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terça-feira, 28 de julho de 2015

SOFRÊNCIA


A porta da sala continua entreaberta. Diariamente passam por ela fantasmas, fragmentos de um passado tão recente e doce, como se a despedida se encontrasse em rascunho. Tua toalha úmida permanece irremediavelmente sobre a cama. Ainda sinto teu olhar severo repreendendo-me a cada novo cigarro aceso.

Continuo só. Os discos não me agradam e os livros me aborrecem, portanto, o desalento tem sido minha única distração. Nossos amigos não me telefonam mais, nem sequer aparecem. Seriam todos apenas teus? Na falta de um ombro, recosto-me à coluna da sala e mergulho nos copos que insistem em partir-se e cortar meus desatentos pés. Passeio às escuras. Às vezes, diviso tua silhueta, misturada às sombras que vivem em minha companhia desde que me disseste que meu amor não passava de um exílio viscoso. Partiste, então, para habitar outro desavisado.

E esse maldito cão do vizinho que não para de latir! Por que alguém não lhe aplica uma porretada e silencia-o de vez? Ai! O que digo? Coitado! Coitado do cãozinho. Estará com fome? Estará sozinho? Que tipo de gente abandona um animal indefeso? O que fizeste para que te largassem assim? Mordeste alguém, não foi? Sei, sei que isso não é motivo suficiente. Mas digo-te: Abandonaram-me por bem menos, rapaz. Vem cá. Lambe as lágrimas que se cravam em minha barba de homem feito enquanto aliso tua barriguinha peluda... Seria bom para nós dois, não seria? Ai, não, não, não! Para de latir, maldito cachorro! Mesmo que tu rosnes, mesmo que tu uives a noite inteira, ela não voltará!

Tenho me ocupado de coisas extravagantes, como pinicar contas telefônicas e segurar baratas vivas dentre os dedos dos pés. Há dias desliguei a geladeira e deixei a porta aberta. Trata-se de um experimento. Quero saber qual de nós apodrecerá primeiro, os orgânicos ou eu. Um cheiro acre adensa-se no ar, uma nuvem de moscas paira sobre minha pele feito abutres atentos à carniça. O quê? Queres que eu levante e descerre as janelas? Não, meu bem! As janelas, quando abertas, transformam-se em quadros pavorosos, onde revejo retratada ― com pouca tinta, em tons pastel ― a tua ingrata despedida.

A casa por completo está em coma, amor. Sem o ar de tua presença, as portas não batem, a sala asfixia em abandono e medo. Por que não partiste por inteiro? Os teus pedaços estão por toda parte, como grãos de gelo. Volta, antes que o remorso insista em derreter o que me sobrou de consolo. Eu não irei ferir-te com o meu perdão, amor, eu juro. Os ladrões perceberão em breve o meu desleixo, eu me esqueci das trancas! Retorna antes que me roubem o que não conseguiste levar dentro de ti.

(Obs.: Fotografia retirada do banco de imagens do site http://www.davidprior.net/portraits)


Emerson Braga





segunda-feira, 27 de julho de 2015

Colcha de Retalhos #11

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


FINAL DO VERÃO

Ao final do verão, as cigarras invadem a cidade. Chegam queimadas pelo sol, trocando de pele.
As formigas, trabalhadoras, da cidade nunca saem. Para elas, o inverno é uma ameaça constante.




FUGA

Bebo para dormir
E, quem sabe um dia, não acordar




FIM DOS DIAS DO VILÃO

Engana-se quem pensa que, algum dia, ele se arrependeu.
Morreu sorrindo o filho da puta. Sabia que a mídia, a seu serviço, na terra ou no inferno, o transformaria em herói.




ENTRE AMIGAS

O sorriso de hiena se desfez. Embrenhou-se pelos cantos da parede, como se andasse pelo rodapé. Curvou-se para olhar pela quina da porta. Confirmou que a outra se afastava e, então, disse:
- Eu não falei? Essa vagabunda, falsa, nunca me enganou.






domingo, 26 de julho de 2015

Epístola

Era um dia tranquilo na repartição. A chefa se ausentara mais cedo e os colegas haviam saído para um treinamento externo. O trabalho de Roberta estava bem adiantado, sobrando-lhe vagar para um gostoso fazer nada naquele resto de tarde.

Ela podia se divertir nas malhas sociais, ligar para a prima gêmea de Goianésia, folhear sua revista masculina preferida, avaliar a correção das provas bimestrais dos filhos, ler novas crônicas de Martha Medeiros. No entanto, preferiu aproveitar a felicidade do silêncio para escrever uma carta de amor cujo destinatário seria o marido. Poderia haver presente mais carinhoso nos treze anos de casamento que fariam no sábado seguinte?

Reviu algumas fotos arquivadas no computador, lembrou-se de momentos ternos desfrutados a dois, do nascimento prematuro dos pequenos, das viagens e festividades em família, da lida diária em favor do equilíbrio e concluiu que: sim, ela havia feito uma boa escolha; sim, o arrependimento de outrora se dissolvera; não, aquela incontrolável vontade de zarpar não mais visitaria sua mente.

Roberta procurava mesmo uma oportunidade de ser gentil e demonstrar justa gratidão ao homem que lhe proporcionara tanta vida nos últimos anos. Uma missiva elogiosa lhe pareceu cafuné providencial para a ocasião das bodas. E não lhe custaria dinheiro algum! Na história dos dois, os recadinhos sempre foram significativos. No tempo do namoro, por diversas vezes, ela encantou José Ricardo com a eloquência do amor (eternizado em cartas vulcânicas). Levava o moço ao pé de árvore frondosa, abria o papel de carta manuscrita e lia pra ele, com voz de radialista AM noturna. As mensagens açucaradas estavam todas guardadas em baú, ricamente avaliadas como tesouro da memória.

Esta narrativa, depois de tão longo intervalo epistolar, deveria superar todas as outras em surpresa, literariedade, paixão, volúpia. Deveria ser uma confissão assim pura e direta: “Ricardo, adoro ser sua. Continue sendo meu”. Deveria representar mais que o primeiro beijo furtado, mais que o primeiro pernoite em leito nupcial, mais que as chaves do imóvel próprio, mais que a boa-nova da paternidade. Desencadearia certamente a melhor lua-de-mel.

Assim, bem inspirada e disposta, livre da curiosidade de camaradas pentelhos, pôs-se Roberta a escrever, não à mão, mas no computador, a bendita declaração para o amado — tudo muito seleto, com requintes de sabores e minúcias, elaboração de vocabulário e estilo experimental.

Relatou, por exemplo: o ódio que sentiu ao se tornar dona de casa e ter de fazer todo o trabalho doméstico, o medo de que Ricardo não a desejasse durante a gravidez e depois da quarentena, o desespero da vigília quando começou a amamentar, o desengonço crônico ao banhar bonecos tão miúdos e quebradiços. E logo depois, falou sobre a forma encantada como a realidade se manifestou e transformou seus dias: as tarefas de casa divididas entre marido e mulher, o apetite sexual bem nutrido em todos os períodos do casamento, o amparo do marido e todo o zelo dele para com os pequerruchos desde que foram planejados.

Enumerou ainda, desta vez de forma mais caprichada (pois imaginou que esta parte do texto seria a preferida do receptor), os orgasmos mais intensos que sentiu com ele, os regalos inesperados que recebeu, as maiores provações de amor, a beleza da paciência dele — quando das sucessivas crises de infecção urinária e quando da pavorosa síndrome do pânico, logo no início do casamento —, o respeito ao luto dela em mortes dolorosas e a generosidade de seu perdão, que já soubera remi-la sete vezes setecentas vezes.

Aproveitou para pedir ao esposo que continuasse rico em clemência, apesar das graves desvirtudes que ele mesmo já detectara nela — tais quais odiar de morte a chefa e mesmo assim ter de alisá-la para não perder o emprego, furtar lanche na copa da empresa quando a fome apertava pra valer, ser mesquinha com a sogra e agir de forma egoísta com os filhos.

Roberta chorou enquanto mencionava na correspondência a atitude elevada do marido, que a perdoou por ter cometido dois casos de quase adultério. “Foi a sua misericórdia que os fez tão pueris, fortuitos e tão sem solvência e que garantiu a estabilidade e harmonia da nossa família, meu José”.

A mulher revisou a carta com delicadeza, fazendo pequenas correções na pontuação e estrutura das frases. Sentiu-se feliz com o resultado. Levava jeito pra pena! Estava tudo ali — explícito, inteligível, sensível, poético, pulsante... Roberta inteira, realizada como mulher de Ricardo e como autora de verdadeira joia literária. Assinou o texto com prazer.

Como faltavam apenas dez minutos para as dezoito horas, escolheu uma fonte de tipo caligráfico, formatou e imprimiu as páginas de confissão em três folhas de formato A4 e foi ao banheiro aprontar-se para ir embora.

Roberta levava bons quilômetros do escritório até a residência. Por conta de engarrafamento incomum, naquele dia chegou ainda mais tarde. Mesmo assim, atendeu os filhos, o marido, o lar. Ao adormecer, sentiu-se feliz, útil, estável, em paz com seu homem e com a vida.




“Anta! Você esqueceu a carta na impressora!” — Roberta entra em pânico no meio da madrugada. Com aquele vacilo imperdoável, sua intimidade seria certamente violada na manhã seguinte pelos colegas de departamento.

Passa pesadamente insone as cinzas da alvorada. Tudo nela dói, e a cabeça gira a mil, criativa, pressentindo desonras e catástrofes das mais desgraçadas:

A secretária Tatiana, sempre a primeira a chegar na sala, encontra a carta na impressora, negrita os trechos mais picantes, tira várias cópias e, por descuido, deixa um documento na mesa de cada colega da repartição.

A magrela Leonor se deleita com a correspondência. Vibra com as palavras obscenas, imagina as posições mais retorcidas. Promete inspirar-se nos episódios pornoeróticos mais ardentes contidos na carta para saciar seu esposo gorducho. De uma hora pra outra, Roberta vira sex symbol da firma.

Ao ler a missiva, Josafá, ex-futuro-affair de Roberta, sente ciúme patológico do amor que ela sente pelo marido e sofre treco fulminante diante de todos os companheiros da empresa. Dentro de poucos minutos, sem defesa, o advogado agoniza de despeito, com morte transitada em julgado.

A sempre íntegra e imaculada chefa, Larissa, escandaliza-se com o atrevimento da subalterna. “Onde já se viu alguém se expor dessa maneira no ambiente de trabalho? Por que não deixou pra imprimir essa sem-vergonhice em casa? Recebendo salário pra escrever cartinha pornográfica? Só falta fazer programa aqui também”. Doutora Larissa convoca assembleia extraordinária com todos os empregados, recrimina o grave erro de conduta de Roberta e a apedreja na internet. Demitida da empresa, nossa romântica heroína vai presa, perde os amigos e a guarda dos filhos. Até mesmo José Ricardo a abandona — pelo vexame e embaraço diante da opinião pública.




De roxas olheiras, descabelada e ofegante, Roberta ruma à empresa na quinta-feira antes do raiar do dia. Nem se despede dos filhos. Nunca chegara tão cedo na firma, nunca desejara tanto adentrar sua sala, nunca quisera tanto ser a primeira. Passa muito rápido pela catraca. Bate o ponto desolada, almejando uma graça. Seus batimentos registram um misto de horror e esperança.

A sala está vazia. “Maravilha”. Mas a bolsa de Tatiana já se encontra na baia dela. “Que caxias!” — resmunga.

Discretamente, Roberta vasculha os papéis sobre a bandeja da impressora e todas as folhas ali por perto, na mesinha. Documentos, cópias de contas bancárias, papéis de toda ordem. Nada de carta de amor.

— Bom dia, Roberta.

— Bom dia, Táti.

O sorriso de Tatiana parece zombar de Roberta.

Ela espera um pouquinho, pra não dar bandeira, e pergunta à secretária se, por acaso, ela não viu uns papéis sobre a impressora.

— Não. Acabei de chegar.

— Tinha alguém aqui antes?

— Acho que não.

Roberta passa o dia com o peito em nó — sensação de que, daqui prali, alguém irá desmascará-la.

Mas, misteriosamente, nada de carta?

Na sexta, também nada.

Já está mais tranquila. Nem se aflige mais. Depois da angústia extrema, nada melhor que o alívio. “Bobagem minha. A impressão deve ter falhado. Ou então me enganei. Nem mandei copiar”.

No final do expediente de sexta, decide imprimir a carta de novo. “Desta vez, fico na boca da impressora e guardo os papéis na bolsa na mesma hora”.

Mas, para sua surpresa, o arquivo está completamente vazio. “Quem apagou o texto? Que absurdo! Isso é violação de intimidade. E se fui eu mesma que deletei tudo sem querer? Devo ter endoidado”.

Roberta se entristece. Está confusa. Pensa em escrever outra correspondência, mas não há clima nem inspiração. Precisa ir embora. O aniversário de casamento é amanhã.

Escreve um bilhete “Amo você”, engole o choro e presenteia o marido com uma inovadora caixa de lenços Presidente.


Maria Amélia Elói





sábado, 25 de julho de 2015

O rapto de Hélade


Na pátria dos Aqueus, em tempos de ninfas e faunos, a vida decorria airosa e prazenteira. Vivia-se ao sabor das estações, aproveitando as benesses que a Natureza generosa estendia aos habitantes daquela ampla península sulcada por múltiplas enseadas abertas ao Mar Egeu.
Hélade, jovem e bela helena na flor da idade, tinha crescido, muito tempo depois, nesse mesmo benévolo ambiente, e instruíra-se na cultura do seu país, pelo que nenhuma das principais antigas mitologias lhe era estranha. Por isto, estando um dia em folguedos com as amigas, na almargem litoral das terras de seu pai, não estranhou, quando um boi muito branco se separou da manada e se aproximou das donzelas, manso e sedutor. Imediatamente lhe acudiu ao pensamento a história pitoresca da sua antepassada Europa, que, por via da mansidão encantadora de um boi resplandecentemente branco, fora raptada, levada para Creta e seduzida.
O relato mitológico não era completamente inquietante, porque o boi que raptara Europa não fora outro senão Zeus disfarçado, querendo aproximar-se da formosa mortal sem suscitar os ciúmes mais do que justificados de sua mulher, Hera, e também porque o desenvolvimento da história não tinha terminado completamente mal: Europa tinha tido três filhos de Zeus, que foram homens importantes do seu tempo. Os chifres do boi que se acercou do grupo de Hélade tinham a mesma forma de duas luas em quarto crescente e, como na lenda, deitou-se aos pés da jovem. Assim, foi quase natural acariciar-lhe o lombo e a cornadura e, pouco depois, enfeitá-la com grinaldas de malmequeres e outras flores silvestres. O pelo macio e resplandecente do boi, a sua mansidão, a euforia juvenil do grupo e ― não o escondamos ― a expectativa ainda que inverosímil de uma grande e excitante aventura levaram a donzela a arriscar subir para o dorso do belo animal. Como ela temia ― ou desejava? ― o boi levantou-se e em passo ligeiro dirigiu-se para a praia, atravessou a areia e entrou no mar, sob os gestos animados e os risos divertidos do grupo de jovens.
Hélade, apreensiva, mas muito entusiasmada, fez todo o percurso arquitetado pelo boi que, nadando até ao mar alto, se transformou em uma águia-de-cabeça-branca e, sempre com a jovem mediterrânica no dorso, rumou à América, onde tinha o ninho. Ali, aliciou-a com todas as comodidades e todos os gadgets que a civilização global consegue produzir: iPhones; iPads; CD; tablets; iPods; DVD; consolas; smartphones; pent-house; home cinemaGPS; localizadores de lojas em promoções; e tudo o mais que não caberia neste rol. Sem precisar de pagar nada. Tudo a crédito. A jovem argiva sentia-se a mais ditosa das mediterrânicas. Nem sabia como agradecer ao seu benfeitor. Mas este não parecia querer que a donzela se preocupasse com ninharias. E convenceu-a a desfrutar da sociedade de consumo. O que Hélade fez despreocupadamente. Tornou-se amante de luxos e sofisticações, frequentadora de eventos de arte e moda e até caprichosa investidora da Bolsa.
Quando Hélade já não sabia o que mais queria possuir e já não tinha mais palavras para agradecer, o génio que a raptara começou por fim a falar em crise e na necessidade de pagar os créditos que ela tinha contraído. A conversa foi inesperada, mas Hélade continuou a ter dificuldade em perceber o que implicava a mudança de discurso do até aí simpático raptor. Mas ele foi perentório:
― Minha menina, não há brinquedos grátis. Não te ensinaram lá no Peloponeso? Se não pagas de uma maneira, pagas de outra...
Então, possuiu-a pela primeira vez. Se Hélade há muito tinha efabulado com esta romântica eventualidade, a maneira economicista e quase vingativa de ele concretizar um ato que devia ser de amor entristeceu-a: além do mais, teve ainda a suprema insensibilidade de dizer que lhe fazia uma gentileza ― abatia-lhe dez mil dólares no valor em dívida!
Nos tempos que se seguiram, possuiu-a repetidamente, fazendo-se pagar em géneros, pelos inúmeros bens tecnológicos que adiantara. Com juros. Pelas contas do tratante, Hélade pagaria com o corpo, à razão de uma penetração por cada 100 dólares de dívida.
― Obrigas-me a alugar o corpo, que é o que estou a fazer, e só queres que eu valha 100 dólares? ― indignou-se Hélade, na primeira vez. ― Ainda ontem valia dez mil dólares…
― Estamos a falar de produtos diferentes, rapariga. O teu rating triplo A de ontem, entretanto, baixou para A+, como deves compreender…
Quando a dívida cresceu para valores que o vigor sexual do malandro já não acompanhava, começou a alugá-la a tempo, a bandeiradas de quarto de hora, concedendo-lhe 10 dólares por hora. Enquanto ele guardava um valor não revelado, a título de serviços de angariação, promoção e facilitação de negócio.
― Ou preferes vender órgãos? ― ripostara o patife, aos protestos de Hélade.
Só demasiado tarde Hélade percebeu que este esplendoroso boi que a seduzira nada tinha que ver com aquele lúbrico, mas generoso, boi que raptara Europa. Este não era outro senão o terrível Minotauro Global, mutação maligna para cujos malefícios o oráculo Varoufakis já advertira, mas adorado pelos mercados que, agradecidos, lhe tinham erigido uma enorme escultura em Wall Street. A ingénua jovem descobriu então que este Minotauro era vezeiro neste tipo de manobras de engano. Os primeiros contactos eram sempre de ajuda e proteção, mas depois vinha a fatura. Muitas jovens e efebos por esse mundo fora tinham caído nas malhas dessa generosidade com intenções escondidas. Luso era um deles; Hibernia, outra.
Hélade não sabia como se livrar deste cárcere de grades económicas que a dívida odiosa lhe impunha. Nada seria suficiente, percebeu, quando a dívida cresceu para valores estratosféricos ― tanto quanto o que conseguiria auferir em mais de dois anos de sexo vertiginoso. Mais indignada ficou quando percebeu que lhe estavam a ser imputadas dívidas de supostos helénicos cujo nome ela nem conhecia.
― Mas o que é que eu tenho que ver com essa gente? ― choramingava a jovem helena, indefesa e capturada por todo o tipo de manobras capciosas.
― Todo o heleno é responsável pelas dívidas de qualquer outro heleno ― ripostou o grande monstro, imbuído da maior das seguranças argumentativas. ― Eu é que não posso perder! Deixa-te de lamúrias e manda vir todas as amigas que folgavam contigo, nos campos do teu pai.
Só então, Hélade, não suportando mais a tirania, evocou os seus bravos antepassados aqueus e lançou um “NÃO!” que se ouviu na Terra inteira. Muitos dos deuses que na Antiguidade cuidavam dos Homens e das suas dificuldades acordaram, alarmados.
Inteirado da situação, Zeus reuniu-os e incitou-os a fazer alguma coisa por esta humana, duma nação que os deuses tanto amavam. Hermes foi o primeiro a levar uma mensagem de indignação ao Minotauro, mas voltou humilde e um pouco assustado, quando o monstro global lhe lembrou que a força negocial dele era nula, desde que adquirira, como Hélade, ativos tóxicos ao banco Caiman Brothers. A seguir, avançou Hefesto, que ameaçou o Minotauro com métodos mais violentos, aqueles ligados ao raio e ao fogo, mas também ele voltou humilhado, quando o Minotauro lhe mostrou o poder bélico do complexo militar e industrial.
― Viste o que aconteceu a Santorini? ― sibilou o Minotauro, ameaçador. ― Não se compara ao que aconteceria a toda aquela lamentável região…
Mas nem todos os deuses foram mal sucedidos. Hera ofereceu-se para tentar negociar, argumentando que tinha alguma experiência com espécimes bovinos… Na verdade, a intenção inicial dela era avaliar se havia alguma similitude entre Europa e Hélade e eventualmente vingar-se nesta pelas penas de outrora. Já na pátria do Minotauro Global, apercebeu-se que não só havia muitas semelhanças entre Europa e Hélade, como ainda sentia um ódio penetrante relacionado com o remoto episódio. E que o rancor se estendia à maioria dos outros deuses que, na altura, se tinham divertido com a sua situação de esposa traída.
Senhora de muita experiência, deu-se relativamente bem com o Minotauro, a quem encontrava semelhanças com o seu esposo quando jovem. Louvando o liberalismo e a legitimidade do poder do mais forte, com modos sedutores, conseguiu afagar o ego de macho alfa do Minotauro, e assim obter dele algumas graças ― uma delas, experimentar carnalmente a pujança taurina, vivência que invejara a Europa.
A partir daí, as negociações foram mais fáceis, mas sempre numa ótica economicista. Hera voltou com um contrato específico que, a ser aprovado pelo Concílio dos Deuses, iria atenuar por alguns anos as penas da dívida de Hélade e, com esperança inconfessada, trazer alguma animação ao Olimpo, para irritação provável da maioria dos seus esquivos companheiros divinos. Tratava-se da privatização do Monte Olimpo, onde se previa a instalação de um imenso parque temático, aberto todo o ano, cujas receitas de bilheteira e de todo o merchandising associado à mitologia autóctone seriam naturalmente controladas pelo Minotauro.
― Amorzinho, de certeza que o Concílio não vai aceitar de bom grado os pontos do contrato que obrigam os deuses a estar sempre visíveis e a interagir com os visitantes humanos... ― advertira Hera, genuinamente apreensiva.
― Deixa-os decidir! ― resfolegara o implacável touro mutante. ― Por enquanto…

Joaquim Bispo
* * *
Imagem de Nikolai Burdykin, na net.

* * * 





sexta-feira, 24 de julho de 2015

ENCONTRANDO IVAN LINS

Sr. Ivan Lins...

Sim? Voce que é o...?

Loureiro...

Loureiro...?

Do ensaio da Mangueira, o senhor lembra?

Ah, claro... aquele Loureiro!

...

E aí, meu jovem, o que eu posso fazer por você?

Gostaria de tirar uma foto com o senhor... Acabei de assistir ao show, que, aliás, foi maravilhoso!
Que bom que gostou. Vamos à foto, então...

Desculpe-me, leitor, pois aqui tenho que interromper a narrativa para confessar algo terrível: o diálogo acima jamais aconteceu.

Sim, em 2009, estive em um show ao vivo de Ivan Lins, em uma casa de espetáculos chamada “Blue Note”, em Tóquio.

E, sim, vibrei e cantei ao som de “Abre Alas”.

Mas, não: infelizmente não consegui encontrá-lo.

Quando o compositor saiu para descansar e preparar-se para a segunda parte da apresentação (infelizmente, nosso ingresso somente valia para a primeira), até procurei por ele, brasileiramente, na esperança de uma foto. Em vão, tentamos driblar a segurança; até que uma trabalhadora do clube, desconfiada, aproximou-se e indagou:

Vocês acaso são amigos do cantor?

Foi então que minha esposa, para desespero daquele que vos escreve, respondeu:

Não.

Fim de papo. Para consolo, ficou a capa do CD para que Ivan Lins autografasse ― o que, de fato, recebemos conforme o prometido.

Quanto a mim, restou a sensação de que, se minha esposa não tivesse sido tão japonesamente sincera em sua resposta à atendente do clube, o diálogo que abre esta crônica bem que poderia ter existido.


Ou não. 





quarta-feira, 22 de julho de 2015

De solas e asas

Eu acreditava na sola gasta dos meus sapatos. Podia jurar que nelas moravam um pedaço de coragem e um tanto de memória. Eras passando e passando, tenho me dado conta de que a base inferior dos calçados, a que toca o chão, a que faz corpo a corpo com as estradas, não são nada além de matéria plástica ou emborrachada ou lascas de madeira, fingidoras, enfim. Solas de sapato simulam, fazem de conta que vivem, que sentem, que querem o contato. De fato fazem contato, mas nada fica retido nessa superfície avessa. Nada. As solas entram e saem de umidades e claridades e asfaltos e gramas verdes sem considerar as marcas. As pessoas é que têm o mau hábito de imaginar que experiências deixaram essa ou aquela cicatriz na parte de baixo do sapato, numa vontade neurótica de tomar as histórias das solas para si. Porque gente tem uma carência incurável de drama para contar. Tem, sim.

Eu, nos últimos dias, tenho segurado com força o impulso de comprar sapatos novos. Já desocupei boa parte do armário. Doei vários pares que tinha desde, sei lá, 12 anos? Desde que meus pés pararam de crescer e passei a acumular calçado. Nunca fui de dar cabo em tênis pelo uso. Meus pares duram uma eternidade. Não furam, não rasgam, não descosturam... então, ensaco tudo e passo adiante.

Triste isso, não? Dos sapatos não se terminarem... Parece que não andei muito. Que não vivi nem para pagar o café na lancheria, que dirá um jantar em boa companhia. Essa constatação quase me faz chorar. Me dá trabalho deixar lágrimas do lado de dentro, eu que não me importo em liberar pranto. Tem muita gente olhando. Depois me pediriam tantas explicações... Não estou a fim de. Agarrei. Segurei as duas bandidas gotinhas.

Quem está aí? Quem é esse homem? Já contei que implico com gente velha? Implico. Sempre impliquei, minha mãe disse, desde bebê. Mas quem é esse velho e o que ele quer comigo? Fica abanando para mim ali da janela. O vidro está fechado, ainda bem. Estou no segundo andar, como ele consegue estar ali? Um pedreiro em andaime? Mas vestindo terno e gravata borboleta? Veste isso sim, não me enganaria tanto. Sou boa em reparar detalhes. Quem ainda usa isso? Gravata borboleta…

Eu falava em solas de sapato e agora me perdi. Quero recuperar o raciocínio e... o velho ainda está ali. Abanando e rindo um sorriso de gengiva vermelha. Desisto. Vou até a janela ouvir o que ele tem a dizer. Estou a dois passos da janela. Fui descalça. Irônico não ter solas para testemunhar um momento desses tão bizarro. No tempo que levei olhando para os meus pés o raio do velho sumiu da janela, será que caiu, pensei, imediatamente compadecida do coitado.

Corri, apertei o trinco e abri. Entrou um vento quase frio. Botei a cabeça para fora da janela, era alto aqui do segundo andar, e nada dele no chão. Não caiu. Procurei, obviamente, de um lado e de outro e nada. Ele estava no alto. O velho gargalhou para mim (ou de mim?) e saiu, assim, voando. Inacreditável. Nenhum sinal de asas ou de cabo que o suspendesse. Era voo mesmo, desafiando a minha fé e o meu bom senso.

Deixou um recado, dentro de um sapato furado junto com uma única e tímida margarida, no parapeito da janela. Torci o nariz para o sapato. Ando de bronca com eles, já comentei. Meti a mão e tirei o papel. Dizia isso, em letras cursivas: 

Não importam os sapatos, nem as solas. O que reveste os pés não te fará voar. As lembranças são preciosas demais para habitar lugar insalubre. Abraça as tuas lembranças com a palma das mãos, com cuidado, e aquece-as no bolso da camisa, se precisas tanto de representações. Garanto: todas as recordações já estavam em ti antes. Bem antes de receberes o teu sonoro nome. Elas, sim, te dão o poder do voo.

Um abraço do vô O.





terça-feira, 21 de julho de 2015

Narrativa Literário-futebolística em Quinhentas Palavras


“Zagueiro bonzinho acaba como babá do filho do atacante”. Pensava assim o beque Roberval até o dia em que vitimara Zeca com avassalador carrinho. O artilheiro flamenguista e ídolo da seleção brasileira ficou quase um ano no estaleiro com tíbia e perônio fraturados. Em conseqüência, Zeca, perdeu a Copa do Mundo e Roberval a paz de espírito corroída pelo remorso.
Viveu assim tempos difíceis o Roberval, beque conhecido pelo estilo viril aliado a certa malvadeza para com os adversários. Fora criticado por toda a imprensa futebolística, virando um bandido perante a opinião pública que antes o endeusava por sua demonstração de raça em campo. O zagueirão só não capitulara porque Jesus entrou de sola em sua vida quando Bernardo, meio-campo e Atleta de Cristo, o presenteou com uma Bíblia mandando que ele a lesse. Em semanas Roberval largou as noitadas, carros importados, marias-chuteiras e tomou ojeriza pela violência nos gramados. Virou um zagueiro clássico, daqueles de tirar a bola dos adversários como se houvessem pinças em seus pés. Nas entrevistas após as partidas, parafraseava Jesus ao justificar o sumiço de suas botinadas: “Não faça com os outros o que não quiser que façam com você”.
Brasil, celeiro de craques, viu nesta época surgir nas Minas Gerais Dentinho, para os especialistas da crônica esportiva, o novo Pelé. Dentinho humilhava os marcadores com sua técnica apurada e talento de malabarista com a bola nos pés. Zagueiros renomados perdiam o sono na véspera dos jogos contra o Cruzeiro, temendo a vergonha de serem entortados pela jovem revelação mineira.
Quis o destino que Cruzeiro e Botafogo decidissem o Campeonato Brasileiro em jogo único no Maracanã. Rádios, jornais e a televisão vomitaram durante toda a semana o duelo entre o malvado arrebanhado por Jesus e o novo deus da bola tupiniquim. Roberval passou a noite em claro. Cristão antes de ser zagueiro, tinha a obrigação moral de não machucar aquele menino prodígio.
Maracanã cheio, um clima de euforia intoxicando o ar. Antes do jogo, Roberval fez questão de presentear Dentinho com uma Bíblia.
A partida transcorreu nervosa como uma digna final de campeonato. Aos 35 minutos do primeiro tempo, o Botafogo fizera o seu gol e segurava a vantagem no marcador com um desempenho sólido de Roberval que, apesar de tomar alguns dribles de Dentinho, não deixava o atacante levar perigo à meta botafoguense.
 Acontece que, a natureza do escorpião revelou-se e ele picou a sua vítima.
Eram 44 minutos do segundo tempo. Em um contra-ataque, a bola foi esticada para Dentinho que ganhou na corrida de um zagueiro e rumou em direção ao gol. Roberval partiu para a cobertura e, temendo o empate cruzeirense, atingiu barbaramente o joelho direito de Dentinho.Um palmo fora da área. O atacante saiu de maca direto para a mesa de cirurgia, Roberval foi expulso e o Botafogo sagrou-se campeão.
Enquanto a festa alvinegra tomava a cidade, Roberval isolou-se em um templo evangélico. Chorando, Bíblia segura na mão direita, o zagueiro rogou a Deus para que perdoasse seus pecados.





segunda-feira, 20 de julho de 2015

O fêmur de Odete

Jamilson e Nildete se tratavam de Jajá e Nininha.
Estavam em vias de fazer 60 anos de casados e reuniram a família para
um aviso prévio. Estariam dispensadas solenemente de comemorações filhos,
netos, bisnetos, amigos e parentada em geral, frustrando todos que desejavam
rodear uma mesa no quintal, farta de leitão assado, maionese, farofa,
arroz de forno, macarronada, pastel, barris de chope e um bolo pré encomendado
com dois velhinhos arqueados no topo, noivo de jaquetão, noiva de véu e buquê.

- Mas, papai! São 60 anos! Disse Neuzinha, a primogênita.
- Já disse. Nada de festa, minha filha. Quero fazer uma surpresa à Nininha. 
A dois. E só.

Era uma quarta-feira útil e normal, não fosse uma data tão especial para os dois
velhinhos e seus derivados, quando Jajá e Nininha pegaram o ônibus que subia
o Alto da Boa Vista, rumo ao Parque da Tijuca.

- A última vez que pegamos esse caminho foi de bonde, Jajá. 
- Foi por isso que eu quis tirar você de casa. Desde que as crianças foram embora, 
você nunca mais saiu do Grajaú. 
- Faz tanto tempo assim?
- Faz, minha filha. Faz muito tempo.

O ônibus parou aos solavancos na Pracinha do Alto. Jajá segurou Nininha para não cair.
Lembrou da comadre Odete que quebrou o fêmur ao escorregar  no descer apressado da condução.

- Eu não sou a Odete, não me segura. Eu ainda me lembro o que é andar. 
Primeiro um pé, depois outro.

Jajá e Nininha se deram às mãos em direção à entrada da Floresta da Tijuca.
Era uma longa caminhada, mas devagar, com esforço e cuidado, algumas topadas
e sem muitos sobressaltos, e assim como na jornada do casamento, chegaram.

- Lembra, Nininha?
- Claro, Véio.
- Véio, não: Jajá. Você sempre me chamou de Jajá.
- Ah, tantos anos... vai que esqueci seu nome. E aproveita: vai pentear macaco. 
- Aqui deve ter famílias deles. Olha a copa dessas árvores. Que exuberância! 
Mata Atlântica pura.
- Pura nada. Dizem que D. Pedro replantou tudo.
- Pedro Primeiro ou Pedro Segundo?
- Sei lá, Véio, desculpe, Jajá.   Eu li num almanaque  que essa floresta foi toda refeita. 
Os homens do café destruíram tudo.  Acho que foi Pedro II que replantou, muda a muda. 
Tinha um retrato deles onde eu li. A família Imperial: Pedro Primeiro, Pedro Segundo, 
Princesa Isabel. Tudo tinha testa de mamão. E os pequenos, cabeça de amendoim.
- Para de falar, Nininha, vai se cansar, perder o equilíbrio. Olha a comadre Odete.

A trilha começava a ficar íngreme e fofa de húmus e folhagem.
Percorreram o tempo e as árvores bem devagarinho. Viram esquilos fugidios, micos saltitantes,
passarinhos de todas as espécies tropicais, plantas exóticas, flores de todos os matizes.
Sentiram um ar puro raro e saudoso, parecia que o relógio tinha parado,
ao som das águas batendo nas rochas paleozoicas escondidas pela vegetação densa.

- Psssssshhh..., Nininha. Ouve só. A sinfonia da Cascatinha.

O casal estava ofegante, por euforia ou cansaço. Amparavam-se, mas seguiam.

- É aqui, Nininha.
- Jajá! Como há 60 anos!

Tinham acabado de chegar numa clareira, circundada por uma mata diversa e alguns
pedregulhos revestidos de limo, cipó e raízes insinuantes. Como se ocupasse o lugar
de um altar, uma jaqueira imensa espalhava sombras e lembranças.

- Vem Nininha, vem.
- Jajá. Não me faça tirar a roupa e deitar na folhagem, Véio safado.
- Não se anime, Nininha. Olha a jaqueira.

Os dois se aproximaram do tronco robusto, envolto por uma casca dura.
A árvore se exibia nuns vinte metros de altura, de copa mais ou menos piramidal e cheia,
folhas simples, alternas, inteiras fixadas aos ramos através de um curto pecíolo
de cerca de um centímetro de comprimento. Não era uma jaqueira jovem,
tinha quase cem anos. Seus gordos frutos pendiam junto ao tronco, bem no alto,
o que facilitaria um abraço de Jajá e Nininha àquele ser familiar.

- Olha, Jajá, nossas mãos quase não se encontram.
- A jaqueira cresceu, Nininha, mais ainda cabe nos nossos braços.

O abraço se desfez e Jajá passou a acariciar sua casca.

- Aqui, Nininha, aqui. Achei!

Estava lá. Um coração marcado a canivete. Uma flecha transpassada, os dizeres:
Jajá e Nininha, 8.7.1953.

- Me lembro desse dia, Jajá. Você me pediu em casamento. E me deixei beijar 
até a hora de você tentar levantar meu vestido.
- Mentira, Nininha. Sempre respeitei suas virtudes.
- Eu sei, Véio. Era o que minha imaginação desejava.

Jamilson tirou do bolso o mesmo canivete, testemunha da história.
Chamou Nildete para bem perto e começou a riscar o tronco, bem ao lado do coração.
Surgia um outro coração com os mesmos nomes e a data atualizada.

-Está lindo, Jajá. Vai levantar meu vestido agora, Véio?

Neste momento, ouvem um barulho na folhagem na margem da clareira.

- Pshhhhhhhhiii. Deve ser macaco prego. Fica parada, Nininha, não corre, 
lembra da comadre Odete.

Um susto.

- Velhos safados, machucando a natureza!

Jajá e Nininha petrificaram. Era uma espécie humana de cabelos desgrenhados,
barbas grandes e sujas, roupas maltrapilhas e um facão de mato na mão.

- Sou o dono da floresta. E vocês feriram minha cria.

Jamilson destemido protegeu Nildete.

- Calma, meu rapaz. Só estamos comemorando 60 anos de casados.
- Não quero saber. Riscar árvores tem multa. Passa a carteira, a bolsa, 
o relógio, as alianças. 

O ser humano imprensou Jajá e Nininha contra a jaqueira. Seu bafo era podre.

- Passa tudo, passa logo. E a velha tira a roupa. Quero ver essa velha nua.

E num rompante, recuou até à distância do seu braço imundo esticado com o facão roçando
o queixo de Nininha. E soltou uma gargalhada, transformando o bucólico em terror.

No mesmo segundo eterno, ouve-se um barulho no alto da copa da jaqueira.
Os três olham para cima instintivamente. Sem que desse tempo a correr, uma jaca madura
e gorda despenca de uns 12 metros de altura. Explode bem em cheio na cabeça do homem.
Nininha treme nos braços de Jajá. Jajá treme nos braços de Nininha.
Os dos veem o sujeito ensanguentado entre gomos da jaca espatifada cair estonteado no chão,
tentar levantar de facão à meia bomba, e cair novamente. De costas, com a nuca direto na
ponta de um pedregulho semi entranhado na terra. E lá ficou estrebuchando de olhar aberto
e com um gomo de jaca na barba suja de sangue e gosma. Até que, num imediato tremelique,
soltou um urro e parou de vez, de língua para a fora e olhos esbugalhados. Foi rápido.

- Vamo embora, Nininha. Vamo sumir daqui. Daqui a pouco aparece alguém para dizer 
que a gente matou o diabo.

E correram trilha abaixo como nunca, tal foguetes de mão dadas, saltando sobre raízes,
chutando tocos, equilibrando-se entre a folhagem lamacenta, por pouco não escorregando
no limo das pedras encobertas, até o ponto de ônibus.
Chegaram suados, sôfregos e taquicárdicos.
Nem se lembraram do fêmur de Odete.





sábado, 18 de julho de 2015

ORDINARIAMENTE

ORDINARIAMENTE

Movida por uma lógica irrefutável, você, a mais pura expressão de uma rebelde sem causa, sentindo carregar nos ombros o peso do mundo, foi fazer o quê? Se dar a sofrer de uma paixão fulminante, em pleno final do século XX, quando ninguém mais achava bonito uma coisa dessas e nem ninguém mais morria de amor.

Foi terrível, seu amado não queria nada com nada e você praticamente morreu na praia. Praticamente não. Morreu mesmo. Estava já em completa rota de colisão. Bateu a cabeça com tudo. Saiu sangue, a testa criou galo e quase botou as tripas pra fora. As estrelinhas brilhavam a seu redor.

Por isso pede sigilo absoluto a respeito dessa história, que ninguém saia por aí contando-a aos quatro ventos. Vai ficar entre quatro paredes, claro. Afinal, por ela você pôde confirmar que o barato sai mesmo muito caro. É, parecia estar tudo à mão, não ter nada a arriscar, mas no fim foi muito. Arriscou tudo e pôde ver que a vida não é nada mais que um jogo. Ora se perde, ora se ganha. É isso. Por que achou que com você seria diferente?

Mas, pela perda deste ente que havia enfim se tornado tão querido – e agora era seria tinha de ser claro que seria tão odioso –, não queria de jeito nenhum cair em profunda depressão. Qualquer coisa antes do que isso. E sempre sem esquecer que havia um lado bom. Sempre há, o importante é não desesperar. Afinal, você ao menos conseguiu descobrir sua beleza interior, essa que nos habita desde que nascemos e que às vezes demoramos tanto a reconhecer. Tá, é certo que por fora você não é de uma beleza escultural, mas o importante é o que está por dentro, não é assim que se diz?

Depois de tudo que viveu, sem querer assumir que ainda somos os mesmos como nossos pais, só te restou adentrar o gramado em busca de alguma solução, sempre alerta pra fugir de novos erros, os crassos, que pudessem te levar a mais uma derrota. E desta vez ela podia ser acachapante. Seria demais e você não aguentaria. Não estava preparada para mais, embora seja preciso estar, pois na vida nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma. E você conseguiria sem dúvida transformar a dor em aprendizado. Para mais beleza interior. As rugas talvez até lhe conferissem alguma beleza a mais, por fora, a beleza da experiência, da vida realmente vivida.

Mas não estava conseguindo, apesar do tempo decorrido. Andou, buscou, rumou por lugares inóspitos sequiosa de futuro. E então, cega de raiva, sem vislumbrar alternativas, deu mais um murro em ponta de faca e desistiu. Cansou. Nada mais queria desta vida, era chegado o fim.
Desanimada, exaurida, sem forças pra mais nada, resolveu. Iria rumar para o antro da perdição e lá se perder. O Carnaval estava só por começar.

(Imagem: Orgia, tela de Roberto Della'Aqua).





sexta-feira, 17 de julho de 2015

Café sem açúcar








           Desde que me conheço por gente, nunca vi minha mãe tomar café com açúcar. Seu café sempre foi puro. Dias atrás comecei a tomar café sem açúcar. Ainda não me habituei com esse gosto amargo; sei que logo o farei. Sua doçura está comigo e não preciso acrescentar nada, absolutamente nada.











quinta-feira, 16 de julho de 2015

Para impedir os corvos

No equipamento de som antigo, a valsa continua. Acompanha grotescamente o mergulho do corpo no ar. Os gritos histéricos das pessoas misturam-se à música que sai das caixas, criando um caos em tons agudos. A queda se acelera e, por um instante, ela sente medo. Mas volta depressa a confiar na rede que vai jogá-la para o alto e para o alto, até que não haja mais perigo. Para isso aquela rede velha e ressecada está lá, logo mais abaixo. Para impedir que ela desabe como uma boneca de pano. Em pouco tempo, vai sentir as cordas trançadas aparando as suas costas, empurrando-a para cima, salvando o seu corpo miúdo e treinado. E assim que passar o susto, aqueles gritos infernais se tornarão aplausos. Mas não. Há agora, também, choro e correria. Ela ouve. Mas só consegue enxergar uma névoa vermelha. 
Por que é que vocês não calam a boca? Eu estou bem. Não estou sentindo nada. Só não consigo me levantar. Por favor, por favor, sem gritos. A minha cabeça está doendo. Vai passar. Eu preciso me levantar para vocês verem como está tudo bem. Eu sei que consigo. Se não fosse esta dor insuportável nas costas, me tirando o ar, eu já estaria em pé. Já sei. Vou rolar o corpo na rede e... De quem é esse sangue? Eu não gosto de sangue! Eu quero sair daqui! Vamos, vamos! Só um esforço... Mas por que é que as minhas pernas estão assim, jogadas para o lado, tortas como as pernas de uma contorcionista? Eu tenho que fazer alguma coisa! Preciso me levantar desta rede cheia de... areia? Areia? Meu Deus, eu estou no chão!
O corpo dela desarticulado. A rede arrebentada como um ninho podre. Os olhos recusando a luz exagerada. E um sonho engraçado. Uma cama de areia escura, molhada, com cheiro adocicado. E ela sendo sugada por aquela gosma úmida. Ao redor do leito traiçoeiro, corvos de várias cores voando em todas as direções, excitados, gralhando fino. E, de repente, ela voando. Os corvos resgatando-a, com seus bicos fortes, da cama de areia molhada, puxando-a pelos braços, pelas pernas. E os sentidos se apagando em dor.
Um cavalo relincha irritado. É tudo o que ela precisa para voltar a estar no agora. Os olhos abertos no escuro do picadeiro vazio. Vazio como suas pernas. Ela desiste de lutar com os pensamentos. São os mesmos, há 20 anos. A cada vez que as lembranças se impõem, a cada vez que a febre, a ânsia e a dor no peito desafiam o esquecimento, ela revê o seu túmulo de areia. 
Foram os corvos que não a deixaram dormir naquela noite. E ela aceitou. E fingiu. E morreu sem se deitar. Mas não bastou. A pior morte quebra sem levar. Minando, humilhando o sentido do bom. E já é tão pouco o que há de bom. Apenas um bebê com as mãozinhas para o ar. Uma menina brincando de roda. Uma jovem recebendo o primeiro beijo. E ela acreditando que tem um pacto com a morte. Por 20 anos. Pagando cada tributo sem gemer, sem blasfemar. Uma troca justa. Ela, personagem do chão ensanguentado, da rede podre, deformada, inválida, tendo sido capaz de gerar descendência. Guardiã do bom. Mas o destino insiste em novamente aparecer. E as trilhas que deveriam se afastar retornam à arena. Carma obsceno.
Hoje, os corvos estão alertas. E os gritos histéricos querem voltar. Ensurdecedores. Há uma intenção de tudo outra vez. Por isso ela veio. Não que aguente olhar o picadeiro iluminado. Nem que consiga controlar a memória da dor. Ela veio se entender com a morte. Para livrar sua cria de uma sina imerecida. E quando o pé escorregar na barra, e quando a mão do parceiro falhar, e quando a malha colorida despencar em voo de serpentina, a rede firme se fará de útero. Haverá aplausos para a jovem trapezista. Flores entregues por um amante também jovem. E olhos de mãe. Guardiã.
Agora que o circo foi dormir, ela cumpre seu pacto. Entrega-se sem medo. Na cama de areia molhada, a morte se deita ao seu lado. E vigia. Para impedir os corvos. 

(este conto integra a antologia Respeitável Público — Histórias de circo e outras tragédias, Editora Penalux, 2015).










terça-feira, 14 de julho de 2015

dois crimes




  Maria dos Anjos foi encontrada morta na azinhaga de Santa Luzia, uma vereda que serpenteava pelos terrenos entre as actuais avenidas Gago Coutinho e Rio de Janeiro.

Foi o cabouqueiro António da Silva quem encontrou o corpo.

***

António da Silva terá estremecido a ver o cadáver. Terá mesmo apressado o passo a dar a volta longe do corpo ali estendido.
Tão novinha! Quase uma menina!
Seria António da Silva ensimesmando e logo a dirigir-se para a esquadra mais próxima, ele que nem saberia que muitas varinas vinham da Murtosa, de Estarreja, de Ovar e da cidade onde havia uma ria. Vinham por aí abaixo no comboio que tinha sido inaugurado.
António da Silva nunca tinha andado de comboio.
Nem de carro ele tinha andado a não ser, uma vez, no carro de mula do senhor Aniceto para quem trabalhou na construção duns caminhos.
Gente da faina do mar, vinham em busca de melhor pão e melhor vida. Muitos alugavam um canto naquela zona da cidade ao pé do Tejo, ao pé do descarrego de peixe da Ribeira. Havia muitas varinas a morar na Madragoa.
varinas de Lisboa 1909
Não saberia disso António Silva nesse fim de Julho do ano de mil novecentos e oito, ele que tinha assistido a tudo o que se dera no Terreiro do Paço.
Tinha sido em Fevereiro, e tinham sido os tiros e os corpos ensanguentados.
O cabouqueiro tinha presenciado, ele que iria congeminando que talvez a rapariga também lá tivesse passado naquele fim de tarde. Que talvez ela também tivesse visto.
Talvez o seu pregão tenha ressoado com os tiros!
Era António Silva entaramelando pensamentos enquanto ia buscar quem olhasse pelo corpo descomposto jogado, morto, numa curva mais sombria da azinhaga.
António Silva perturbado desde que presenciara o regicídio.
Talvez a rapariga também lá tivesse estado, mas nem tivesse visto o que ele tinha presenciado, que ela estaria distraída a olhar uma água furtada de onde lhe atiravam um cordelinho e que enchesse a cestinha com carapau miúdo.
Fresquinhas, teria apregoado a referir umas cavalas, e o pregão teria ribombado juntamente com o som dos disparos.
António Silva a tecer tamanhas conjecturas nem saberia de homens a quererem mudar o curso da História e, no entanto, tinha visto os corpos sangrando ao lusco-fusco das cinco da tarde, daquele mês de Fevereiro de dias ainda curtos.
Vinha atravessando a também chamada Praça do Comércio, o sachinho ao ombro e, nesse por acaso, ouviu os disparos e depois viu o sangue e viu os cadáveres ainda estremecendo.
Dormia mal, desde então, que ele acordava a ouvir silvos de balas e sonhava com os corpos tombados da vida que se lhes esvaia com o sangue.
António Silva a deixar a azinhaga e a seguir em direcção à esquadra do Campo Grande. Leva nos pés uns sapatos mancos e rotos e sem cordões. Vai estonteado e receoso e confundido. Àquela hora o sol ainda abrasa e ele cola-se aos muros na busca nem que seja de uma nesga de sombra.
E devaneia.
Como desejava ter visto a varina, ali, quase esquartejada, na tarde em que assassinaram D. Carlos!
António Silva teria fugido com ela até à Rua das Pretas, e nem ele teria presenciado tanta morte, nem teria permitido que a varina fosse, agora, apenas mais um cadáver.
António Silva que dali a nada há-de contar ao guarda: está um corpo morto na azinhaga. E, a dizê-lo, abrirá o rosto num sorriso tolo.
E o guarda, com um bigode ainda farto do almoço a avaliar pelos restos que lá estão dependurados, dirá, apenas: acompanhe-nos, e já a chamar para dentro: Russo! que será o outro guarda, e irão com António fazer o caminho de volta à azinhaga.
Irá António Silva contrafeito, que ele quereria ter dito, como viera ensaiando pelo caminho: o corpo é duma varina e é quase uma menina.
O cabouqueiro que, a anunciar que tinha encontrado um corpo morto, riu com o mesmo riso que ficou para todo o sempre na fotografia que a revista Ilustração Portuguesa publicou a dezanove de Agosto dando notícia do crime. No cabeçalho: Crimes célebres; e, por baixo, o título: A varina Maria dos Anjos. 
António Silva que depressa lhe esquecerá o nome.

***

Debruçado sobre o cadáver descomposto, o guarda comove-se: reconheceu a filha de Ana Augusta. Tenta cerrar-lhe os olhos verdes muito esbugalhados, e grita ao outro guarda que corra a buscar a mãe da defunta. Que a busque na rua do Cura, à Madragoa, que ela venha identificar o corpo. Reclama, ordena, explica, dá pressa.
Ana Augusta que há-de espantar-se que a sua menina tenha ido para tão longe, que se tenha afastado dos locais onde costuma fazer venda.
Nas hortas, sim, mas mais perto da cidade, dirá ela entre dois choros, ainda não sabendo que o corpo da filha, encontrada no brejo, tem as saias, que elas usavam sempre longas, alçadas sobre o ventre e nuas, escancaradas, as coxas e as virilhas.
Descalça era como andavam as varinas, mas não seria o caso de Maria dos Anjos, ao menos no dia do crime. Ali assassinada, tinha, repuxadas aos tornozelos, umas meias pretas, e no pé direito, ainda calçada, uma soca. Uma dessas socas com sola de madeira e uma tira cravada com brochas. Uma tira vermelha, presa com doirados, a traçar o pé de menina de Maria dos Anjos.
As socas que lhe deu o Ramiro, dirá a mãe, e os guardas hão-de inquiri-la: quem é esse Ramiro e qual a relação com Maria dos Anjos.
Ana Augusta que comentará que o peixe espalhado na azinhaga é quase todo o que a sua menina trouxe para o giro. Ela mesma ajudara a fazer a canastra, ela mesma arrematara o preço de cada variedade. E Ana Augusta clamará, que a filha nem terá tido ensejo de vendê-lo.
Nessa manhã de sexta-feira, criadas e senhoras, das casas e das hortas, terão estranhado que o ar não tivesse estremecido com os pregões da varina, e ao almoço desse dia trinta e um de Julho terá faltado peixe em algumas mesas.
Maria dos Anjos que, no entanto, tinha ido cedinho a fazer a volta. Ela a sair da Ribeira ainda quase madrugada, terá sido morta muito antes daquelas três da tarde em que foi encontrada pelo cabouqueiro.
E a comprovar que morreu antes do almoço, o pedaço de pão embrulhado em papel de jornal que encontram junto ao corpo, intacto.
Nem comeu a buchazinha, chorará a mãe.
A sua menina nem terá tido o tempo de voltar a ter fome depois do café e da broa ingerido quase de madrugada, já de canasta em cima da sogra.
Não tivesse António Silva decidido atalhar caminho pela azinhaga, demoraria, ainda mais, a ser descoberto o corpo. E, a dar-se, em casa de Maria dos Anjos teriam estranhado tanta demora. Sobretudo os irmãos, e sobretudo o mais novito habituado às brincadeiras da irmã mais velha. Ana Augusta, essa, demoraria em preocupar-se, que a mãe de Maria dos Anjos havia de supor que a filha ficara tagarelando com alguma criada, e que, assim, talvez trouxesse uma broa fresca, umas cebolas, ou lhe dessem uma peça de roupa mesmo que já esgaçada. Demoraria em preocupar-se a mãe daquela filha já quase casadoira.

***

Quando o guarda bateu, estridente, na porta da loja que os pais de Maria dos Anjos tinham alugado, Ana Augusta gritou lá de dentro: entre, e o guarda sem um preâmbulo que adoçasse, foi informando: a sua filha foi encontrada morta na azinhaga de Santa Luzia. E Ana Augusta a romper em gritos, e ainda assim ripostando, querendo acreditar que nem fosse tal e qual: que lá podia ser a sua Maria dos Anjos! se a rapariga mal chegava ao Areeiro que lhe dava medo de ir adiante, quanto mais andar em Pote d'Água!! Mas o guarda intimava-a: que fosse confirmar, e dava-lhe pressa, e a mãe de Maria dos Anjos limpou o choro na manga da blusa e gritou a chamar os filhos que andavam a brincar na rua. E até disse quatro nomes pois, atarantada, chamou também pelo mais novo que tinha deixado dentro de casa. Que dissessem ao pai que ela ia com o senhor guarda por modo da mana. E o mais crescido atreveu-se: que lhe aconteceu? Mas já Ana Augusta seguia caminho atrás do guarda a jogar o xaile pelos ombros e a compor o cabelo debaixo do lenço. A cada passada firme que Ana Augusta dava na calçada quente da rua do Cura, a saia balançava-lhe desnudando-lhe ainda mais os pés descalços.
Ana Augusta calcorreando as ruas da capital até que fossem apenas hortas, até que fosse a azinhaga recosida nos muros e nos canaviais das bermas, e lá estava a sua menina estirada no pó e, à altura do sobrolho, a carinha rasgada por faca ou por tesoura.
E depois, por momentos, naquele esconso da azinhaga, terá sido apenas Ana Augusta e o seu desespero, todo ele teatro, todo ele exagero.
Que mal te fizeram, filha?!
Assim terá ela gritado a debruçar-se, a querer abraçar o corpo.
Mas os guardas ter-lhe-ão impedido o gesto, não fossem, assim, apagar-se vestígios, e apontavam-lhe o lenço apertado com dois nós em volta do pescoço: é da sua filha, esse lencinho? e Ana Augusta que não senhora, que desconhecia, mas que a sua menina trazia, isso com toda a certeza, um par de brincos de ouro e um cordão que lhe tinha dado a madrinha de baptismo.
Roubaram-lhos, ulularia a mãe de Maria dos Anjos a limpar ranhos e lágrimas na ponta do xaile.
E repetia, soluçando sílabas: roubaram-lhos.
Ana Augusta, mãe da rapariga assassinada, gritando impropérios e desgostos, já os guardas arrumavam o corpo numa padiola de madeira tal e qual a fotografaram a entrar na morgue, tal e qual aparece nos jornais da época.
Que tinha sido furto, terão murmurado, entre si, os guardas, ainda o corpo não tinha sido visto pelo médico a verificar se, sim ou não, tinha havido cópula ou se, de outro modo, tinha o corpo sido molestado.
O corpo da varina que esperaria essa noite de sexta e que passasse o outro dia e ainda o dia do Senhor, e só depois seria o director da Morgue de Lisboa a rasgá-lo, as suas mãos técnicas a tornar possível garantir que o quem quer que tivesse sido, e por qualquer que tivesse sido o móbil, teria morto Maria dos Anjos por asfixia como mostravam as lesões observadas nos pulmões e as equimoses na pele, no timo, no coração e nos rins.
Assim, tal e qual, se pode ler na notícia de várias páginas que a revista Ilustração Portuguesa, edição semanal do Jornal O Século, deu a público no seu número cento e trinta.
A autópsia não dará por concluído que tenha havido cópula.
Mas que o corpo foi molestado, disso são prova as contusões na zona interior das coxas e o modo descomposto como foi encontrado o corpo.
O corpo de Maria dos Anjos que ficará aguardando na Morgue de Lisboa.
E, enquanto isso, será a mãe de Maria dos Anjos a acordar a Madragoa com a expressão incontida do seu incomensurável desgosto.
E o povo irá juntar-se: varinas e pescadores e tantos outros; sobretudo varinas que se acolheriam, num desgosto partilhado, numa raiva surda, a entulharem os contrafortes da Morgue de Lisboa. Sobretudo mulheres, sobretudo vendedoras de peixe como a filha de Ana Augusta e ela própria.
A colónia varina ali em peso.
E anoiteceria e abriria o dia em uma e outra madrugada.
Uma mole de gente a velar o corpo da varinazinha assassinada, sabiam lá onde andaria o autor de tão terrível crime, e quanta vingança aventada de mistura com clamores de justiça.
E no funeral que se faria depois desses dois dias longos, seria ponto-alto o branco dos vestidinhos envergados pelas meninas da idade de Maria dos Anjos.
O branco virginal a cerrar ainda mais o luto dos xailes e dos lenços, e o negro dos fatos humildes de filhos, cunhados, genros, pais, irmãos, maridos, primos e sobrinhos.
Poderiam ter escrito, assim, em algum jornal.
O branco virginal, como era esperado de Maria dos Anjos nos seus treze anos.

***

Hoje, a conhecer a história triste da varina, lembrei-me de ti, Maria Ida.
Lembrei-me de ti a contar-nos que tinhas sido assaltada: roubaram-me aqui, no “meu bairro”, dizias.
O “meu bairro” era ali mesmo onde, antes, atravessava, ziguezagueando, a azinhaga de Santa Luzia. Talvez tenha sido disso que me lembrei do teu assalto.
Ou talvez me tenha lembrado por terem sido dois casos sem autor confesso.
Ou terá sido outro, o motivo de eu te ter lembrado.

***

Acabaras de estacionar o carro nas traseiras do liceu onde tinhas estudado, um quarteirão inteiro do bairro de prédios baixos que os teus familiares tinham ajudado a construir. Gente que viera de terras debruçadas no Nabão a largar as sovelas e outros artefactos com que cada um se faria mestre sapateiro como tinham sido seus avós e pais. Ali, na capital do reino, seriam, primeiro, trolhas e, depois, construtores; e casariam; e as esposas usariam luvas e chapéu e iriam com eles em excursões a Fátima, e mais tarde iriam a Roma de autocarro, e passariam férias nas acomodações dum inatel.
Fazia uma manhã soalheira naquele Janeiro, e o pátio do recreio e o campo de jogos, um e outro ainda buliçosos do intervalo, estavam ali, a meia dúzia de metros do local onde tinhas estacionado. Tinhas buscado, mais do que uma sombra, um local próximo, como desejavas sempre e, se possível, que o carro ficasse no passeio em frente da casa onde residias numa transversal à Avenida da Igreja. Tinhas a carteira no assento ao lado e ficaste uns instantes ver qualquer coisa que nunca precisaste. Tinhas a porta do teu lado meio aberta, garantiste.
Mal dei por ele, contaste-nos, um ror de vezes, e que o homem puxou a bolsa que estava “do outro lado”.
A bolsa que estava do lado onde o carro ficara quase encostada a um muro de quintal, que os prédios ali no bairro tinham quintais que serviam aos vários moradores. Lá deixavam crescer uma árvore de fruto, limões ou nêsperas era o mais frequente, e alguns criavam uma ou duas galinhas para os ovos.
Descreveste-nos com ênfase que lhe seguraste o braço mas que o indivíduo se soltou e andou lesto, e que tu gritaste.
Assim terás dramatizado na esquadra, a apresentar queixa do assalto. E ficarás irada, que o polícia sorriu a querer saber como é que o “tal homem” conseguiu retirar a carteira que estava do lado oposto, minha senhora?
É que um outro corpo debruçado sobre o teu corpo, Maria Ida, ter-te-ia roçado, magoado, até, com a ponta dum cotovelo, ou com uma aresta da tua mala, quando a retirasse! E tu nunca disseste, nunca mencionaste.

***

Houve uma única pessoa suspeita do assassinato de Maria dos Anjos.
Em notícia curta da Ilustração Portuguesa, duas semanas após o extenso primeiro artigo, o jornalista deixou escrito, referindo Josefa Maria Colares: “testemunhos acabrunhadores (…) se conjugam para a comprometer". 
Mas adianta que a mulher persistia numa negativa intransigente.
O certo é que nos arquivos este caso nem aparece. 
Talvez, buscando, haja registo da participação do cabouqueiro, mas o caso da varina assassinada foi esquecido.
Nada se sabe acerca do que terá sido investigado. Pode até supor-se que tenha havido provas suficientes contra Josefa Maria, mas que o pai de Maria dos Anjos, um digno pescador de rede vindo de Estarreja, e nascido lá por perto, Pedro José da Silva de seu nome, tenha rogado que não desvendassem, que a justiça fosse preterida em nome do bom nome da sua filha morta e da sua família.
 Pode supor-se que Maria dos Anjos tenha ido para tão longe, não uma vez, mas uma vez e outra. E nem apregoando, que ela talvez andasse encantada por palavras doces e carinhos, e promessas. Maria dos Anjos tão menina mas já despontando e, quem sabe se o triste desenlace tenha advindo de ciúme, e que o lenço atado com dois nós em volta do pescoço tenha mesmo pertencido a Josefa Maria Colares uma conhecida gatuna com cadastro.

***

Talvez também tu, Maria Ida, tanto ano passado sobre o assassinato de Maria dos Anjos, tenhas, ainda, andado pelos brejos de Lisboa e tenhas tido pejo em confessar-nos.
Tu roubada pela amante que passearias escondida de que te vissem no "meu bairro".