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quarta-feira, 23 de abril de 2008

Caso Isabella. Até onde somos culpados?


Caso Isabella. Até onde somos culpados? - giselle Sato

Não gostaria de falar sobre Isabella mas estou sufocando com tantas informações absurdas. Sinto uma angústia crescente, raiva e indignação, dor e desapontamento. Está muito difícil suportar. Não quero o lamento inútil, desejo ser solidária a criança que ela personifica.

Cada criança perdida desde o início dos tempos. Crimes que jamais foram solucionados ou questionados. Nossas meninas estão sendo torturadas. Na inexistência da bondade que a consciência dos deveres paternos sejam mais fortes.
É difícil aceitar a maldade. Mas ela existe, disfarçada em lares aparentemente perfeitos.

A formação familiar ausente produz seres incapazes de atitudes morais. O meio em que vivemos não nos ensina nada além da violência e competição pela sobrevivência.
Tiros, assaltos, crimes violentos, espancamentos, todos os dias os jornais publicam horrores. Nossas crianças brincam com o perigo, estão no fogo cruzado, são usados como escudos pelos traficantes. São alugadas como objetos.

São tantas crianças sofrendo e foi preciso uma delas ser arrastada em frangalhos pelas ruas para a população ouvir o grito frágil. Encontraram a menina acorrentada e indefesa. Era apenas mais uma de tantas outras . Porque não escutaram os gritos? Quantas outras ainda estão no cativeiro? Ou em celas mistas na Cadeia Pública? Como não foram socorridas? Ninguém viu ou ouviu.

Jogaram pela janela uma vida enquanto tantas outras são lamentadas, sofridas e queridas. Porque o ser humano é capaz de atos tão desprovidos de misericórdia.
Quantos nunca ouviram ou sentiram o toque sublime do amor incondicional? O respeito por cada ser vivo. O respeito por si mesmo.
Gratidão. Comunhão com a vida. Compreender que cada respiração é um milagre divino. Expandir a consciência e enxergar além da forma física infantil. Ver que naquele corpinho habita um ser humano. Com direitos, merecimentos, sob nossa tutela, proteção e amparo.
Não posso negar as palavras o direito de formar o texto que escrevo com tanto pesar. Não posso calar a voz que grita em meu peito que é preciso ser útil. Mesmo correndo o risco de ser repetitivo e triste.

Da próxima vez que for testemunha de alguma agressão ou maus tratos, pouco me importa se pensarão que sou louca, vou agir de acordo com minha consciência. Quem sabe aquele pai que caminha pelo Shopping cheio de sacolas de brinquedos caros esteja arrastando o filho pelos cabelos porque está descontrolado e um simples alerta fará com que ele pense duas vezes antes de atirar o menino pela janela.
Calar também é permitir e se omitir é tão crime quanto praticar.





segunda-feira, 21 de abril de 2008

Delta T


Marcia Szajnbok



Tempo zero:
Olhos nos olhos, ambos estáticos. Devagar, ele pensa, devagarzinho para não assustá-la... Não queremos que ela fuja, certo?... A mão direita parada, a esquerda desliza sutil pela parede, lenta, quadro a quadro... Num átimo, a alcança! Tão rápido... Sentia seu pequeno corpo frio sob os dedos, mas o olhar não fora capaz de acompanhar o movimento. Agora lá estava: presa. Sua. Sorria, gozando a doçura da vitória sobre o mais fraco. Covardia? Por certo, não. Poder, talvez, um treino, um jogo, um faz de conta... Perdido na imagem de si como rei, ou general, ou ditador, não notou que ela era capaz de tão estratégica fuga: deixando para trás um pedaço de si, um resto de corpo mesmo que ainda vivo, escapara... E agora, tudo o que tinha nas mãos era isso: um resto. Um pedaço de cauda de lagartixa que o menino, derrubado de volta à realidade, atira longe, tomado de raiva e despeito. Para que serve afinal um bicho desses? , pensa, em frustrada tentativa de consolo. No íntimo, porém, não se engana. Foi-se a lagartixa, foi-se o resto da cauda abandonada, ficou a dor. Um ponto doloroso no meio do peito, atrás do osso... Estranho osso de nome esterno, justo esse que ficava tão dentro... Tentou jogar bola, saiu a andar, comeu doce de leite. O dia terminou sem surpresas. À noite, chorou sozinho, escondido pela escuridão até de si mesmo. Onde já se viu, menino chorar por uma coisa dessas? Mas chorava, chorava porque doía, doía imensamente aquela falta, aquela partida sem adeus.
Tempo x diferente de zero:
O olhar fixo sobre a porta fechada. Imóvel, recortado do ambiente, não se descuida da expectante entrada. Mas ela não vem. Ela nunca chega. Por mais que procure disfarçar de si a própria certeza, ele sabe, convicto: não chegará. Não voltará. Nas mãos apenas um pedaço de pano azul, o resto, a sobra morta do que fora corpo e agora pura ausência. Um pedaço de pano-cauda, da mulher-lagartixa para sempre perdida. Dor.





sábado, 19 de abril de 2008

Na noite carioca

Por: Pedro Faria
(Aviso: O texto contém linguagem não apropriada para menores)





Ele a avistou próxima do Copacabana Palace, na Avenida Atlântica. Ela era ruiva, usava uma mini-saia de vinil roxo e um top branco. Seus seios eram pequenos e seu cabelo era curto.
Ela era perfeita.
Sem dizer nada, ele parou seu carro próximo à ela e abriu a porta do passageiro. Ela fez sinal para sua amiga, que assentiu e voltou a se oferecer aos carros que passavam. A ruivinha entrou no carro e fechou a porta.
- Qual é o seu nome, querido? -, perguntou ela, tímida. Ou era muito nova na profissão, ou fingia muito bem.
- Papai. Apenas me chame de “papai”.
- Aonde vamos, papai?
- Fique quieta, querida.
- Sim senhor.
Ela não disse mais nada.
Eles dirigiram por vários minutos. Durante o caminho, “papai” colocava a mão nas pernas da pequena ao seu lado, e ia subindo até a entrada de sua vagina, e pensava no que faria com ela. Ele já tinha tido várias putas como essa, magrinhas e branquinhas, de peitos pequenos. Lembravam a ele sua filha. Para falar a verdade, ele ainda preferia sua pequena Irina, porém ela se certificou que ele nunca mais a tocaria, cortando seus pulsos na banheira.
“Primeiro a foderei, depois talvez eu a estrangule ou esfaqueie. Ainda não sei qual dos dois”, era o que ele pensava durante sua viagem. Ela, por outro lado, ficou quase que completamente calada, fora alguns gemidos que soltava quando o dedo dele roçava em seu clitóris.
Chegaram à uma área florestada, na Tijuca. Estavam completamente sozinhos.
Ele removeu a capota do carro e mandou ela se sair. Ela se levantou, calada, e ele logo a seguiu. Abraçou-a próximo a si, segurando em suas nádegas.
- Agora você vai agradar o papai, não vai, querida?
Ela olhava para baixo. Ele segurou seu queixo, levantou sua cabeça e olhou em seus olhos.
- Não vai, querida?
- Sim, papai. -, foi sua resposta.
Ele ficou mais alguns segundos esfregando-se nela. Então, sentou-se no banco traseiro e mandou ela se ajoelhar.
Abriu sua calça e retirou seu pênis. Notou os olhos dela se arregalando. “Um bom toque”, pensou ele. Não era tão grande assim. Ele sabia que ela estava fazendo um teatrinho. E adorava.
- Agora, chupa o papai, chupa.
Reclinou-se e fechou os olhos enquanto ela timidamente segurava seu pau, movendo o prepúcio para cima e para baixo.
- Sim, sim -, murmurava ele.
Ela passou a punhetar mais rápido, lambendo ao redor da glande. Depois, começou a chupar, enfiando o pau até o fundo de sua garganta.
Ele adorou. Ela mantia seu pênis em sua garganta, e fazia movimentos de engolir. Ele, reclinado em bancos de couro já acostumados a receber corpos de putas mortas, pensava em mil maneiras de vióla-la, após sua morte.
“Fazer um buraco em sua bochecha e foder ali mesmo... é uma boa. Ou então comer seu cú até as pregas rasgarem. Mas tudo ao seu tempo”.
Enquanto isso, ele, deitado de olhos fechados, sentia algo que nunca havia sentido antes. A maneira com a qual ela chupava, era celestial! Ele sentia que seu pau ia explodir, de tão bom que estava.
Visões de morte permeavam seu pensamento. Era um psicopata, e adorava isso. Mal sabia aquela pobre putinha, que iria morrer depois de ser fodida.
Sentindo um êxtase até então nunca sentido, ele abriu os olhos e olhou para baixo.
Era no mínimo engraçado.
Os olhos da menina haviam mudado. Tinham se tornado negros, completamente. Sua testa adquiriu rugas estranhíssimas, quase que inumanas.
Quase não, inumanas mesmo. E o mais estranho não era isso.
A boca dela tornara-se um buraco negro. Ele se viu quase meio corpo para dentro dela, porém não sentiu isso. Sentiu o maior dos prazeres que já havia experimentado até então.
Ele se viu afundando cada vez mais, e pensou na ironia que era a vida.
“Não parece uma maneira tão ruim assim de morrer”, pensou ele.
“Ah, mas é”. Ele ouviu isso em sua mente, uma voz tão horrível, que mesmo essas poucas palavras lhe causaram um terror que nunca sentira antes.
Após ouvir isso, a dor começou.
Ele começou a gritar. Parecia que estava entrando em um triturador de lixo. Seus pés foram primeiros, estilhaçados. Suas canelas, joelhos, coxas. Quando chegou a vez de seu pau, a dor já se misturava em um turbilhão em seu cérebro, e ele não distinguia mais nada. Ela, por seu lado, gemia e soltava sons de prazer.
Enterrado até o pescoço, triturado da cintura para baixo, ele olhou nos olhos dela.
Negros como a noite.
“Eu como por fome. Mas você, eu comerei por diversão”.
E ele afundou completamente naquele poço da morte, já morto quando sua cabeça entrou por fim na boca daquele demônio.
Ela se levantou, boca de tamanho normal, olhos verdes e testa lisinha. Olhou para o carro do homem a quem acabara de ingerir.
E sorriu, saciada e contente, antes de voltar para seu ponto, curiosa para saber se sua amiga também se dera tão bem naquela noite.





sexta-feira, 18 de abril de 2008

Uma Crônica em Três Minutos

Volmar Camargo Junior
(escrita entre 07h47min e 07h50min de 18/04/2008)
O que dá para fazer em três minutos?

Dormir três minutos a mais numa manhã fria.
Desligar o chuveiro três minutos antes.
Passar três minutos alongando os músculos.
Reduzir a velocidade do carro três minutos antes...
Olhar para as pessoas durante três minutos dá para criar uma imagem mental dela.
Concentrar-se, rezar, meditar, conectar-se com o “eu-astral”... o que seja, por três minutos.
Desligar a televisão, o computador, o aparelho de som e ficar em silêncio por três minutos.
Pensar no maior número possível de pessoas queridas.
Escrever uma crônica sobre o que fazer durante três minutos.





quinta-feira, 17 de abril de 2008

Rapunzel


Versão: Jacob e Wilhelm Grimm
Tradução: Henry Alfred Bugalho

Era uma vez um homem e uma mulher que há muito tempo, em vão, queriam ter um filho. Por fim, a mulher teve esperança de que Deus lhes concedesse este desejo. No fundo da casa deles, havia uma pequena janela, de onde se podia ver um esplêndido jardim, repleto das mais lindas flores e ervas. Contudo, o jardim era cercado por um alto muro, e ninguém se atrevia a ir até lá porque ele pertencia a uma bruxa, que tinha grande poder e era temida por todo o mundo.
Um dia, a mulher estava diante desta janela, olhando para o jardim, quando ela avistou um canteiro no qual estavam plantados os mais belos rapôncios — conhecidos como rapunzéis na região —, e que pareciam tão frescos e verdes que ela os desejou, e tinha a maior vontade de comer alguns. O desejo aumentou dia após dia, e como ela sabia que ela não conseguiria obtê-los, ela se debilitou, e começar a parecer pálida e desanimada.
Então seu marido ficou preocupado e perguntou:
— O que a atormenta, querida esposa?
— Ah, ela respondeu, se eu não puder comer um pouco de rapôncio, que tem no jardim atrás de nossa casa, eu vou morrer.
O homem, que a amava, pensou que, ao invés de deixar sua esposa morrer, ele mesmo traria para ela o rapôncio, não importando o que isto lhe custasse. Ao cair da tarde, ele escalou o muro e saltou para o jardim da bruxa, apressadamente ele apanhou um punhado de rapôncios e o levou para sua esposa. Imediatamente ela fez uma salada com eles e os comeu com voracidade. E, para ela, o gosto era tão, mas tão bom, que no dia seguinte ela os desejava três vezes mais do que antes. Para ter sossego, o marido acabou indo mais uma vez ao jardim. Assim, na penumbra da noite, ele saltou para o outro lado de novo. Mas, após ter escalado o muro, ele levou um baita susto, pois viu a bruxa parada diante dele.
— Como ousa, ela disse, com olhar de raiva, descer ao meu jardim e roubar meu rapôncio como um ladrão? Você sofrerá por causa disto.
— Ah, ele respondeu, que a misericórdia substitua a Justiça, pois eu apenas decidi a agir deste modo por pura necessidade. Minha esposa viu seu rapôncio desde a janela e o desejou tanto que ela teria morrido se não os tivesse comido.
Então a raiva da bruxa foi aplacada, e ela disse a ele:
— Se este é o caso, como você diz, eu permitirei que você leve consigo quanto rapôncio quiser, mas eu imponho uma condição, você deverá entregar a mim a criança que sua esposa trará ao mundo. Ela será bem tratada, e eu tomarei conta dela como se fosse uma mãe.
Aterrorizado, o homem concordou com tudo, e quando a mulher deu a luz, a bruxa apareceu, subitamente, deu à criança do nome de Rapunzel e a levou consigo.
Rapunzel se tornou a mais bela criança debaixo do sol. Quando ela completou doze anos de idade, a bruxa a fechou numa torre, no meio da floresta, que não tinha escadas nem porta, mas quase no topo havia uma pequena janela. Quando a bruxa queria entrar, ela ficava embaixo da janela e gritava:
“Rapunzel, Rapunzel,
Jogue as suas tranças!”
Rapunzel tinha magníficos cabelos longos, belos como fios de ouro, e quando ela ouvia a voz da bruxa, ela soltava suas tranças, enrolava-as num gancho na janela e, então, o cabelo caía uma distância de doze metros, e a bruxa subia por ele.
Após um ano ou dois, o filho dum rei veio cavalgando pela floresta e passou perto da torre. Então ele ouviu uma canção, que era tão encantadora que ele parou para ouvi-la. Era Rapunzel que, em sua solidão, passava o tempo deixando sua doce voz ressoar. O filho do rei queria subir até ela. Procurou por uma porta para a torre, mas não encontrou nenhuma. Ele cavalgou para casa, mas a cantoria o havia tocado tão profundamente que, todos os dias, ele ia até a floresta para ouvi-la. Uma vez, quando ele estava parado atrás duma árvore, ele viu a bruxa chegar e a ouviu gritar:
“Rapunzel, Rapunzel
Jogue as suas traças!”
Então Rapunzel soltou as tranças e a bruxa subiu por elas.
— Se esta é a escada por onde se sobe, eu também tentarei a minha sorte, ele disse. No dia seguinte, quando começou a anoitecer, ele foi até a torre e gritou:
“Rapunzel, Rapunzel,
Jogue as suas tranças!”
Imediatamente ela jogou para baixo o cabelo e o filho do rei o escalou. A princípio, Rapunzel ficou terrivelmente assustada quando um homem, como nunca ela havia visto antes, apareceu. Mas o filho do rei começou a conversar com ela como se fosse um amigo, contou a ela que seu coração estava abalado, que não lhe deixava em paz, e que ele tinha de vê-la. Então Rapuzel perdeu o medo e, quando ele perguntou-lhe se ela queria se casar com ele, e ela viu que ele era jovem e bonito, ela pensou: “ele me amará mais do que a velha Dona Gothel me ama”. Ela disse sim, e eles se deram as mãos.
Ela disse:
— Eu quero ir embora com você, mas eu não sei como vou descer. Cada vez que você vier, traga um retalho de seda e eu tecerei uma escada com eles, e, quando ela estiver pronta, eu descerei e você me levará em seu cavalo.
Eles combinaram que, até então, ele viria se encontrar com ela todas as noites, pois a velha vinha durante o dia.
A bruxa não percebeu nada de errado, até que, certa vez, Rapunzel disse a ela:
— Diga-me, Dona Gothel, como é que tão mais difícil para você conseguir subir do que para o jovem filho do rei; ele sobe rapidinho.
— Ah! Sua criança malvada, gritou a bruxa. O que é que você me disse? Eu pensei que tinha separado você de todo o mundo e, mesmo assim, você me enganou.
Em sua fúria, ela apanhou as lindas tranças de Rapunzel, enrolou-as duas vezes ao redor de sua mão esquerda, com a mão direita apanhou uma tesoura e, chique-chaque, ela as cortou. As adoráveis tranças caíram no chão. E ela era tão inclemente que levou a pobre Rapunzel para um deserto, onde ela tinha de viver em grande pesar e penúria.
Contudo, no mesmo dia em que ela expulsou Rapunzel, a bruxa prendeu as tranças, que ela havia cortado, no gancho na janela e, quando o filho do rei veio e gritou:
“Rapunzel, Rapunzel,
Jogue as suas tranças.”
Ela jogou o cabelo. O filho do rei subiu, mas, ao invés de encontrar sua querida Rapunzel, ele encontrou a bruxa, que o fitou com maldoso e venenoso olhar.
— Ahá, ela gritou, zombeteira, você veio pegar sua querida, mas o belo pássaro não canta mais no ninho. O gato o pegou, e arranhará seus olhos também. Rapunzel está longe de seu alcance. Você nunca mais a verá.
O filho do rei foi consumido por uma dor e, em seu desespero, pulou da torre. Ele sobreviveu, mas espinhos sobre os quais ele caiu furaram seus olhos. Então ele vagou, às cegas, pela floresta, não comia nada senão raízes e frutinhas, e não fazia nada senão se lamentar e chorar pela perda da sua querida esposa.
Assim, ele perambulou, miserável, por alguns anos, mas, por fim, ele chegou ao deserto onde Rapunzel vivia, com os gêmeos aos quais ela havia dado a luz, em estado deplorável. Ele ouviu uma voz e ela parecia ser tão familiar que ele foi em direção a ela e, quando ele se aproximou, Rapunzel o reconheceu, abraçou-o e chorou. Duas de suas lágrimas molharam os olhos dele, que se abriram, e ele voltou a enxergar. Ele a conduziu ao seu reino, onde eles foram recebidos com alegria e viveram felizes por muito tempo, felizes e satisfeitos.

(Fonte: Grimm Märchen)

Biografia
Os Irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm Grimm, eram estudiosos alemães que se tornaram conhecidos pela publicação da coleção de contos populares e contos de fadas e pela sua obra em lingüística, relacionando como os sons em palavras se alteram historicamente (A Lei dos Grimm). Eles estão entre os maiores narradores de novelas da Europa, difundindo fábulas como "A Branca de Neve, Rapunzel, Cinderela e João e Maria.

(Fonte: Wikipédia)





Chapeuzinho Vermelho


Versão: Jacob e Wilhelm Grimm
Tradução: Henry Alfred Bugalho

Era uma vez uma doce menininha. Todo mundo que a via gostava dela, mas principalmente sua avó, que daria qualquer coisa à criança. Certa vez, deu a ela um chapeuzinho feito de veludo vermelho. Porque lhe havia servido tão bem, e porque não queria vestir nada mais, ela ficou conhecida como Chapeuzinho Vermelho.
Um dia, a mãe disse a ela:
— Venha cá, Chapeuzinho Vermelho. Aqui está um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho. Leve-os até sua avó. Ela está doente e fraca, e isto fará bem a ela. Saia antes que fique muito quente e, enquanto você estiver indo, caminhe tranqüilamente e em silêncio, e não corra para fora da trilha, ou você pode cair e quebrar a garrafa, então sua vovó não receberá nada. Quando você entrar no quarto dela, não se esqueça de dizer “bom dia”, e não fique xeretando em todos os cantos antes.
— Eu tomarei cuidado, Chapeuzinho Vermelho prometeu a sua mãe.
A vovó vivia na floresta, a meia hora da cidade. Assim que Chapeuzinho Vermelho entrou na floresta, um lobo a encontrou. Chapeuzinho Vermelho não sabia que criatura terrível ele era, por isso, não tinha medo dele.
— Bom dia, Chapeuzinho Vermelho, ele disse.
— Muito obrigada, senhor lobo.
— Aonde vai tão cedo, Chapeuzinho Vermelho?
— Pra casa da minha vovó.
— O que você traz aí no seu avental?
— Bolo e vinho. Nós o assamos ontem, assim a pobre vovó doente terá algo gostoso para fazê-la ficar mais forte.
— Onde sua vovó mora, Chapeuzinho Vermelho?
— Mais uns quinze minutos adiante na floresta. A casa dela fica sob três grandes carvalhos, logo abaixo estão as amendoeiras. Com certeza você já deve conhecer, respondeu Chapeuzinho Vermelho.
O lobo pensou consigo: “que criatura mais tenra. Que refeição apetitosa, será melhor devorá-la do que à velha. E devo agir com astúcia, assim eu apanho as duas”. Ele acompanhou Chapeuzinho Vermelho por um tempo, então disse:
— Veja, Chapeuzinho Vermelho, como estão bonitas as flores por aqui. Por que você não dá uma volta? Acho que você não está ouvindo quão doce é o canto dos passarinhos. Você caminha seriamente, como se estivesse indo para a escola, enquanto tudo aqui na floresta está alegre.
Chapeuzinho Vermelho ergueu os olhos e, quando viu os raios de sol bailando aqui e acolá por entre as árvores e as lindas flores crescendo por todo o lugar, ela pensou: “que tal eu levar para a vovó um buquê? Isto a agradaria também. Está tão cedo ainda, que eu conseguirei chegar lá em boa hora”. Assim ela saiu da trilha e correu para a floresta à procura por flores. Mas toda vez que colhia uma, ela imaginava ter visto uma ainda mais bonita ao longe, e corria atrás dela, e assim ela adentrava mais na floresta.
Enquanto isto, o lobo correu direto para a casa da vovó e bateu na porta.
— Quem está aí?
— Chapeuzinho Vermelho, respondeu o lobo — Trazendo bolo e vinho. Abra a porta.
— Erga o ferrolho, gritou a vovó, estou fraca demais para me levantar.
O lobo ergueu o ferrolho, a porta se abriu e, sem dizer uma só palavra, ele foi até a cama da vovó e a devorou. Ele pôs as roupas dela, vestiu-se com o capuz dela, deitou-se na cama e fechou as cortinas.
Mas Chapeuzinho Vermelho estava colhendo flores e, quando ela havia reunido tantas que mal conseguia carregá-las, ela se lembrou da vovó, e se pôs a caminho da casa dela.
Ela ficou surpresa ao encontrar a porta do casebre aberta e, quando entrou no quarto, ela teve tal estranho sentimento que disse para si mesma: meu Deus, que angústia eu sinto hoje, das outras vezes, eu gostava tanto de estar com a vovó.
Ela chamou:
— Bom dia, mas não recebeu resposta. Ela foi até a cama e abriu as cortinas. Ali estava sua vovó com o gorro cobrindo o rosto e com uma aparência muito estranha.
— Nossa, vovó, ela disse, que orelhas grandes você tem.
— Para ouvi-la melhor, foi a resposta.
— Nossa, vovó, que olhos grandes você tem, ela disse.
— Para vê-la melhor.
— Nossa, vovó, que mãos grandes você tem.
— Para abraçá-la melhor.
— Nossa, vovó, que boca terrível você tem.
— Para devorá-la melhor.
E mal o lobo disse isto, ele saltou para fora da cama e engoliu Chapeuzinho Vermelho.
Quando o lobo havia saciado seu apetite, ele se deitou de novo na cama, adormeceu e começou a roncar bem alto. O caçador estava passando pela casa e pensou consigo: “como a velha senhora está roncando. Vou conferir se ela precisa de algo”.
Então ele entrou no quarto e, ao se aproximar da cama, ele viu que o lobo estava deitado nela.
— Eu o encontro aqui, velhaco? — ele disse — Eu o procuro há muito tempo.
Bem quando estava prestes a atirar contra ele, veio-lhe à mente que talvez o lobo tivesse devorado a vovó e que ela ainda poderia ser salva, então ele não atirou, mas pegou uma tesoura e começou a cortar a barriga do lobo adormecido.
Ele havia dado duas tesouradas quando viu Chapeuzinho Vermelho aparecer, então ele deu mais duas tesouradas, e a menininha saltou para fora, gritando:
— Ai, como eu fiquei com medo. Estava escuro dentro do lobo.
E, depois, a vovó também saiu com vida, mas quase não conseguia respirar. Chapeuzinho Vermelho rapidamente apanhou grandes pedras, com as quais eles encheram o bucho do lobo e, quando ele acordou, quis fugir, mas as pedras eram tão pesadas que ele logo caiu e morreu.

Todos os três ficaram contentes. O caçador arrancou a pele do lobo e a levou para casa. A vovó comeu o bolo e bebeu o vinho que Chapeuzinho Vermelho havia trazido e se fortaleceu, mas Chapeuzinho Vermelho pensou consigo: “enquanto eu viver, nunca deixarei a trilha para correr pela floresta, quando minha mãe me houver proibido”.

***

Conta-se também que, certa vez, quando Chapeuzinho Vermelho levava novamente bolos para a vovó, outro lobo falou com ela e tentou incitá-la a sair da trilha. No entanto, Chapeuzinho Vermelho se conteve e prosseguiu em seu caminho, e disse à vovó que ela tinha se encontrado com o lobo, e que ele tinha dito "bom dia" para ela, mas com tanta maldade nos olhos que, se eles não estivessem na estrada pública, ela tinha certeza de que ele a teria devorado.
— Bem, disse a vovó, fecharemos a porta, assim ele não entrará.
Logo depois, o lobo bateu à porta e gritou:
— Abra a porta, vovó, sou a Chapeuzinho Vermelho e trago alguns bolos para você.
Mas elas não falaram nada, nem abriram a porta, então o cabeça cinzenta circundou a casa duas, três vezes e, por fim, subiu no telhado, pretendia esperar até que Chapeuzinho vermelho fosse para casa à noite, então a seguiria e a devoraria na escuridão. Mas a vovó viu o que havia nos pensamentos dele. Na frente da casa, havia uma tina de pedra, então ela disse à menina:
— Pegue o balde, Chapeuzinho Vermelho. Eu fiz algumas lingüiças ontem, então carregue até a tina a água na qual eu as cozinhei.
Chapeuzinho Vermelho carregou até a grande tina estar quase cheia. O cheiro de lingüiça subiu até o lobo, ele farejou e olhou para baixo, e, por fim, esticou tanto o pescoço que não conseguiu mais manter o equilíbrio e começou a escorregar. Escorregou do telhado direto na tina, e se afogou. Chapeuzinho Vermelhou voltou feliz para casa e ninguém mais fez mal algum a ela.

(Fonte: Grimm Märchen)





quarta-feira, 16 de abril de 2008

SAMIZDAT Especial 1 - Ficção Científica

SAMIZDATEspec1low


Conteúdo

Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

Lentidão, Ana Cristina Rodrigues

Código denominativo: RG-12, Carlos Alberto Barros

Recomendações de Leitura
Não Serás Futuro Algum, Ana Cristina Rodrigues

O artista da carne (uma parábola), Fábio Fernandes

História Natural, Max Mallmann

Primeiro Encontro, Volmar Camargo Junior

Como um Fim de Tarde Simulado, Samuel Peregrino

O Fascínio da Ficção, Denis da Cruz

Cemitério Russo, Henry Alfred Bugalho

Ilusões, Denis da Cruz

O Botão, José Espírito Santo

TRADUÇÃO
A Última Pergunta, Isaac Asimov

Termo de Recriação, Marcia Szajnbok

Guerrilha Urbana, Giselle Natsu Sato



SAMIZDAT Especial 1 - Ficção Científica - alta resolução 7,69 Mb (.PDF)

SAMIZDAT Especial 1 - Ficção Científica - baixa resolução 2 Mb (.PDF)

SAMIZDAT Especial 1 - Ficção Científica - leitura online (Calaméo)





segunda-feira, 14 de abril de 2008

Mundo ao contrário

Era um mundo ao contrário em que se corria da meta para a partida, os homens procuravam em vão a última mentira e as histórias contavam sempre os mesmos escritores.





Microcontos

O Papagaio

Era uma vez um papagaio lindo de bico vermelho e penas amarelas. Não cantava, nem falava nem voava. Estava morto.





Microcontos

Ejaculação Precoce

Bastava alguém dizer sim ao seu convite para jantar que já melecava as cuecas.

***

Mirabolância

Otávio estava falido.
Num gesto de desespero, tomou a decisão: se mataria, para que sua filha pudesse receber seu seguro de vida.

Bagunçou a casa, escondeu jóias, quebrou móveis, tudo para simular um latrocínio. Depois, se jogou pela janela.

Caiu sobre a filha, que entrava no prédio.

Ela morreu; ele não.





Microcontos

Volmar Camargo Junior

Desejo
— Príncipe Xin, qual é o seu desejo?
— Desejo ser o Imperador.
— Não será possível antes de sua maioridade, Alteza.
— Então, me traz um sorvete de abacaxi.


Dívidas
Terêncio estava endividado e sem trabalho. Sacou a última parcela do seguro-desemprego, rasgou as faturas atrasadas e comprou um revólver. A mulher teve que vender a arma para pagar a fiança.



Demorou
— Amor...
— Quê?
— Broxei.
— Qual é a novidade? Tu é broxa!
— É, mas ele tava duro agorinha.
— E por que tu não me chamou?
— Eu chamei. Não viu quando eu disse: “Amor...”?


... para entrar para a História.
Seu Nestor, oitenta e um anos, implicou com o busto do Getúlio na praça: achou que o nariz estava torto. No meio da madrugada, com um torquês, tentou endireitar a escultura. Acabou deixando o Getúlio sem nariz.
De manhã, a manchete do jornal dizia: “Octogenário é encontrado morto com um alicate na mão direita e um nariz de bronze na esquerda”. E, no final da matéria: “Vandalismo não tem idade”.



Tiroteio
— Ouvi dizer que é aqui que estão os valentes da cidade.
— Pois ouviu certo. Veio conferir?
— Não... é que eu não tinha mais onde me esconder do tiroteio.



Ponto de vista
Sabe, a praça fica bonita à noite. Quer dizer, quando não chove. E quando não tem nevoeiro. Ah, e quando não está tomada pelos cachorros de rua. E também, quando não tem feira de dia. Na verdade, era mais bonita quando não tinha esse bando de camelô. Também era melhor quando não tinha essas piranhas. E o chafariz também já teve os seus dias. E sem as pichações também não era nada mal. É... a praça tá feia!


Um belo dia...
... começou a chover. Acabou-se o belo dia.





SAC
— Alô, é do SAC?
— Sim, senhora. Em que posso ajudar?
— Vocês estudam pra trabalhar aí?
— S-sim, senhora.
— Então me diz uma coisa: o que é “odorífero”?
— Como?
— “Odorífero”, com nove letras e termina com “NTE”. Só falta essa pra terminar, e eu não queria olhar nas respostas.





domingo, 13 de abril de 2008

Três pontos...

O cego, o surdo e o mudo
Fui, sou e serei três pontos.

Claridade, penumbra e escuro
Fui, sou e serei três pontos.

Passado, presente e futuro
Fui, sou e serei três pontos.

Três. Pontos apenas. Pontos!
Junções em centro de vida
Encontro de desencontros...





O jogo

Eu sei que o meu vizinho da frente é um tipo estranho. Habita aquelas duas pequenas assoalhadas escuras há mais de vinte anos e nunca ninguém lhe conheceu um emprego ou qualquer outro tipo de ocupação produtiva. Não tem mulher. Não se lhe conhece qualquer família. Nunca se ouviu sair de lá o choro ou o riso de uma criança.

Nunca comentei com ninguém sobre ele e nossa amizade. Nem com meus amigos, nem com meu chefe ou colegas lá da repartição. Nem no restaurante que frequento praticamente todos os dias. Nem mesmo com a minha família – meus pais velhinhos lá na província que visito fim-de-semana sim fim-de-semana não.

Não sei como foi... entre nós estabeleceu-se aquele ritual. Todos os dias quando chego, pego Faruk pela trela e o levo a passear um pouco. Paro aqui e ali, bebo uma ou duas bicas, um ou dois whisky, ponho a conversa em dia e depois...

Depois lá estou eu tocando a sua porta. Ele se apressa a abri-la sem uma única palavra. Conduz-me até à pequena salinha e ficamos os dois a olhar para aquele rectângulo mágico – o Jogo.
Seguem-se duas ou três horas em que o tempo se esvai sendo substituído pelos lances rápidos. Meu vizinho é muito bom jogador. Esperto, astuto. Quase diria possuidor de uma inteligência extra-terrestre. Não que eu acredite em extra-terrestres. Sempre fui uma pessoa muito céptica.
Ano passado apareceu por lá o Tiago. O miúdo tinha acabado de sair da escola e ia me ajudar com os processos de sector imobiliário. Logo me veio com teorias de conspiração. Os extra-terrestres para aqui, os homens verdes para ali. Se eu sabia que muitas personagens ilustres tinham sido na verdade...extra-terrestres. Se eu sabia que eles tinham estado na génese de toda a vida no nosso planeta. Se eu sabia que hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo estávamos sendo observados, discutidos, estudados. Um dia o miúdo não apareceu. Ninguém voltou a ouvir falar dele. O mais certo é ter arranjado um biscate mais bem remunerado ou mais perto de casa.

O meu amigo do apartamento da frente é na verdade uma pessoa pouco comum. Nunca conheci ninguém tão reservado. Não se interessa por política nem novela. Não tem rádio, aparelhagem ou televisão. Não reage se lhe falo do Glorioso. Se comento sobre mulher ouço uma resposta muda. Nem um gesto, nem um pequeno sinal de entusiasmo ou de excitação. E no entanto...

Todos os dias ele me espera...para jogar. Todos os dias o jogo tem novas nuances, novos desafios. Às vezes ganho – desconfio que ele me deixa vencer, faz de propósito, deve ter receio que eu perca o interesse por nosso vício comum. Por vezes me sinto estudado, analisado, perscrutado até ao mais íntimo através dos desafios daquele jogo infinito e empolgante. Ele joga em silêncio. Concentração absoluta. Não bebe. Não come. Apenas através de sinais lhe adivinho a alegria da vitória, o elogio de uma boa jogada ou a desilusão da derrota.

Hoje cheguei a tempo e horas e me esperou ao invés dele a porta entreaberta. O vazio. No centro da sala jaz a pequena mesa descolorida, desprovida do rectângulo mágico alvo das nossas atenções e esforços diários. Dele e do jogo nem o mais pequeno sinal. Nem o mais pequeno indício. Como se aquele pequeno apartamento nunca tivesse sido habitado!Eu sei que meu vizinho da frente é um tipo estranho. Muito estranho mesmo. Mas tenho saudade de seus olhos grandes e cinzentos em sua carapaça verde. De sua concentração silenciosa. De ver seus tentáculos manipulando habilmente as peças... esteja onde estiver.





sexta-feira, 11 de abril de 2008

Dedepopoimento de uma vivítima dodo memedo



“Eu sou constantemente atacada por batatas fritas furiosas e suicidas. Elas chegam sorrateiramente, me encurralando num canto, ameaçando espirrar óleo quente em mim, me fazem abrir a boca e pulam todas dentro dela, uma a uma... Algumas vêm munidas de sal, que elas, sádica e masoquistamente, salpicam em si mesmas, antes do mergulho fatal... Eu já não agüento mais!!!! Mamãe, me salva!!!!!!!!”


Sobre a autora
Liliam Kikuchi nasceu em São Paulo, mas reside atualmente no Japão. Dona-de-casa e mãe de duas filhas. Escreve sem pretensões, por puro prazer.





Complexidades



Voltei para o prédio onde ficava o meu quarto e propus para a senhoria limpar os banheiros, pintar as paredes, lavar a louça, qualquer coisa. Eu precisava ter onde dormir e, mais do que isso, necessitava reaver o meu PC. Ela jamais mostrara muito os dentes para mim. Era uma mulher dos seus cinqüenta e poucos anos; cabelos longos, porém eternamente presos; roupas surradas e fora de moda; olhar triste e lábios carnudos.

Sim, pela primeira vez eu reparava em seus lábios. Ela falava e eu já nem mais a escutava. De pé, parado na porta, eu apenas fitava sua boca movendo-se e espiralando palavras soltas no ar. Passei a sentir também o seu perfume. Suave. Notei que estava um tanto embaraçada. Eu disse então que precisava ir ao banheiro. Ela permitiu que eu entrasse em seu pequeno apartamento no andar térreo. Ofereceu-me um café; acompanhado de uma deliciosa torta de cerejas. Olhei-a bem dentro dos olhos. O marido falecera há muito. Mais de uma década, falou-me. Senti seu hálito. Doce. A pele macia e trêmula. A respiração ofegante. A noite a adensar-se. O café a esfriar sob a puída toalha branca.


Sobre o autor
Lehgau-Z Qarvalho é jornalista por formação; artista gráfico por impulso; músico por amor e escritor por compulsão. Nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; e renasceu na Internet, mundo. Autor do romance "A Teoria das Sombras".





A última noite do ano da coisa que não aconteceu



Era uma pessoa solitária. Pensava que enganava a todos. Que sua vida social era intensa. Que era feliz. Mas não sabia deixar-se amar. Algo acontecera na infância, talvez. Aquelas coisas freudianas. Tinha dúvidas. Se tomava os remédios, ficava mais equilibrada, menos intensa, sem cor. Se não os consumia, podia sentir tudo, até demais. Possuía diversas personalidades. Era inteligentíssima e muitíssimo imaginativa. Porém, imatura a ponto de não saber ver a felicidade bem diante de seus olhos. Ou não querer. Vivia com seus demônios e acreditava que deles ninguém se livra, jamais. Era bela. De uma beleza ímpar. Feições de misturas longínquas. Tinha medos; de ficar sozinha, e de não ficar. Tinha dúvidas; sobre ter certezas, ou deixar-se fluir. Era valiosa, mas pouco acreditava em si. Sim, era infeliz; e disso, sim, já não possuía qualquer suspeição. E, sim, era submissa a sua infelicidade; e disso ainda não se livraria, porque disso ainda não sabia. E nem deixava espaço para vir a saber.

Uma noite, ao tentar segurá-lo, provocando-o e empurrando-o para longe, deixou escapar um sonho pela janela iluminada. E nunca mais o recuperou.





quinta-feira, 10 de abril de 2008

O Abraço


Como poderia me esquecer da primeira vez que vi Mariana?
Um colega de trabalho, empolgado com os rumores, me arrastou ao apartamento dela. Na cozinha, uma dezena de outros homens, silenciosos, fitando a menininha pré-adolescente, frágil, marias-chiquinhas, olhar vazio.
A mãe dela nos instigava a começarmos.
— Podem fazer o que quiser com Mariana. Eu lhes garanto que ela não sentirá nada.
Um tal de João, caminhoneiro, boné e tatuagem no braço roliço, se adiantou. Diante da menina, hesitava:
— Ô, dona, já ouvi muita histórias sobre sua filha e vim ver com meus próprios olhos. Mas não quero machucá-la.
— Vá em frente, João, ela vai agüentar — a mãe respondeu.
O bruto estalou os dedos, e esmurrou Mariana na cara. Sem se mover, nem gemido, nem hematoma, Mariana permanecia impassível. João prosseguiu na pancadaria, socos, tapas, empurrões e chutes. Mariana, ao contrário do esperado — choros, gritos e ossos quebrados —, respondeu com apenas um erguer de braços, queria abraçar João.
O coração se apertou no meu peito. Aquela menina, com talvez onze ou doze anos, dava a mais profunda lição de cristianismo: sendo atacada, amava seu inimigo; apanhando, dava a outra face.
Ofegante, após haver espancando Mariana no chão, pisado-lhe a cabeça e o corpinho, João aguardou que ela se levantasse, completamente incólume.
— Inacreditável! — ele balbuciou.
— Quem é o próximo? — indagou a mãe contente, recebendo dez reais do caminhoneiro.
A imagem daquela menina me assombrou por dias, a cena dela apanhando dum homem atrás do outro, sempre com aquele olhar sem vida, com os braços lânguidos ensaiando um abraço, pele e ossos que pareciam borracha, invulneráveis à dor e ao dano.
Amaldiçoei meu colega por ter me levado até ela e pedi para que não me convidasse mais. Aos poucos, a recordação daquela noite foi se apagando.
Porém, um circo foi montado na cidade e prometi à minha irmã que levaria meus sobrinhos para verem o palhaço e o elefante.
— Queremos ver a menina-borracha! — meus sobrinhos gritaram em uníssono quando viram o cartaz com uma menina franzina sendo atingida pelo soco dum truculento. Mariana me escapou das trevas do inconsciente.
Pagamos os dois reais do ingresso e adentramos a tenda. Vislumbrei a mãe de Mariana num canto, ao lado do palco, e isto me deu a certeza de que a menina-borracha e Mariana eram a mesma pessoa. A demonstração circense foi muito parecida com a daquela noite na cozinha: homens fortes esmurrando uma menina indefesa, cuja única reação era um abraço irrealizável.
Creio que foi naquela noite que tomei a decisão de matá-la. Mariana não tinha um semblante triste, mas era como se ela não existisse. Talvez ela padecesse de alguma disfunção rara, que não a permitisse sentir nada, nem dor, nem prazer também. Qual sentido há em ser apenas uma pedra, sem sensações, sem toque? A vontade de matá-la era compaixão em mim. Enquanto a mãe queria explorar sua doença, eu, um estranho, queria salvá-la dela.
Posteriormente, a visão de Mariana na TV, recebendo o mesmo tratamento que a vi tendo nas vezes anterior, reforçou minha decisão.
Aguardei na rua, diante do prédio. Ao ver a mãe de Mariana saindo, corri e subi até o oitavo andar. Bati à porta e quem abriu foi Mariana, sem dizer palavra e oculta pela penumbra. As luzes estavam apagadas e a única claridade fugidia era da televisão acesa na sala.
Sem se importar comigo, Mariana caminhou em direção à sala. Entrei, fechei a porta, retirei a faca da cintura e sussurrei:
— Mariana, vim libertar você.
Ela se virou e, com um olhar mais impenetrável do que antes, me respondeu:
— Tolo! Você nunca conseguirá o que quer.
Ouvir sua voz fez minhas pernas tremerem. Aquela não era voz dum ser humano, muito menos duma menininha de doze anos. Tive medo, mas, mesmo assim, caminhei em direção a ela. Ao ver-me me aproximando, Mariana estendeu os braços, aquele abraço que sempre considerei como sendo uma resposta de amor extremo, mas eu sabia, agora, que aquele era um abraço de ódio. Mariana não tinha doença alguma, ela não era humana; se existisse o diabo, ou alguma entidade malévola, Mariana seria a encarnação dele.
Acertei a primeira facada no pescoço da menina. Ela abraçou minha cintura. Esfaqueei-a na cabeça, mas, assim como acontecia com socos, não consegui machucá-la; por outro lado, o abraço dela era forte, tão forte que eu quase perdia o fôlego. E quanto mais eu tentava feri-la, mais forte ela apertava. Mariana me fitava com os olhos vazios e, pela única vez desde que eu a conheci, ela me deu um sorriso. Eu havia vindo para libertá-la, mas o aprisionado era eu. Mariana não era o reflexo do amor incondicional, ela era a expressão do ódio.

Na manhã seguinte, a mãe de Mariana me encontrou, sem vida, nos braços dela, coluna vertebral estraçalhada, órgãos esmagados. A perícia policial foi conclusiva em favor de Mariana, legítima defesa — faca com minhas digitais.
Todos sabiam do poder que a menina tinha para resistir aos ataques, mas ninguém conhecia a força sobrenatural dela. Por isso, daquele dia em diante, nas demonstrações públicas de Mariana, as mãos delas eram amarradas nas costas. Os abraços cristãos enquanto apanhava, não mais.





quarta-feira, 9 de abril de 2008

Revolucionários e Reacionários em Literatura



Vira e mexe surge algum escritor com a inovadora de idéia de:

“Tenho de revolucionar a Literatura”.

Antes de tudo, tentemos compreender do que se trata esta ânsia por mudanças e porque a tradição incomoda tanto.
A tradição é uma convenção, geralmente arbitrária, que determina quais foram os grandes expoentes de determinada área de atuação, e em quais épocas. Ela se constrói ao vislumbrar o passado, constatando em como aquelas produções se relacionaram com o mundo, e como influenciaram seus contemporâneos.
Os grandes mestres, ou grandes obras, dialogam com suas próprias épocas, abrindo sentido para seus receptores, mas, ao mesmo tempo, transcendendo seu tempo e atingindo também a um receptor póstero.
Machado de Assis percebe bem esta relação, quando afirma que é o universal que permite uma obra literária ultrapassar a si mesma e ao próprio autor, dotando-a de longevidade, de um sentido perene.
A tradição é a moldura da produção cultural, a linha-mestra do que, em tese, representou o ápice dum período.
O problema da tradição é quando, ao invés de referência ou inspiração, ela se torna uma imposição às gerações vindouras, que têm de se pautar por ela, repeti-la, imitá-la.
O clamor por “revolução”, ou “renovação” surge desta asfixia da tradição, imposta, não pela tradição, mas pelos receptores de Arte, ou por seus representantes.

A Revolução como libertação

Neste sentido, os revolucionários são aquelas pessoas que precisam se libertar das amarras do que já está gasto, do que já caiu em desuso. É através do abandono ao convencional que eles se nutrem, para poder dar a gênese ao novo.
Contudo, este tipo de revolução decorre de uma negação positiva do passado, um repúdio às normas conhecidas. O revolucionário não destrói aquilo que não conhece, ele se desapega do que o oprimia. É uma luta contra o conhecido, contra o excessivamente conhecido.

A Revolução como ignorância

Por outro lado, há uma outra estirpe de revolucionários, que renega o passado apenas pelo fato de ser passado, sem compreensão, sem aquela asfixia essencial.
Desconhecem a tradição — preguiça, ou posicionamento voluntário —, e se opõem a ela cegamente. Este tipo de revolucionário é o mesmo que, vez ou outra, é pego macaqueando, inconscientemente, a tradição, pois, em seu desconhecimento, não sabe a que se opõe. É o herói que luta contra a própria sombra, por não saber quem são os seus inimigos.

A Revolução como processo histórico


Apesar de o anseio por mudanças ser individual, e brotar de indivíduos, a necessidade de revolução é histórica.
Heidegger aponta com propriedade a complexidade da formação de sentidos, quando uma camada de sentido se sobrepõe às demais, afastando-nos de um conhecimento originário do mundo.
A tradição serve como uma espécie de filtro para nossa compreensão de Arte; todos nossos conceitos se fundam no já-feito, e este já-feito molda o que está-para-vir.
Mas, em certos momentos históricos, em certas conjunturas, novas relações se estabelecem, as quais, se não invalidam totalmente, pelo menos comprometem as bases dos saberes anteriores. Nestes momentos de cisão, o que vale para uma época deixa de valer para a seguinte, e a manutenção da tradição torna-se apenas um hábito decadente.
É neste instante que os indivíduos, coletivamente, mas através de suas próprias expressões individuais, iniciam o refluxo e estabelecem as novas bases, que, por sua vez, tornar-se-ão a tradição no futuro.
Uma revolução de um só homem é um “golpe de Estado”. A verdadeira revolução só ocorre em conjunto, quando o passado não mais basta, não supre mais as necessidades, não mais responde satisfatoriamente as questões.

O Reacionário

Existem pelo menos dois tipos de reacionários: o que teme a mudança e reage à ela; e o que tenta compreender o passado, para poder compreender a mudança.
O primeiro tipo é avesso a qualquer transformação. É o idólatra do passado, dos grandes mestres, incapaz de se voltar para o seu tempo e identificar as marcas da transformação.
O segundo tipo é o que se sujeita ao passado, aprende com ele, descobre o que há de melhor da tradição, dialoga com os mestres pretéritos, e, quando chega a hora propícia, despe-se de seu reacionarismo e aproveita seu conhecimento para ajudá-lo em sua metamorfose. Este reacionário entende que ação-reação só faz sentido nesta dicotomia, que, se estes pólos forem suprimidos, qualquer movimento deixa de existir, estaríamos abandonados a uma insossa neutralidade.
Este tipo de reacionário é quem prepara as bases sólidas para uma verdadeira transformação, pois tem a clareza do que deve ser abandonado, do que pode ser mantido, e do que deve ser renovado.

A Revolução: um grande clichê

No fundo, a própria luta forçada para se estar na linha de frente, para ser a vanguarda de uma geração revolucionária, não passa de um grande clichê, de um baita lugar-comum.
Este revolucionário, não raro um artista sem obra, um procrastinador com “ótimas” idéias, mas nenhuma realização concreta, acaba sendo o arauto da repetição, do tradicional. Pois todas as épocas possuem seus revolucionários de mentirinha, que surgiram prometendo grandes mudanças, mas que desapareceram, dragados pela tradição contra qual combatiam.
Nenhuma injustiça, possivelmente, apenas um processo de seleção natural, não muito diferente da biológica.

Conclusão

Quase todo escritor vê em si mesmo o germe da mudança, o ponto de ruptura de uma época para outra. Há um prazer em se imaginar num limiar, onde as relações pretéritas serão abandonadas e onde ele, idealizador com grandes reformas, estará na aurora de novos tempos.
Alguns poucos realmente acertam; alguns são, de fato, tão geniais quanto se imaginam, capazes de concretizar, ou acompanhar, as mudanças que vislumbraram.
Mas a maioria está absorta por um delírio de auto-emulação, revolucionários apenas da boca pra fora.
E a tradição, em sua implacável arbitrariedade, se lembrará apenas dos primeiros.





terça-feira, 8 de abril de 2008

Laboratório poético I

Volmar Camargo Junior
MCMXXXIX - MCMXLV

Plácida, frígida, pérfida ética.
Cúpida cúpula, cópula, crápula.
Tétrica, gótica, mórbida súmula.
Cênica, cética: Era monótona.

Épico, lúdico, próspero círculo.
Rápido, trágico, ínfimo átimo.
Trôpego, ácido, bêbado íntimo.
Cênico, cínico: último século.

Vômitos tóxicos,
Vísceras cáusticas.
Velhas raquíticas, velhos caquéticos.

Megalomaníacos.
Ambíguos sofísticos.
Cínicos, céticos. Apocalípticos.
A rapa da panela.

O vovô adora comer
a rapa da panela de doce.
A vovó fez brigadeiro
só pra ele comer.
Não quis o doce.
Catou a colher e
raspou o fundo da panela.
Rapou, lambeu, lambeu,
rapou, lambeu,
rapou, rapou,
lambeu,
rapou,
rapou,
rapou,
rapou,
furou.

Agora, não tem mais doce,
nem a rapa da panela.

Nem a panela.
Flerte
Roseira branca,
na cerca, ama o céu
negro sem culpa.
Chuva de verão
Folha caída
é barco no falso mar
da enxurrada
Delícias
Chá de erva-doce,
bolinho-de-chuva.
Só falta chover.





Arte

Volmar Pereira Camargo Junior




Um par de olhos observava por detrás do vidro uma silhueta feminina deformar-se lentamente. Encontrou-a escondida em um dos cômodos da própria casa. Estava nua. Assistia às pequenas mãos e os pés, delicados, minúsculos, tocando o aço fervente, e em pouco tempo, queimando. Os braços e as pernas, curvando-se em direções não-naturais sob os efeitos da temperatura. O cabelo, antes louro e sedoso, misturando-se indistintamente a todo o resto. Ele achava curioso: a vítima era em tudo semelhante a uma mulher adulta, porém, em tamanho menor. Definitivamente, concluiu o carrasco, ela não era como uma mulher, pois ele sabia que um tanto abaixo do umbigo, na parte onde as pernas se uniam, nas mulheres mais velhas havia pêlos. Na da pequena que o calor consumia, era lisa como o resto. Os olhos aproximaram-se do vidro – ansiavam pelo desfecho. Admirou-se ao notar que o rosto de sua cativa foi a última porção a desintegrar-se pelo fogo, conservando até o fim um sorriso casto e estúpido. Já não era mais um corpo, mas uma massa amorfa e enegrecida. Sem pressa, o algoz levou os dedos até um dos dispositivos do instrumento de sua arte, interrompendo gradualmente o alento do fogo até as chamas azuladas extinguirem. Riu. Em silêncio, para não despertar a atenção da vizinhança. Esqueceu-se de que o cheiro poderia atrair mais curiosidades que qualquer gargalhada. Assim mesmo, riu satisfeito e sem fazer ruído por longos instantes.

Não teria problemas em evitar os intrometidos, os que sempre investigavam-no sobre o que fazia como se tudo fosse condenável. Tinha em abundância o que mais necessitava: criatividade e tempo. A casa era cercada por um arvoredo sombrio. O que desejasse ocultar aos curiosos tinha naquele labirinto de troncos, folhas, arbustos, sombras, formigas e terra o esconderijo perfeito. Especialmente o que fosse preciso manter em sigilo. Arrastou para lá sua última obra.

Despreocupado, percorreu o espaço entre a casa e o bosque até mergulhar em sua sombra. A terra não era dura, e ele era habituado a ocultar coisas sob o solo. Assim, com as mãos, cavou. Jogou no buraco o pouco que restou da loura. Sorriu, contemplando-a. Lembrou-se que ali mesmo, a poucos metros, ocultara outras artes suas: a ruiva, que atropelou; a negra, que usou em seus experimentos com água sanitária; até mesmo o moço que serviu de alvo para a prática de tiro com arco. Ninguém jamais soube o que lhes aconteceu. Tinha as mãos, principalmente as reentrâncias debaixo das unhas, encardidas pelo negrume da terra do bosque, tantas vezes havia ali enterrado seus segredos. Atravessou, imundo, o caminho de volta. À distância, viu alguém chegar em casa pelo portão da rua. Abalou-se no mesmo instante. Novamente, teria de responder perguntas.

***


Cássia chega da escola. O irmão está no gramado, com as mãos, os pés, a camisa, tudo sujo de terra.

— E daí, porquinho?!

Antes da resposta, a menina percebe algo, e apruma o nariz como quem está farejando.

— Que cheiro de queimado!

— Bah, nem senti. — responde o menino, escondendo as mãos instintivamente.

— Credo, piá! Como não? — diz Cássia ao abrir a portinhola do forno do fogão a gás. Dentro há tanto o cheiro quanto uns restos de plástico derretido. — Acho que a vó esqueceu alguma coisa no forno de novo. O que será que era?

— Acho que era um pote — diz o menino, olhando curioso, como se realmente não soubesse de que se trata.

— Bom, seja o que for, Eninho, vai brincar lá fora, vai. Eu vou limpar isso daqui antes que a vó ou a... — faz uma careta de desdém —... Luciana cheguem. Ah, melhor!, vai tomar um banho. Tu ta podre de sujo, guri!

— Ah, não. Eu tomei banho ontem.

— ‘Tão ta, Cascão. Tu que te entenda com a vó, daí. Agora, xispa!

— Por que tu quer que eu saia? Vai brincar de boneca?

— Eu não brinco de boneca, pirralho!

— Ah, é verdade! Tu tem catorze, né?! Esqueci que tu “já é mocinha” — ri.

— Sai daqui, merda! Vai achar o que fazer! Olha aí, ta sujando todo o chão da cozinha! — Cássia pega uma vassoura, brandindo-a na direção do caçula. — Sai!

Enio sai, sem reclamar muito. Até à tardinha, o menino atira pedras nas pombas com o bodoque. Ao cair da noite, janta e faz suas preces. Já deitado, ganha um beijo e um “Boa Noite” da avó. De olhos fechados, quase dormindo, planeja o que fará no dia seguinte com outra das bonecas da irmã.





domingo, 6 de abril de 2008

O tal negócio de “Prestações”, de Lima Barreto

O SENHOR JOSÉ DE ANDRADE era contramestre de uma oficina do Estado, situada nos subúrbios.

Era ele o único homem da casa, pois, do seu casamento com dona Conceição, só lhe nasceram filhas, que eram quatro: Vivi, Loló, Ceci e Lili.

Era homem morigerado, sem vícios, exemplar chefe de família, que ele governava com acerto e honestidade. Só tinha um fraco: jogar no bicho; mas, isso mesmo, não era diariamente; fazia-o de longe em longe.

Um belo dia, ganhou na centena. Adquiriu, por quinhentos mil-réis, um terreno, em Inhaúma; comprou algumas peças de uso doméstico e distribuiu cem mil-réis, igualmente, entre a mulher e as quatro filhas. Dona Conceição tinha visto nas mãos do Benjamim, vendedor ambulante, por prestações, uma saia de casimira muito boa. Quis comprá-la, mas não tinha de mão a quantia que devia dar de sinal. Entretanto, agora, com aqueles vinte mil-réis, estava de posse dela.

Nem de propósito! No dia seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando o sinal e obrigando-se a pagar doze mil-réis, mensalmente.

Vivi também tinha visto nas mãos de Sárak uns borzeguins de cano alto, de pelica, muito bons; mas não tivera o dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro adiantamento.

Esperou Sárak e adquiriu dois pares: um preto e outro amarelo.

Estava no dever de pagar doze mil-réis por mês, que ela esperava obter com o produto de suas costuras.

Loló, essa gostava de jóias e vivia sonhando com um relogiozinho-pulseira que o Nicolau lhe quisera vender a prestações de quinze mil-réis. Avisou a sua amiga Eurídice que, quando ele lhe fosse cobrar, o mandasse falar com ela, Loló.

Assim foi feito; e, no domingo seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado que logo se desarranjou.

Pagaria as prestações com o dinheiro que os bordados lhe dariam.

Ceci e Lili não eram lá muito inclinadas para esse negócio de prestações; mas o exemplo das irmãs animou-as.

Ceci tinha uma linda saia de voile azul-marinho, que o papai lhe dera no mês passado, quando fizera dezessete anos; mas não gostava da blusa que era branca. Queria uma creme; e, justamente, o Ivã, um ambulante de prestações, que lhe não deixava a porta, tinha uma em condições, e magnífica. Ficou com ela; e a sua contribuição era modesta: seis mil-réis mensais, quantia ínfima que o pai lhe daria certamente.

Lili, a mais moça, não tendo ainda dezesseis anos, parecia resistir à atração, à fascinação de obter um adorno ou uma peça de vestuário, por meio de quotas mensais.

Guardou, durante uma semana, os vinte mil-réis intactos; mas apareceu-lhe no portão, pela primeira vez, um vendedor ambulante de jóias, a prestações; e ela, dando-lhe o dinheiro, que tinha reservado, fez dona de umas “africanas” com a promessa de pagar dez mil-réis por mês. Chama-se o ambulante José Síki.

Ela ajudava a mais velha, a Vivi, nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte do que ganhava.

O mês correu e não bem para os cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não pudera trabalhar na “Singer”. A moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia da família, pois houve aumento de despesas com medicamentos, dieta, etc. dona Conceição não pôde fazer economias nas compras, pois tinha que atender ao acréscimo de despesa com o aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar da irmã, não foi permitido bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da mais velha, não foi dado oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e, finalmente, não tendo Vivi trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a primogênita lhe dava.

No começo do mês seguinte, um atrás do outro, lá batiam à porta, Benjamim, Sárak, Nicolau, Ivã, José Síki, a cobrar as prestações de dona Conceição, de Vivi, de Loló, de Ceci e de Lili.

Desculparam-se do melhor modo e os homens se foram resignadamente.

No mês que se seguiu, as coisas não correram tão bem como elas esperavam.

Fizeram alguma coisa, mas insuficiente para pagar aos russos das prestações.

Não ficaram estes contentes e procuraram indagar quem era o dono da casa. José de Andrade não sabia da história de prestações e ficou espantado quando eles o procuraram, para a cobrança.

No começo pensou que era só um; mas quando viu que eram cinco, e que as prestações alcançavam a respeitável soma de cinqüenta e nove mil-réis – o pobre homem quase ficou louco.

Ainda quis restituir os objetos; mas as peças de vestuário estavam usadas, o relógio desarranjado e, até, as “africanas” precisavam de consertos no fecho.

Não houve remédio senão pagar, e, ainda hoje, quando o modesto operário encontra um homem de prestações, diz com os seus botões:

– Não sei como a polícia deixa essa gente andar solta... Só se lembra de perseguir o “bicho” que é coisa inocente.

Fonte: Domínio Público


Biografia

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu a 13 de maio de 1881 no Rio de Janeiro. Filho de uma escrava com um português, cursou as primeiras letras em Niterói e depois transferiu-se para o Colégio Pedro II. Em 1897 ingressou no curso de engenharia da Escola Politécnica. Em 1902 abandonou o curso para assumir a chefia e o sustento da família, devido ao enlouquecimento do pai, e empregou-se como amanuense na Secretaria da Guerra.

Apesar do emprego público e das várias colaborações no jornais da época lhe darem uma certa estabilidade financeira, Lima Barreto começou a entregar-se ao álcool e a ter profundas crises de depressão. Tudo isso causado pelo preconceito racial.

No ano de 1909 fez sua estréia como escritor com o lançamento da obra "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" publicada em Portugal. Nessa época, dedicou-se à leitura dos grandes nomes da literatura mundial, dos escritores realistas europeus de seu tempo, tendo sido dos poucos escritores brasileiros a tomar conhecimento e a ler os romancistas russos.


Em 1910, fez parte do júri no julgamento dos participantes do episódio chamado "Primavera de sangue", condenando os militares no assassinato de um estudante, sendo por isso preterido, daí para frente, nas promoções na Secretaria da Guerra. Em 1911 escreveu o romance "Triste fim de Policarpo Quaresma", publicado em folhetins no Jornal do Comércio.

Apesar do aparente sucesso literário, Lima Barreto não consegue afastar-se do álcool é internado por duas vezes entre os anos de 1914 e 1919. A partir de 1916 começou a militar a favor da plataforma anarquista. Em 1917 publicou um manifesto socialista, que exaltava a Revolução Russa. No ano seguinte, doente e muito fraco, foi aposentado do serviço público e em 1º de novembro de 1922 veio a falecer, vítima de um colapso cardíaco.

Lima Barreto é considerado um autor Pré-modernista por causa da forma com que encara os verdadeiros problemas do Brasil. Dessa forma, critica o nacionalismo ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX. Apesar de Lima Barreto não ter sido reconhecido, em seu tempo, como um grande escritor, é inegável que pelo menos o romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma" figure entre as obras primas da nossa literatura.

Fonte: Mundo Cultural





sexta-feira, 4 de abril de 2008

Dois Romantismos

Os Sofrimentos do Jovem Werther

É possível que este romance de Goethe seja um dos primeiros grandes fenômenos editorais da História. A comoção que a trama envolvendo o triângulo amoroso - Werther, Lotte e Albert - causou foi tamanha, que uma geração de leitores passou a se vestir com roupas semelhantes as de Werther.
Morrer por amor, suicidando-se, tornou-se um ideal.

A minha luta para ler "Os Sofrimentos do Jovem Werther" é antiga. Começou anos atrás, quando, pela primeira vez, tentei ler uma edição em português. O romance não é longo, mas o enredo não me cativou.
Tentei uma segunda vez, na época em que estudava alemão, numa edição germânica, e também não consegui concluir a leitura.
A terceira, e derradeira tentativa, numa edição de bolso americana, lendo trecho a trecho durante minhas viagens no metrô, foi a que me permitiu chegar ao fim.

"Os Sofrimentos do Jovem Werther" é um romance epistolar - uma coleção de cartas enviadas ao amigo Wilhelm -, que narra três etapas da vida de Werther:

- quando ele conhece e se apaixona por Lotte, uma jovem encantadora e inteligente;
- a chegada do noivo de Lotte, que representa uma ameaça ao amor que Werthe nutre por ela;
- o desespero e suicídio de Werther.

Talvez tenha sido a estrutura epistolar um dos fatores que dificultou tanto minha leitura. Não é o tipo de composição que mais me agrada e, como escritor, vejo sérios problemas na utilização deste recurso. Goethe se depara com estes problemas no curso da narrativa, pois, em algum momento, surge a questão:

"Como narrar o suicídio do protagonista, se é ele quem conta, através de cartas, sua desdita?"


Então, subitamente, duma seção para a outra, Goethe muda o foco narrativo, e não é mais Werther quem narra, mas sim um editor, do qual não sabemos nome nem nada, que continua narrando, exteriormente, os últimos acontecimentos da vida de Werther.

Uma falha brutal, na minha opinião, nesta obra considerada como um dos clássicos da Literatura. Mesmo assim, interiormente, nas dúvidas suscitadas por Werther, há poderosas reflexões.

Contos Populares dos Irmãos Grimm

É com grande nostalgia que alguém, como eu, que cresceu ouvindo (e assistindo) muitas das histórias compiladas pelos Irmãos Grimm, retorna a elas e revisita esta maravilhosa criação coletiva.

A versão que chegou até a maioria de nós foi, provavelmente, bastante diferente das histórias contadas pelos Grimm. Nos contos populares, há bastante violência, bastante brutalidade, visava ser um reflexo da natureza e, na natureza, a violência existe.

Os temas são recorrentes: a madrasta má que quer prejudicar as crianças; a bruxa que lança encantamento maligno; uma interdição - uma porta fechada, um fruto proibido - que, ao ser violada, lança os personagens numa série de desventuras; o rei que encontra uma menina pobre e a desposa.

Estes contos populares, de forte apelo educacional, foram passados de geração a geração, reunidos pelo esforço laborioso de Jacob e Wilhelm Grimm, e chegaram até nós, de maneira amenizada e, de certo modo, descaracterizadas.

Não podemos afirmar com certeza se as mensagens codificadas nas historietas de "Chapéuzinho Vermelho", da "Branca de Neve", da "Rapunzel" ou de "João e Maria" possuem o mesmo impacto, o mesmo sentido, que elas tinham num mundo pré-industrial, num momento de construção das identidades nacionais.

Por outro lado, como em qualquer outra boa história, há aquele elemento universal que as permite transcender seu contexto histórico e que ainda nos afeta - seja como uma criança, seja como um adulto.

Dois Romantismos

Estamos diante de duas expressões românticas; num dos extremos, há Goethe, o verdadeiro gênio do Romantismo. Um artista e intelectual que, ao lado de Schiller, estabeleceu as bases e princípios do movimento.
Suas obras não são apenas trabalhos de ficção. Em Werther, temos um rapaz com profunda e aguda capacidade intelectual. Ele questiona seu mundo, seus atos são deliberados. A paixão lhe turva os pensamentos, mas isto não significa que ele contradiga seus ideais. A paixão é um dos ideais e morrer por ele vale a pena.
Werther morre porque ele não pode desonrar sua amada, porque seu rival, Albert, é um homem bom e não merece ser enganado. Se Goethe fosse um autor realista, este tipo de preocupações éticas nem seriam suscitadas, Werther e Lotte consumariam seu amor, e toda a ruína disto adviria.
Mas, para o conceito romântico, basta que apenas Werther morra, pois da morte ele renasce como história e teoria. Graças à morte de Werther é que temos a história da vida dele.

Os Irmãos Grimm seguem outra vertente. Eles são intelectuais, os contos infantis e populares são apenas uma pequena parte do vasto trabalho deles; a missão dos irmãos era a descoberta - se não a criação - do Espírito Nacional, daquele elemento pátrio que permitiria distinguir uma cultura da outra. Eles estão no cerne da revolução que levou à formação dos Estados Nacionais, e o trabalho deles é parte deste processo de busca pela identidade cultural, lingüística, social, religiosa e racial.

Goethe é a criação, os Irmãos Grimm são a coleção. Não é possível entender o Romantismo sem considerar estes dois aspectos, sem correlacionar a busca pela essência dum povo com a criação duma nova mitologia para direcionar este povo a novos horizontes.





quinta-feira, 3 de abril de 2008

Autopublicação – Vale a pena?


Texto por Denis da Cruz

As novas tecnologias permitem ao escritor um imenso horizonte de possibilidades.

Há pouco tempo, a única via para ser lido era ter um caderninho escrito à mão e emprestá-lo para amigos (os mais íntimos, claro). A grande maioria dos textos produzidos iam mesmo era para a gaveta.

Hoje, até esses escritores de gaveta podem, no mínimo, publicarem seus textos na internet. Aliás, esta é a grande aliada do escritor na autopublicação.

Sites, blogs, páginas de sítios especializados, revistas eletrônicas e, até mesmo, editoras por demanda com estanders virtuais.

Particularmente, me autopublico em alguns dos meios hoje disponíveis, tais como blog, site e revista eletrônica. Neste aspecto, posso afirmar categoricamente: vale à pena.

Para se ter “sucesso” com esses meios, aconselho duas coisas:

1) Divulgação – Não adianta o autor se autopublicar num site, ter um blog, e não espalhar aos quatro ventos que o tem. Parentes, amigos, contatos de msn, fóruns, orkut, etc, etc. Onde tiver oportunidade, diga: “acesse meu blog”. Se o autor é cara de pau o suficiente, mande um spam uma vez ou outra.

2) Conteúdo de interesse – Nem todo mundo vai querer ler aquele maravilhoso poema “o menino e a paçoquinha”. Coloque no sítio conteúdo não ficcional, daqueles que as pessoas pesquisam no google. Se possível, faça um blog ou site, parente só com conteúdo não ficcional, pois ele servirá de divulgação para os demais textos.

Outra possibilidade, são as editoras por demanda. Aqui se deve tomar muito cuidado para não cair nas mãos de gente que se aproveita da vontade do escritor em satisfazer o ego e ter um livro publicado. Existe muita pilantragem no meio, portanto, tenha cuidado com aqueles que prometem mundos e fundos e cobram um absurdo para produzir o livro.

Prefira, num primeiro momento, uma editora que dê possibilidade de optar por uma quantidade menor de tiragem e que tenha apenas um estander virtual (ou seja, o sonho de noite de autógrafo deverá ser adiado).

Em brevíssima síntese, algumas dessas editoras possibilitam uma tiragem de 20 livros, não fazem distribuição em livrarias e seu estoque é virtual (só imprimem um livro quando ele é adquirido no site). O livro estará apenas num site, para compra on line e a divulgação ficará por conta do autor.

Ainda existe a Lulu, onde o escritor cria uma conta e produz seu livro inteiramente grátis, disponibilizando-o para compra, via cartão de crédito internacional. Fizemos isto na Oficina de escritores que originou a Samizdat e o resultado foi surpreendente. A qualidade da impressão é muito boa, sendo que a dificuldade é achar compradores com cartão internacional.

Na Lulu, o autor cria todo o livro. Faz um passo a passo, definindo o formato do livro, carregando o miolo a partir de um documento do Word ou em pdf, fixando a capa (ou optando por cores disponíveis no site) e, finalmente, definindo qual será seu percentual de direitos autorais. Conforme os livros são vendidos e impressos, a empresa enviará seus respectivos direitos de autor, depositados diretamente em sua conta corrente.

Em conversa com Henry Bugalho, autor do livro “Nova York Para Mãos de Vaca”, e autopublicado na Lulu, ele disse: “Eu fiz todo o processo de diagramação e capa, e recebi auxílio de algumas pessoas para revisar o conteúdo. Só no primeiro mês, o guia "Nova York para Mãos-de-Vaca" vendeu mais de 100 exemplares, o que, na minha opinião, foi uma marca extraordinária, levando em consideração que não há distribuição em livrarias e que nem todo leitor confia em realizar compras pela internet através de cartão de crédito. Além disto, se pensarmos que as vendas são efetuadas em dólar e que a margem de lucro sou eu quem estipula, se o mesmo guia houvesse sido publicado no Brasil por uma editora comercial, eu teria de que vender 4 vezes mais guias para obter o mesmo lucro que estou obtendo. (…)a lulu.com ainda é a melhor alternativa, pois envia livros para mais de 60 países, atendendo também este leitor internacional do meu blog. Numa época globalizada, este tipo de serviço é uma mão na roda para o escritor.”

Vale anotar que já faz um considerável tempo que o Henry possui o Blog www.maosdevaca.com e os resultados de sua venda refletem os dois conselhos que dei: divulgação e assunto de interesse. Certamente, estas manobras servirão de trampolim para um eventual e futuro romance publicado, já que o autor registra de alguma forma seu nome, saindo da pecha de “escritor desconhecido”.

Isto tudo compensa? No geral, financeiramente e a curto prazo, não. O autor não vai ganhar um puto de verdade nesses meios, principalmente se não fizer um bom trabalho de divulgação.

A longo prazo, pode surtir resultado, pois, para um eventual contato com editor, o escritor terá algo concreto para apresentar: “meu blog tem muitos acessos.” “vendi vários livros em sistema de autopublicação”.

Outro retorno é a satisfação pessoal. Ter um site bem visitado ou ter um livro impresso em mãos, com seu título e nome na capa, é algo sem preço. Melhor ainda se tiver retorno financeiro disto, afinal, quem escreve quer ser lido e, se possível, ser reconhecido pelo que escreve.

No mais, boa sorte a todos, não vejo porque não arriscar.

Boa Sorte.


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Inteiro teor da Conversa com Henry Bugalho, autor do Guia “Nova York para Mãos de Vaca”, à venda no link http://www.maosdevaca.com/2008/02/guia-nova-york-para-mos-de.html.

Publiquei o meu romance policial, "O Covil dos Inocentes", pela lulu.com, e vendi apenas dois exemplares. Eu já pressentia que algo semelhante pudesse ocorrer, por duas razões:

1 - o romance estava na íntegra para ser lido online;

2 - ficção não vende, muito menos de autor desconhecido.

Eu não tinha intenção de escrever um guia de viagem para Nova York. Comecei a escrever o blog sem pretensão, apenas com o ideal de compartilhar a experiência minha e da minha esposa por aqui, ou seja, era apenas mais um blog dentre os vários outros que eu escrevia. Mas, à medida em que ele começou a fazer sucesso, e os leitores começaram a divulgá-lo no boca-a-boca, passei a receber vários e-mails de leitores dando a sugestão de escrever um guia de viagem.

Fiz uma rápida pesquisa com tais leitores, questionando como eles gostariam que fosse o guia, se deveria manter a estrutura do blog ou se deveria se assemelhar mais a um guia tradicional e todos, sem exceção, me disseram que tinha que ser como o blog, pois este era o grande diferencial.

Inicialmente, ficamos na dúvida se deveríamos tentar a publicação por uma editora comercial ou sob demanda. Entramos em contato com algumas editoras e recebemos um parecer favorável, pelo menos indicando interesse, da Panda Books, que já publica guias de viagens com abordagens alternativas.

Quando recebemos o contato para fazer a entrevista para a Globo Internacional, decidimos acelerar o processo de publicação do guia, mas sob demanda, pois assim poderíamos aproveitar o aumento de tráfego no blog para vendermos mais. Eu fiz todo o processo de diagramação e capa, e recebi auxílio de algumas pessoas para revisar o conteúdo.

Só no primeiro mês, o guia "Nova York para Mãos-de-Vaca" vendeu mais de 100 exemplares, o que, na minha opinião (baseada na experiência prévia com o romance) foi uma marca extraordinária, levando em consideração que não há distribuição em livrarias e que nem todo leitor confia em realizar compras pela internet através de cartão de crédito. Além disto, se pensarmos que as vendas são efetuadas em dólar e que a margem de lucro sou eu quem estipula, se o mesmo guia houvesse sido publicado no Brasil por uma editora comercial, eu teria de que vender 4 vezes mais guias para obter o mesmo lucro que estou obtendo.

Portanto, até o momento, a opção por uma editora sob demanda me parece ter sido acertada. Às vezes, refletimos se uma publicação tradicional não daria mais visibilidade à obra, porém, como temos muito leitores falantes de português que não residem no Brasil, a lulu.com ainda é a melhor alternativa, pois envia livros para mais de 60 países, atendendo também este leitor internacional do meu blog. Numa época globalizada, este tipo de serviço é uma mão na roda para o escritor.




Links de Referência: Lulu - www.lulu.com





quarta-feira, 2 de abril de 2008

A Páscoa Retardada

por Carlos Alberto Barros


A páscoa estava chegando. Para alguns, época de felicidade, festa, comer chocolate. Para outros, exatamente o contrário. E neste último caso, encontrava-se Dinho – garoto pobre, de bom coração... na medida do possível, alegre.
Apesar de já ter vivido nove páscoas, o menino nunca fora presenteado com um ovo de chocolate. Isso o deixava triste, porque desde pequeno via na televisão grandes ovos nas mãos de crianças sorrindo, coelhinhos pulando, aquela festança. Para ele, não havia esses privilégios. E agora, já com mais idade, entendia que quem não tinha dinheiro para comprar toda aquela alegria era seu pai, pois o trabalho de porteiro não era dos melhores. Contudo, o homem não se deixava abater e contornava a situação com a típica frase: “Dinho, o preço de um ovo é a desgraça de um povo... E chocolate faz mal!” – sempre que ouvia isso, o garoto pensava: “Mas, parece tão gostoso”.
Aconteceu que, nessa próxima páscoa que se aproximava, a típica frase mudou:
- Dinho, o pai vai ver se consegue te dar um ovo desta vez, hein! Mas, não se empolga, não. Se der, vai ser pequenininho...
- Êba! Obrigado, pai! – falou o menino, enquanto dava um pulinho como quem marca um golaço.
Os dias se seguiram com Dinho ansioso, numa expectativa enorme. Para dormir era difícil, pois ficava imaginando como seria seu ovo. Assim, quando finalmente chegou a páscoa, acordou mais tarde que de costume – era o resultado das noites mal dormidas. Ao lado de sua cama havia um bilhete: “Filho, o pai teve que ir trabalhar mais cedo hoje. Vê se dá uma arrumada na casa. E mais tarde a gente conversa sobre seu ovo”. Esses recados eram comuns. Inclusive, funcionavam como incentivo para o menino se desenvolver na leitura, coisa que seu pai fazia questão: “Somos pobres, mas temos que ser inteligentes” – se preocupava com o filho, que era sua única família.
Quando o garoto se preparou para levantar, viu algo que fez seus olhos brilharem. Estava ali no chão, logo à sua frente, o tão esperado ovo de páscoa. Via aquele embrulho vermelho e sorria. Sorria como quem tivesse encontrado ouro. Seu sonho se realizara.
Não se passou muito tempo, já estava com o embrulho aberto sobre seu colo e o ovo partido em duas metades. De dentro delas, escapou um papel dobrado – era outro bilhete. “O que meu pai pôs aqui?” – perguntou para si mesmo. Em seguida, começou a ler:

Atenção: NÃO COMA ESTE OVO! Repito: NÃO COMA ESTE OVO! Ele está envenenado! Contém toda a ambição e maldade dos homens. Se comê-lo, deixará de ser uma criança inocente e fará parte de um plano maligno onde poucos ganham e muitos perdem. Não se deixe dominar! Mais uma vez, repito: NÃO COMA ESTE OVO!

As palavras soaram estranhas, estava confuso. Sem saber o significado daquilo, começou a lhe invadir um certo medo. Pensou: “Acho que vou esperar o pai para perguntar”. E, enquanto refletia, tirava mecanicamente o papel alumínio do chocolate – era o desejo que sobrepujava o temor.
Levou uma das metades até o nariz e cheirou uma vez; depois outra, mais profundamente. “O cheiro é gostoso... Não tem veneno, não... É brincadeira do pai...” – disse, tentando se convencer. Em seguida, quebrou um pedaço e levou à boca. Saboreou o chocolate como quem nunca tivesse comido, juntando o prazer do paladar com o da posse. “Um ovo inteirinho para mim. E não está envenenado coisa nenhuma!” – pensava aos suspiros e mordidas, até que não sobrou mais nada.
Quando o pai de Dinho voltou do trabalho, notou que o rosto do filho estava diferente. Não sabia exatamente o que, mas algo mudara.
- Aconteceu alguma coisa, Dinho? Está tudo bem? – perguntou.
- Pai, acho que não sou mais uma criancinha para ser chamado de Dinho. Por que não me chama de Armando? – disse o menino, enfático.
- Mas, meu filho, eu sempre te chamei assim... Que história é esta?!
- Ah, pai... Eu não me sinto mais uma criança. E meu nome é Armando, qual o problema de me chamar assim?!
- Tudo bem, então, senhor Armando. E, sobre o ovo, queria me desculpar...
Achando que se tratava do fato do ovo não ser tão grande, o garoto se adiantou:
- Não se preocupe, pai...
- Mas, na próxima páscoa, vou te arranjar um ovo bem caprichado – completou o homem.
Tempo se passou e Dinho começou a ser Armando experimentando as várias amarguras da vida. Só quando entrou no mundo do trabalho, aos treze anos, é que foi voltar a comer um ovo de chocolate – dessa vez, comprando com seu próprio dinheiro. Seu pai continuou tentando e não conseguindo juntar recursos, nem para ovos, nem para outras coisas. O que ganhava era suficiente apenas para se manter com o filho e pagar prestações de antigos empréstimos.
A remuneração do garoto era para ajudar o pai. O pouco que sobrava, guardava num cofre secreto que tinha embaixo da cama. Pensava em montar um negócio – era jovem, mas possuía uma mente empreendedora. Com o tempo, conseguiu juntar algum dinheiro, logicamente, a custo de se afastar dos amigos, não ter namorada, deixar os estudos e não conseguir mais conversar com o pai direito (brigaram pelo abando da escola). A vida de Armando era só trabalho, mas, ainda assim, foi um longo caminho até conseguir o que queria.
Quando, finalmente, juntou uma boa quantia, abriu uma pequena casa de comércio. O trabalho era duro e, para auxiliá-lo, colocou o pai como seu empregado. Pagava o mesmo que o homem ganhava como porteiro. “Para ser justo, pai”, dizia. Contudo, não demorou muito e Armando, já um adulto obstinado, despediu o auxiliar: “Pai, o senhor sempre está muito doente... Melhor achar outro lugar para trabalhar”.
Anos passaram e os negócios de Armando se expandiram. Já possuía outras lojas e vários funcionários – sempre pagando um salário justo, como era o do antigo auxiliar. Mudou-se para o centro da cidade e, na própria casa, montou um escritório. Há muito não via o pai e as únicas pessoas com quem convivia eram empregados, clientes ou comerciantes. Sua preocupação era sempre o trabalho e a melhoria da empresa.
Certa noite, recebeu um telefonema. “Ele está muito mal... não consegue se cuidar sozinho... precisa de alguém por perto...” – era um vizinho de seu pai. Dias depois, Armando foi visitar sua antiga residência. Lá chegando, logo cortou os sentimentalismos: “Pai, sei que o senhor está mal, mas, preciso trabalhar. Vamos resolver isso logo”. Assim, tratou de encaminhar o velho ao asilo público mais próximo e, em pouco tempo, já estava de volta aos negócios.
Outros anos se passaram e Armando já era o principal empresário da cidade. Mensalmente, recebia de um funcionário do asilo (um acordo pago) relatórios informando a situação do pai. Nos últimos deles, enfatizava-se a vontade do velho em ver o filho. Diante da insistência, resolveu visitá-lo.
Já no local, o empresário admirou-se com o ser que viu – aparentava cansaço, porém, grande lucidez. Sentando-se ao seu lado, começou uma pálida conversa:
- Olá, pai! O senhor não parece estar muito mal.
- É, meu filho... Minha mente é de ferro, mas meu corpo...
- Que é isso?! Nem está tão velho...
Um silêncio constrangedor seguiu-se à fala. Depois de alguns segundos, foi quebrado pelo pai:
- A páscoa está chegando...
- É verdade – respondeu Armando, indiferente.
- Lembra-se que você sempre quis um ovo?
- Lembro... “O preço de um ovo é a desgraça de um povo” – deixou escapar um sorriso tímido – era o que você falava.
- É verdade... Como eu era mesquinho! – riu de si mesmo – E, até hoje, nunca consegui te dar um...
- Como não? E aquele com o bilhete misterioso? Que piada...
- Bilhete misterioso? Piada? Do que você está falando?
- Do único ovo que você meu deu! No chão do meu quarto, com embrulho vermelho, bilhete dentro...
- Você deve ter se enganado, filho. Eu nunca te dei ovo nenhum.
- Mas... Bom, deixa... Nem me lembro disso direito... Deve ter sido alguma bobeira de criança, imaginação...
- É... Talvez mais uma das brincadeiras do antigo Dinho...
- Você ainda lembra desse apelido, pai?! – olhou-o entortando o rosto – Não se esqueça de levar ele para o túmulo – falou consternado.
- Calma... Faz muitos anos que o Dinho já foi enterrado.
- Não precisa repetir esse nome de novo. Não gosto! – olhou o relógio – E eu tenho que voltar para resolver umas pendências do escritório. Tem algo importante para falar ainda?
- Tudo bem, então, senhor Armando. Acho que o que tinha para ser dito já foi. Bom trabalho, meu filho. E boa páscoa. Só tome cuidado, que chocolate faz mal...
- Não se preocupe, pai. E boa páscoa também.