecrãs próprios, como complemento, do desenrolar da tempestade cerebral do autor, através de sensores encefalográficos, podendo o público assistir ao saltitar constante da actividade cerebral, acendendo uma ou outra área, convenientemente identificadas pelo nome e pela actividade que desenvolvem.

Daria para encher um pavilhão com dez mil pessoas?

Para um público mais restrito e conhecedor – em sala-estúdio –, o escritor podia produzir uma história “à maneira de” um autor conhecido. A história seria totalmente nova, mas faria lembrar, irresistivelmente, o autor de referência. Para os melhores resultados, não faltaria quem levantasse a suspeita que o escritor se limitara a transcrever um inédito desconhecido do autor emulado, conseguido sabe-se lá por que ínvios meios.

De qualquer modo, não se trataria de um paralelo perfeito com estes “Beatles”. O que eles fazem não é criar música com o estilo “Beatles”, nem recriar, com estilo próprio, as músicas originais. Isto seria escrever uma história conhecida com palavras próprias. Eventualmente, introduzindo uma peripécia, ou alterando outra, de maneira a potenciar a emoção que a história já transmite. O público que conhecesse a história iria achar que esta versão era mais neo-realista que o original, por exemplo, ou que não respeitava a intensidade da relação entre os protagonistas. Uma opção a considerar.

O que eles fazem é imitar os Beatles e as suas músicas ao mais pequeno pormenor. O equivalente literário seria um escritor transcrever, palavra por palavra, uma obra literária de um monstro das letras. Onde residiria o interesse do público? Talvez a confirmar a sobreposição perfeita da história. Os mais puristas trariam exemplares da obra em execução e comparariam, ponto a ponto, o virtuosismo do escritor-reprodutor. Não se lhe exigiria, claro, que nunca tivesse lido a obra – como Borges fez com Pierre Menard – mas que não lhe escapassem as reticências cheias de segundos sentidos, nem o rigor dos itálicos. Depois dos aplausos, haveria sempre alguém que comentaria: ”Viram onde ele pôs o travessão, quando Gregor Samsa percebe que é um insecto? Já vi o Fritzl executar este conto com muito mais virtuosismo, sem falhar uma vírgula. Não há executante de Kafka como ele!”

Pensando bem, a reprodução em literatura tem o seu maior público na leitura. Podemos comprar o livro, mas por que não ir ao concerto? Já imaginaram um concerto de Fernando Pessoa, ou uma audição de Woody Allen? Aí, um “diseur” pode obter algum efeito de arrebatamento no ouvinte: a clareza cristalina da voz, as entoações, insinuando significados, as pausas, dramatizando silêncios – alguém que transmita toda a potência dos diálogos, como quando o cantor arranca emoções da audiência, que faça o pensamento do público vogar por regiões etéreas, quando percorra os bons nacos de prosa narrativa, qual solista a desenvolver a parte instrumental.

Com o fenómeno da pirataria a fazer perigar o retorno económico das edições, a solução pode passar pelos concertos. Quem sabe se alguns de nós, escritores iniciantes, mas muito promissores, não viremos a obter divulgação e início de reconhecimento público, fazendo a primeira parte de grandes concertos de escritores famosos!
Alguém sabe quando é o concerto do Saramago?





Parindo Letras

por Ju Blasina

A tarefa de escrever é complexa. Exige muito mais do que tempo e dedicação, muito mais do que insight e inspiração, exige coragem e doação. Coragem para se expor aquilo que se tem de mais privado — as emoções — e doação para oferecê-las a estranhos, numa bandeja. É preciso ser generoso o suficiente para doar sem nada esperar em troca.

Mesmo que o eu lírico não leve de todo o autor consigo, na crônica eles se encontram e se tangenciam assim como a tangente que se faz entre ficção e realidade. O autor dá luz às palavras, como a um filho: ele as gera e as vê rapidamente crescer sobre o papel, e quando se sente orgulhoso — sim, porque a vaidade da criação é própria da natureza humana — as vê partir, autônomas, ganhando o mundo. Dá um friozinho na barriga, misto de receio de não as ter ensinado bem e medo de que o mundo não as trate com o respeito e carinho que merecem.

Diferente dos bons filhos, quanto melhores são os textos, mais distante do autor eles vão parar. Eles se mesclam ao mundo e às pessoas com quem interagem tornado-se tão diferentes que o criador sequer os reconhece — pensando bem, talvez não difiram tanto dos filhos... É impossível prever seu futuro, o caminho que trilharão. Aos pais, só resta exercitar a árdua tarefa do desapego e torcer pelo melhor.

Parir letras é dedicar a vida a algo cujo retorno é invisível, impalpável e silencioso, cuja recompensa — para a grande maioria dos novos escritores — não pode ser medida em valores que compram coisas, e pela mesma razão, não ganha o reconhecimento do mérito que tem.

Às vezes me tão sinto cheia de medos, vazia de idéias e estéril de palavras, que busco inspiração nos filhos alheios, aqueles que já ganharam o mundo e imortalizaram aos pais (Quintana, Manuel de Barros, Danuza Leão e os Fernandos, Sabino e Veríssimo, são os favoritos). E eis que então me pergunto: De onde vem tamanha pretensão (a minha) de gerar ideias, adestrar letras em textos e, mais ainda: mandá-los ao mundo? E o que pretendo alcançar com aquilo que crio? Perguntas retóricas, cujas repostas utópicas não são requeridas.

... Ah, se um dia minhas letras fizerem correr uma lágrima, mesmo que pequena, ou se um sorrir discreto se abrir, se um coração acelerar de leve ou bater a saudade pelo que foi ou deixou de ser, a ansiedade pelo que está por vir... Neste dia, encontrarei o baú do tesouro que todo escritor persegue. Um tesouro que pode até não comprar coisas, nem fazer desta a melhor das profissões, mas que certamente fará de mim a mais rica das criaturas!


Os filhos superarem aos pais é o destino que deles se espera. Que tenham uma vida longa e próspera, e nela encontrem aquilo que procuram, e com ela marquem o mundo. Que criem asas e voem longe: é isso que desejo as letras que torno minhas!


Afinal, não é isso o que todo pai deseja?





domingo, 17 de janeiro de 2010

A Aplicação da Teoria - Alain Robbe-Grillet

Por um Novo Romance
A Aplicação da Teoria


Alain Robbe-Grillet
Traduzido por: Henry Alfred Bugalho

Não sou um teórico do romance. Apenas fui movido, como sem dúvida todos os romancistas, tanto no passado como hoje, a perfazer algumas reflexões críticas sobre livros que escrevi, sobre aqueles que li, sobre aqueles que pretendo escrever. Na maior parte do tempo, tais reflexões foram inspiradas por certas reações - que parecem ser para mim surpreendentes ou injustificadas - causadas na imprensa por meus próprios livros.
Meus romances não foram recebidos, após publicação na França, com unânime entusiasmo; para se dizer o mínimo. Desde o reprovador silêncio parcial que saudou o primeiro (Les Gommes) até a rejeição maciça e violenta disseminada pelos jornais ao segundo (Le Voyeur), houve pouco progresso: excetuando pelo número de cópias impressas, que foi muito maior no segundo caso. É claro que também houve algum elogio, aqui e ali, mesmo que esta apreciação ocasional me desconcertasse ainda mais. O que mais me deixou pasmo, tanto nas reprovações quanto nos elogios, foi encontrar, em quase todos os casos, uma implícita - ou até mesmo explícita - referência aos grandes romances do passado, os quais sempre foram assumidos como o modelo para onde os jovens escritores deveriam voltar os olhos.

Nas revistas literárias, frequentemente encontrei uma resposta mais séria. Mas eu não estava satisfeito em ser reconhecido, desfrutado, estudado apenas por especialistas que haviam me encorajado desde o começo; eu estava sequioso por escrever para o "público leitor", eu me ressentia por ser considerado como um autor "difícil". O meu pasmo, minha impaciência estavam provavelmente em proporção à minha ignorância sobre os círculos literários e seus hábitos. Assim, publiquei, num jornal político-literário com grande circulação (L'Express), uma série de breves artigos, nos quais discuti várias idéias que me pareciam nada mais do que óbvias: por exemplo, que a forma do romance deve evoluir para poder se manter viva, que os heróis de Kafka possuem apenas uma tênue conexão com os personagens de Balzac, que o realismo socialista ou o "engagement" sartreano são difíceis de serem reconciliados com o problemático exercício da literatura, bem como com o de qualquer arte.

O resultado destes artigos não foi o que eu esperava. Eles causaram alguma comoção, mas foram declarados, por quase todo o mundo, como simplórios e tolos. Ainda compelido pelo desejo de convencer, reelaborei, então, os principais pontos controversos, desenvolvendo-os num ensaio mais extenso, que apareceu na Nouvelle Revue Française. Infelizmente, o efeito não foi melhor; e esta revisão - caracterizada como um "manifesto" - consagrou-me como um teórico duma nova "escola" do romance, da qual, é claro, nada de bom poderia ser esperado, e à qual estava relegado com entusiasmo, quase aleatoriamente, qualquer escritor que parecesse ser difícil de se classificar. "École du regard", "Romance Objetivo", "École de Minuit" - os rótulos eram vários; bem como as intenções atribuídas a mim, que eram, na verdade, fantásticas: remover o homem do mundo, impôr meu próprio estilo a outros romancistas, destruir todas as regras da composição literária, etc.

Tentei, em novos artigos, aperfeiçoar as questões ao enfatizar elementos que mais foram negligenciados, ou mais distorcidos, pelos críticos. Desta vez, fui acusado de contradição, de repudiar a mim mesmo. ... Assim, compelido alternadamente por minhas próprias explorações e por meus detratores, continuei irregularmente, ano após ano, a publicar minhas reflexões sobre literatura. É esta coleção de textos que aparece neste presente volume.


De maneira alguma estas reflexões constituem uma teoria do romance; elas apenas tentam esclarecer várias linhas de desenvolvimento que me parecem cruciais na literatura contemporânea. Se, em muitas das páginas que se seguem, eu emprego prontamente o termo Novo Romance, não se trata duma escola designada, nem mesmo dum grupo específico e constituído de escritores trabalhando numa mesma direção; a expressão é apenas um rótulo conveniente aplicável a todos aqueles procurando novas formas para o romance, formas capazes de expressar (ou de criar) novas relações entre o homem e o mundo, a todos aqueles decididos a inventar o romance, em outras palavras, a inventar o homem. Tais escritores sabem que a repetição sistemática das formas do passado não somente é absurda e fútil, mas que pode se tornar até mesmo prejudicial: ao nos cegar quanto nossa real situação no mundo atual, ela nos impede, em última instância, de criar o mundo e o homem de amanhã.

Elogiar um jovem escritor, em 1965, por ele "escrever como Stendhal" é um duplo disparate. Por um lado, não há nada de admirável em tal feito, como acabamos de ver; por outro, a própria coisa é impossível: para se escrever como Stendhal, antes de tudo, dever-se-ia estar escrevendo em 1830. Um escritor que produza um pastiche habilidoso o suficiente para conter páginas que o próprio Stendhal poderia ter assinado naquela época, de modo algum possui mais valor do que se houvesse escrito as mesmas páginas sob Charles X. Não é paradoxo algum que Borges elabora em Ficções: o romancista do século vinte que reproduz Dom Quixote palavra por palavra escreve uma obra totalmente diferente da de Cervantes.
Além disto, ninguém sonharia em elogiar um músico por ter composto um Beethoven, um pintor por fazer um Delacroix, ou um arquiteto por ter concebido uma catedral gótica. Felizmente, muitos romancistas sabem que o mesmo vale para a literatura, que a literatura também é viva, e que o romance, desde que surgiu, sempre tem sido novo. Como um estilo pôde ter se mantido imutável, fixo, quando tudo ao seu redor estava em evolução - até mesmo revolução - pelos últimos cento e cinqüenta anos? Flaubert escreve o novo romance em 1860, Proust, o novo romance em 1910. O escritor deve consentir a aceitar sua própria data com orgulho, sabendo que não há obras-primas na eternidade, mas apenas obras na história; e que elas sobrevivem apenas pela medida de terem deixado o passado para trás e proclamado o futuro.


Entretanto, se há algo em particular que os críticos acham difícil tolerar, é que o artista deva se explicar. Eu certamente constatei isto quando, após haver expressado esta e outras noções óbvias, publiquei meu terceiro romance (La Jalousie). Não somente o livro foi atacado, censurado como um tipo de ultraje prepóstero contra as belas-letras; como também provado que tal abominação só podia ter sido esperada, pois La Jalousie era um produto autodeclarado de premeditação: seu autor - Oh, o escândalo! - se permitiu ter opiniões sobre seu próprio ofício.

Também aqui, vejo que os mitos do século dezenove retêm todo seu poder; o grande romancista, o "gênio", é uma espécie de monstro inconsciente, irresponsável e à mercê do destino, até mesmo ligeiramente estúpido, que emite "mensagens" que apenas o leitor pode decifrar. Qualquer coisa que ameace obscurecer o julgamento do escritor é mais ou menos aceito como favorável ao pleno desabrochar da sua obra. Alcoolismo, pobreza, drogas, paixão mística, loucura recaíram sobre as mais ou menos romantizadas biografias dos artistas, que parecem ser natural vê-las, desde então, como necessidades da triste condição do criador, ver, em qualquer caso, uma antinomia entre criação e consciência.

Longe de ser resultado dum escrutínio honesto, esta atitude trai uma metafísica. Aquelas páginas às quais o escritor gerou como pensamento inconsciente, aquelas maravilhas não premeditadas, aquelas palavas "perdidas" revelam a existência de alguma força superior que as ditou. O romance, mais do que um criador no sentido estrito, é assim um simples mediador entre os mortais comuns e um poder obscuro, uma força além da humanidade, um espírito eterno, um deus...

Na verdade, basta ler os diários de Kafka, por exemplo, ou a correspondência de Flaubert, para perceber de cara o papel principal assumido, mesmo nas grandes obras pretéritas, por uma criatividade consciente, pela vontade, pelo rigor. Trabalho paciente, construção metódica, a arquitetura deliberada de cada sentença, bem como do todo do livro - ela sempre encenou seu papel. Após Os Moedeiros Falsos, após Joyce, após A Náusea, parecemos estar tendendo gradativamente para uma época da ficção na qual os problemas de estilo e construção serão consideradas de maneira lúcida pelo romancista, e na qual preocupações críticas, longe de esterilizarem a criação, podem, ao contrário, serví-la como força condutora.

Não há a questão, como vimos, em se estabelecer uma teoria, um molde pré-existente no qual enformar os livros do futuro. Cada romancista, cada romance deve inventar sua própria forma. Nenhuma receita pode substituir a reflexão contínua. O livro faz suas próprias regras para si, e para si apenas. De fato, o movimento para seu estilo geralmente leva a pô-lo em risco, quebrá-lo, até mesmo explodí-lo. Longe de respeitar certas formas imutáveis, cada novo livro tende a constituir as leis de seu próprio funcionamento, ao mesmo tempo em que produz a própria destruição destas leis. Uma vez que a obra esteja concluída, a reflexão crítica do autor lhe servirá posteriormente para ganhar uma perspectiva em relação a ela, imediatamente nutrindo novas explorações, uma nova partida.

Portanto, a tentativa de pôr visões teóricas e obras de arte em contradição não é muito interessante. A única relação que pode existir entre elas é precisamente duma característica dialética: uma interação entre acordos e oposições. Não será surpreendente, então, que haja desenvolvimento dum ensaio a outro, entre estes que se seguem. Não, é claro, o cru repúdio equivocadamente denunciado por leitores que foram um pouco descuidados - ou mal dispostos -, mas reconsiderações dum nível diferente, reexaminações, outro lado duma mesma idéia, ou seu complemento, e, em alguns casos, apenas um aviso contra um erro de interpretação.



Além disto, é óbvio que idéias possuem pouca consequência em relação a obras, o que nada pode substituir a última. Um romance que não é mais do que um exemplo gramatical ilustrando uma regra - mesmo acompanhada por sua exceção - seria naturalmente inútil: a asserção da regra bastaria. Ao exigir o direito do autor sobre a inteligência da sua criação, em insistindo no interesse proporcionado pela consciência de sua própria exploração, sabemos que principalmente no nível do estilo que esta exploração é feita, e que nem tudo é claro no momento da decisão. Assim, tendo indisposto os críticos ao falar sobre a literatura que ele sonha escrever, o romancista sente-se repentinamente desarmado quando este crítico lhe pergunta: "Agora, explique porque você escreveu este livro, o que ele significa, o que você estava tentando fazer, o que você pretendia ao utilizar esta palavra, ao escrever esta sentença!"

Diante de tais questões, a "inteligência" do romancista não parece ajudá-lo mais. O que ele estava tentando fazer era apenas o próprio livro. O que não significa que ele sempre esteja safisfeito com ele; mas a obra permanece, em todo caso, a melhor e a única expressão possível de sua empreitada. E se ele houver tido capacidade para fornecer uma definição mais simples, ou resumir suas duas ou três centenas de páginas a alguma mensagem em linguagem clara, explicar seu funcionamento palavra por palavra - em suma, dar-lhe uma justificativa, ele não teria sentido a necessidade de escrever o livro. Pois a função da arte nunca é a de ilustrar uma verdade - ou mesmo uma interrogação - sabida de antemão, mas a de trazer ao mundo certas interrogações (e também, talvez, na hora certa, certas respostas) ainda não conhecidas como tais por elas.

A consciência crítica do romancista pode ser útil apenas no nível das escolhas, não no da justificação delas. Ele sente a necessidade de utilizar certa forma, ou rejeitar certo adjetivo, de construir este parágrafo de certo jeito. Ele põe todo seu esforço à procura da palavra certa, e do lugar certo onde colocá-la. Mas desta necessidade ele não pode produzir prova alguma (excetuando, ocasionalmente, após o fato). Ele nos implora que acreditemos nele, que confiemos nele. E quando nós perguntamos a ele por que ele escreveu este livro, ele possui apenas uma resposta: "Para tentar e descobrir por que eu queria escrevê-lo".

E, dizer para onde o romance está se encaminhando, ninguém pode, é claro, fazê-lo com certeza. Mais do que isto, é provável que caminhos diferentes continuarão a existir para o romance, em paralelo. Ainda assim, um caminho já parece estar assinalado mais claramente que o restante. De Flaubert a Kafka, uma linha descendente é traçada, uma ancestralidade que sugere uma progênie. Esta paixão por descrever, que anima a ambos, é certamente a mesma paixão que discernimos no novo romance atual. Além do naturalismo de Flaubert e do onierotismo de Kafka aparecem os primeiros elementos dum estilo realista dum gênero desconhecido, que agora está vindo à tona. É ao esboço deste novo realismo que a presente coleção tenta descrever.

(1953 e 1963)


ROBBE-GRILLET, Alain, For a New Novel, Essays on Fiction. New York: Grove Press, 1965. p. 7-14





quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

As devotas

José Guilherme Vereza

O VP de Operações, Dr. Webs, tem um cacoete.
É um cacoete horroroso, que joga os olhos para o interior do globo ocular,
como se quisesse olhar para si mesmo. Mas como não consegue enxergar nada lá dentro,
volta as pupilas para fora com um olhar arregaladamente assustado
e pedinte de desculpas por proporcionar aos próximos espetáculo tão bizarro.
A secretária do Dr. Webs tem orgulho do cacoete do chefe.
Compete com uma outra, igualmente secretária, igualmente orgulhosa do cacoete do seu chefe,
Dr. Beens, VP Adminstrativo, que por sua vez, não fica nada a dever, em termos de cacoetes,
aos malabarismos faciais do Dr. Webs.
Na verdade, Dr. Beens leva uma ligeira vantagem.
Por ter a língua imensa, toda vez que abre a boca para dizer alguma coisa,
pontua vírgulas com um leve toque da língua no nariz. Um fenômeno. Quando a frase é mais longa
e merece pontos propriamente ditos, a língua permanece mais tempo na ponta do nariz,
entre o final da frase e o início da outra.
A secretária do Dr. Beens diz à secretária do Dr. Webs que língua no nariz
demonstra mais personalidade que olhares interiores,
opinião veementemente rebatida pela secretária do Dr. Webs,
que afirma que olhares interiores são sutis, introspectivos,
denotam sensualidade e causam frisson.
As discussões entre as duas sempre terminam em baixaria,
mas nunca chegam aos agudos da histeria, quando resolve entrar no bate-boca a secretária do Dr. Gilf,
VP de Finanças. Dr. Gilf mexe com as orelhas.
Sua secretária orgulha-se desse discreto hábito, mas perde a cabeça
quando as outras secretárias confirmam já terem visto Dr. Gilf complementar o movimento das orelhas
com uma levantada de perna esquerda, tipo cachorro.
Caretas também são freqüentes, juram as outras secretárias,
alimentando as labaredas raivosas da fiel escudeira do Dr. Gilf,
que não admite que se fale assim de um homem tão charmoso, bem-educado e equilibrado.
Mal sabem elas que está para ser contratado pela empresa o jovem Dr. Bardes,
para assumir a recém implantada Vice-Presidência de Inovação e Relações Institucionais.
Dr. Bardes não tem um cacoete marcante.
Tem vários.
Conta-se que certa vez quando remexia revistas importadas na livraria de um aeroporto,
foi acometido por um descontrole muscular no braço direito,
o que o fez enfiar a mão no queixo de uma velhinha, que estava ao seu lado, coitadinha,
saboreando a orelha de um daqueles romances baratos e lacrimejosos.
A velhinha foi a nocaute e depois de pagar fiança,
Dr. Bardes tomou consciência do perigo que morava no seu inconsciente.
Quanto mais pensava no incidente, mais descontrolava o braço
e mais morria de medo de ter outra velhinha o seu lado.
Por medida de precaução, passou a andar com a mão no bolso.
De fato, nunca mais enfiou a mão no queixo de nenhuma velhinha,
mas não dominou por completo a sua fúria. Preso ao bolso, o ímpeto muscular do braço
descarregava nas mãos sua total insubordinação. Por mais que lutasse contra eles,
seus desobedientes dedos viviam a lhe arrancar pelos.
O impacto da violência depilatória era contido por um movimento pélvico e sensual:
um arrebitamento semicircular dos glúteos – como fazem “as cachorras” –
seguido por uma brusca aceleração da lombar no sentido contrário,
ou seja, para frente, viril e obsceno, como se copulasse o vento.
Foi assim que as três secretárias assistiram, numa segunda-feira chata e remelenta,
a chegada de um jovem bem vestido, sempre com a mão direita no bolso,
que de oito em oito segundos, chacoalhava a pélvis à la Elvis Presley,
num ritmo contínuo pra frente e pra trás, como seu ouvisse imaginárias batidas da dança do créu.
E já chegou subvertendo a cultura cristalizada da empresa.
As três secretárias ficaram perdidamente apaixonadas.
Imaginavam como o revolucionário executivo seria na cama,
com movimentos tão próprios e surpreendentes.
E movidas por uma novo amor ardente, sobrepondo-se à lucidez, à razão e ao decoro profissional,
passaram a disputar a tapa a vaga de secretária do Dr. Bardes.
Dr. Webs, Dr. Beens e Dr. Gilf, sem a devoção passional de suas secretárias,
começaram a ter sérios problemas funcionais.
Em duas semanas estavam demitidos.





segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

escrita e solidão


Maria de Fátima

Excertos de écrire de Marguerite Duras
selecção de Maria de Fátima
da tradução de Vanda Anastácio - Difel 1994



É sempre numa casa que estamos sós. E não fora, mas dentro dela.(…)
A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o escrito não se produz, ou se esfarela, exangue de procurar o que escrever. Perde o seu sangue, já não é reconhecido pelo autor. E, antes de mais, é preciso que nunca seja ditado a uma secretária qualquer, por mais hábil que ela seja, e que não seja nunca, nessa fase, dado a ler a um editor.
É sempre necessária uma separação das pessoas que rodeiam aquele que escreve livros. É uma solidão. É a solidão do autor, a da escrita. Para iniciar uma coisa, interrogamo-nos acerca desse silêncio à nossa volta. Praticamente a cada passo que se deu numa casa e a todas as horas do dia, sob todas as luzes, quer estejam do lado de fora, quer sejam lâmpadas acendidas durante o dia. Essa solidão real do corpo torna-se outra, inviolável, a da escrita. Eu não falava disso a ninguém. Nessa época da minha primeira solidão, tinha já descoberto que dedicar-me à escrita era o que eu tinha de fazer.
(…)
Escrever era a única coisa que povoava a minha vida e me encantava. Fi-lo. A escrita nunca mais me abandonou.
(…)
A solidão quer dizer, também: Ou a morte ou o livro. Mas, antes do mais, quer dizer álcool. Quero dizer, uísque. Nunca fui capaz, até agora, mas realmente nunca, ou seria preciso procurar bem longe…nunca fui capaz de começar um livro sem o acabar. Nunca fiz um livro que não fosse já uma razão de ser enquanto estava a ser escrito, e isso, qualquer que ele fosse. Em toda a parte. Em todas as estações do ano.
(…)
Ver-se num buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total e descobrir que só a escrita nos salvará. Estar sem qualquer tema de livro, sem ideia nenhuma de livro é encontrar-se, reencontrar-se perante um livro. Uma imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada. Diante como que de uma escrita viva e nua, como que terrível, terrível de ultrapassar. Creio que a pessoa que escreve está sem ideia do livro, que tem as mãos vazias, a cabeça vazia, e que não conhece, desta aventura do livro, senão a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, longínqua, com as suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o sentido.
(…)
É impossível largar para sempre um livro, antes que ele esteja completamente escrito – ou seja: só e livre de nós que o escrevemos. É tão insuportável como um crime. Não acredito nas pessoas que dizem: “ Rasguei o meu manuscrito, deitei fora tudo.” Não acredito. Ou aquilo que estava escrito não existia para os outros, ou não era um livro. Quando nunca virá a ser um livro, não, não se sabe. Nunca.
(…)
A escrita torna-nos selvagens. Regressamos a uma selvajaria antes da vida. E reconhecemo-la sempre, é a das florestas, tão velha como o tempo. A do medo de tudo, distinta e inseparável da própria vida. Ficamos obstinados. Não podemos escrever sem a força do corpo. É preciso sermos mais fortes do que nós para abordarmos a escrita, é preciso ser-se mais forte do que aquilo que se escreve. É uma coisa estranha, sim. Não é apenas a escrita, o escrito, são os gritos dos animais da noite, os vossos e os meus, os dos cães. É a vulgaridade maciça, desesperante, da sociedade.
(…)
A escrita vai muito longe…até acabar com. E, às vezes, é insustentável. De repente, tudo adquire um sentido em relação à escrita, é de enlouquecer. Já não conhecemos as pessoas conhecidas e julgamos esperar aquelas que nunca vimos.
(…)
Essa ilusão que temos – e que é justa – de termos sido a única pessoa a ter escrito aquilo que escrevemos, quer seja péssimo, quer maravilhoso. E eu quando lia críticas era, geralmente, sensível ao facto de dizerem que um determinado livro não se parecia com nada. Ou seja, que ia ao encontro da solidão inicial do autor.
(…)
Um escritor é uma coisa curiosa. É uma contradição e também um contra-senso. Escrever também não é falar. É calar. É gritar sem ruído. Um escritor é, muitas vezes, repousante: ouve muito. Não fala porque é impossível falar a alguém de um livro que se escreveu e, sobretudo, de um livro que se está a escrever. É impossível. É o oposto do cinema, o oposto do teatro e dos outros espectáculos. É o oposto de todas as leituras. É o mais difícil de tudo. É o pior. Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim. É o livro que avança, que cresce, que avança em direcções que julgávamos ter explorado, que avança em direcção ao seu o próprio destino e ao do seu autor, então aniquilado pela sua publicação: a sua separação dele, do livro sonhado, como de uma criança recém-nascida, sempre a mais amada.
(…
Estar só com o livro ainda não escrito é estar ainda no primeiro sono da humanidade. É isso. É, também, estar só com a
(…)
É preciso que chorar também aconteça.
Se é inútil chorar, creio que é, contudo, necessário chorar. Porque o desespero é palpável. Fica. A recordação do desespero, fica. Por vezes mata.
Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizê-lo: não se pode.
E escreve-se.
É o desconhecido que trazemos em nós: ao escrever á isso o que é alcançado. É isso ou nada.
Podemos falar de uma doença do escrito.
(…)
Há uma loucura da escrita que existe por si própria, uma loucura de escrever furiosa, mas não é por isso que se está no seio da loucura. Pelo contrário.
A escrita é o desconhecido. Antes de escrever não sabemos nada acerca do que vamos escrever. Com toda a lucidez.
É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de faculdade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios factos, está em perigo de perder a vida.
Se soubéssemos alguma coisa do que vamos escrever, antes de o fazer, nunca escreveríamos. Não valeria a pena.
Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêssemos – só o sabemos depois – antes é a interrogação mais perigosa que nos podemos fazer. Mas é também a mais corrente.
O escrito chega como o vento, é nu, é tinta, é escrito, e passa como nada passa na vida, nada, a não ser ela, a vida.




  MARGUERITE DURAS (1914 – 1996)

Nascida em 2 de Abril de 1914, em Saigão, Indochina, onde passou a infância e a adolescência, Marguerite Duras iria ficar profundamente marcada pela paisagem e pela vida da antiga colónia francesa. Em 1932 fixou-se em Paris, onde estudou Direito, Matemática e Ciências Políticas. Após o armistício, ingressou no Partido Comunista Francês, de que foi expulsa, em 1950, por dissidências ideológicas. Formada sob a influência da moderna narrativa norte-americana, e sobretudo de Hemingway, obteve renome internacional com a publicação do romance Un barrage contre le Pacifique (1950), cuja acção decorre na Indochina. Nesta obra, parcialmente autobiográfica, a autora narra a vida estranha de uma viúva francesa e de seu filho, implicados nos sofrimentos impostos pela corrupção do ambiente colonial francês, e atinge momentos de grande energia e de um vigor excepcional. Seguem-se outros romances, de que se destacam Le Square (1955), em que a autora envereda por uma técnica de narração que virá a ser uma característica dominante do seu ficcionismo e que a associou ao movimento do nouveau roman . Autora de peças de teatro e de vários filmes, entre os quais o célebre Hiroshima, meu amor, foi o seu romance O Amante, (prémio Goncourt de 1984), relato exacerbado de uma paixão na adolescência inquieta da escritora, que a tornou conhecida de um público vastíssimo, até aí arredado de uma obra considerada demasiado difícil e intimista. “Não podemos fazer mais do que amar - ou execrar - essa pequena mulher provocante, rodeada dos seus fantasmas (...). Essa pequena mulher, que roda sobre ela mesma como uma valsa solitária, terá sido uma senhora? Foi sobretudo uma mulher voraz de uma literatura que é um grito de amor ao longo de todas as páginas. Uma Piaf.” - Jean-François Josselin.


in http://www.leme.pt/destaques/diadamulher/index3.html