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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Agenda encontrada numa ribanceira da Serra do Açor


Dia 10/8/16
Mais uma vez — como todos os verões — vim passar duas ou três semanas na minha terra, esta lindíssima vila de xisto e granito no vale do Alva. Como é bom rever e reviver as paredes de setenta centímetros da minha casa rústica e a sua frescura interior. E espero encontrar os amigos e os familiares, mesmo os emigrados, que “obrigatoriamente” aparecem no verão. Todos querem aproveitar a reunião inusitada para animar a vila com festas, encontros e comezainas.
Como desde há três anos, vou a um almoço dos nascidos em 1944, à semelhança do que fazem os nascidos noutros anos. O almoço é o pretexto para o encontro e a partilha da alegria de estar (ainda) vivo. Reveem-se os conhecidos, reconhecem-se as parecenças antigas por baixo das rugas modernas dos que vêm pela primeira vez, atualiza-se a fisionomia que cada um guarda do outro.

Dia 14/8/16
O Nunes está todo encarquilhado. A Georgina agora é loira.
Lembras-te daquela vez que te abri a cabeça à pedrada? — perguntou-me o Ramos.
Lembras-te de me fazeres serenatas, mais o Manel da biciclete? — tentou a Marisa.
As lembranças são um amontoado de tralha pessoal inútil, falsificada pelas ruminações, em que não consta a maior parte dos registos que os outros guardaram. Lembro-me dos folhos da Matilde, na igreja; lembro-me das reguadas que apanhei por causa do Zé Caçoila. O resto? Sei lá! Deve ter acontecido, se eles o dizem... O mais importante mesmo deve ser o encontro com pessoas do mesmo grupo etário. Ainda que não nos lembremos uns dos outros, temos lembranças no mesmo contexto, porque vivemos no mesmo ambiente, em certo tempo, mas, se calhar, o mais importante é que somos da mesma idade. Como estamos a viver a nossa reforma, a nossa velhice galopante? Vivemos para o futuro ou do passado?
Vocês viram ontem a chuva de estrelas cadentes? ― lançou um tipo de cabelo branco, mas ainda farto, quase à minha frente.
Quando? Ontem? Não soube de nada! ― disse uma. ― Eu à noite vou para a caminha ― respondeu outro. ― Chuva… ― desdenhei eu. ― Estive uma hora num caminho escuro da serra, mas só vi umas cinco.
Aquilo é um espetáculo fabuloso, não achas? ― prosseguiu o aficionado sideral, dirigindo-se-me decididamente.
Acontece todos os anos por esta época, não é? ― comentei, tentando mostrar algum conhecimento. ― Parece que são meteoritos que vêm da constelação de Perseu.
Não é bem assim ― contestou ele, sem alarde. ― São restos da cauda de um cometa que passou por aí.
Interessas-te por astronomia? ― perguntei, meio que para fazer conversa.
Eu interesso-me por tudo ― afirmou, categórico. ― Tem de ser, se não quero deixar enferrujar os neurónios.
Os outros tinham-se entretanto alheado da conversa, que se tornara nossa, e falavam dos colegas que tinham morrido, desde o último almoço.
Já viste o que nos espera, se não nos soubermos precaver? ― insinuou, apontando os circunstantes com o queixo.
No resto do almoço, tornou-me seu cúmplice num discurso de meias palavras, que se tornou enfático quando, após os pratos quentes, deambulámos pelas mesas dos queijos e dos doces:
Convence-te! Nós pertencemos à praga grisalha que só atrapalha. Cada vez somos mais a papar reformas. Que país é que aguenta isto? Passeamos, banqueteamo-nos, consumimos e não produzimos nada, já viste? Que planeta é que suporta isto? Não há recursos que aguentem. Somos uma praga.
Recebemos reformas, mas trabalhámos para elas ― tentei argumentar.
Mas agora somos uns inúteis. Uma sociedade bem organizada, sem tolerar desperdícios, devia descartar esta praga.
Mas isso é fascismo! ― indignei-me. ― Felizmente que a esperança de vida aumentou! Querias instaurar uma espécie de eutanásia por caducidade de prazo da validade produtiva?
Olha, porque é que não vens almoçar connosco um dia destes? Tenho um refúgio paradisíaco nos altos da serra do Açor. Podíamos falar deste e doutros assuntos aliciantes que ameaçam a Humanidade.
Apesar da minha relutância inicial, dei por mim a sentir uma curiosidade genuína pelas ideias dele e pelo modo de vida que levaria no tal refúgio serrano.


17/8/16
Às onze apresentei-me em Vide e fui conduzido por um trilho de terra batida que serpenteava pelas faldas da serra até desembocar numa espécie de côncavo arborizado com umas vistas de tirar o fôlego. O local parecia uma quinta de experimentação pecuária e botânica. Vários animais estavam confinados a espaços criteriosamente concebidos, em microambientes bióticos, com plantas específicas para cada animal. Alguns pareceram-me ligeiramente mutantes, como um, semelhante a um pequeno urso, que se alimentava de cenouras.
Conseguimos produzir cenouras com um alto teor de proteínas. A carne vai tornar-se um bem escasso num mundo como o nosso ― argumentou o Martins, o nome do meu insuspeito amigo de infância.
A esposa tinha preparado um almoço delicioso, com beringelas que sabiam a salsichas alemãs, beterrabas amarelas, com sabor a pato, e carne de cabrito que sabia mesmo a cabrito… Com sabor a vegetais, havia outras iguarias muito desleixadas pela maioria dos produtores agrícolas: figos de cato, juncos e fatias de uma espécie de meloa vermelha.
A conversa decorreu animada, mas encaminhou-se para rumos totalmente inesperados, apesar da conversa no almoço dos contemporâneos.
São versados em teorias da conspiração. Afirmam que os governos mundiais estão tomados por interesses estranhos, e que usam muitas técnicas de condicionamento. Dizem que os aviões dos governos espalham químicos na atmosfera, para nos tornar dóceis; que estão a ser aplicados “chips” nos recém-nascidos para monitorização de tendências antissociais; que existem muitos extraterrestres no planeta a preparar a invasão, com a conivência dos governos; que eles querem invadir o nosso planeta, porque ainda não conseguem produzir a carne que os nossos animais produzem com tanta facilidade.
Eu reagi, mais divertido do que assustado:― Mas por que é que vocês suspeitam disso tudo? Têm alguma prova de qualquer dessas teorias?
Então o meu amigo de escola primária, de quem eu não me lembro, abriu-se em revelações, talvez por achar que eu não iria acreditar nele, talvez porque não tinha nada a temer. Disse que, na verdade, ele e a mulher são extraterrestres; que estão na Terra outros duzentos mil; que a vida no seu planeta se tornou assustadoramente claustrofóbica, devido à praga grisalha que lá se tornou quase imortal; que a absurda quantidade de carne necessária à alimentação de tanta gente obrigou-os a socorrerem-se de outros mundos; que a obtenção de carne humana é a prioridade atual, dado o seu sabor sofisticado, parecido com o do cabrito, mas queixou-se da imprevisibilidade do fornecimento proporcionado pelas guerras.
Eu estava abismado, mas arrisquei uma piada, para amenizar a situação:― Caramba! Ainda bem que eu já não sou novo e que a minha carne deve ser rija. Só se fosse para ensopado de bode...
Eles não riram com a piada, ou antes, pareceu-me detetar um ténue e síncrono sorriso a iluminar-lhes o rosto. A conversa alongou-se ainda por várias horas, apesar de alguma inquietação latente minha, mas eles continuaram simpáticos e hospitaleiros. De tal modo que aceitei o convite para jantar e dormir aqui esta noite, neste paraíso natural e incrivelmente sossegado.
Estou a ficar com sono, mas não quis deitar-se sem registar os eventos deste dia incrível, enquanto ainda estão frescos. Amanhã podia não me lembrar.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Fernando Botero, Casal, 1999.

* * *
(Este conto integra a coletânea A Arte do Terror — Volume 4, da Elemental Editoração, 2017, pp. 174–176.)


* * *





quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Trova premiada em Cuba






domingo, 20 de agosto de 2017

ELISE

Hoje não tem conto. Nada de ficção, nada de invencionice. Talvez um ou outro número
impreciso, alguma cronologia fora do lugar, desimportâncias, enfim.

Fui acometido de uma vontade de desengasgar um personagem que durante tempos
frequentou a minha infância e adolescência como uma irmã que não tive
(só vim a conhecer o amor fraternal de verdade aos 21 anos) ou como uma companheira,
testemunha, cúmplice, sei lá, das minhas primeiras descobertas da vida,
nas quebradas da década de 50 para os anos 60: Elise.

José meu pai era fazendeiro, hobby quase profissional que mantinha em paralelo à sua
carreira sob o protetor e provedor Banco do Brasil. A fazenda era bem próxima ao Rio e
como todo fazendeiro, mantinha famílias de peões que trabalhavam na propriedade.
Uma dessas famílias era constituída por uma senhora de uns 40 anos, de nome Iraí,
abandonada pelo companheiro, alcoólatra (ele e ela), que vivia num casebre de
pau a pique e sapê, onde cuidava como brava boiadeira de um curral de triagem no meio do mato.
Dona Iraí, mãe de dois casais de crianças: Elvino, Edino, Elise e Eliete, trabalhadeira de dia,
bebum à noite, criava a prole ao Deus dará, sendo que os meninos mais velhos já se
encaminhavam para os Batalhões de Infantaria da região. Restavam as meninas. Meu pai e
uma de suas seis irmãs resolveram criar as quase mocinhas de Dona Iraí. Elise aos 9 anos
foi lá para casa e Eliete, de 8, para a casa da minha tia.

Eu tinha 6 anos quando Elise chegou num fim de tarde de domingo, carregando roupas e coisas numa sacola das Casas da Banha e um par de olhos que mais pareciam dois holofotes sob lacinhos de fita,
foi apresentada como a menina que iria me fazer companhia e cuidar de mim, já que minha mãe
trabalhava muito como professora e meu pai vivia atarefado entre o Banco, a fazenda e o tênis.

Isso foi o que me foi dito.

Na verdade, fui perceber bem mais tarde, que Elise era consequência da sociedade vigente,
ainda entranhada por resquícios de “Casa Grande e Senzala”, onde patrões rurais tinham o
hábito acolher crianças de seus peões em troca de serviço.
No caso de Elise, havia tudo isso, mais um ordenado justo, casa, comida e roupa lavada, médico,
dentista, tudo com total dignidade. E assim foi morar lá em casa, para ajudar a cozinheira,
fazer os trabalhos domésticos e me arrumar para a escola. Minha mãe, professora da rede pública,
não tardou em ajeitar um curso supletivo para Elise, embora já tivesse a menina chegado sabendo
ler, escrever e contar.

Na sua primeira semana, ao primeiro toque de telefone que ouviu, meteu-se debaixo do
beliche do seu quarto. Tempos depois, me confidenciou que ficou com medo da estridência
nervosa vindo sabe-se lá de onde. Na sua imaginação, telefone era um espaço imenso onde
a pessoa entrava e era abduzida a um outro mundo, onde uma voz do outro lado – também
sabe-se lá de onde – estabelecia um contato com o desconhecido. Imagine. Sem perceber,
estava eu diante de uma ficcionista científica, daquelas que o correr do tempo poderia
revelá-la gênio ou idiota.

Nem uma coisa nem outra.

Elise era a sinceridade e ingenuidade em pessoa. Certa vez foi comprar pão. Esperta,
logo aprendera as tarefas mais corriqueiras. Na volta da padaria, deslumbrada com outro
advento da tecnologia que havia descoberto -  a campainha da porta -  tascou o dedo
no botão durante minutos eternos.
- Pééééééééééééééééééééééééééééééééééééém!

Neste dia, meu avô estava lá em casa. Com estranheza, abriu a portinhola da porta
e viu o sorriso iluminado de Elise, debaixo de seus holofotes no olhar e seus
lacinhos na cabeça. Indignado, impaciente educador, meu avô fechou a portinhola.
- Pééééééééééééééééééééééééééééééééééém!

Mais uma vez, meu avô. Abriu, olhou indignado e fechou a portinhola.
- Péééééééééééééééééééééééééééééééééééém!

E por aí foi, por quatro, cinco, seis toques infindáveis de campainha, seguidos da
impaciência do avô, que não arredou pé de sua implicância.
Até que eu mesmo resolvi abrir a porta.
- Ué, seu avô não estava me reconhecendo!?

Numa tarde de um dia qualquer, minha mãe recebeu um telefonema. E respondeu em tom
lamentoso, assustado, aflito.
- Meu Deus, meu Deus!
E sem lagar o telefone, vira-se para Elise apressada:
- Elise, tire as capas dos sofás e das poltronas! Rápido, rápido!
E Elise parte para a cumprir a tarefa com desenvoltura, só que começou a chorar,
chorar, chorar.
- Menina, por que você está chorando?
-  A senhora está tão nervosa. Alguém deve ter morrido. Quem foi?
- Morreu ninguém, Elise. José inventou de trazer uns amigos do Banco para jantar. 
Vamos correr, vamos correr para arrumar tudo.

Histórias de Elise transbordam da minha memória. Lembro que sempre retribuía "Boa Noite"
a Gontijo Teodoro, na despedida do Repórter Esso. Lembro do dia que ela mesma declarou
ser o mais feliz da sua vida, quando minha mãe a levou ao cabeleireiro para fazer henê.
(Ah, os valores da época...). Lembro de sua companhia deliciosa nas manhãs de Tom e
Jerry no Metro Tijuca, nas matinés de Jerry Lewis e Oscarito, nas suas gargalhadas
contagiantes com o Circo do Carequinha. Lembro que tinha personalidade: era Flamengo,
numa casa de tricolores, americanos e um solitário botafoguense: eu mesmo por destino.
Quando Garrincha comandou aquele baile de 3 a zero no rubro negro na final de 62,
dia seguinte, ganhei do meu avô um uniforme completo do Botafogo: camisa listrada de
manga comprida estampando a mágica estrela no lado esquerdo do peito, calção e meiões pretos.
Ela desdenhou:
- Parece que está de luto.

Lembro do seu orgulho quando passei para o Colégio Pedro II e ela fez questão de engraxar
minha pasta de couro que me foi presenteada pelos meus pais meritosamente.  Lembro de
reproduzir para ela em casa as aulas de Português, História e Geografia, que recebia dos
vetustos professores, criando para mim mesmo um jeito de estudar. Lembro que ela era amiga
das minhas primas mais velhas e frequentava rituais familiares como se da família fosse.
Lembro de apresentá-la como minha irmã pretinha, com a pureza e inocência de tempos
diferentes de hoje, quando certamente seria processado, preso ou massacrado
nas redes sociais.

Um dia, minha mãe chegou encantada com uma professora angolana chamada Elise Echpo
Bassei, que conheceu num encontro de educadores. Pela semelhança do sorriso e do olhar
radioso, passamos a chamar Elise carinhosamente de Elise Echpo Bassei, apelido que foi recebido com bom humor e gratidão, tendo me provocado inventar situações, como apresentá-la a um
colega chato como uma estudante angolana. Neste dia pedi para Elise não abrir a boca, a não
ser para sorrir. Não sei se o chato acreditou até o fim, mas as risadas que explodiram depois
foram sinceras.

Elise era fã de Elvis Presley, enquanto eu iniciava meu encanto pelos Beatles.
Havia controvérsias veladas entre nós, até que em 1967, no lançamento histórico
do Sargent Peppers, ela achou que tinha me vencido.
- Como estão feios esses Beatles! Barbudos, desgrenhados.
Rebati com uma maldade. Disse que seu ídolo Wanderley Cardoso, um periférico da Jovem
Guarda, tinha mau hálito. Ela acreditou desolada. Como eu sabia? Não sabia.

E assim foram meus tempos adolescendo com Elise. A única manifestação sexual que aflorou
nesse convívio, foi num dia de ousada curiosidade. Percebendo suas jabuticabas escapulindo
pela camisola, perguntei inocentemente se já haviam crescidos cabelinhos na sua forquilha
entre as pernas.

Foi um desastre.

A indiscrição chegou aos ouvidos dos meus pais – com certeza, pela cozinheira carola -,
que me repreenderam e me colocaram num brando castigo. Talvez não ver Bonanza ou Jovem Guarda, ou não tocar os Beatles na vitrola.
Dias depois, entreouvindo uma conversa entre meu pai e meus tios, percebi o trauma que
a curiosidade sobre a tal forquilha poderia ter produzido em Elise.
A saber: de quinze em quinze dias, meu pai a levava para passar o fim de semana na fazenda,
com sua mãe, seus irmãos já sub oficias do Exército e sua irmã mais nova. Numa dessas,
Elise foi estuprada pelo novo padrasto. Ouvi a história em frestas, sem muito detalhes, mas o suficiente para entender a gravidade da estupidez.
A partir daí, alimentei uma pena protetora pela Elise, quando jamais a deixei se aproximar de
meus colegas do Pedro II, machos de ralo buço em permanente estado de ereção, à procura
de domésticas para desovar seus impulsos. Ah, os imbecis da época...

Elise cresceu no recheio afetivo da nossa família. Passou de acompanhante de um filho único
à cozinheira de forno e fogão e à administradora dos afazeres domésticos. Meu pai sempre
ocupado, meu avô recém viúvo sessentão, atarefado com as namoradas que lhe choviam,
minha mãe dando os primeiros e longos passos na administração da educação pública.
Elise cuidava da casa, fazia compras, preparava almoços e jantares. Já exibia a forma sensual
de uma menina de Angola, brejeira, sorridente e esperta como ela só.
Não tardou a ter uma conversa franca com minha mãe.
- Preciso falar uma coisa com a senhora. Estou namorando um bombeiro de São João de Meriti 
e estou apaixonada.

Naquele instante, minha mãe intuiu que estaríamos perdendo Elise. E para acolhê-la mais ainda,
cuidou a professora de mexer seus pauzinhos de autoridade pública e inscrever o pretendente num concurso para a Polícia Militar. Ele passou, sabe-se lá como.

Numa manhã de uma quarta feira comum, sentei à mesa para tomar meu café com leite
apressado antes de partir para o colégio, nesta época já o Colégio Andrews, onde me debatia
com Física, Química, Matemática e Descritiva, como se lutasse contra um polvo de Júlio Verne,
mas isso é outra história.

A verdade é que naquela manhã não havia mesa posta. Havia perplexidade e danação
de meus pais pela quebra da rotina. Curioso, entrei no quarto de Elise e nem vi seu chinelo de
dedo. Armário vazio, banheiro sem lavanda nem escova de dente. Apenas entreolhares perplexos
e desapontados entre mim, meu pai e minha mãe. A partir daquele instante, nunca mais saberia de Elise. Meu pai ainda tentou algum contato com a irmã dela que, por coincidência, tinha sumido da casa da minha tia exatamente naquela manhã. Na fazenda, não havia mais Dona Iraí – falecera
havia 5 anos - nem seu casebre no curral de triagem, muito menos a possibilidade de algum contato com seus irmãos.

O que adiantaria? O sumiço era eloquente.

Elise partiu sem deixar vestígios, pistas ou rastilhos. Nem mesmo o então soldado da PM
teve como ser encontrado. Só se sabia que se chamava Jorge, mas meus pais concordaram
com a sabedoria de Let it Be. Ah, os rapazes de Liverpool influenciando gerações...

Vinte e dois anos se passaram. Minha família estava desmembrada. Meus pais haviam se separado,
minha avó falecera bem antes. Anos depois, meu avô não resistiu a um aneurisma, eu já tinha
uma irmã por parte de pai e estava divorciado com dois filhos quase adolescentes.

Toca o telefone na casa da minha mãe
- Dona Lucy? É Elise, lembra de mim?

Minha mãe paralisou. Elise a tinha visto numa entrevista na TV, já que a professorinha
estava deixando o cargo de Secretária de Educação, aposentando-se do magistério,
partindo para estudar Direito.
- Quando vi a senhora na televisão, disse para minhas filhas: eu preciso reencontrar essa gente.
Foram eles que me criaram.

Passada a emoção inicial, ficou combinado um almoço numa churrascaria rodízio. E assim,
num domingo preguiçoso, sentamos a uma farta mesa eu, minha mãe, meus dois filhos,
Elise e suas três filhas – o soldado, agora cabo da PM, soube que estaria de serviço.
Filhas lindas e amorosas. Com traços e sorrisos tão angolanos quanto os daquela menina assustada
que chegou a nossa casa aos 9 anos de idade. As meninas eram mais velhas que os meus.
A primogênita tinha 21 anos.

E matei a charada.

Há 22 anos, Elise fugiu lá de casa, pois estaria grávida do soldado da PM.
Alguma coisa muito forte impediu que soubéssemos na ocasião. Medo? Vergonha? Paixão avassaladora? Desejo de chutar o balde da vida? Tudo junto? Tentei saciar a curiosidade,
ela me confirmou à boca pequena, entre uma linguiça, farofa e picanha fatiada.

Estava estabelecido o afeto interrompido. Saímos da churrascaria às lágrimas. A promessa
de vamos-nos-ver, não-vamos-nos-perder, temos-uma-história-de-vida ficou no ar.

Dia seguinte, na exata segunda feira, antes mesmo de dar meio dia, minha mãe recebe outro telefonema. Dessa vez, seco.
- Dona Lucy, preciso que a senhora me dê 5 mil reais (ou algum valor absurdo na época)
todo mês. 
- Como assim, Elise?
- Isso mesmo. Esse empreguinho de cabo da PM que a senhora arrumou não dá para criar minhas filhas.
- Elise, você quer trabalhar de novo conosco?
- Não, senhora. Quero uma mesada. Seu filho não vive dizendo que eu era a irmã pretinha dele?
- Desculpe, Elise. Mas não temos como. Podemos pensar outro jeito...

E Elise desligou o telefone. Súbita, como aquela quarta-feira sem mesa posta de café da manhã.
Nunca mais soubemos dela.

Que pena, Elise, que pena.





quinta-feira, 17 de agosto de 2017

a chuva do indigente - poema de Laura Cohen




 a chuva do indigente

     



    é morto o homem que não nos pertencia,
    o que esperava sobre as telhas de uma casa
    e perdeu todas as coisas que tinha
    as roupas do corpo, a terra em nada lavrada

    mas nós não julgávamos seus ossos brancos
    que receberam a chuva do indigente
    mas temos a bondade de nos esquecer deles
    e de toda a carne que nos escondiam

    e quando uma mulher ou um rapaz
    vir buscar a notícia de um homem sumido
    ele será uma coisa que jamais terá existido – 
    um nome apregoado em voz estrangeira.








Do livro Ferro. Impressões de Minas, 2016.





quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Cortejo de anjo

Pietá, de Michelangelo 

O cortejo fúnebre segue pela rua principal, criando uma paisagem anêmica. Carros, gente, bichos dando passagem ao morto em estranho respeito. No trajeto da procissão de rostos padronizados, casas pequenas mantêm portas e janelas fechadas. O fechamento é tradição. A intenção do gesto é homenagear o defunto com uma decência de passagem. Coisa antiga, de interior. Quem o morto foi não importa. Se foi ou não criatura de pecados. Ladrão, traidor, assassino, viciado. Na morte, tudo cessa. Porque a morte é paga que baste. Não, não importa mesmo quem foi o passante. Só às vezes. Quando tudo está errado. E a cor do caixão denuncia a trapaça nojenta. Como hoje em que a morte que segue na carreta é morte desonesta. Caixão branco. Meio metro de corpo. Nem metro inteiro. Até para Deus é covardia. 
Na falação excitada dos jovens, muita raiva:
<Se Deus existisse, não matava criança.>
<Gente ruim Deus não leva.>
No silêncio dos mais velhos, alívio. Mais um que escapou de crescer. De ter as mãos engrossadas pelo plantio, de ver o café comido pela geada, de pedir empréstimo para pagar empréstimo, de olhar para o prato vazio, de agonizar pela fome. Crescer é desumano. Só gente jovem não sabe. Hoje é dia feliz, isso sim. Amém. Aleluia. É o que pensam os velhos calados.
Alguns passos e eu também sou procissão. Não importam a minha roupa colorida e as minhas mãos sem terço. Eles me aceitam. E me entregam murmúrios recorrentes. Desgraça... Desgraça... Desgraça... Desgraça... As mulheres mais velhas se benzem, exorcizando a palavra, ordenando silêncio. Falar desgraça atrai coisa ruim.
O bebê morreu dormindo. Não sofreu, diz alguém. Não, não sofreu. Deixou o sofrimento todo para a mãe. A mulher devastada que agora abraça o caixão. Caixão branco. De meio metro. Carregado pela carroça fúnebre. É tudo o que lhe sobra da parição tão amada. Na mão, o rosário não avança uma conta. Não há Maria, Senhora, Mãe que a conforte. 
Eu tremo.  Corpo inteiro. Tão forte que me pergunto se alguém percebe. Ou se alguém se importa. Apesar dos filhos que não gerei, tenho alguma coisa para entregar à mulher na carroça. Uma saudade de parir e de embalar aquilo que não tive, que não sei. Mas sinto. Um choro aguado que me devolve à oração da infância:  A vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas. 
Três da tarde. O corpinho lacrado pela madeira branca é engolido pela terra. O hiato nos murmúrios é de espanto. É de dor exausta. Ninguém se mexe. Ninguém vai embora.
Eu também ainda estou aqui. Estrangeira. Intrusa. Triste.









quarta-feira, 2 de agosto de 2017

O POÇO E O CAVADOR


“A gente morre um pouco em cada poço”.
(Caio Fernando Abreu)

A gente morre um pouco em cada poço,
E cá estou, recluso em meu castelo.
Ergui meus muros, cavei meu próprio fosso,
Com minhas dores, cortantes qual cutelo.

Se hoje em dia não temo nem a morte,
Se minha busca resume-se à estrada,
Direis, talvez, que sou homem de sorte,
Mas só eu sei o preço da jornada.

Se com a vida travei longo duelo,
E mergulhei no abismo até o osso,
Fui qual Narciso, julgando-me tão belo,
Ignorando que o lago era um poço.

Hoje me vejo tão vil e sem remorsos,
Nessa infâmia que mais e mais se agrava.
E quanto mais tento livrar-me desses poços,
Mais eu percebo ser aquele que os cava.






terça-feira, 1 de agosto de 2017

A Cantiga do Anti-Herói Bem na Sua Cara


Acabo de ler um texto da articulista Flavia Azevedo, publicado no site do jornal baiano Correio (link aqui: http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/o-amor-datado-de-chico-buarque/), que tem sido amplamente divulgado e comentado pela internet. Flavia opina a respeito da nova (e tão esperada) canção do maior compositor que temos no Brasil. Pois já digo de antemão que, apesar do título soberano, não é intocável. Contrariando o dito popular, quem já foi rei está sujeito sim, a perder sua majestade. Todavia, ao contrário do que Flavia argumentou em sua coluna, Chico Buarque continua reluzindo sua coroa, refestelado de boas em seu trono. “Tua cantiga” não versa sobre um amor datado, como afirma Flavia, simplesmente porque o amor não se circula no calendário, nem aqui nem na China, nem amanhã nem quando sequer os sumérios haviam inventado de registrar os ciclos lunares e as datas. O amor talvez seja o único sentimento capaz de preencher e transbordar e no mesmo compasso esvaziar a humanidade de um homem. É o amor que nos torna inexoravelmente mortais. Não a morte.

E o personagem mais que mortal de Chico, nesta canção, talvez seja o anti-herói da nossa literatura romântica. Digo talvez, pois, seria no mínimo leviano interpretar seus versos sob uma perspectiva, apenas. Pior ainda, a meu ver, seria usar óculos de lentes fundas de ética e moralismo para decodificar seu texto melódico, ou qualquer texto que seja. Até porque, convenhamos, Chico jamais se propôs a uma convenção ou a um estado nobre de espírito. A subversão sutil de suas letras, sobretudo na voz de um eu-lírico feminino que nenhum outro letrista contemporâneo fora capaz de assumir com tanta magnitude, quebra toda espécie de discurso paradigmático, rançoso de “ismos” que mais se dedicam a teorizar o próprio umbigo do que contemplar uma obra de arte em todas as esferas cruas e abstratas que uma obra de arte pode gerar. 

Em um dos seus argumentos, Flavia explicita que “esse negócio de largar mulher e filho não desceu. Não funcionou”. Ora, há pelo menos duas maneiras de se interpretar esta passagem: 1) “largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir” pode ser uma metáfora. O personagem não antecipa na letra qualquer menção acerca de um lar, de uma família. Ele seria o tipo de homem capaz de abrir mão de todas as convenções em nome do amor por uma mulher. Ponto. 2) Pode não ser uma metáfora, de fato. E daí? No final da música, o personagem diz “mas teu amante sempre serei, mas do que hoje sou”. O termo “amante” pode nos conduzir à ideia de que se trata de uma relação extraconjugal; ou não. A priori, “amante” significa aquele que ama. E ponto também.  

Apresento essa visão rasteira somente para reforçar a ideia de que se ater apenas a uma interpretação, ainda mais se tratando de uma canção de Chico Buarque, é bobagem. E levar isso adiante, erguendo uma bandeira cujo pau não se tem onde fincar, uma bobagem ao quadrado. Chega a ser vibrante reler a acusação de Flavia, quando diz que a narrativa de Chico aborda um “amor covarde”, cujo personagem não passa de um “canalha fantasiado de super-herói”; vibrante, pois, é isso! O canalha fantasiado de herói é a mais perfeita tradução do anti-herói. É o cara (ou a mulher) que se entrega, que passa do ponto, que trai, que transborda e que se esvazia, possuído por essa coisa chamada amor que pode soar infantil, trouxa, torta, barroca, pós-muderna; que machuca, definha, exalta, delira. Não importa o gênero, idade, time de futebol. Chico, em “Tua cantiga”, apresenta só uma das facetas do que é viver realmente um amor, livre de julgamentos. A arte, assim como a vivência doce ou rústica de um amor, não tem sua existência atrelada às marteladas de um tribunal cujos juízes condenam ad aeternum somente pela vaidade. 

Inauguro o último parágrafo com a frase final da Flavia: “porque a gente mudou e até o nosso romantismo está, sim, numa outra vibe”. Honestamente, eu prefiro não estabelecer um critério social e antropológico sobre o romantismo nos dias de hoje. Até porque as estatísticas midiáticas me conduzirão automaticamente para manifestações como “me encara, se prepara que eu vou jogar bem na sua cara, eu vou rebolar bem na sua cara” e não-sei-quantos milhões de visualizações só irão corroborar tudo o que eu disse em relação ao single do Chico: seja o cafona, o canalha desertor de lares ou a emponderada no deserto do Saara; seja na cantiga do anti-herói ou no rebolado da odalisca – o amor, em todas as suas facetas românticas, pode estar bem na sua cara. Encare-o!




Link do Clipe Oficial 
de "Tua Cantiga":
 https://www.youtube.com/watch?v=dk8arhNQta0