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sábado, 28 de setembro de 2013

Brasília em festa


Não há dúvida: o traçado do urbanista e o traço do arquiteto são motivo de festa para os brasilienses. Há, ainda, a festa para os olhos que é o céu de Brasília – céu de um azul tão celestial que “quase arromba a retina de quem vê” (Chico Buarque). E tem a festa do cinema brasileiro. E tem a festa da chegada da primavera. É dessa última festa que quero falar. Para falar dela, no entanto, preciso falar do antes da festa.

Agosto. A seca na sua máxima plenitude. Chuva nenhuma, umidade baixíssima, horizonte enfumaçado, verde quase nenhum – o típico clima de deserto. Só o que se espera é a festa da chegada da primavera. Enquanto a primavera não chega, tome horizonte enfumaçado, tome verde nenhum, tome tonturas por causa da baixa umidade, tome desconforto térmico. Há quem estranhe e sofra bastante com as inclemências próprias de um clima de deserto. Eu, nem tanto. Tenho apenas ligeiras dores de cabeça, alguma tontura, além do desconforto em si que provoca a falta de umidade.

Pra não dizer que é tudo desolação, a natureza regala-nos justo nessa época com a floração majestosa dos ipês. Até a natureza vegetal tem seus caprichos. Os ipês, para melhor cumprirem o ofício da beleza, explodem suas cores no momento em que tudo em volta está cinza, fosco... Ao vê-los floridos o deslumbramento é tal que a gente se pergunta: “De onde surgiu esse rosa tão perfeitamente róseo, esse branco tão lácteo, esse amarelo tão girassol?” E com essa estratégia de sedução o que ipês querem é multiplicar-se. Como? Fazendo brotar nos humanos o desejo de espalhá-los mais e mais. Diante da consumada beleza com que já nos seduziram, é claro que vamos querer mais deles florindo na paisagem, ainda mais se for uma paisagem árida como a de Brasília nessa quadra do ano.

O calendário humano estabelece em 23/9 o início da primavera. A primavera mesma, por sua vez, obedece apenas ao seu próprio e imperscrutável calendário. Até que a primavera chegue pra valer (ainda não chegou), os candangos todos temos de nos conformar com uma espécie de hibernação visual, tão desoladora fica a paisagem. Ah, mas quando caem as primeiras águas e o verde começa a impor sua majestade à paisagem, ressurgindo em toda a sua gala vegetal, celebramos todos a volta daquele que foi apenas para poder voltar, de novo e sempre!! É um espetáculo monumental. Chego a dizer que o verde é a maior das catedrais de Brasília.

Quando a primavera se instala é uma festa só. Aí é esperar pelo momento da terra rir pelas flores, é ver a primavera cumprir seu ofício de explodir em cores a paisagem, devolvendo-nos a beleza que a secura furtou, por longo estio, de nossos olhos. É bem verdade que, humanos distraídos, esquecemo-nos de apreciar essas belezas sem dono, esse milagre cotidiano com que a natureza nos regala. Urbanos apressados, ambulantes presos em certas gaiolas metálicas sobre rodas, nossos fatigados olhos pouco se espantam com o espetáculo da beleza gratuita. E assim vamo-nos distanciado da dimensão telúrica que nos envolve, vamos perdendo o elo com a nossa identidade primordial. Quero crer que os anos de cidade grande não tenham me roubado, ainda, o pasmo essencial que sinto diante do belo na natureza.

É por isso que não vejo a hora de a primavera chegar de vez, não vejo a hora da festa re-começar. Sonho com Brasília em festa, bordada de verde por todos os lados.

                                                                        * * * 
PSiu: No próximo dia 11/10/2013, a partir das 18h30, estarei lançando meu primeiro livro. Você, leitor de Brasília, é meu convidado. Apareça! Será um prazer! Para mais detalhes, é só clicar aqui.





quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Coty


Joaquim Bispo


Meu querido Amadeo,

Sei que estás em Manhufe, a fugir da guerra. Escrevo-te esta carta depois de me terem falado do quadro que pintaste e não intitulaste, mas a que todos chamam “Coty”. Acertaram. Conheço-te bem; sei que mascaraste o nome que me davas, com a marca do perfume que sempre uso.
Podes achar que ninguém vai reparar, mas há pessoas que me conhecem e vão perceber tudo e as intimidades que tínhamos. Não devias ter feito isso. As pessoas vão ver os insetos pousados nas pétalas rosadas e vão perceber, vão ver os ganchos de cabelo e vão perceber. Escusavas de ter posto as tulipas. Só não vê quem não quer. Olha que eu não sou dessas!
Era bem preferível ficares-te pelos seios e pelas pernas. Disso está a pintura francesa cheia. Não há Ingres, nem Renoir, nem Toulouse-Lautrec que não exponha a nudez das modelos e amantes. Ninguém me vai reconhecer por aí. Agora, os frascos de perfume, as cartas de jogar… Há quem saiba as habilidades que faço com elas. Por isso te escrevo.
Continuo a preferir a discrição de casa, aos grandes salões. Nisso não mudei. Até nas grades da janela me identificas. Mas me associas a uma planta carnívora. O que torna ainda mais perversa a imagem que dás de mim. Fiquei irritada, mesmo magoada. Eu não te merecia isto.
Também sei que casaste. Espero que sejas feliz aí nesse teu Portugal. Bem vi nos teus quadros que não esqueceste nunca os potes, as bilhas e outras vasilhas de feira.Tonto!
Quando acabar a guerra, vem visitar-me. Quero mostrar-te a minha nova carpete. É florida. Vais gostar dela, tanto como daquela dos quadrados. Mas não é para depois me pintares coberta de cravos e margaridas e gladíolos, que eu não sou dessas. Maroto!

Beijo da tua,
“Coty”


Amadeo de Souza-Cardoso, Título desconhecido (Coty), 1917.


[Até 19 de janeiro de 2014, está patente no Centro de Arte Moderna, em Lisboa, a exposição “Sob o Signo de Amadeo – Um Século de Arte”, com uma mostra representativa da obra deste pintor vanguardista falecido em 1918, em diálogo com obras correlatas de outros artistas nacionais e estrangeiros.]





terça-feira, 24 de setembro de 2013

MINICONTOS TEMÁTICOS – PARTE V

Amigos, volto à prosa minimalista, hoje com o tema VIAGENS. Agradeço, desde já, a leitura.
Macrossaudações.

Edweine Loureiro

*

AEROPORTO DE BOSTON

Despediu-se da esposa com um longo beijo. Estava tranquilo, vendo o céu límpido naquela manhã de setembro de 2001. Antes de embarcar, ainda brincou com a atendente:
― Voo onze, dia onze... Meu número de sorte.
A moça, porém, não sorrindo, limitou-se a chamar o próximo passageiro: Mohamed Atta, que também tinha onze letras no nome...

*

TREM DAS ONZE

Viu a locomotiva aproximar-se e olhou o relógio. Pontual, como sempre! – disse consigo, sorrindo. E, em seguida, atirou-se sobre os trilhos.

*

FELIZ ANO VELHO

Quando, às 23h59 do dia 31 de dezembro, ouviu as palavras “Parado! É a polícia!”, soube que ali terminavam as tentativas.
Mas ainda lhe restava a grande viagem. Assim, levando o revólver à boca, disparou.

*

Nota: O texto Feliz Ano Velho está no meu livro “Em Curto Espaço”, à venda no link abaixo:

http://www.editoramultifoco.com.br/literatura-loja-detalhe.php?idLivro=807&idProduto=832






segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A entrevista

Era um dia cor de cinza. Daquele jeito, chove não chove. Eu andava apressado, rezando para que não chovesse. Eu tinha uma entrevista de emprego e não queria chegar molhado na local. Nervoso? Não sei se a palavra seria nervoso. Eu apenas queria chegar no local e terminar logo com aquilo. Talvez fosse nervosísmo ou ansiedade. Nunca soube ao certo, como entender as minhas emoções.

Uma vez um psiquiatra disse que eu tinha questões a resolver com o meu pai. Meu pai havia morrido há 20 anos lhe respondi. Como ele esperava, que eu acertasse as coisas com o meu pai? Eu não gosto muito desses psico qualquer coisa. Eles acham que entendem a gente, que conseguem saber como nos sentimos, mas no fundo, eles não entendem nada, nem a si próprios.

O pensamento voa e o tempo também. Pensando em coisas absurdas esqueci do meu compromisso e por pouco, não me atraso para entrevista. Quando cheguei, fui logo atendido. Entrei na sala.

O rapaz se apresentou como sendo um funcionário do RH. Tinha um cara de psicólogo, com aquele olhar me analisando. Ao lado dele estava o gerente da área, para a qual eu seria contratado. Esse tinha cara de psiquiatra. Porra, onde é que eu estava me metendo. Após as apresentações, um deles perguntou-me se poderíamos começar. Respondia confiante que sim.

- Se você estivesse escrevendo um livro sobre assassinatos, qual a maneira mais assustadora que imaginaria para matar uma de seus personagens?

Eu segurei o meu espanto. Porém não pude evitar o pensamento. Que porra de entrevista é essa. Eu não me ligo muito nessas coisas. Eu seria contratado para coordenar uma equipe de técnicos de informática. O que uma coisa tinha a ver com a outra? Pensei um pouco e pensei que aquilo só podia ser uma pegadinha, pois bem eu não estava a fim de trabalhar numa empresa que ficam brincando com os funcionários, mas acima de tudo, profissionalismo. Mas tudo bem, respondi fundo e…

- Senhores, eu nunca havia pensado em ser escritor. Não tenho essa pretensão.
O outro, então me perguntou
- Então qual a maneira mais assustadora que você imagina para matar uma pessoa?

Ah, claro eu passo metade do meu tempo pensando em matar pessoas. Escritor não, assassino sim. Pensei. Não disse nada apenas sorri e comecei a imaginar como eu poderia matar aqueles dois na minha frente. Quem sabe, se eu trancasse cada um deles com dois idiotas fazendo perguntar estupidas?

Deixe-me levar pela minha imaginação e resolvi dar o meu melhor. Comecei mais ou menos assim:

Embora, eu não acredite que matar alguém seja algo que lhe assuste o defunto. Eu faria provavelmente por etapas, faria com que ele sofresse aos poucos. A primeira coisa seria identificar as pessoas que a vítima amasse. O passo seguinte seria ameça-lo. Eu imaginava um daqueles dois sendo minha vítima, e comecei gostar da ideia.

Imagine você entrar em casa e encontrar seu filho espancado no quarto e sua mulher estrupada na sala. Seria coisas que eu faria primeiro. Depois quando estivesse apenas a vítima em casa, eu entraria sem que ele percebesse, pois eu teria cópias das chaves das portas graças a um amigo chaveiro. E ficaria na cozinha da casa dele tomando café, fazendo barulhos e sairia antes que ele me visse.

Eu continuaria nessas assombração por semanas. Inventava encontros com o filho e com a esposa, em lugares onde não houvesse sinal de celular e ligaria para ele dizendo que eu os tinha sequestrado. Apenas para sentir-lhe sofrer.

Chegaria o dia, no qual teria que tirar-lhe a vida. Eu lhe trancaria em uma sala. Ele estaria preso de uma lado da sala, com uma corrente em uma das pernas. Próximo dele uma cerrote ou uma cerra. Do outro lado da sala. Haveria uma mesa e sobre ela, fósforos e recipientes com gasolina dentro. No meio dessa sala havia uma caixa d’agua. Eu não iria mencionar isso, mas caso ele não aguentasse as queimaduras, poderia tentar se salvar. Deveria decidir entre uma vida e outra.

Eu forjaria um video, no qual havia matado o filho dele e estrupado a esposa. Eu mostraria em um telão um video por vez, apenas para lhe ver o sofrimento. Então lhe diria que a única maneira para evitar o sofrimento da esposa e salvar-lhe a vida era se ele tirasse a própria vida. E para fazer isso ele deveria incendiar o próprio corpo.

Lembraria que a única maneira para fazer isso era cortar a própria perna. Um pouco clichê, mas ele precisava provar que era forte.

Eu contava que ele fizesse tudo isso e assim que tivesse prendido fogo em si mesmo eu lhe mostraria uma outra realidade.

No local onde ele estaria trancafiado, tinha uma parede de vidro. Assim que ele estivesse pegando fogo, eu lhe mostraria a família, o filho e a esposa, saudáveis, sorrindo em uma sala de espera. Diria que eles estavam esperando por mim que os levaria para casa.

Apostando quando visse sua família ele tentaria se salvar, ou quando percebesse que estaria morrendo o instinto de sobrevivência fizesse com que ele buscasse uma maneira de salvar-se. Nesse momento, eu o veria jogar-se na caixa d’agua. Mas ele perceberia que ao invés de água havia álcool líquido no recipiente.

Eu ouvi os olhares dos meus entrevistados. Eles estavam com aqueles rostos de surpresa, que ouvem o que não esperavam.
- Um pouco cruel, você não acha?
- O que posso dizer? Assisto muita TV.

Preparava-me para levantar, quado..
- Interessante. Agora gostaríamos que você listasse 5o maneiras de matar alguém com um celular.

Puta que pariu. Pensei. Que merda de entrevista era aquela, 50 maneiras de matar alguém. Eu acho que estou sendo entrevistado para matar pessoas. Bem devo estar indo bem, respirei fundo, mas meus olhos realmente queriam matar e comecei:

1) Bato com o celular múltiplas vezes na cabeça da pessoa?
2) mostro-lhe a fatura no final do mês
3) Faço o usar continuamente durante anos para que ele desenvolva um cancer
4) Quebro o celular em pedaços, alguns pontiagudos e faço a pessoa engoliar. No processo digestivo ele os pedaços pontiagudos lhe cortarão as tripas
5) Afio um das partes do celular e lhe corto a garganta… Eu sentia a raíva crescendo em mim.
6) Instalo um aplicativo que controle a sua mente e ordeno-lhe que se mate.
7) Enveneno o celular com uma droga poderosa e quando ele o tocar será contaminado
8) Tranco-lhe em quarto apenas com o celular ligado, mas sem sinal de internet. Morte por tédio
9) uso o celular como uma bomba
10) uso o celular como o alvo de um missel teleguiado
11) atiro o celular de uma altura de 20 andares na cabeça da vítima
12) ativo a rede de telefonia em um avião nos ares. Os ondas magnéticas farão com que o avião caia.
13) ativo meu aplicativo de sabre de luz e mato a pessoa
14) corto-lhe os pulsos com celular
15) Enfio-lhe o celular no cu e o deixo sangrando até morrer.


Eu não conseguia pensar em mais nada, mas olhando para aqueles dois, eu reirei o celular do bolso e joguei no rosto do mais velho. Enquanto ele se protegia, eu comecei a bater na cabeça do mais novo com uma das cadeiras e quando terminei, repetia o mesmo com o mais velho.


Estava certo que não ganharia o emprego, mas que se dane, havia descoberto uma nova carreira para minha vida. 





domingo, 22 de setembro de 2013

Até amanhã, uma herança

Dinheiro vivo, terras fecundas, imóveis em bom estado de conservação, testamento, joias, fotografias desbotadas feitas do jeito antigo à base de traquitanas analógicas e processo de revelação em quarto escuro. Aposto que a palavra herança te remete a essas figuras. Acontecia comigo, até que comecei uma fase estranhíssima de olhar para as coisas e para as pessoas de casa sem vê-las completamente. Tinha uma ponta de ausência enchendo o meu ver. Estavam todos ali, acordando, trabalhando, reclamando da falta de tempo, esperando o próximo aniversário para reunir a parentada num churrasco. Tudo criando raiz como a muda de manjericão que plantei na lata do achocolatado. Tudo por perto, mas me deixando a impressão de que me faltaria, de que terminaria a qualquer momento sem deixar fio, registro, vínculo.

Minha inicial em cursiva, cheia de voltas e um laço, num risco só. O guardanapo passado no prato antes de servir a comida no restaurante, a cor do meu cabelo, o desenho das unhas, a repulsa por queijo, a risada, uns desejos, umas melancolias. São hábitos e traços que fui pegando sem licença e passando para o meu nome. Constam no meu inventário imaginário. Não é preciso morrer para deixar legado. O herdar se faz até quando alguém toma para si uma maneira bem nossa de dizer, de fazer, de entender coisas, quando se ensina ou se aprende. Meu pai herdou o meu “até amanhã”. Não inventei a expressão, óbvio, mas costumo usar em todas as despedidas. Antes de dormir, depois do boa noite emendo um até amanhã. Digo até amanhã para as visitas, mesmo que nosso reencontro só seja possível no próximo verão. Assino meus e-mails com até amanhã. E na maioria das vezes tenho vontade, realmente, do contato no dia seguinte. Agora o pai entendeu aonde eu queria chegar com o meu até amanhã e o adotou.

Não sei explicar, mas nunca quero viajar. Evito. Nem a passeio, menos ainda a trabalho. E na segunda eu precisava participar de uma reunião na capital. Ô, saco. Final de domingo e eu com o carro cheio de mala, livros, sacos de biscoitos, muito contrariada começo a partir e o pai ali, esperando para fechar a garagem. Resmungo que não quero ir, que me dói a barriga, torcendo para que ele ainda possa me mandar ficar. Não pode. A vida adulta herda dos pais o poder sobre os filhos. Vai tranquila, filha. Dirige com calma, deixa o telefone ligado, e volta assim que puderes. Vamos te esperar com uma janta especial na quarta, lembra disso. Bufo, faço beiço e me conformo: tá certo, pai. Então, até amanhã, já que não tenho alternativa. Até, me responde, com aquele sorriso sossegado que só ele tem. Dou play na Norah Jones e sigo devagarinho, quase desistindo de andar as quatro ou cinco horas de estrada, os olhos molhados. Sou ridícula com esse tanto de apego, mas estou sozinha e me deixo chorar um pouco alto. Dane-se o rímel. Meu pai, parado enfrente ao portão, espera que meu carro suma no horizonte da avenida larga. O semáforo do primeiro cruzamento está verde para mim, é um sinal, penso. E penso pela última vez. A caminhonete no sentido perpendicular fura o vermelho, me atravessa e fim.





sábado, 21 de setembro de 2013

O Sósia

Tratava-se de um cidadão comum. Tão comum que invariavelmente pessoas com quem nunca havia esbarrando o confundiam pelas ruas.
 “Você não é o primo do Valério, que trabalha na Prefeitura?”
“Calisto! Há quanto tempo!”
 Alguns aceitavam sua negativa, cobrindo-lhe de desculpas.
“A senhora deve estar fazendo confusão com outra pessoa.”
 “Não, meu nome não é Calisto.”
Outros, desconfiados, seguiam seus caminhos aborrecidos, creditando soberba a recusa da confirmação de uma suposta identidade. Essas confusões acerca da sua fisionomia causavam-lhe desconforto. Seria um tipo bastante ordinário para ter o rosto associado ao de tanta gente? Procurava respostas toda manhã mirando o espelho após o despertar. A imagem refletiva exibia uma face despida de qualquer atrativo e o conjunto era insípido. Durante anos procurou modificar a mesmice, ora adicionado, ora livrando-se da barba. Tentava ainda inúmeras combinações com o bigode, cavanhaque ou costeletas.  Modificava sobrancelhas e o corte de cabelo sem resultados. Nas ruas sempre havia alguém atribuindo seu rosto ao de outra pessoa.
Encarava com certo desânimo, leve tormento até, a insólita situação até o dia em que, confundido com certo ator da moda do qual nunca ouvira falar, foi rebocado para a cama de uma fã. Entre gozos e gemidos, admitiu ser quem não era.
Entusiasmado com a prazerosa experiência, decidiu então atirar pela janela os escrúpulos e iniciar particular desafio. Colecionaria cem sósias, cem faces iguais a sua. Uma cópia que nunca seria apresentada aos seus originais. Nem necessitava: proprietário daquele rosto bizarramente vulgar, o mesmo era a síntese de todos aqueles por quem se passaria. Também não forçaria possibilidades, afinal, partiria sempre do outro o reconhecimento. Seria sim um impostor, ainda que involuntário,
Em um caderninho, anotava quando o confundiam. Foi Genésio, Orlando, Alfredo, Marcelo, Carlos, Toninho, Fernando, Roberto, Zé, Lucas, Diego, Durval, Maurício, Bruno, Vargas, Cleber, Montenegro, Julião, Barroso, Alexandre, Humberto, Matheus, Luis Cláudio, Andrezinho, Pedro, Gustavo, Demétrio, Celsinho, Ferdinando, Everaldo, Zacarias, Márcio, Júnior, Vasconcellos, Felipe, Filipe, Jonatas, Emerson, Miguel, Cosme, Damião, Ricardo, Geraldo, Wilson, Norberto, Bechara, João Victor, Amadeu, Nelson, Haroldo, Alberto, Zenóbio, Cristiano, Eduardo, Francisco, Adriano, Juvenal, Giovani, Laércio, Fábio, Clemente, Anderson, Clayton, Jurandir, Ronaldo, Rodrigo, Ulisses, Dionisio, Cabrera, Augusto, Érico, João Baptista, Lopes, Ignácio, Jairo, Abraão, Nilson, Sebastião, Henrique, Lineu, Betinho, Túlio, Roberval, Joel, Almir, Diogo, Patrício, Magno, Elimar, Américo, Teófilo, Lauro, Samuel, Éverton, Cassiano, Marco Aurélio, Douglas, Otávio e Leverkurdison, sim, Leverkurdison.
O centésimo equivocado o abordou no interior de um boteco próximo à sua casa. Cara amarrada, o homem questionou se o impostor dele guardava lembrança.
“Não me recordo. E o senhor? Me conhece?”
A resposta chegou por intermédio dos tiros que atingiram sua face desfiguraram-lhe o rosto. Velório de caixão fechado, tal o estrago provocado pelos projéteis. Agora sem rosto, sete palmos abaixo da terra, nunca soube o nome de seu centésimo sósia.
Graças à incrível semelhança, Noronha, atuante estelionatário, livrara-se das balas a ele originariamente encomendadas e continua por aí, aplicando um sem número de golpes. Era absurda a quantidade de disfarces e documentos falsos que Noronha utilizava. Nunca foi descoberto.






sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Dois saquês

Martinha e Fernando entraram no japa. Foi ela quem tomou a iniciativa.
Como sempre.

- Boa noite, a gente gostaria de um tatame.

A falsa gueixa de passos curtos levou o casal gentilmente a um canto do restaurante,
onde havia dois tatames separados por um biombo de palhinha. Tiraram os sapatos,
acomodaram-se no da direita, esticaram as pernas, espreguiçaram-se entre as almofadas.

- Por favor, dois saquês gelados, para começar.
- Como é que você sabe que eu quero saquê, Martinha? 
- Você sempre quer saquê.
- Hoje eu queria uma coisa diferente.
- O quê?
- Eu mesmo pedir meu saquê.

Mais dois saquês.
Atracados à barca de sushis e sashimis, Martinha e Fernando mal se falavam.

- Cheira aqui, Martinha… esse atum está meio passado.
- Psss, Fernando… fala baixo.
- Mas não falei nada de mais…
- Psss… estou ouvindo a conversa ao lado.
- Que mania, Martinha… Para com isso.
- Psss, estou reconhecendo essa voz… meu ginecologista!
- Que %$#&@ é essa, Martinha? Não era a Dra. Esther Basbaubabaum, Basba… 
sei lá o quê?
- Psss, fala baixo… eu mudei. A Esther fez uma barbeiragem com a Lucinha.
- E isso é motivo para você ter um ginecologista homem?
- Fernando! Está com ciúme do meu ginecologista? Era só o que me faltava. 
Que doença! Ciúme do dentista, ciúme dos meus ex-namorados, ciúme dos colegas do trabalho, 
ciúme do motorista de táxi, ciúme do professor de natação do Nandinho… Vai se catar, Fernando, 
vai fazer seu exame de próstata! Está mais do que na idade!

Mais dois saquês.

- Martinha, você me ofendeu. Você sabe que não admito nem supositório. 
- Fernando, seu burro, o tatame ao lado deve estar às gargalhadas ouvindo sua estupidez.
- Eles nem estão prestando atenção na gente. Seu ginecologista é que deve ter reconhecido a sua voz. E deve estar pensando na última consulta. Quando foi?
- Ontem. Ontem à tarde, e daí?
- É por isso que você não quis transar comigo à noite. Estava saudosa daqueles dedos longos, 
curiosos, investigativos… Essas mulheres… A ex-mulher do Walter, a Verinha, jogou na cara dele 
que tinha orgasmos com o ginecologista. Era só tirar a calcinha, vestir o avental ridículo, 
abrir as pernas e já começava a gemer baixinho, antes mesmo do cara vestir as luvas. 
Mulheres. Depois dizem que homem não presta.

Martinha baixou a cabeça. Silêncio. Os olhos se inundaram. Bebericou um tantinho de saquê,
olhando de viés para o infinito das tramas do chão do tatame.
Nada mais desconcertante para Fernando do que ver a mulher magoada. Aconchegou-se ao seu lado,
passou o braço pelos seus ombros, encostaram-se as cabeças.
Mais dois saquês.

- Desculpe, Martinha. Acho que foi saquê demais.

Martinha esboçou um soluço. Mas não desarmou o bico.
- Tudo bem, Fernando, tudo bem… 
- Desculpe, Martinha... não fica assim. Foi só um comentário infeliz.  Martinha… 
olha para mim... prometo não magoar você, prometo me cuidar, prometo me curar…
- Fala baixo, Fernando. 
- Prometo falar baixo… prometo tudo...
- Tudo? 
- O que você quiser., meu anjo.
- Descobre o telefone da Verinha. 





terça-feira, 17 de setembro de 2013

A caneta






                 Achei uma caneta em casa, quando eu era criança. Estava precisando de uma, e peguei essa. No dia seguinte, minha mãe viu a caneta no meu estojo, e perguntou, séria: o que a minha caneta está fazendo com você? Eu respondi: ah, eu peguei, estava aí por cima. E ela: quem disse que você pode usar essa caneta? E pegou-a de volta. Ela me contou que era um presente do pai dela, não me lembro o motivo da comemoração. E ela fez certo. Eu teria quebrado. Emprestado. Perdido.





segunda-feira, 16 de setembro de 2013

As meninas do viaduto



Nem sei quantas noites faz que o farol do meu carro bate nos mesmos corpos  franzinos das meninas do viaduto. Há muitos anos, faço sempre este caminho para casa, todas as noites. Vou enxergando as silhuetas magras, quase  desnutridas, que  se  destacam na imundície da calçada. Sempre juntas, como pombas em bando, seriam meninas não fosse o sexo que já carregam rompido entre as perninhas malfeitas. Uma come pirulito, toda noite; outra, aninha uma boneca no colo. Duas, mais novinhas, vivem abraçadas, mesmo com tempo quente. Todo ano, percebo  que  algumas sumiram, algumas pintaram o cabelo, outras deixaram  de  sorrir.  Já  encontrei uma delas, moça feita, disputando o ponto com um travesti numa rua de comércio. Reconheci por um defeito no braço.
Observo o cafetão que não trabalha. Sentado na grama, ao lado de uma mulher  adulta, vigia disfarçadamente as meninas e, quando a polícia passa, finge ser o pai de uma família necessitada. A polícia também finge.
Do sinal fechado, eu fico vendo que, de tempos em tempos, uma das mais velhas vai lá e entrega ao homem um monte de notas miúdas. Depois, volta para tomar conta das outras. Descobri que essa menina mais velha é poupada dos programas. Só vai se o cliente exigir. Sua obrigação é fazer com que as menores  trabalhem. Faz tempo também que eu percebi que o pirulito serve para amansar o choro. Já a rebeldia é impedida com porrada mesmo. Briga de meninas de rua: quem dá bola?
Meu carro não desperta interesse. As unhas pintadas e os requebros caricatos se assanham somente para os homens. Qualquer um. Uns meses atrás, dei um flagrante. Só vi a mão chamando da janela de um carro, balançando a ponta de uma nota de R$10,00. A menina entrou no veículo rapidamente e eu não tive tempo de ver mais nada.
Semana passada, parei pra conversar com elas. Fiquei com medo do cafetão, mas segui a regra: paguei adiantado com uma nota de R$20,00. Nas minhas contas, dava para dois programas. Depois que o dinheiro trocou de mãos, ele nem se preocupou mais em saber o que eu queria. A regra é simples: a pequena recebe, a maiorzinha recolhe. Daí, a pequena entra no carro. É tudo num piscar de olhos. O carro fica parado, de faróis apagados, e ninguém que passe por ali tem coragem ou interesse de olhar lá dentro.
De perto, elas são ainda mais novas. Meu carro ficou com cheiro de álcool barato e de uma outra coisa que não identifiquei. Talvez thinner, talvez outro solvente. E antes que eu pudesse lhe dizer que só estava ali para saber da vida dela, fui avisada: 
— Tu não pode me apertá com força, nem batê. Pode mexer aqui em cima, ó... Mas  lá  em baixo tu só pode oiá. Se eu gritá o tio vem atrás de tu, viu?
Não tinha mais criança ali. 
De  repente, me deu vergonha de alguém me ver com aquela menina no carro. Todo o mundo sabe o que fazem os carros que param e apagam os faróis. Eu sei.
— Vai ficá aí me espiano, é, tia? Se não andá logo o tempo acaba. 
Antes do tempo acabar, meu estômago embrulhou. A maiorzinha chegou de novo perto do carro e eu estiquei a mão pra fora com outra nota de R$20,00. Não dava pra ir embora antes de saber se ainda tinha alguma coisa inviolada na menina. Nada. Dela só arranquei que queria crescer pra trabalhar numa boate e dançar em cima de um palco em forma de queijo, com um mastro pra agarrar com as pernas e ficar rodando, de biquíni prateado, bota e peito de fora. Queria ganhar um dinheiro só pra ela.
As meninas não chegam nem perto dos dez reais de cada programa. Ganham balinhas, bonecas baratas e uma noite de sono tardia numa cama de barraco. Isso se não for noite de o cafetão aparecer pra “conferir a mercadoria”.
Quando levantei a mão para afagar o cabelo da pequena, me lembrei que qualquer  gesto seria  mal-interpretado como uma  carícia  sexual. Parei a mão no ar e comecei novamente a sentir ânsia. Não tem coisa que me deixe mais impotente do que uma criança corrompida. 
— Tu não é cana que eu sei... Mas tu deve ser dessas muié que qué tirá a gente da rua, né?
Quem dera! Parei no ponto delas por curiosidade. Para fingir que me importo. Para ser diferente de quem passa e vai embora. 
Depois disso, me afastei do viaduto das meninas por várias semanas. Mas acabei voltando, porque continua a ser o caminho mais curto até em casa. A  cada  vez  que  o  sinal  fica  vermelho,  o  cafetão  se  levanta  e  fica  me  encarando  até  eu  ir  embora.  Não  sei  por  quê.  Eu continuo inútil.

(Esta crônica faz parte do meu livro "Do todo que me cerca", lançado em 2012 pela Editora Patuá, São Paulo, Brasil)





sábado, 14 de setembro de 2013

chapéu verde

...nem estava despida nem com roupas que se pudesse dizer a noite passada passou-a numa cama, ali dentro, dormida entre pacientes, entre aparelhos com sinais de luzes a dizerem se as tripas funcionam a preceito, se tem açucares e oxigénio em doses justas e os colestróis em níveis decentes.
    Ela vestia calças de ganga muito justas - azuis- e uma camisola verde a marcar-lhe as mamas, e tinha um blusão em cabedal castanho que descaía no braço da cadeira: coisa de corte duvidoso tal como as botas com tacão do tamanho do meu palmo bem esticado, num castanho semelhante ao blusão, que era mais um amarelo caca. 
   Dormitava quando me sentei. Eu a sentar-me a seu lado na cadeira que sobrava. Eu a medo: com licença. Eu com todo o cuidado e ela a remexer o corpo magro. Senti-lhe o cheiro que era um perfumezito sem destino em prateleiras que não fossem as de um qualquer supermercado.
   A mulher que tinha rimel nas pestanas e batom a cobrir-lhe os lábios - encarnado - não estaria ainda na casa dos quarenta, teria até muito menos, não fosse aquele leve traço - reparei que tinha um de cada lado dos lábios - e um plissado, ainda que suave, no canto dos olhos que ela manteve fechados apesar do ruído que troava no corredor feito sala de espera. Um corredor apinhado: doentes recebendo líquidos vertidos de saquinhos transparentes, caras de estar fartos, caras de estar doente, e havia-as, também, de quem está velho.
    Os médicos esgravatavam por ali e os técnicos e os enfermeiros.
   Um relógio especado na parede assinalava, mudo, a passagem lenta, imensamente demorada, do tempo que pesava como se fosse um suor de trabalhos forçados, e seria dele que o ar semelhava pejado de maus gases - como custava respirar.
   Ela remexeu uma mão sem anéis nem pintura nas unhas e eu vi-lhe o relógio, uma coisa enorme com ponteiros a navegarem entre números escritos a vermelho sobre fundo azul. Estava parado nas duas de um qualquer outro dia que não este, que era meio dia e treze no relógio da parede.
   Natércia Pimentel, chamou a enfermeira e ela endireitou-se, abriu os olhos que eram enormes e de um azul de céu ensolarado, e ficou a agarrar a napa preta do cadeirão como se fosse a amurada de um navio de onde olhasse, incrédula, que a chamavam do cais.
   A enfermeira era tão bonita e tão menina, a olhar a mulher e a dizer: venha comigo.

   Eu sorri e ela piscou-me os olhos como a responder, e sorriu também, a afastar-se. Só então lhe vi o chapéu de feltro. Verde. Igual ao tom da camisola. Um chapéu que ela tinha enterrado quase até aos olhos.  Um chapéu a não deixar desvendar a cabeleira, a tapar, diria eu, um cabelo que seria em cachos de vermelho, ou em doirados, ou negro atado em duas tranças. 
   Assim pensei eu a olhar o chapéu da mulher colocado como se quisesse esconder.







quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Uma Manhã no Museu

         
         Fevereiro de 2013, primeiro dia de carnaval. Uma roda de amigos, em um boteco, na Lapa...
 – Cara, é uma história mais louca que a outra... E vocês lembram quando a gente fomos pra Petrópolis, na sétima série?
 – Porra, a gente fomos, Adalberto?
– Ué, e não fomos?
– Me arrependo amargamente de ter te passado cola de Português em todas as séries... Desce mais uma gelada aí, garçom, porque depois dessa...
 – Ah, fala sério, Carlinhos, isso aqui é papo informal!
Todos concordam com Cremilda que, apesar do nome, era a mais linda daquele círculo de velhos amigos. Quando mais nova, era chamada de tábua.
– Santo bullying... Não fossem as nossas brincadeiras, hoje a Cremilda não teria esses belos peitos siliconados... – Assanharam-se os rapazes, tão logo Cremilda chegou.
         Entre umas e outras goladas e fisgadas nos petiscos, as histórias daquela turma fluíam saborosamente, ao som das batucadas carnavalescas que tomavam as ruas.
– Aquela viagem foi uma mesura... – Gracejou Alessandra.
– Não tem como se esquecer de Petrópolis. Sétima série, 1989: a famosa viagem ao Museu Imperial... – Rememora Carlinhos, envolto a um ar nostálgico.
 – Carlinhos Peidorreira, tu ganhou esse apelido lá!
– É, e depois pra disfarçar aquele mico, ficou inventando um monte de histórias, uns papos brabos... Virou até caso de psicólogo, né, Peidorreira?
– Eu não inventei nada, gente. – Afirmou, numa seriedade nada condizente com o momento. – Eu conversei com ele!
         Entre risos aprisionados e olhares espantados pela, ainda, convicta resposta do antigo colega de classe, surge um comentário infeliz:
– Eu nem me lembro desse caso direito, tava agarrando a Lurdinha no jardim do Museu... O que rolou mesmo?
         Lourdinha lança um olhar reprovador para Sávio. Agora, a “iniciadora” da turma era uma “mulher de Deus”, daquelas que trocam as camisinhas XL por bíblias em miniatura na bolsa. Aceitou o convite daquela reunião “por um ato extremo de bondade”, desde que ninguém a obrigasse beber cerveja, brincar de salada mista e levantar seu passado profano.
 – Vou lembrar a todos vocês o que realmente aconteceu comigo naquela manhã no museu...

        1989

O Museu Imperial era a primeira viagem escolar daquela turma, recompensando o bom rendimento em sala de aula.
– Esta é a Coroa do Império do Brasil, fabricada pelo ourives Carlos Martin. Adivinhem quem usou esta coroa? – Apresentou a guia, entrosando-se com as crianças que observavam boquiabertas o brilho da coroa imperial.
– Alguém muito rico!
         – Seu burro, claro que foi alguém muito rico, essa coroa é de ouro!
         – Minha avó também tem uma joia de ouro e não é rica, tá?
         O cofre dos Orléans foi a grande atração.
– Que deve ter dentro daquele cofre? A senhora sabe, professora?
– Sei não, Cremilda... Por que não usa sua imaginação, hein?
– Cofre é pra guardar dinheiro, sua tábua! – Ataca Sávio.
         E dispararam as gargalhadas. Até que um fenômeno sobrenatural invadiu aquele meio...
– O cadáver de D. Pedro tá enterrado aqui? – Indagou um dos alunos, aparentemente zonzo.
Um odor jurássico tomou conta das narinas de todos. A jovem professora, constrangida, percebeu que tinha de tomar uma atitude enérgica.
– Quem peidou? Eu exijo que o culpado levante a sua mão amarela, agora!
         Silêncio... Um olhando para a cara do outro... Carlinhos cerrou os olhos e, não resistindo, entregou-se da pior maneira possível. O que teria de ser discreto amplificou-se pela acústica privilegiada que os salões do museu proporcionava.
– Foi o Carlinhos! Carlinhos é um peidorreira!
– Carlinhos Peidorreira!
         Os colegas assuavam e riam do pobre flatulento que, trêmulo, cobria o rosto com as mãos.
– Carlinhos!... Você... Você não tem respeito não?
– Tenho só dor de barriga agora, professora...
– Vá ao banheiro, siga por aquele corredor e vire à direita. – Orientou a guia.
         Carlinhos saiu correndo dali, vermelho como o quê. Entrou no banheiro secando as lágrimas silentes. Acomodou-se em um dos lavabos, com o rosto mergulhado nas mãos. “Quanto vexame, maldita fritada do café da manhã...”. Até que ouviu um estrondo próximo à sua porta. Assustado, manteve-se quieto, sentado à privada.
– Santa Maria, vim parar na boca do inferno! Que odor, que odor! Serão meus sovacos?
         Era uma voz masculina, de sotaque português. Curioso, Carlinhos encerrou os serviços fisiológicos e abriu a porta, lentamente.
– Que diabos faz em meu palácio, puto?
         D. Pedro II arrancou a espada da bainha, apontando para o menino. Carlinhos abriu um sorriso nervoso, fixado naquela figura icônica.
– Puto não é um nome feio pra ser dizer, senhor?
– Ora, pois! Feio é invadir meu palácio e ainda infestá-lo com este cheiro de cagalhão!
– Seu figurino é excelente, parabéns. E o senhor é bem divertido também.
– Quem pensas que sou, seu puto? – Cofiando o denso bigode.
– Um daqueles atores que se veste de palhaço, Mickey, um monte de personagens, só pra fazer as crianças se sentirem bem em lugares chatos e tristes, como num museu, por exemplo...
         D. Pedro II recua a espada, notando a inocuidade do menino.
– Ora, pois, sou o imperador... Vim de longe, de um tempo distante. Acionei a máquina do tempo para que me transportasse de volta ao meu adorado palácio de veraneio, pelos idos de 1880... Contudo, pelo o que vejo... Tudo se perdeu, tudo!
– E de que tempo o senhor vem?
– O tempo oscila em demasia para mim, rapagote. Vou, volto, cá e acolá... Da última vez, creio que tenha andado pelos idos do ano 2000... Não me recordo ao certo, sinto uma forte vertigem... Ora, lembro-me que parecia Sodoma, em plena balbúrdia e depravação! Miúdo, a conversa é prazerosa, todavia, não tenho muito tempo. Preciso ir até o meu quarto tirar uma pestana antes da próxima viagem. Até mais ver!
         Carlinhos acena um adeus, sorridente. A presença daquele personagem fez com que seu ânimo se elevasse novamente. D. Pedro II se retira do banheiro

2013

“... Então eu voltei para o salão, depois fomos aos quartos do imperador, da princesa, de todos! E nada de encontrá-lo... E tem mais, vocês lembram que a guia garantia pra gente que não tinha nenhum personagem pra alegrar as crianças!”
– Que viagem, Carlinhos, que viagem... – Pondera Cremilda – A professora pediu pra eu usar a imaginação com o cofre, e quem usou foi você! Você teve um transtorno, sua imaginação criou um pretexto para se sentir alegre de novo. É super natural entre crianças esse lance de amigo imaginário...
– Só porque se formou em Psicologia vem com esse discurso... Bem, me deem um minuto, vou ao banheiro e já volto.
– Ih, lá vai o Peidorreira!
         Era de praxe: bastava entrar no banheiro, seja qual fosse, ou quando, ou como, que aquela figura imperial reabitava sua memória, de modo que o intrigava cada vez mais.
         Seus amigos estavam a gozá-lo à mesa quando Alessandra aponta, intrigada, para um transeunte n’outra calçada, em meio a multidão extasiada.
– Gente, aquele homem tá fantasiado de D. Pedro II, não tá?
– Ah, galera, sem neura... É Carnaval, se esqueceram?
– Olha, ele parece bem perdidão... Gente, que figura!
         Lurdinha, atônita, solta um “Em nome de Jesus, tá amarrado” e vira um copo de cerveja de uma só vez.
Carlinhos retorna do banheiro e logo é surpreendido pelo galhofeiro Adalberto. – Peidorreira, adivinha só quem passou por ali agora? 

(LOHAN LAGE PIGNONE)








quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Eu não gosto de pessoas




 

Eu vejo você
Não é você? Então, quem é?

Eu não gosto do que vejo
Eu não gosto de pessoas
Estou enjoada
o mijo da leoa enfeitiçou o leitão
que está agora fritando no fogo

Eu sou vegetariana,
que se dane o leitão
eu quero que consertem minha rua
que está esburacada e escura

falta luz
reclame do seu dia a dia
bom dia
eu não gosto de pessoas


                                                                           
                                                                               The End
                   





terça-feira, 10 de setembro de 2013

Não tenha pressa


Para Phillipe

Sinto decepcioná-lo, mas não sou o mais sábio, tampouco o mais experiente. Gostaria de ter tanto mais para ensinar-lhe, mas, assim como todas as demais pessoas, sou limitado e imperfeito. E está tudo bem, pois isto é inevitável.
É inevitável que não saibamos, que tenhamos incertezas, que sejamos em vários momentos oprimidos pelas dúvidas e pelo medo.
Por isto, eu lhe digo: não tenha pressa.
Tudo se resolverá com o tempo, e, se não se resolver, é porque não tinha solução mesmo.
Se eu tivesse de lhe deixar um único legado, seria este conselho: não tenha pressa. Pois a vida é curta demais, frágil demais, insignificante demais. Hoje, está. Amanhã, não mais. Todos passamos e todos passarão, mas o tempo permanecerá seguindo adiante mesmo que não haja mais ninguém para computar os dias, meses e anos.
Não tenha pressa.
Viva cada instante e vivencie-os. É muito fácil ignorarmos as pequenas belezas cotidianas, enquanto miramos sonhos vindouros. O futuro está no futuro. Jamais chegará. É no presente onde nossas vidas se desenrolam. É no agora que nos encontramos e nos alegramos e sofremos. Por isto, não tenha pressa.
Sei que chegará a época na qual você será tomado por angústias do tamanho do mundo, quando seus objetivos parecerão inatingíveis e você chorará sozinho escondendo as lágrimas.
Alguns projetos realmente são irrealizáveis, mas não há como evitá-los e você só descobrirá isto na derrota. Não tema fracassar. São as perdas que concedem maior valor às vitórias. 
Não tenha pressa. Por mais que você caia, caia e caia, se você tiver paciência e determinação, fatalmente conseguirá se erguer e caminhar.
Hoje, você é tão pequenininho que até comer é um desafio. Este desafio será substituído por outros inúmeros, que sempre darão a impressão de serem muito maiores do que você. Não tenha pressa. Tente, erre, acerte. Aos poucos, você criará sua própria história e, ao olhar para trás, verá que tudo foi como teve de ser. Talvez até se arrependa de algo, mas terá de conviver com isto. Não se pode mudar o passado e, para muita gente, esta é a mais triste das verdades.
Não tenha pressa, pois a vida aparentará ser longa em vários momentos críticos. A chegada da idade adulta parecerá tardar demais. A tristeza parecerá interminável. O amor, que nunca virá. Que as dívidas são impagáveis. Todavia, você verá que tudo aos poucos entrará nos devidos lugares, que os medos eram ilusórios, que muito se resolve por conta própria, às vezes sem empreendermos esforço algum. Simplesmente ocorre.
Não tenha pressa e não desista. Muitos lhe dirão que não é possível, que você não foi feito para isto, que a vida não é assim. Você pode ouvi-los e se acomodar, passando o resto de seus dias remoendo migalhas. Ou você pode prestar atenção a mim e persistir, pois eu lhe digo que vale a pena e que o segredo está na persistência. Portanto, não tenha pressa.
Talvez, com o tempo, você consiga. Talvez não, mas está tudo bem também, pois assim é a vida.

Não tenha pressa, ou melhor, apresse-se.
Apresse-se para viver o hoje, para amar, para ser feliz, para beber todas as experiências e levá-las consigo na memória.
Apresse-se para descobrir quem você é, qual é a sua essência única, que o distingue dos demais, pois eu lhe asseguro, ninguém mais neste mundo é como você.
Apresse-se para ouvir, ver, ler, comer, conhecer pessoas, viajar, mergulhar de cara na vida e descobrir o que ela tem de melhor e de pior. Apresse-se para ter discernimento, possivelmente uma das qualidades mais essenciais.
Apresse-se para sorrir, pois a vida é fugaz como um relâmpago.
Apressar-se e não ter pressa não são oposições. Pertencem às nossas contradições humanas.
Deixo-lhe estes conselhos, mesmo sabendo que talvez você não os escute, mesmo que você venha a desconfiar que eu não esteja vivendo sob tais preceitos.
Então, um dia, você também terá um pequeno nos braços e desejará poupar-lhe de todos os sofrimentos e mágoas. Também se sentará e refletirá sobre uma porção de advertências, de admoestações, de ensinamentos. Também se sentirá impotente, como se estivesse tentando abraçar o ar.

Neste dia, você se recordará de mim.

Madri
06/09/2013