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domingo, 28 de outubro de 2012

Revista SAMIZDAT é Top 100 do Topblog 2012. Ajude-nos, votando!




Revista SAMIZDAT está entre os 100 blogs mais populares da categoria de Literatura no Topblogs 2012.

Por isto, viemos aqui novamente para pedir o seu apoio e o seu voto, clicando no botão acima.
Existem três opções de voto, através do e-mail, por sua conta do Facebook ou Twitter, sem complicação alguma.
Inclusive, você pode votar três vezes, uma para cada opção.

Se você é nosso leitor habitual, já conhece a qualidade do nosso trabalho e compreende a importância de publicações como a SAMIZDAT para o panorama literário atual, apresentando o melhor da Literatura que ainda não aparece nas grandes livrarias, feiras literárias ou nos cadernos de Literatura dos jornais.

Nossa missão, hoje e sempre, é a de contornar o brutal processo de exclusão do mercado literário, que tenta relegar às sombras grandes talentos que, por qualquer razão que seja, não se enquadrem em seus restritos perfis de negócio.
Simplesmente não vamos nos calar nem deixar de lutar.

Se você está nos visitando pela primeira vez, gostaríamos de compartilhar com você algumas informações sobre a Revista SAMIZDAT.


 - criada em 2008, a SAMIZDAT foi uma das primeiras revistas digitais distribuídas gratuitamente em .PDF, apresentando autores brasileiros e portugueses, além de grandes nomes da literatura nacional ou internacional;
- foram 34 edições regulares e 1 edição especial;
- mais de 1000 obras publicadas no blog, com a participação de mais de 170 autores consagrados e estreantes, dos mais diversos gêneros;
- acessada por mais de 140 mil leitores no site;
- e lida por outros 130 mil leitores nas edições da Revista SAMIZDAT em .PDF.

Contamos com seu apoio, caro leitor, pois nosso labor e nosso esforço é e sempre será o de lhe trazer o melhor do nosso talento, com obras instigantes, profundas, divertidas, angustiantes ou informativas.

Se ainda estamos aqui, dia após dia e ano após ano, é pelo simples prazer de sermos lidos por vocês.

Além disto, o blog Concursos Literários (http://concursos-literarios.blogspot.com.br/2012/10/finalistas-do-premio-top-blog-2012.html), de Rodrigo Domit, um dos nossos autores fixos, também está concorrendo ao prêmio, mas na categoria profissional de Melhor Blog de Literatura.
Votando neste blog, você estará contribuindo com uma das mais importantes fontes de concursos literários do Brasil.

A votação vai até dia 10 de novembro de 2012.

Obrigado,

Henry Alfred Bugalho
editor





sábado, 27 de outubro de 2012

Colcha de Retalhos - Quer pagar? Quanto?

Ainda ontem o livro Colcha de Retalhos foi um dos premiados na Academia Brasileira de Letras, em cerimônia do Concurso Internacional organizado pela União Brasileira de Escritores. Hoje ele já está disponível para leitura online e para download (basta clicar aqui), com um sistema peculiar de distribuição: o leitor escolhe se quer pagar pela obra e, caso queira, escolhe também o valor.

A obra, que foi finalista do Prêmio Nacional SESC de Literatura em 2008 e vencedora do Prêmio Utopia em 2010, teve projeto gráfico elaborado pela minha grande amiga Laís Brevilheri - e a primeira tiragem foi feita sob supervisão da Utopia Editora, por conta da premiação.

Após o esgotamento dos exemplares desta tiragem, alinhado ao conceito desta revista, editei uma segunda leva, com algumas poucas alterações. E agora, editei novamente o livro, incluindo algumas informações que foram eliminadas para não extrapolar o limite de páginas dr orçamento da gráfica!

Espero que este livro digital chegue às pessoas que não tiveram a oportunidade ou as condições para adquirir o livro impresso. Fiquem à vontade para conhecer e avaliar meu trabalho:








sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Instantâneo urbano

A porta do carro da frente abriu-se e uma jovem muito bem vestida e de botas com salto de agulha saiu furiosa e começou a insultar o condutor da frente; da boca bem pintada saíam palavrões dignos de um carroceiro irritado. O condutor da frente também saiu do carro, um homem maduro e com cara de poucos amigos.

A rapariga dos saltos de agulha deu um pontapé na roda do carro da frente e o homem avisou-a:

- Ó grande vaca, se pensas que eu não bato em mulheres, andas enganada!

Joana abanou a cabeça, atónita. O João riu-se.

- Achas que se vão pegar à pancada?
- Sei lá! Mas ela bem merecia...
- Mas é uma rapariga!
- E então?
- Tu eras capaz de me bater?!
- A ti não mas não é por seres rapariga, é porque não te portas assim.
- Queres dizer que se fosses tu ali à frente batias-lhe?
- Claro! Ela deu um pontapé no carro, não deu?
- Foi no carro, não foi no homem...
- É a mesma coisa.

O semáforo mudou de cor e imediatamente se fez ouvir a cacofonia das buzinas, protestando contra a cena que antes entretivera os condutores mas que agora lhes impedia a passagem e atrasava o destino.

Joana sentia um frio desagradável a escorrer pela espinha mas não disse mais nada. Não queria saber mais.





quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O admirador de Poirot em S. Paulo


Joaquim Bispo


Gentis senhoras, meus senhores, meu muito obrigado por terem vindo!

Talvez vocês não saibam, mas tenho estado a investigar a morte misteriosa do Sr. Roberto, que apareceu caído, justamente nesta sala da mansão. Toda a família considerou natural a morte, devido aos seus oitenta anos, e ao fato de estar em coma desde a Copa do Mundo, mas sua filha pediu-me que investigasse a morte, por suspeitas de crime.

Eu não sou policial, nem detetive; sou gamado em romance policial, pelo que conheço bem todo tipo de crimes e manhas dos criminosos.

“Você não vê filme policial? Certamente foi o mordomo!” – esclareci – mas ela disse que não havia mordomo. O caso complicava-se.

Ao visitar o local do crime, apercebi-me duma pequena mancha de umidade no chão, ali, naquele canto. Suspeitei logo que o criminoso tivesse ali vertido algumas gotas de um poderoso veneno com que matara o Sr. Roberto. Recolhi uma amostra e enviei-a para o laboratório. O resultado não foi animador: era urina de gato. O que o gato estaria a fazer aqui, justo nesta sala?

Perguntei então à menina Rosimeri por que ela suspeitava de crime. Ela me informou que havia um montão de familiares a querer pôr as mãos na fortuna do pai.

“O que diz o testamento?” – perguntei.

“Que eu herdo tudo!” – respondeu.

Então, eu a olhei nos olhos e a confrontei:

“Foi você, Rosimeri, não minta!”

Ela mostrou-se muito triste e chorosa por nem eu acreditar nela e foi então que trocamos o primeiro beijo. Não que me agradasse, mas era a maneira mais rápida de detetar se ela tinha manuseado alguma substância tóxica. Na verdade, tinha gosto de coca-cola, mas não liguei.

Concentrei-me, então, na vizinhança. Interroguei a vendedora da loja de flores, o senhor da farmácia, o carteiro. Todos disseram que não tinham visto nada, mas eu notei um ambiente de conspiração coletiva no ar. Claramente escondiam algo. Pedi, para a capital, informações sobre o Sr. Roberval da farmácia, que me vendeu absorventes, quando eu pedi bandeides. O informe dizia que, há vinte anos, ele tinha sido absolvido num caso duvidoso da morte dum corretor de seguros de vida, ao tomar aspirina. O caso começava a compor-se.

Informei, das minhas suspeitas, o delegado Robson, aqui presente, e, a partir daí, temos desenvolvido a investigação em conjunto; ou antes, eu sou muito mais perspicaz do que ele, pelo que estou sempre um passo à frente. Enquanto ele analisa uma faca encontrada atrás da mansão, já eu estou investigando a coleção de borboletas do falecido e encontrando lá uma Sphinx Morio, que só existe na China; quando ele chega à casa de chá, para interrogar a Sra. La Fei La, já eu acabei de examinar um álbum de fotografias de trinta anos atrás, que ela me mostrou, onde aparece o Sr. Roberto num piquenique abraçando a mãe do carteiro.

Neste momento, ainda ele pensa que este é um simples caso de assassínio a sangue frio, mas, pela minha intuição, já percebi que estamos perante um complexo caso de contornos misteriosos, que envolve o sobrinho Renan, que tem dívidas de jogo, o antigo empregado Ronaldo, que nunca perdoou ter sido rejeitado pela menina Rosimeri, o vizinho Reginaldo, que tinha uma inveja mortal das orquídeas que o Sr. Roberto cultivava, e a Sra. Renata com quem o defunto teve um caso amoroso trinta anos atrás. Mais o Sr. Roberval da farmácia e a Sra. La Fei La, claro. Por isso pedi a vocês para nos reunirmos nesta sala.

A primeira pista foi a descoberta de que todos seus nomes começam por R. Aparentemente, cada um apresenta um álibi credível, mas o mais insuspeito acabará caindo na armadilha das minhas perguntas e será desmascarado. E poderá sair incriminando vários outros. No final todos perceberão que a solução de um caso tão complicado só foi possível devido à perspicácia do meu olhar, à genialidade sistemática e racional do meu método de investigação e à sagacidade do meu interrogatório. Posso começar ou confessam já?





quarta-feira, 24 de outubro de 2012

MICROPOEMAS DE EDWEINE LOUREIRO

Amigos, nesta edição apresento alguns de meus micropoemas, construídos em minhas participações nos desafios da Confraria da Poesia Informal, comunidade no Facebook. Espero que gostem.
Saudações Poéticas.
Edweine Loureiro

***************************

ANTENADO

Vê o mundo
Por uma caixa,
E ainda acha
Que sabe tudo.

Um parvo,
Um alienado.
E, contudo,
Confuso,
Diz estar antenado...

***************************

DEVER DE CRIANÇA

É brincar...
É imaginar...
É fazer lambança...

Vender bala,
Cortar cana,
Levar bala,
Ou entrar em cana,
Nada disto
É dever de criança.
*****************************

GRITOS NA ESQUINA DA IPIRANGA

Sete de Setembro?
Ah, lembro...
Uma outra versão
(ou seria a extensão?)
do Primeiro de Abril...

Pois, passados tantos anos,
e outros tantos desenganos,
ainda gritamos:
“Viva o Brasil!”

(E, agora, perdoem-me,
mas vou indo,
fumar um cachimbo
com um índio...)
***





terça-feira, 23 de outubro de 2012

A doença do mundo I

O menino acordou durante a noite com um Grito. O pai, preocupado, foi até o quarto do garoto.
- O que foi filho?
- Pai, eu acho que o mundo esta doente.
- Doente? Por que filho?
- Ouvi um homem lá na escola dizendo que tava feliz por fora, mas que por dentro ele tava triste, que doia muito. Na TV também tem sempre alguém triste;?escuto as conversas das pessoas reclamando de dor. Tem sempre alguém chorando, triste. É doença, né? Não quero ficar doente.
- Aih filho, as pessoas choram mas não quer dizer que elas estejam doentes ou que estejam tristes. A gente se emociana com algo daí as lágrimas correm. É até bom chorar, limpa por dentro o coração e a alma da gente.
- Ah pai não sei. Acho estranho chorar se não dói. Não sei, a mãe não acha isso, ela acha que é doença também e que vai passar.
- Como assim Gui?
- Ah pai, é que ontem veio aqui em casa uma amiga da mãe que chorava muito. Acho que ela tava sentindo muita dor. A mãe disse pra ela que as coisas eram assim mesmo, mas que tudo ia passar. Ahhhhhhhhhhhhhhh
- O que foi Gui?
- Ah lembrei, a mãe falou mais uma coisa. Ela disse que as pessoas iam embora da nossa vida as vezes, que tudo ia passar. Que todo mundo sente saudade de quem se gosta, mas é importante seguir em frente.

O menino parou, tinha lágrimas quando falou:
- Pai, eu nao quero ficar doente também. To com medo. Não quero que você ou mamãe me deixem. Eu vou chorar, ficar triste e ter esse negócio chamado saudade.





domingo, 21 de outubro de 2012

INRI


Quando Latércio Nicolau deixou meu consultório levando nas costas aquele seu jeito de hiena tristonha, eu juro, Cristina, que minha consciência profissional quase me fez revelar a verdade por ele tão ansiosamente procurada. Mas o sentimento de compaixão que sua alma sofrida emanava, a despeito do sucesso, falou mais alto. A verdade seria por demais dolorosa, provocando feridas que talvez jamais cicatrizassem, minha cara. Latércio Nicolau veio a mim à procura de respostas e não em busca de novos tormentos.
É claro que eu sei das minhas responsabilidades profissionais enquanto terapeuta de vidas passadas, Cristina, mas, entenda: as circunstâncias do "Caso Latércio Nicolau" são sobremaneira especiais. Nem tudo o terapeuta deve dizer ao seu paciente sob pena de abalar definitivamente a sua estrutura emocional. Você, por exemplo, caso houvesse sido uma sanguinária homicida em outra encarnação, um Nero ou uma espécie de Hitler, receberia tal notícia com tranquilidade de uma monja budista?
Não, Cristina. Latércio Nicolau não foi um genocida histórico, apesar de haver deixado para sempre sua marca na humanidade. Não se trata de fazer suspense, querida, contudo, todo este episódio de certa forma também me abalou.
Latércio me procurou desejando saber o porquê da melancolia crônica que o assaltava. Afinal, o homem tem tudo que um pobre mortal desejaria na vida: fama, dinheiro, uma bela família, realização profissional e poder. Sim, Latércio Nicolau é poderoso no meio em que milita. E fico admirado por você, meu amor, ser ingênua a ponto de não perceber tal fato.
Ok, tentarei ir direto ao assunto. Após as preliminares de praxe, Latércio Nicolau deitou-se ai mesmo, no divã que agora você se encontra sentada. Parecia amedrontado, como certos doentes que temem uma cirurgia contudo anseiam por ela na esperança de se curarem. Expliquei os procedimentos ao meu paciente e iniciamos a sessão relaxando mente. Aos poucos Latércio Nicolau foi entrando no estado hipnótico e, passados alguns minutos, estava sobre o meu domínio. Quando julguei ser o momento exato de começarmos a regressão, perguntei onde ele se encontrava. "No meio de uma multidão. Vejo pessoas gritando, xingamentos, deboches", ele disse. "Como você está vestido?". perguntei. "Como um soldado romano. Sou legionário.", foi a resposta que emergiu daqueles lábios grossos tão conhecidos do público. Já tinha uma base por onde começar, uma trilha no inconsciente daquele homem por onde seguir até alcançar o problema que o afligia quando, inesperadamente ele desatou a falar. Vou ler este trecho transcrito da fita gravada para você.
"O condenado segue no meio da turba enfurecida. Sustenta, amarrado aos punhos, horizontalmente por detrás do pescoço, a trave da cruz. A base é carregada por outro homem, por ordem do Centurião. O condenado, cabelos compridos à moda nazarena, segue resignado. O semblante transmite serenidade apesar do sangue que escorre pelo rosto, fruto dos espinhos em forma de coroa ferindo a cabeça. Chegamos ao monte, chamado de Gólgota. Deitamos o condenado. Um dos soldados finca um cravo de ferro no punho direito do homem. Ele emite surdo gemido. Repete-se a operação no punho esquerdo e nos pés. Erguemos a cruz. Não foi trabalho árduo. O nazareno tem estrutura esquálida. Algumas pessoas choram em desespero. Na certa parentes do crucificado. O nazareno pede água. Encosto uma escada na base da cruz, subo e, jocosamente, ofereço vinagre. Ele cospe. Nossas gargalhadas inundam o Gólgota. Enquanto disputamos no jogo de dados as vestes do tal de Jesus, duas outras cruzes são erguidas, ladeando o nazareno. Os outros dois condenados despossuem da dignidade do homem chamado Jesus. Lamentam suas sortes, urram desesperados pelo sofrimento. Súbito, uma ideia invade meu cérebro. Pego um pedaço de madeira perdido no chão e, com ajuda do meu pequeno punhal, esculpo as palavras "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus". Subo a escada e fixo a placa acima da cabeça do condenado. Novas gargalhadas eclodem. Ao lado do nazareno, rio sonoramente a ponto de quase desabar da escada..."
Permita-me interromper o relato, querida Cristina. Pelo resultado da sessão já se pode notar que, Latércio Nicolau, o maior humorista brasileiro de todos os tempos, mestre do riso, é um homem triste pelas reminiscências de outra vida. E que vida! Sim, você tem razão. Já na época do Cristo, Latércio Nicolau era dono de um humor peculiar, ainda que mais negro que a asa da graúna...





sábado, 20 de outubro de 2012

Insólito amanhecer

Destruído. Entorpecido. Morbígeno. Enfermiço. Chapado. Derrubado. Imprestável.
Minha cabeça é um dicionário de sinônimos e termos afins. Palavras pesam, perguntas piscam, torturam. Que lugar é esse? Que horas são? O que aconteceu?  Olho para o alto e vejo quem é meu inquisidor: Rui Batista Galvino, eu mesmo. Então, é isso: morri. Dizem que a primeira noção que um ex-vivo tem da própria morte é quando ele enxerga seu corpo inerte à distância. A imagem é de tirar as crianças da sala: eu, decúbito dorsal, olhos rumo ao infinito, cor de cadáver, nu, pernas e braços em xis sobre lençóis floridos de uma cama de casal. Não há poças de sangue nem sinais de violência. E me esbaldo em divagações. Minha suposta face post mortem não tem nada de serena, meus cabelos desgrenhados para trás prenunciam que uma calvície sem vergonha já batia à minha testa, minha musculatura está preservada e até que bem definida para minha idade, graças a horas de running, halteres e treinos extenuantes na academia de box tailandês. Minha barriga ainda lembra um tanquinho de lavar roupa, como costumava elogiar a mulherada lasciva. Minha depilação relativa funcionou, reparo meus pelos rentes bem contornados, deixando o pênis de proporções imodestas em razoável evidência. Bom ter operado fimose em criança. Contemplo orgulhoso meu camarada bem esculpido, repousando todo pimpão enviesado para a esquerda, até que o mantra volta a me atormentar: que lugar é esse? Que horas são? O que aconteceu? Mas eis que o óbvio súbito me assalta: o espectro que me assombra é meu reflexo no espelho no teto, claro, ridículo, sou um idiota dentro de um motel ordinário, entregue àqueles momentos de pré despertar, onde sonhos se embaralham com a realidade e você custa a distinguir o que é devaneio ou verdade,  mas um fiapo de consciência me cutuca em desvendar um mistério: ouço um chuveiro ligado, portanto não estou só. Ou teria sido eu mesmo que liguei a torneira, cambaleei do banheiro até a cama e cá me estatelei para a eternidade? Não. Por que aportaria a um abatedouro vagabundo sozinho? Seria o cúmulo do culto à  masturbação, deliciosa autossuficiência que, não nego, celebrei a vida inteira com muita imaginação, sem fazer uso de dispêndios inúteis ou mulheres reais, pegajosas e repetitivas. Ái, ái, ái.
Quanto mais penso, mais lateja a cabeça. Não consigo mexer pernas, braços, dedos, talvez o pescoço me ajude, atenção agora: queixo no peito, cervical em riste, ligo o radar, varro os arredores como posso, detecto ao longe copos e uma garrafa de uísque vazia dormindo no carpete, entre roupas espalhadas e emboladas, camisa social na beira da cortina, um paletó jogado no frigobar, uma gravata enroscada no abajur, calça, sapato, meia, cuecas. Cuecas?
Meu coração desembesta. Estou morto, estou vivo, estou sonhando, estou maluco, estou drogado,
quem é esse cara surgindo pela porta espelhada com a toalha enrolada na cintura? “Breno”, diz ele, “Breno, Dr. Rui.” Cara de ninfeto, olhos de lúcifer, ele sorri atrevido: “Até que para um homofóbico de carteirinha o senhor se comportou direitinho.” Meu corpo não responde aos instintos de pular na jugular do patife, que agora pega um smartphone na cabeceira e esfrega bem nas minhas fuças imagens sórdidas que me enchem a boca de nojo e me dano a cuspir a esmo, cuspir, cuspir como posso, pro lado, pro queixo, pra cima, nos lençóis, no travesseiro, sobrando saliva até para o meu próprio rosto, que agora aparece em close na telinha do celular, putaquepariu, passando a língua no corpo nu desse moleque, como um cachorro lambão até encontrar sua boca, que horror, e cravar-lhe um chupão, seguido de um golpe de braços e tórax, quando me vejo de bruços no macio
dos lençóis floridos, sob o corpo do rapaz, que me mordisca a nuca, me abraça com carinho e ferocidade, me faz gemer e balbuciar um “Isso, isso... delícia, garoto, delicia garoto”, que absurdo, que pesadelo, me desconheço, me horrorizo, me indigesto, me audito e não me assino embaixo, eu mato esse cara, está tudo gravado, eu mato essa cara, “Como chegamos até aqui?”, penso alto com um filete de voz sem tirar os olhos do celular. Ele diz que tudo começou no happy hour do escritório, quando bebi demais da conta e aceitei carona do estagiário novinho e bonitinho, carinha de querubim, que me levou para um barzinho sub-reptício. “O senhor topou na hora”, afirma o infeliz, que jura que dancei em cima da mesa, mãos entrelaçadas com as dele, sem camisa, gravata na testa, rodando o paletó, subindo e descendo os quadris, empinando a bunda, deixando aparecer o cofrinho, fazendo malabarismos faciais vulgares. Ele confessa também que para segurar meu facho colocou Roephnol no meu uísque, até me trazer para cá, diz que eu estava amável, relaxado, espirituoso e dengoso ao fazer essas coisas que a tecnologia não deixa mentir. De repente, tudo me vem à razão
e ao ódio, quem diria, logo eu, terror da bicharada, vítima de um golpe hediondo. Meus músculos enfim despertam, dou um salto da cama e olho fixo para o rapaz, anjinho dos infernos, pronto para enfiar na cara dele a garrafa de uísque que acabei de espatifar no espelho. Mas ele, tal como um guapo toureiro, se esquiva e deixa a toalha cair maldosamente, descortinando seu míssil enviagrado apontado para minha soberania, pronto a explodir meus prumos e pudores, um totem venoso, rosa lilás como um dia amanhecendo, pulsante, hipnotizante, esperto e apetitoso, que me treme
as entranhas e me formiga os bagos, não posso acreditar, fazendo reviver vagamente o bem estar que senti ao ver aquele ritual de luxúria inimaginável registrado no smartphone, cujos detalhes me poupo de relembrar, na maldita, ardilosa e traidora certeza de que gostei, ah, como gostei.
Neste momento baixa em mim o advogado negociador: “Menino, você não deveria ter feito isso. Você é um anjo perigoso, que não duvido ter planejado chantagear seu chefe”. Hora de ser calmo e estratégico. Maquiavélico como um caçador diante do veado arisco e sereno como um deslizar de um cisne num lago manso, ofereço um cheque polpudo em troca do chip de memória. É o meu único tiro. Mas ele é tinhoso. “Não precisava, doutor.  Mas já que o senhor é tão bom, aqui está o chip”. Ele é surpreendente: mastiga 16 gigas com os molares como se comesse pistache, vai ao banheiro, cospe minúsculos pedacinhos de memória no vaso sanitário, enquanto discursa pausadamente,
olhando de longe minha imagem degradada refletida nos espelhos: “Não preciso de lembrança eletrônica. Só gravei porque o senhor pediu, me disse que era um fetiche encubado. O que aconteceu esta noite passou, passou. Juro. Quem sou eu para chantagear alguém? Seria a palavra de um estagiário chinfrim contra um poderoso advogado tributarista. Além do mais, não se preocupe: não vou contar para ninguém, não vou mandar flores no dia seguinte. Apesar de disfarçar bem a idade, todo saradão e bonitão, o senhor parece uma mulherzinha carente, chata, submissa e suplicante na cama.” Tuff.  Mando-lhe um cruzado de direito tão violento no queixo, que foi dente por todos os espelhos. Agora quem chapa é o ninfeto insolente. Mais dois, três, quatro socos no rosto angelical, tuff, tuff, tuff, tuff, acho que quebrei o metacarpo, o escafóide, o sesamóide, as falanges, o diabo, como dói sem luva, desgraça, consigo enfim tirar o celular da mão do mortiço, o ex-bonitinho do escritório. Breno jogado no carpete respira como uma galinha que engasga com sangue, antes do molho pardo. Abro sua boca mole e lhe enfio o celular goela abaixo, o ganso vai virar patê, e soco, e grito, e surto, e rezo, e gozo, sufocando o anjo desfigurado com um travesseiro escrito Love is Life Motel. E sinto Breno estrebuchar até cansar dessa vida. Foi rapidinho, com relativo e merecido sofrimento, quem mandou?
O sol está querendo raiar. Mal consigo pular o muro nos fundos do motel. Aterrisso desajeitado num terreno baldio que dá para uma rodovia intensa e barulhenta. O céu pintando rosa lilás me alfineta a retina, me traz lembranças frescas e impiedosas. O dia renasce como outro qualquer, o tempo não para, o mundo gira, a Lusitana roda. Caminho troncho, com pé calçado e outro descalço, sei lá para onde e por quê. Tenho engulhos de vomitar bílis e soda cáustica. Ouço roncos de caminhões,
ônibus, carros, motos, camionetes, furgões, vans, jamantas, baús e carretas voando baixo nos dois sentidos. Aperto o passo e resolvo atravessar a estrada de olhos fechados.





sexta-feira, 19 de outubro de 2012

'Avenida Brasil', ou O Brasileiro gosta de Histórias

Nesta sexta-feira, o Brasil inteiro parou para ver o capítulo final de Avenida Brasil. Ou melhor, quase todo o Brasil: apesar de ter assistido a alguns capítulos, e de ter achado a trama muito bem-feita, preferi ficar afastada da telinha para ... ler um pouco. Sim, para ler: Como Funciona a Ficção, de James Wood.


Essa leitura, aliás, é muito útil também para analisar o próprio fenômeno da novela das nove que eletrizou a audiência no país. Isso porque, embora trate especificamente de literatura, as tramas televisivas nada mais são do que histórias de ficção, tais quais as que se veem nos livros. É claro que o veículo é outro, a mídia eletrônica e não o papel; mas uma história é uma história, esteja ela onde estiver.

A construção dos personagens de Avenida Brasil, por exemplo, foi de primeira (na maioria dos casos), a começar pelo fato de que eles podem ser descritos como “redondos” ou “profundos” – em outras palavras, complexos, com múltiplas facetas e motivações, sem a divisão simplista entre bons ou maus. Ou alguém que tenha assistido à novela vai negar que a heroína Nina tenha apresentado as duas facetas? A própria vilã Carminha, que tanto aprontou, teve lá seus motivos para agir como agiu...

Wood, em Como Funciona a Ficção, não concorda muito com essas classificações de “redondos” e “planos”, prefere falar de “transparência” (personagens simples) e “opacidade” (relativos graus de mistério). Nesses critérios, Carminha, Nina, Max & cia eram prá lá de opacos – uma das exceções talvez seja Tufão, sempre bonzinho, sempre previsível.

O próprio fato da dualidade de muitos personagens que ajudou a desencadear outra característica da boa literatura: a empatia. Afinal, assim como Nina (ou até mesmo Carminha), nós também não somos totalmente bons, o tempo todo. Por que outro motivo tanta gente adorava a vilã?

Enfim, não é a teoria ou a nomenclatura que importam. A questão é que o sucesso da novela prova uma coisa: todo mundo, mesmo adulto, gosta de uma boa história. Só espero que, a exemplo do que fez Tufão em alguns capítulos lá para o início da novela, os brasileiros também reservem algum tempinho para procurar essas boas histórias nos livros. Já pensaram se esses milhões de telespectadores também virarem leitores?





quinta-feira, 18 de outubro de 2012

SIMPLESMENTE


Otávio Martins
   
Os meus sonhos costumam acontecer de forma desordenada, confusos. São quase sempre imagens soltas e desconexas.  Quando acordo, preciso juntá-las, cuidadosamente, para tentar dar-lhes algum sentido.

   Numa noite dessas, tive um sonho diferente; apresentou-se tal como um filme de curta-metragem; organizado, com começo, meio e fim. Pela manhã, coloquei-o – na forma de um roteiro – na tela do computador.

   Logo na primeira cena, eu estava do lado de fora do bar, com um copo na mão – não lembro qual era a bebida – sobre uma plataforma de cimento, bem acima do nível da calçada. A plataforma era protegida por um parapeito armado com uma estrutura de grossos canos de ferro, sobre o qual eu debruçara-me. Meu olhar, voltado para o lado esquerdo da rua, meio perdido, não conseguia definir muito bem a paisagem.      
       
   Depois, aprofundando um pouco mais a vista, percebi que naquele canto ficava o fim da rua. Tomando um grande espaço, havia uma enorme cama, sobre a qual várias pessoas se tocavam em franca confraternização. Não recordava de ter-me deslocado até lá, mas, de repente, me vi deitado no meio de toda aquela gente. Uma mulher aproximou-se de mim e, soltando a sua longa cabeleira, descansou, suavemente, a cabeça sobre os meus pés descalços. Senti meu coração disparar, embalado pela aceleração de suas próprias batidas.

   Na cena seguinte - parece que de outro ângulo - ela, lentamente, foi levantando o corpo; ficou sentada bem junto a mim, quase de frente, levou a mão direita em direção ao meu rosto, como se fosse acariciá-lo.

   Acho que eu devo ter entendido mal e, instintivamente, levei minha mão até a sua cabeça, vagarosamente, fiz com que descesse por toda a extensão dos seus longos cabelos pretos, até sentir a pele macia de suas costas, já quase na altura da cintura. Tudo acontecia sem o menor controle da minha vontade, quando fui surpreendido por sua áspera reação:

   - Nunca – com o indicador em riste na direção do meu rosto, aos gritos – nenhum outro homem teve uma atitude assim, comigo...  E continuava alterando, cada vez mais, a sua voz.

   Apesar de ninguém ter dado a menor importância àquela sua atitude, fui ficando com muita vergonha e constrangimento. Tomado por um terrível sentimento de culpa, pelo que, supostamente, tivesse cometido, fui-me afastando, como um fugitivo, em direção ao mesmo bar onde estava, quando tudo começou.

   Passei direto pela plataforma de cimento e continuei pela mesma calçada, a qual me levaria até a pensão. Naquele momento, tive a sensação de que estava um pouco mais frio. Talvez fosse o vento. Não tinha idéia de onde ficava exatamente a pensão; e o meu quarto como seria? Há quanto tempo eu morava ou estaria hospedado naquela pensão?

   A sensação era de que todas essas imagens, ou referências, enquanto o sonho ia se desenvolvendo, surgiam, assim, aos poucos, instaladas numa espécie de não lugar que se revelariam como flashes, aos meus olhos. Dava-me a impressão de que todo aquele cenário estava sendo montado por algum mecanismo da minha mente, simultaneamente, só para ir dando um ar de realidade ao meu sonho; como o trabalho de um pintor, ao rabiscar numa grande folha de papel de desenho, o quadro que pretende pintar.      
                                   
   Senti passos fortes e apressados, quase nos meus calcanhares. Determinada, já vestindo outra roupa – um macacão preto, acolchoado nos quadris, a realçá-los ainda mais - cujo comprimento não passava da altura das suas canelas; o fecho éclair, aberto, revelava parte dos seus lindos seios claros. Estava tão sensual quanto com aquele vestido quase transparente, quando descansou, suavemente, a sua cabeça sobre os meus pés descalços, lá na grande cama. Talvez isso tivesse durado apenas alguns segundos, mas, para mim, pareceu uma eternidade.

   Senti um alívio quando o homem que vinha em sentido contrário – surgido como por encanto – esboçou uma saudação em minha direção. Logo reconheci que se tratava do sapateiro, o qual tinha a sua oficina ao lado da minha pensão. Uma nova amizade, talvez, ou, quem sabe, até já tivesse consertado alguns sapatos meus. Quando ia dirigir-lhe a palavra – seria a minha tábua de salvação - já a uma distância de cinco ou seis passos, ela, interpondo-se a nós, irradiando uma alegria contagiante, perguntou a ele se poderia pegar as suas sandálias, no dia seguinte, lá na saparia. Nada que lembrasse aquele seu comportamento, momentos antes, lá na cama. Ainda sugeriu, amavelmente, ao sapateiro, que passaria pela oficina, na parte da manhã, bem cedo, quando saísse para a academia. O senhor aquiesceu com um leve gesto de cabeça e, virando as costas para nós, continuou o seu caminho.

   Enquanto eles combinavam a entrega das sandálias, não vi alternativa que não fosse afastar-me para um lado, disfarçadamente, não sei nem porque – vontade de sumir – comecei a cantarolar uma linda música – já a pegando na segunda parte – do Paulinho Nogueira:
   -... E chegando a noite devagar/Descontrair sua razão/Soltar de leve o coração...
   Como se tivesse abstraído totalmente aquele incidente “ocorrido” entre nós, gentil e de uma forma muito simpática, colocou o braço sobre o meu ombro, olhando-me com ternura, ensaiou algumas considerações sobre a música do Paulinho.

      Talvez para expiar o meu suposto pecado, fiz o possível para socorrê-la e, num esforço, arrisquei algumas palavras que pudessem ajudá-la; essa minha infeliz tentativa nada acrescentou ao que ela já havia dito. Eu apenas tentara um gesto de solidariedade, deixando escapar, talvez, um suposto sentimento de culpa.

   Logo a seguir, ainda com o braço sobre o meu ombro, foi inclinando a sua cabeça, até encostá-la na minha – era bem mais alta do que eu – e determinando a direção pela qual caminharíamos, lado a lado, por alguns instantes. Revelou uma voz afinadíssima e, ainda, uma grande força de interpretação; continuamos cantando, em uníssono, até o final da música:
  -... Procurar alguém o seu bem verdadeiro/Tão somente e vai saber simplesmente/O que é bom pra você.

   Deixando-me para trás, apertou novamente o passo e foi-se misturando, logo mais à frente, à suave bruma provocada pelo lusco-fusco daquele final de tarde e chegada da noite que, pouco a pouco, foi desfazendo a sua silhueta.





quarta-feira, 17 de outubro de 2012


      Eu tenho uma estante de livros. A maioria deles foram sequer abertos, mas eles sempre estiveram comigo. Podia tê-los jogado fora ou dar de presente. Os livros não eram meus, pertenceram ao meu pai e à minha mãe. Alguns eram mais velhos do que eu e eu briguei por eles. Sequer abertos. Peguei uma vassoura e uma pá para limpar atrás da estante e assim, desloquei-a, tomando cuidado para não deixar os livros cair. Demorei quase uma hora para movê-la, mas não consegui colocar de volta. Anos passaram e a estante deslocada permaneceu em seu não-lugar, no meio de tudo.


***

      Minha casa não tem mais nenhum móvel, livros, estantes fora do lugar, mesa, cadeiras, quadros. Tudo é livre como meus sentimentos e o meu olhar. Não quero ter mais nada para ver, para descansar, para apoiar o meu corpo. Minha cama é apenas um velho cobertor sem travesseiros. Despojei tudo porque a simplicidade das coisas está distante e assim o teto, o chão e as paredes conversam comigo. O ar circula. Eu o sigo pela casa. Sozinha de objetos a casa só se importa com o objeto vivente e atuante. Sou o único móvel de decoração que não enfeita. Quer vir e dormir comigo? Pode vir e se acostume com o lugar. Se não posso ter uma vida simples, que a casa seja assim. Ora, não tenho vocação para asceta ou uma vida religiosa. Eles optaram por viver assim e eu escolhi viver sem nada não para alcançar a iluminação. Quero que o lugar em que vivo seja dedicado à simplicidade. Quando receber amigos, eles ficarão surpresos. Quando meu amor vier, ela dormirá sem conforto. Vejo as coisas do piso frio, de baixo para cima. Minha casa é a iluminada, eu sou um mero hóspede.

***

      Peguei meus sapatos velhos e os lancei janela afora. Todos eles sumiram. Exceto um, que vejo caminhando por aí: o sapato que não serviu...





terça-feira, 16 de outubro de 2012

Três

Três vezes. E três era o número de sorte dela.
Na primeira esbarrada, deixaram ambos cair das mãos os livros que tinham acabado de escolher. Ele, na estante de Medicina; ela, na de Artes. Pediram-se desculpas rapidamente e cruzaram os olhares por alguns instantes. Nada de mais naquele par amarronzado de olhos, ela reparou. Mas as mãos, quando se tocaram, provocaram uma sensação gostosa de calor. Hum... O que essas mãos quentes não devem fazer..., viu-se pensando, enquanto seguia para o caixa.
Esbarraram-se de novo na escada rolante. Ela, estacando subitamente antes de pôr o pé no primeiro degrau, tentando achar a chave do carro dentro da bolsa. Ele, sem tempo de frear o corpo, e agarrando-se ao dela para que ambos não caíssem nos degraus.  Respirações suspensas. Ele, rindo do próprio pensamento: Bundinha dura e empinada.... Mais uma vez, desculpas trocadas. Risos trocados. E ela, com certa timidez:
— Eu sempre esqueço que vem gente atrás. 
E a certeza de que nunca tinha dito nada tão idiota!  O olhar malicioso dele, comprovando que a frase tinha sido mesmo infeliz. Ou não...
Da terceira vez, esbarraram no cheiro bom um do outro, ao se apresentarem e trocarem beijos inocentes nas bochechas.
E vieram três meses. Três trepadas numa madrugada. Três dias de lua de mel na praia. Três cachorros — um para cada um dos três filhos.
Três brigas. Três voltas. Três desejos todo fim de ano. Três apartamentos, três empregados, três traições [dela, por ano].
Três balas no peito.
Sobreviveu.
Três é o número de sorte dela.





domingo, 14 de outubro de 2012

Os sapatos de Matilde



Maria de Fátima

Estavam como que esquecidos na varanda.
Uns sapatos de verniz vermelho. O sapato esquerdo em cima do contraforte do sapato direito. Parecia que bailavam juntos, mas podia também ser entendido que os dois sapatos se entretinham numa longa conversa ou que estivessem namorando.
Não era decerto isso o que eu pensava naquele fim de tarde.
Eu e Dionísio sentados mesmo em frente da varanda onde estavam os sapatos: um muro branco com escafelos e ervas a saírem de buracos.
Eu e ele, meia-leca de gente. Nem andaríamos na quarta. Talvez andássemos na terceira, ambos moradores na mesma rua onde estavam os sapatos que pareciam ter sido abandonados na varanda, uma dessas janelas com paliçada em ferro para que, quem venha de dentro, possa debruçar o corpo inteiro a assomar para fora. A minha avó Catarina, dizia que eram janelas de sacada, quando descrevia: na minha sala tenho duas janelas de sacada. E não tinha. Nunca tivera. A minha avó Catarina inventava vidas para se entreter. Era o que dizia a minha mãe que não apreciava esse pendor de invenção que a minha avó demonstrava:
– Senhora! que vossemecê inventa cada coisa! e cisma que é verdade! sina a minha!
Eu e Dionísio sentados no muro, a baloiçar umas pernitas magras de joelhos esfolados, umas feridas novas e outras com carepas, os dois muito quietos a mirarmos o brilho que uma nesga de sol entre dois telhados fazia sobre os sapatos esquecidos no estreito rectângulo de cimento que era a janela de sacada da casa de Matilde. E foi quando ela apareceu a dizer para dentro, como se viesse já falando:
– Olha! estão aqui os sapatos!
Ela a admirar-se de os ter encontrado, e eu e Dionísio embasbacados a olhar-lhe as pernas e o rabo que assomavam entre os ferros. Matilde estava descalça e tinha vestidos uns calções curtinhos e justos.
Seriam dela os sapatos que assomavam para a rua onde morávamos, uma calçada sempre húmida, mesmo nos pinos de meio-dia, mesmo se fosse Agosto.
Talvez Matilde os tivesse descalçado a colocar o pé esquerdo sobre o pé direito e, nisso, a fazer um último adeus ao Francisco que desceria a rua. Meia-noite, ou talvez passasse, e Matilde com os pés doridos, a descalçar o sapato direito com o outro pé, nem pensando no gesto, ela apenas com olhos para o namorado e a aliviar os pés de ter dançado tanto nessa noite. Seria disso que os sapatos tinham ficado encavalitados, o esquerdo em cima do direito.
Terei pensado tudo isto a olhar Matilde? Não me recordo. Nem acredito. O que me lembro, como se fosse hoje, é que Matilde, a debruçar-se para apanhar cada um dos sapatos encarnados, virou para a rua o rabo que nela era um pedaço de carne, mas era muito mais do que isso, e nem eu nem Dionísio sabíamos explicar o que havia no rabo de Matilde. Mas tinham qualquer coisa, que eu ainda não percebia, as duas nádegas a saírem do calção, uma delas encostada aos ferros da janela de sacada. E eu a sentir o céu a ficar pesado, a luz a nublar-se, um arrepio no corpo, os olhos desfocando Matilde que se virava a erguer, dependurados em dois dedos, os sapatos vermelhos.
Dava-se assim comigo e estou em crer que seria o mesmo com Dionísio.
Ela a olhar lá do alto e a falar-nos:
– Olha os parvos dos rapazes! para onde olhais, fedelhos?
Que Matilde já saberia muito bem aonde estavam os nossos olhos!
E, enquanto isso, balançava os sapatos para fora da varanda como se quisesse atirar cada um deles.
E no entretanto de se ir debruçando a chamar-nos fedelhos, Matilde mostrava as maminhas que trazia soltas numa blusinha de tecido fino com florinhas miúdas, e nem sutiã a segurá-las. Duas maminhas por detrás do par de sapatos que ela balançava para fora da varanda do primeiro esquerdo, por cima da merceeira do Fragoso.
Dois prédios abaixo, vivia eu e o meu pai, negociante de peixe, e Rosa Maria, minha mãe, que me criava e aos meus dois irmãos, mais velhos do que eu. E lá em casa ainda morava a minha avó materna que inventava coisas.
O Dionísio morava lá em baixo, junto ao largo.
A blusa de Matilde a deixar ver os seios que eram castanhos como ela, uma mulata ainda mal saída dos cueiros e já atrevidota, que era o que o meu pai dizia da filha da Dona Zulmira, preta nascida em Angola. E a minha mãe dizia dela, tantas vezes: devia ir falar com a mãe dessa menina...E nunca explicava o que a moveria. A minha mãe Rosinha sempre ataviada de preceitos, normas e bons costumes.
E eu nem sei se havia um Francisco que era namorado de Matilde. E nem se ela tinha idade para sair de noite, e nem se ia a bailes. E nem sei mesmo se terei sido eu quem inventou o par de sapatos, ainda mais vermelhos e encavalitados um sobre o outro, esquecidos na sacada do primeiro andar onde morava Matilde. Mas sei que ela apareceu a debruçar-se na janela naquele abençoado fim de tarde. Isso, é mais do que certo. Como é certo que Matilde vestia uns calções justos e curtinhos.
E também não tenho dúvidas que só tinha uma blusa fininha a cobrir as maminhas. As flores miúdas do tecido é que podem ser invenção minha, agora que conto.
Mas certo, mesmo certo, é que Matilde não gostou do que eu disse quando ela se dispunha a fechar a janela com o par de sapatos pendurado em dois dedos.
Eu e Dionísio a gritarmos cá de baixo:
– Matilde do cu grande.
Apenas isso! Que importância tinha? Era até verdade!
Mas Matilde não deve ter gostado. E eu devia ter percebido que aquele ruído tilintante, quando ela foi para dentro e fechou a porta da varanda, era Matilde furiosa. Mas não percebi e fiquei em cima do muro a aliciar Dionísio que repetisse comigo:
– Matilde do cu grande.
Eu e ele a berrarmos cada um mais alto, e já Matilde saía do prédio, e eu juro que nem tive tempo de ver-lhe as pernas muito altas a sobrarem dos calções, e nem as maminhas a saltarem debaixo da blusa, ou ela a mostrá-las, nuas, quando se debruçou no muro. E cuido que o mesmo se tenha passado com Dionísio a fugir rua abaixo e ainda a gritar, para meu grande espanto, mal se apanhou protegido pela esquina de um prédio:
– Tu namoras com o Francisco.
E tenho a certeza que o Dionísio não sabia porque dizia isso. E nem eu. Sei que as mãos de Matilde me seguraram e ela bateu-me com o sapato. Seria um sapato vermelho, ou seria outro com um salto igualmente fino, o certo é que ela me bateu com ele uma, duas, muitas vezes, e que eu esbracejava a tentar defender-me.
E foi dessa refrega que o meu braço esquerdo – tenho a certeza absoluta que foi esse – se enfiou na blusa de Matilde.
Eu não fiz de propósito. Jurei naquele dia e ainda hoje o faço.
– Eu não fiz isso – disse eu, choroso e doído, a ouvir os seus gritos. 
 Ele apalpou-me as maminhas, berrará Matilde.
E a minha mãe a corar de vergonha e de raiva:
– Pode lá ser menina, o anjinho…
E estava minha mãe repleta de razão, que eu até senti medo quando toquei naquilo!
Mas Matilde dizia, que a ouvia quem passasse na ruazinha estreita, que eu lhe tinha metido a mão na blusa, para lhe apalpar as maminhas.
Só muito mais tarde percebi que com isso ela justificaria o lenho que me tinha feito a bater-me com o salto do sapato, mesmo em cheio na cara.
E a verdade, verdadinha, é que eu não lhe meti a mão por baixo da blusa e nem pelo decote. A verdade, é que foi apenas um descuido, um acidente, que eu ainda hoje me lembro do arrepio que senti no corpo mal os meus dedos deslizaram sobre os bicos rijos das maminhas de Matilde.
Ela a bater-me com o sapato, e eu a passar a mão como se nada fosse, eu num transe de quem descobre.
Eu que ficaria até desapercebido da pancada não fosse Matilde ter batido de tal modo que o salto fino me deixou um rasgo no rosto da cor de cada um dos dois sapatos.
Um rasgo do canto do olho esquerdo até ao queixo. Uma diagonal de sangue de que me ficou, até hoje, a cicatriz.
Foi tão grave, que a minha mãe, a tratar-me da ferida, jurou que desta vez iria mesmo falar com a mãe de Matilde, e gritava isso, a esquecer-se dos preceitos.
– Desta vez vou falar com a preta – dizia ela a besuntar-me a cara com mercurocromo.
E lá foi, a arrastar-me rua acima, tirar contas à vizinha.
Foi só daí, do diferendo,  que fizeste tu, que foi que ele te fez, que fiquei sabendo que enquanto Matilde me batia, ainda antes de me rasgar a cara com o salto, eu tinha estado a cometer o pecado grave de apalpar as suas maminhas.







sábado, 13 de outubro de 2012

Imagem de Barro | Ultimo Quarto



Conto, por Wellington Souza

Parte IV - Ultimo quarto

"...são dois homens competindo para ver quem me dá mais prazer. Hedonistas, é o que somos."

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Levemente embriagada vejo a pedra de Sísifo descer a montanha. Caminho junto a ele para o resgate inútil, mas essa é a inutilidade da vida.

Embriagada o suficiente para ter coragem de fazer o que quero, correr a tudo que me ocorre e não mais fugir dos desejos. Sou o meu id, agora. Nesta rápida passagem pelo banheiro, visto a máscara da luxúria e dispo-me o corpo e, sem clichê algum, também a alma. Se “começar a pensar é começar a ser atormentado”, testarei se parar de pensar é parar de ser atormentado... Se entregar-se ao sexo é, por excelência, abdicar da vida como a conhecemos – é uma forma de suicídio – e termos consciência apenas da fração de momento. Talvez seja, até, a fronteira antes da desistência ultima e completa.

Coincidência um estar me esperando na portaria quando eu cheguei com outro. Em outras épocas, isso acabaria em duelos (aquela coisa toda, com direito a padrinhos assistindo...); tiroteio... sangue. Mas hoje, termina em bacanal.

‘Sim, que me fodam’ repito ainda agora. Foi o que eu disse dada a situação incômoda, na porta do condomínio, quando questionada de forma irônica se eu agüentaria com os dois. Que me fodam, repito comigo mesma em monólogo.

A teoria é ótima: além de dois homens empenhados em me dar prazer, ao invés de um; são dois homens competindo para ver quem me dará mais prazer. Hedonistas, é o que somos. Os budistas e epicuristas que me perdoem, mas a busca pelo prazer é a chave do sucesso humano enquanto espécie. É o sexo que liga nossas consciências não apenas com outro indivíduo, mas sim com o mundo tátil e social. “Corpos se entendem, almas não” disse Bandeira.

Sinto vontade de fumar, mas logo esse desejo fálico será saciado...

Tento andar de salto, mas me desequilíbrio e quase caio. Jogo para o lado, então, os saltos e caminho até o quarto na ponta dos pés, para manter silhueta perfeita.

Eles estão cada um de um lado da cama box. Lembro-me de cenas de cinema e tento reproduzir as mais sensuais. Subo ao pé da cama, somente de calcinha, e faço charme do strip and tease. Eles estão de cueca, mas exijo a nudez. Minha calcinha se junta às suas cuecas, jogadas.

A ordem correta para as preliminares, agora, é fazer oral em um enquanto recebo de outro, mas há a dúvida sobre qual escolher para começar. Então salto e me jogo em uma pequena poltrona que fica ao lado da cama, de pernas abertas (uma no braço do móvel). O homem que está mais próximo, o mais tímido, que conquistara de mim as terras mais próximas ao amor, ajoelha-se ante meu corpo segue beijando minhas coxas, virilha até chegar lá, onde submerge. No sentir seus lábio entre os meus e sua língua viscosa em movimentos de cego, apalpando a carne, inflamo-me e lhe retribuo perdendo de vista minha unhas negras em seus cabelos, massageando-o e regendo o ritmo do tributo.

Há gente que é feita para viver e há gente que é feita para amar. E esse é o melhor tipo de amor: único e sem esperanças. A esperança e a nostalgia são os vermes que daninham o coração. Em vão me recolho em Camus, Nietzsche, Freud para buscar explicações que me justifiquem e dêem, enfim, a paz. Mas mesmo assim as ervas daninhas ainda empesteiam o coração. Prazer não é felicidade. Somente subir a pedra refresca um pouco os ânimos. “Trabalhar sem filosofar é a única maneira de tornar a vida suportável” é a conclusão que Voltaire nos dá, em 'Cândido ou O otimismo'. Dom Juan trocaria o ‘trabalhar’ por ‘transar’.

O outro postou-se ao meu lado, ereto. Fiz um movimento para, com a boca, invaginar o seu pênis. A essa ação ele recuou um pouco o quadril, de modo que meus lábios apenas tocassem de leve a sua glande, apenas a beijasse com carinho fraterno. E continuou raspando-o em minha face, no blush das bochechas e no piercing do nariz. Até que resolveu introduzir: momento esse que eu aguardava de olhos fechados e boa entre aberta.

Tento imaginar o que cada um quer para satisfazer antes sequer de terem consciência das necessidades.Iniciamos o ciclo mágico, a busca, de dar e receber prazer. E a certeza de que nunca mais nos veremos é o que dá o palco para sermos as personagens que sempre , de alguma forma, sonhamos.

*
 Para ler mais contos do autor, clique aqui

Créditos da imagem:
Art on Self Portrait, por Juliana Blasina





sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A MOÇA DO METRÔ

O que será que a moça do metrô carrega
com seu olhar triste e testa enrugada?
Não sei, mas reparo que nada do que acontece
tira-lhe essa nuvem da cara.
Será apenas sono ou mais um abandono?
É manhã e chove.
Olhares nublados se cruzam na multidão.
O que leva toda essa gente no coração?
Muita conta pra pagar, necessidade de descanso
e um conformismo manso diante da vida bandida?
Onde vai parar esse trem da vida?


O METRÔ DOS SONHOS

Eu queria que o metrô chegasse
a todos os destinos.
Ele poderia me levar até o menino
que ainda não sabe quem sou eu.
Se ele não sabe, nem eu,
mas o fato é que o metrô
poderia me transportar
praquele lugar onde escritores
sobrevivem de seus textos.
Os trilhos ferroviários
poderiam entrar no eixo,
como disse o Freixo:
“na pauta das cidades”.
O metrô é o meio mais rápido
para matar a saudade.
O metrô poderia me levar pra Serra,
para ver meu pai.
"Feriado na Região dos Lagos?
O metrô vai."
Já pensou se fosse?
Com metrô onipresente
minha vida seria mais doce
e mais alcoólica também.
Eu poderia beber e não dirigir.
Sem ter que gastar uma grana
com aqueles carros amarelos.
Desculpa, táxi, mas com metrô,
meu mundo seria mais belo
e meu bolso, mais feliz.
Metrô no Brasil todo
é tudo que eu sempre quis.

(Mariana Valle)





quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Revista SAMIZDAT é Top 100 do Topblog 2012. Continue votando!



Revista SAMIZDAT está entre os 100 blogs mais populares da categoria de Literatura no Topblogs 2012.

Por isto, viemos aqui novamente para pedir o seu apoio e o seu voto, clicando no botão acima.
Existem três opções de voto, através do e-mail, por sua conta do Facebook ou Twitter, sem complicação alguma.
Inclusive, você pode votar três vezes, uma para cada opção.

Se você é nosso leitor habitual, já conhece a qualidade do nosso trabalho e compreende a importância de publicações como a SAMIZDAT para o panorama literário atual, apresentando o melhor da Literatura que ainda não aparece nas grandes livrarias, feiras literárias ou nos cadernos de Literatura dos jornais.

Nossa missão, hoje e sempre, é a de contornar o brutal processo de exclusão do mercado literário, que tenta relegar às sombras grandes talentos que, por qualquer razão que seja, não se enquadrem em seus restritos perfis de negócio.
Simplesmente não vamos nos calar nem deixar de lutar.

Se você está nos visitando pela primeira vez, gostaríamos de compartilhar com você algumas informações sobre a Revista SAMIZDAT.


 - criada em 2008, a SAMIZDAT foi uma das primeiras revistas digitais distribuídas gratuitamente em .PDF, apresentando autores brasileiros e portugueses, além de grandes nomes da literatura nacional ou internacional;
- foram 34 edições regulares e 1 edição especial;
- mais de 1000 obras publicadas no blog, com a participação de mais de 170 autores consagrados e estreantes, dos mais diversos gêneros;
- acessada por mais de 140 mil leitores no site;
- e lida por outros 130 mil leitores nas edições da Revista SAMIZDAT em .PDF.

Contamos com seu apoio, caro leitor, pois nosso labor e nosso esforço é e sempre será o de lhe trazer o melhor do nosso talento, com obras instigantes, profundas, divertidas, angustiantes ou informativas.

Se ainda estamos aqui, dia após dia e ano após ano, é pelo simples prazer de sermos lidos por vocês.

Além disto, o blog Concursos Literários (http://concursos-literarios.blogspot.com.br/2012/10/finalistas-do-premio-top-blog-2012.html), de Rodrigo Domit, um dos nossos autores fixos, também está concorrendo ao prêmio, mas na categoria profissional de Melhor Blog de Literatura.
Votando neste blog, você estará contribuindo com uma das mais importantes fontes de concursos literários do Brasil.

A votação vai até dia 10 de novembro de 2012.

Obrigado,

Henry Alfred Bugalho
editor





Amnésia

 
 
Oh! deusa do labirinto? onde se escondes?

Quero você em minha vida

me ajudar a tirar roupa suja-usada do meu guarda-roupa velho

eliminar massa cefálica leguminosa, sebosa, cheia de tiques  nervosos

dançar com o inusitado às margens do rio Nilo


colocar álcool e fogo dentro de cada micro-célula

quero ares em discordância

fazer explodir o conformismo,

como a menina suja que come chocolate

É no esquecimento que vanglorio minhas incertezas


 Implodindo Narcisos e Espectros

Mergulhar em céus invisíveis,

E explodir essa indesejável mania de ser!


 
The end





quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O que há no silêncio


Henry Alfred Bugalho


Você sempre sonhou em desfrutar da Dolce Vita, como num filme de Fellini.

Compra uma passagem para a Itália, pede licença sem vencimento no trabalho e arruma as malas. Morar nos grandes destinos turísticos está fora do seu orçamento. Em Roma, Milão, Veneza e Florença suas economias morrerão no aluguel.

Num mapa da bota italiana, escolhe uma cidade central: Perúgia, no coração verde do país. Pouco sabe sobre ela, exceto que se trata de uma importante cidade universitária. Já se imagina em meio a uma multidão de jovens europeus, entre espanholas calientes e ucranianas belíssimas. Vai aprender italiano, mas também escutará idiomas que nem imaginava existir.

O primeiro contato é encantador. Você não consegue cogitar uma melhor escolha. Pelas estreitas ruas do centro histórico, você se perde e se deslumbra. Retorna no tempo, ao século XII, o apogeu daquela cidadela fortificada. Cada esquina é um encontro de épocas, a porta é dos etruscos, parte dos muros dos romanos, a fonte medieval, alguns prédios do renascimento e outros da unificação. Camadas de História sobre camadas de História.

Seu apartamento tem uma belíssima vista das colinas e montanhas da Úmbria. Sobre um dos montes, um castelinho em ruínas. Você nunca viu nada parecido. Está feliz, realizando seus maiores anseios.
É no segundo mês que você começa a escutar os ruídos do andar acima. Passos. Móveis arrastando. Passos. Alguém mijando. Passos. Conversas e risos. Passos. Passos. Passos. Passos. Dia e noite. Dia e noite. Dia e noite. Passos.

Quantas pessoas moram aqui em cima? Você pergunta ao proprietário do seu apartamento.
Estava desocupado. Ele responde.

E os passos prosseguem pelos dias seguintes. Você dorme mal, não consegue se concentrar, seu coração está disparado. Uma e meia da manhã. Passos. Coisas caindo. E você com os olhos escancarados fitando o teto branco.

Vão dormir, seus filhos da puta! Você grita, dando vassouradas para cima. Os ruídos cessam por vinte e sete segundos, para recomeçarem com igual intensidade. Você caminha de um lado ao outro da casa, procurando um cômodo mais silencioso. Com as cobertas em mãos, muda-se para o sofá da sala, mas, às sete da manhã, os ruídos seguem-no até lá. Passos. Passos. Passos. E também passos na escada do corredor. Gente que sobe e desce. Sobe e desce. Sobe e desce. Dia e noite. Dia e noite. Passos. Passos. Passos.

Você espia pelo olho mágico. Chineses vem e vão. Quantos moram aqui em cima? Você se indaga, mas não tem como calcular. Todos se parecem. Vestem-se iguais, os mesmos óculos de aro preto, os mesmos cortes de cabelo, o mesmo jeito de andar. Passos.

É neste ponto que você começa a perceber que eles estão em todos os lugares, por toda a cidade. Há chineses na pizzaria, no mercado, na padaria, no açougue. Todos iguais, todos poderiam estar morando no andar acima ao seu.

Você mal vê italianos, tampouco espanholas ou ucranianas. Só há chineses, e marroquinos, tunisianos e albaneses. E todos têm péssimas reputações. Ninguém vai à Itália para conviver com chineses. Para isto, você viajaria a Xangai, a Pequim, ou a Hong Kong. Você não é racista, durante um período de deslumbramento pelo Japão, saiu com duas ou três sanseis da comunidade nipônica de sua cidade, inclusive, em sua opinião, orgasmo de ocidental alguma se assemelha ao gemido tímido e choroso, quase o de um bebê clamando pelo pai, das orientais. Não importa se é chinês, árabe ou caucasiano, o que você valoriza é o bom senso. Porém, bom senso é uma abstração, mais ou menos como liberdade e amor. Todos pensam que sabem muito bem do que se trata, mas, na hora de explicar ou exemplificar, faltam as palavras. Para você, bom senso é deixar os outros descansarem à noite, você que é uma pessoa que nem dá descarga de madrugada com receio de despertar os vizinhos.

Numa das noites, você sobe e bate à porta dos chineses. Uma. Duas. Três vezes. Mas ninguém abre, tudo sepultado num silêncio absurdo. Você escuta passos o tempo todo, mas, quando sobe para tirar satisfações, não há um único homem para abrir a porta?

Os passos continuam assim que você volta a seu quarto. Passos e mais passos. Móveis sendo arrastados. Tosses e risadas. Se houvesse um machado à mão, você arrebentaria aquela porta, enfiando a cabeça pela fenda aberta, olhar ensandecido, exatamente como Jack Nicholson em O Iluminado. Seria uma carnificina e, naquele momento, você agradece por não ter uma arma em casa.

Você chama a polícia. Espera. Espera. Espera. Os passos sobre sua cabeça, os móveis sendo arrastados, os risos e conversas. A polícia não vem, como você já imaginava. Será que existe algum lugar no mundo em que a polícia aparece por causa de reclamações de barulho? Você se indaga, pois lá deve ser o paraíso.

Noites sem dormir. Noites sem descanso. Você toma uma decisão. Se há um ditado com o qual nunca concordou é “os incomodados que se mudem”, mas não há solução. Num mundo ideal, os inconvenientes é que deveriam ir embora, ou serem escorraçados. No mundo real, os incomodados se mudam.

O que mais resta fazer?

Você pega sua malinha e encontra um casebre no interior da Toscana, cercado por girassóis e cento e cinquenta oliveiras. O vizinho mais próximo vive a quinze quilômetros. Nenhum chinês por perto, nenhum som de passos a não ser dos seus.

Numa ida à cidade, você avista a manchete numa banca de jornal: “Desmantelada fábrica clandestina de bolsas”. Há uma foto do seu prédio na Perúgia. No andar acima ao seu, moravam quinze imigrantes semi-escravos que trabalhavam dia e noite, costurando bolsas Louis Vuitton, Gucci, Prada, D&G e Fendi genuinamente falsificadas. As mesmas bolsas que os tunisianos e marroquinos vendiam nas proximidades da estação ou nas ruelas secundárias.

Oprime-o uma pontada de pena por aquelas pessoas que haviam viajado de tão longe por uma vida melhor e que recaíram num trabalho de exploração. Mas a pena logo passa. Você se lembra dos passos. Passos. Passos e mais passos.

No seu casebre rural, você ouve somente o cantar dos grilos e das cigarras, e do galo a cocoricar bem na janela do seu quarto às cinco da manhã, mas tudo isto pertence ao cenário, integra e harmoniza com o ambiente. É o inevitável, assim como os chineses da Perúgia.

O silêncio não tem preço. Você conclui, observando o sol se pôr atrás do olival. A paz é inestimável.



Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

http://www.henrybugalho.com/





segunda-feira, 8 de outubro de 2012

coletivo


1.
exagero posto
no espaço
vasto 

o excedente
se não engrandece por si
carece de ser
o que não aparenta 

isso que se estica
de onde está até
onde se possa ler
é – ou precisa ser –
esmagado pelo caminho 


2.
aquilo que reclamamos
em bom português nem existe
o mundo perdeu   
na espiral infinita traçada via lactea afora

é muita volta para nunca ter deixado cair nada 


3.
já esquecemos o que éramos
estamos a dois passos de desistirmos
de quem somos 

o tempo já apagou
as luzes
cerrou as janelas
e procura a chave para
ir-se de vez  


4.
vem um temporal
o mesmo temporal
a coisa toda atordoa porque
anda sem ainda acontecer 

é isso agora
a mesma chuva
mais ou menos à mesma hora 

perdeu-se a graça
da surpresa porque o mundo
acaba
todo dia
perto das seis 

sem cumprimentos
de profecia
nada disso

acaba
em um buraco na rua
em um ladrão obstruído
em telhas voando
em desodorante
em excesso
dentro do coletivo
em blecaute

acaba depois da rótula
à direita de quem vai


5.
consideramo-nos
e estamos em boa conta
e observamos

como vai a saúde
como vai o trabalho
como vai a alma
            coisa pesada que não existe

como temos escrito
nós
os consideravelmente mortos

como vamos?

não
não vamos

há uma linha daqui até
a fronteira da Babilônia
ou até os molhes de um porto qualquer ao sul
            de Atlântida 

só vamos até esse ou aquele ponto

(com sorte
no máximo
até a integração)


6.
anoitece triste
rio grande
lentamente   

a noite mascara o pânico
o vento virou-se para outros lados
avançamos
sem dúvida avançamos  
um furo a mais no cinto do destino