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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Depois da Chuva, Georgio Rios


FICHA TÉCNICA

Autor: Georgio Rios
Título: Depois da chuva
Editora: Multifoco
ISBN: 9788579610837
Ano: 2009
Edição: 1
Número de páginas: 73
Acabamento: brochura
Formato: 14x21 cm

Por Gerana Damulakis

Acabei a leitura do livro de poemas de Georgio Rios, Depois da chuva (futurArte, 2009), o qual, seguramente, coloca o poeta com um lugar garantido nas letras baianas. As "orelhas" estão assinadas por Gustavo Rios, autor do ótimo O amor é uma coisa feia (7Letras, 2007), coletânea de contos que comentei aqui no Leitora. Gustavo acertadamente realça: "O cara que escreveu esse livro está em formação. Inacabado e sugestivo. Como toda boa literatura deve ser. Lírico, sutil, com domínio da tal técnica, que serve para se fazer entender: poeta, portanto. Para dar o recado pro mundo que dorme..."

É fato que há uma estrada pela frente para Georgio Rios percorrer, mas, sem dúvida, ele a percorrerá porque já está caminhando e carregando a bagagem necessária. Seus pés estão bem plantados no chão e, do sentido do dia a dia que se vai vivendo, ele retira a poesia do cotidiano. Pode um vento passar e o poeta sentir esse vento e fazê-lo poema, mas na totalidade é da reflexão do que ocorreu, do que está ocorrendo, que Georgio cria seus versos.
Um bom exemplo:


PONTE
--------Georgio Rios

Sobre a velha ponte
fiz passar meus medos.

Em fila,
os tangi para o outro lado.

Um breve aceno,
uma despedida.

Pela outra
rua,
meus novos medos
chegavam...

E eu não abri a porta...

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Para mais detalhes, visite o blogue do autor: Modus Operandi





quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Sempre há uma verdade.... (Parte 2)

(Maristela Scheuer Deves)

Tudo começou em uma bela noite sem lua, uma noite que, mesmo sem o seu satélite, estava clara, incrivelmente clara. Uma noite que convidava a um passeio a pé pelas vizinhanças, curtindo a quietude de uma tranquila cidade interiorana. Olhando pela janela, não resisti àquela tentação. Pegando apenas um xale para proteger-me do sereno, saí a percorrer as ruas próximas. Mas não fui muito longe.

Eu andara, talvez, uns 10 minutos quando algo chamou minha atenção. Não era nada definido, talvez uma mudança nos poucos sons da noite, talvez um incremento do ar frio ao meu redor. Até agora não sei ao certo o que me fez parar, sei apenas que senti um arrepio que nada tinha a ver com frio e uma urgência de correr para casa e me colocar em segurança.

Passado o primeiro momento, ri de mim mesma. Ora, o que estava acontecendo? Por acaso eu agora estava com medo de assombração?, perguntei-me, e ri outra vez. No entanto, estava realmente ficando frio, e o bom senso – somente isso, garanti a mim mesma – dizia que era hora de eu ir para o meu quarto quentinho. Ajeitei o xale mais firmemente sobre os ombros e dei meia volta, seguindo pelo mesmo caminho que viera. Os passos estavam mais apressados do que antes, mas, afinal, eu precisava andar rápido para me esquentar.

Quando cheguei a vinte metros de casa, percebi que estava correndo. Constrangida, diminuí o ritmo, mas o mantive rápido o suficiente até passar pela porta e trancá-la atrás de mim. Minha respiração estava ofegante eu começava a suar, num marcante contraste com o frio de apenas segundos antes. Depois, inexplicavelmente, voltaram os arrepios.

– Devo estar com febre – disse a mim mesma, em voz alta. Assim, dirigi-me ao quarto e me enfiei embaixo das cobertas, deixando só o rosto de fora – o rosto e o pescoço.

Depois de alguns minutos deitada, levantei-me para checar se a janela estava bem fechada. Senti-me extremamente idiota fazendo isso, mas estava tomada de um medo que, naquele momento, acreditava ser totalmente irracional. Naquele momento, pois sei agora que o pavor aparentemente sem motivo que me envolvia tinha sim razão de existir, que o perigo era identificado no fundo do meu ser por um sexto sentido que sabia muito bem o que estava fazendo e o que podia acontecer.

Na manhã seguinte, porém, acordei com um ar frio me envolvendo, e a garganta dolorida. Gemi e olhei ao redor. A janela estava não somente aberta, mas escancarada. O medo que eu sentira na noite anterior tinha desaparecido agora que o sol se insinuava por entre as curtinas, porém o frio parecia ainda mais intenso. Assim, levantei-me ainda meio sonolento e enconstei a janela, antes de colocar um casaco. A temperatura tinha caído vários graus à noite, ou então era eu que ainda estava com febre. Tomei uma aspirina para espantar a gripe e a dor de garganta e desci para tomar café.

– Você está doente? – perguntou minha mãe, assim que me viu – Essa noite entrei em seu quarto e você estava suando, por isso abri a janela, sem querer te acordar se tirasse as cobertas. E agora você me aparece de casaco de lã!

Intrigada, ergui os olhos do café, que de qualquer forma não me parecia apetitoso, e a vi com um florido vestido de verão. “Calorões da menopausa”, pensei para mim mesma, sem querer dizê-lo em voz alta, mas nisso meu pai e meu irmão também entraram na cozinha, ambos de bermuda. Então, era eu a errada.

– Acho que estou com um começo de gripe, não estou me sentindo bem – admiti.

Preocupada, minha mãe correu para preparar um chá.

– Com isso você vai ficar bem logo, logo – garantiu, colocando a xícara fumegante na minha frente. – Tome de um gole só.

Com o nariz trancado do resfriado, não senti cheiro nenhum, e fiz como minha mãe ordenara. Somente para cuspir tudo no momento seguinte. Era chá de alho.

(continua no próximo mês...)





terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Assombrações do Rio antigo- O beco da morta- Giselle Sato

Ruas estreitas de paralelepípedo serpenteiam as imediações. Abrem-se em incontáveis caminhos, vielas, atalhos e becos. O centro da cidade um dia foi nobre.
Esquecido e sem preservação, tornou-se uma opção de aluguéis baratos em prédios desvalorizados.

O BECO DA MORTA

O velho edifício sobreviveu ao tempo e abrigava muitos inquilinos. Próximo ao Instituto Médico Legal, a entrada principal fazia esquina com um beco mal afamado. Pior endereço, impossível. Gritos e discussões eram constantes a qualquer hora.
Algumas vezes o mau cheiro e as moscas varejeiras invadiam os lares. O Rio de Janeiro é uma cidade maravilhosa, mas também tem seus bueiros.
Alzira odiava morar no quarto e sala abafado, odiava escutar a televisão no volume máximo o dia inteiro. Odiava ser vizinha do necrotério. Do décimo segundo andar, acompanhava uma confusão pela janela escancarada. A mãe gritou mais uma vez:- Alzira, Alzira, rápido, rápido...

-O que é agora? Fome, sede ou banheiro?- A mãe tinha o aspecto cadavérico e o olhar penetrante.

- Estou molhada. Preguiçosa- Alzira trincou os dentes e começou a tirar as roupas sujas de mijo. Era a terceira vez naquele dia.

Quando a mãe queria, pedia para ir ao vaso sanitário:- Está faltando água, como vou lavar tudo isto? - A velha mostrou a língua e deu uma risada.

- Alzira, Alzira, não presta pra nada, vai morrer solteirona e pobre. Apodrecer neste lugar imundo. Fedor. Fedor de defunto podre.

A mulher jogou as roupas no tanque mínimo e ficou olhando as peças acumuladas, a pilha cada vez mais alta. Aquela era ela, saturada e regurgitando o dia a dia.
Cinco anos tomando conta da doente. O hospício fechou as portas e mandou todos os pacientes para casa. Uma reportagem alertou sobre maus tratos e excesso de óbitos. A instituição perdeu o apoio do governo. Deixaram a velha senhora na calçada do edifício. O porteiro só entendeu que aquela era a mãe da Dona Alzira do 1012.

Demência. Alzira percorreu muitos hospitais em busca de vaga para internação. Não conseguiu nada e a mãe foi ficando. Quando as crises tornavam-se insuportáveis, levava a enferma para o pronto socorro . O pai faleceu logo em seguida, muito desgostoso, não teve forças para lutar contra a tuberculose.
Com a pequena pensão, levavam uma vida muito humilde e reservada. Tudo isto era suportável até que começaram as pragas. Terríveis pragas rogadas o tempo inteiro. Corroíam e provocavam sentimentos rancorosos.
Alzira estava perdendo o controle. O ódio, o cansaço e a miséria venciam a integridade.

Fevereiro era um mês enlouquecedor, 40 graus e falta d’água eram comuns. Todos sabiam que as geladeiras do necrotério estavam abarrotadas de corpos. Véspera de carnaval, feriado, falta de pessoal e o fedor invadiu os apartamentos.
O ar impregnado provocou reações diversas. A raiva contida explodiu e as pessoas começaram a jogar pedras no edifício do IML. Gritavam contra o sistema, governo, polícia e defuntos. Montaram barricadas de restos de lixo, pedaços de madeira, móveis velhos e pneus. Exigiam a remoção do excesso de corpos e uma solução para o ar pestilento.

-O BLOCO -

Na rua principal, a situação estava completamente fora de controle. A rádio patrulha encontrou todas as vielas de acesso obstruídas. Remanescentes de blocos carnavalescos, usando fantasia, juntavam-se aos manifestantes. Mascarados e bate-bolas saltavam em piruetas enquanto as fogueiras queimavam.
Alzira vestiu um camisolão preto e pintou o rosto com tinta branca. Desenhou olheiras e colocou uma velha peruca azul. Queria espairecer, dar uma volta e aliviar as tensões. A mãe, neste exato momento, rogou uma enxurrada de pragas. Foi a gota d’água.

Enrolou a doente na capa da fantasia e prendeu um chapéu de bruxa. A velhinha estava gostando da novidade e não opôs resistência:- Vamos para o carnaval, está ouvindo a confusão? Tem festa na rua.

O elevador estava concorrido e a gritaria era geral. Na ânsia de assistir e participar do tumulto, ninguém prestou atenção. Passaram anônimas até ganhar a rua. O Beco estava apinhado de batuqueiros bebendo e fazendo arruaça.

No meio do povo a mãe quis voltar, gritou e ninguém ouviu. Foram sendo arrastadas pelas ruas. Quando estavam quase em frente à Cruz Vermelha, Alzira deu um jeito de sair da multidão. Fugiu para a calçada e ficou parada, respirando fundo. O medo do que acabara de fazer era uma mistura de alívio e remorsos.

Algum tempo depois a polícia tomou a rua principal com suas bombas de efeito moral e jatos de água. Houve trocas de tiros, bandidos aproveitaram para revidar, inocentes foram baleados e pisoteados na confusão.
Dentro do botequim da esquina do Beco, um grupo seleto bebia tranquilamente. Portas arriadas e televisão passando o desfile das escolas de samba. Alzira estava sentada no canto, dividindo a mesa com um grupo de travestis, fingia interesse nas piadas.

O italiano, dono do estabelecimento, serviu uma cerveja gelada :- Dona Alzira, quanto tempo, está de folga da mãezinha?- Quase engasgando com a bebida, a mulher deu uma risadinha.

-Minha prima levou para Caxias. Vai passar um tempo por lá.

- Que bom. Então aproveite, amanhã tem o Bola Preta. Imperdível.

-Verdade. Imperdível.

Várias batidas na porta de ferro e um palavrão bem mandado:- Seu Aylton, de novo...já disse que não posso vender cerveja fiado.

-Não quero nada não, ô da Itália. Vim chamar Dona Alzira. A mãe dela está fazendo o maior escarcéu na portaria.

Alzira saiu apressada mal acreditando no que o porteiro dizia. A madrugada quente e a rua completamente deserta:- Não estou achando a menor graça, onde está minha mãe?

-Estava ali, juro. Gritou seu nome um monte de vezes. Vai ver foi para outro canto.
Juntos deram a volta no quarteirão e nada encontraram. O porteiro não parava de se benzer e falar de alma penada e outras assombrações.

Alzira encostou o homem medroso na parede:- O senhor esqueça esta história de fantasma ou vou fazer queixa. Isto é excesso de cachaça - O porteiro jurou nunca mais tocar no assunto.

-O DESFILE-

As semanas seguintes passaram sem qualquer notícia. Alzira não queria saber se a mãe estava viva ou morta. Aos poucos, os meses trouxeram alívio. Começou a fazer novas amizades e freqüentar o clube da terceira idade.
O ano terminou e chegou o carnaval. Alzira admirava os adereços da fantasia. Estava endividada até o ano seguinte sem remorsos. Desfilar pela escola de samba era seu maior sonho. Sentiu-se uma rainha, vestida de colombina.

Na concentração, o momento máximo da entrada da escola. Bateria esquentando, o grito de guerra do puxador e a arquibancada lotada. Apesar do alardeado produto desinfetante o canal do mangue estava de amargar.
Quando a escola estava toda montada, fogos de artifício explodiram no céu da Avenida Presidente Vargas. Nada mais importou, o povo aplaudiu de pé o imenso carro alegórico do abre alas.

Alzira era só emoção. Queria aproveitar casa segundo. No meio da ala reconheceu a figura da mãe . Ela estava rodopiando com as baianas, dançando com o mestre-sala e porta-bandeira. Indo e vindo com os passistas, no meio da bateria... em todos os lugares...Cada vez mais perto, apontava a filha, acusando e perseguindo...
O socorro médico retirou a componente da escola em pleno desfile. A mulher gritava e agredia quem se aproximasse. Amarrada na ambulância , Alzira tentava de todas as formas avisar sobre a presença da morta. Os enfermeiros aplicaram nova dose de calmantes:- Rapaz , a mulher não fala coisa com coisa e quase estragou o desfile. Tentou me morder, imagine...

-É o carnaval, amigo. Acho que ela está piorando, manda o motorista acelerar. Meu Deus! Está sentindo este cheiro de podre? – A sirene berrou no trânsito caótico, não havia como driblar a multidão...o odor nauseante de corpos em decomposição...e o hospital cada vez mais distante...

Alzira escutava cada palavra sem conseguir emitir qualquer som. Queria contar de onde vinha aquele cheiro de morte ... queria voltar para casa...queria que eles tirassem a mãe da cabeceira da maca...





domingo, 21 de fevereiro de 2010

Fragmentos: II.O Início

Havia brilho, e luz, muita luz de muitas cores. Havia som. Pulsava o som, ressoando mundo afora o coração recém chegado ao universo das batidas. Um corte rápido, um súbito grito, um choro. E risos. É um menino! Chamará João. Bonito nome. Simples e brasileiro. João Brasileiro, então, nascido na terça-feira gorda! O leite ralo não tem sabor de sal nem de açúcar. Mas a pele é quente e o aroma, inesquecível. Nesse primeiro instante íntimo, os corações batem sincrônicos, surdo e tamborim em ritmo perfeito. E se olham e se tocam em harmonia irrecuperável. Uma dança. Há confetes e serpentinas, e muitos sonhos. Há esperanças impronunciáveis. Há os corpos nus, uns que se exibem, outros que se trancam. Há a falsa alegria do bêbado e o desespero dos que não amam. Há de tudo como sempre houve. Mais um. Mais um pedaço de vida compartilhando espaços e tempos. Há um novo enredo. Há.
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Fragmentos é uma série de textos curtos, em geral de parágrafo único, que descrevem uma situação da realidade e seus ecos no mundo interno dos personagens, como se, num documentário da vida real, uma voz de fundo narrasse o que se passa no íntimo dos atores-autores, que aliás poderiam ser qualquer um de nós...
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sábado, 20 de fevereiro de 2010

Duas de cinquenta e três de vinte

Léo Borges


– Mãe, está me ouvindo bem? Esse barulho todo é porque um bloco está passando por aqui... não, não vou me fantasiar de odalisca desvairada nesse carnaval, não, isso é coisa do passado... pois é... estou, mãe, estou me alimentando bem, sim... a senhora já perguntou isso da vez passada... não, não tenho comido vespa assada nenhuma, só disse que já falamos sobre minha dieta antes. Mãe, eu tenho de ir porque o Barbosa está me esperando. Não, mãe! Nada a ver com o Bar da dona Rosa... já parei de freqüentar essa espelunca. É o Barbosa, meu colega. Isso! Ele mesmo, o Barbosa da polícia... parece que houve um derrame e... não, mãe, o Barbosa não teve AVC nenhum, não! Derrame é o nome que se dá para a entrada de notas falsas em circulação. Está havendo um problema desse tipo aqui e precisamos investigar. Fique calma que está tudo bem... certo... pode deixar... pode deixar que eu cobro o perfume que o Barbosa não pagou... mas, olha, ele reclamou que teve queimaduras no braço com esse perfume. A senhora tem que parar de comprar essas coisas no Paraguai! Tudo bem... agora eu tenho que ir porque vou pra delegacia de carona com o vizinho, o meu Fusca está nos estertores. Não, não pegou fogo... eu não disse extintores, falei estertores! Ele está agonizando, caindo aos pedaços. Bom, fica com Deus e Nossa Senhora do Embargo... ops, sim, sim... desculpe... do Amparo! É que a prefeitura embargou a minha obra aqui na rua e estou com isso na cabeça...


Magalhães tinha de ter boa dose de tolerância quando falava com sua mãe, detentora que era de uma idade avançada. Mas ela também já tivera muita paciência com ele em sua infância. Principalmente quando o moleque resolvia usar seu estilingue contra os pombos.


– Meu filho, já não lhe disse para não atirar pedras neles?


– Mas, mãe, eles estão comendo pedrinhas no chão de qualquer jeito!


– Não, meu filho, eles não estão comendo pedras. Estão ciscando o chão para encontrar comida. Eles procuram entre a poeira e a terra algum grão, alguma migalha para se alimentar. Pombos simbolizam a paz. Use essa sua energia de caçador para brincar de polícia e ladrão. E seja sempre o mocinho!


Magalhães compreendeu que estava maltratando bichinhos inofensivos e interessantes e, por isso, reverteu sua energia para o futebol, o jogo de peteca e, claro, para brincar com a turma naquilo que dava mais adrenalina: polícia e ladrão! Depois de crescidos, muitos se mantiveram fiéis aos ofícios da infância: alguns, como Magalhães, entraram para a polícia, e outros, para a política.


O vizinho já estava com o filho dentro do carro, só aguardando o investigador.


– Desculpe o atraso, Jorginho, é que estava com minha mãe no telefone e você sabe como elas são, né?


– Tudo bem, Magal. Só preciso lhe dizer que ainda tenho que deixar o Arthur na matinê carnavalesca do clube.


– É por isso que ele está todo fantasiado de periquito?


– É um falcão – interveio o menino, arrumando as plumas nas costas.


Magalhães assentiu com um afago na cabeça do guri, ignorando seu ar sério, até porque gafe com crianças nunca chega a ser uma gafe completa. Como a investigação das tais notas falsas naquela sexta-feira pré-carnaval não era caso tão urgente, ponderou que atrasar-se um pouco não seria problema.


– Muito trabalho no combate ao crime, Magalhães?


– Bastante, Jorginho. Hoje, por sinal, o Pombo vai bater as asas.


– “Pombo”?! Nem me fale em pombos... desde que embargaram a sua obra que esses pombos não deram mais sossego. Estão empoleirados nos escombros e alguns até fizeram ninho no meu telhado. Eles não criam problemas para você não?


– Eu gosto desses bichinhos. Por sinal a tal obra é um poleiro gigante que estou construindo ao lado do muro. Todo esse carinho é porque “Pombo” é o nome de batismo da minha dupla na polícia. Eu e Barbosa formamos a Equipe Pombo. Quando tinha a idade do seu filho descobri que esses pássaros são grandes investigadores. Vasculham restos para encontrar o que querem, e em termos comparativos é mais ou menos o que nós fazemos. “Po” vem de “Polícia” e “MB” de "Magalhães e Barbosa". Como na regra ortográfica: sempre perto do B, vem o M; sempre perto do Barbosa, vem o Magalhães.


– Pai, pombo não é aquele passarinho que caga nas estátuas?


– Meu filho – disse o pai tentando driblar a saia justa –, todo mundo faz cocô...


– É verdade – completou Magalhães –, mas nem todo mundo investiga bem!


O policial torceu para que o chato do guri não questionasse sobre a última letra da sigla. Ele costumava dizer que significava “Oniscientes”, embora alguns afirmassem que o "o" era de “Obtusos”.


Barbosa já o aguardava com alguma intranqüilidade na porta da DP.


– Como é que é, Magalhães? As onças falsas aí fora correndo e você desfilando no bloco dos cornos? – satirizou, enquanto o colega saía do carro.


– Corno é quem usa perfume paraguaio, meu amigo – retrucou rindo. – Alguma novidade? São duas de cinquenta e três de vinte mesmo? Qual a fonte?


– Denúncia anônima. Elas foram vistas na Zona. A notícia chegou distorcida.


– Zona que você diz é o Bar da dona Rosa?


– Zona Portuária. Parece que um capitão da Marinha desembarcou com elas na semana passada. Vamos procurar por lá. O bordel da dona Rosa não está fora de cogitação, claro, até porque é o tipo de local onde os marujos freqüentam e fica ali perto.


Magalhães e Barbosa passaram cinco segundos em silêncio, pensando na possibilidade de terem de voltar ao Bar da dona Rosa. Foram assíduos do cabaré até quando este passou a ser freqüentado por policiais. Os integrantes da Equipe Pombo se consideravam agentes diferenciados e não compactuavam com certos maneirismos dos colegas de labuta, como, por exemplo, beber sem pagar, comer sem pagar e, principalmente, fazer sexo sem pagar.


Magalhães e Barbosa, então, pegaram os instrumentos pertinentes para aquele serviço, canetas-marcadoras que constatavam ou não a autenticidade das cédulas, e saíram. Caso um traço rabiscado tomasse um tom róseo, estava decretada a falsidade.


Ao se aproximarem do cais, abordaram um grupo fardado de branco:


– Senhores, precisamos de uma informação sobre duas onças.


– A matinê das onças é só amanhã, gatinho. Hoje o baile é dos marinheiros!


Barbosa, ao ver que os marmanjos eram apenas foliões fantasiados, soltou um palavrão e continuou no trajeto até o píer.


– Aqueles ali aparentam ser marujos de verdade. Devem saber de algo – sussurrou Magalhães, observando alguns homens jogando cartas.


– Por favor, – disse Magalhães, pedindo a palavra – algum de vocês viu duas de cinquenta e três de vinte falsas circulando por aqui?


– Duas de cinqüenta falsas?! – repetiu o que estava com um cachimbo no canto da boca, gargalhando em seguida. – Vimos, sim! Apareceram semana passada e estão na região. Circularam, mas ninguém pegou. Barra pesada. Acho que foram parar na Dona Rosa.


– E as três de vinte?


– Essas não pareciam falsas. Um estivador pegou e disse que não eram.


– E o que ele fez?


– Passou adiante.


– Se elas forem falsas, é crime! – soltou Barbosa, zangado.


– Se é crime, desconheço. Mas lembro que ele falou em sessenta reais.


“Exatamente”. Pensou Magalhães. “A soma das notas falsas de vinte é sessenta reais e agora elas estão sob o poder de algum incauto”.


– Mais alguma informação, caro lobo do mar? – quis saber Barbosa.


– Essas de vinte tinham desenhos, mas não lembro o que eram. Ouvi dizer que simbolizariam a paz.


“Marcações nas notas! Isso facilitará as coisas...”, pensaram. Viram que procurar o tal trabalhador portuário seria infrutífero e que o mais lúcido era seguirem direto para o Bar da dona Rosa, o decadente bordel das docas.


No estabelecimento, que estava muito diferente desde a última vez que estiveram lá para “saborear as delícias da casa”, conforme o slogan na porta apregoava, encontraram alguns bêbados, outros alcoolizados e, por fim, pessoas embriagadas. O lugar era muito mal iluminado e a música do Julio Iglesias tornava o ambiente ainda mais sombrio.


– Quero falar com a dona Rosa – disse Barbosa para uma das atendentes, nua da cintura para cima.


– Barbosinha?! Você por aqui? Quanto tempo! – retrucou a garota.


– Não te conheço, minha filha – disse um incomodado Barbosa. – Por favor, chame a dona.


A prostituta saiu um tanto consternada e foi chamar a proprietária. Duas mulheres obesas e mal cuidadas, aparentemente fantasiadas de Carmen Miranda – ou de algo semelhante –, quando souberam que se tratava de diligência policial, surgiram com cara de poucos amigos.


– O que é? – perguntou a menos amistosa, com uma voz rouca, particularmente esquisita.


– Você não é a dona Rosa – disse Barbosa, lembrando-se que Rosa era magra, alta e odiava adereços na cabeça.


– Não. Chamo-me Madame Cat. Eu e a Baronesa Pussy compramos o estabelecimento da dona Rosa na semana passada. Em que podemos ajudar?


– Sou o policial Barbosa e quero que a senhora me mostre o cofre.


Madame Cat se pôs de costas e começou a abaixar a saia. Ao perceber o constrangedor engano, Barbosa tossiu forte e explicou melhor o que queria:


– O cofre a que me refiro é o caixa! Quero ver as cédulas. Estamos investigando um caso de falsificação e o ponto final do crime parece ser este estabelecimento.


Com as notas em mãos, Barbosa passou a ticar cédula por cédula utilizando a caneta verificadora e não se deu conta de que Magalhães havia sumido por entre os quartos.


Por vezes, o policial passava a caneta no próprio braço para ver se ela estava funcionando a contento. Nas notas verdadeiras o instrumento não deixava marca nenhuma, enquanto que na pele ela sempre deixava um rastro preto.


– Essa cicatriz no seu braço é de tanto procurar por notas falsas? – perguntou Baronesa Pussy.


– Não. Isso aí foi perfume. Notas falsas não machucam tanto...


E foi nesse instante em que, por descuido, Barbosa tocou com a ponta da caneta no braço da Madame Cat. Pasmo, olhou para a marca que, naquela pele, começava a ganhar uma coloração rosada. Baronesa Pussy, vendo os olhos arregalados de Barbosa e movida pela curiosidade, pegou a caneta e a passou em seu próprio pulso. O susto do policial dobrou de tamanho ao ver que na pele desta gorda o risco também ficava rosa. Ele sacudiu a cabeça não acreditando no que via. Em qualquer pele o traço era negro, não havia discussão. O tom róseo surgia apenas em objetos que não eram verdadeiros!


A incongruência das cores confundiu o raciocínio de Barbosa até o momento em que ele desceu o olhar para o peito das figuras à sua frente. Ali ele percebeu que a caneta não errara: por entre o decote da fantasia viu pêlos, pêlos em profusão! Sem hesitar, o policial meteu a mão nos adornos coloridos sobre a cabeça das mulheres e os puxou: carecas! Eram, na realidade, homens! Travestis de 50 anos, donos do outrora glamouroso Bar da dona Rosa.


No mesmo instante Magalhães apareceu por trás, gritando como se desvendasse a segunda parte do mistério:


– Barbosa! Descobri a farsa das três de vinte!


Barbosa, aturdido com o que descobrira, virou a cabeça para ouvir o parceiro:


– As supostas notas de vinte falsas não são notas, são mulheres! E todas as três são menores de idade: 16 anos, mas mentem pra todo mundo que têm 20! Meninas assim são tidas no mundo da prostituição como “mulheres falsas”. O preço do programa de cada uma era vinte reais, por isso, sessenta reais foi o valor que o estivador pagou pelas três, e não a soma de supostas notas falsas.


Ao ver os travestis ajeitando suas perucas, Magalhães quis saber o que os elementos tinham a ver com a história.


– “Elas” – disse Barbosa apontando para os gigolôs –, são as duas de cinquenta falsas. A falsidade aqui é o sexo e não as notas.


– Não brinca! – disse Magalhães querendo rir, mas contendo-se para não desmoralizar o serviço.


– De qualquer modo há crime: prostituir menores de idade – completou Barbosa. – Mas, Magalhães, como você descobriu que elas não tinham 20 anos? Pela carteira?


– As carteiras são falsas. Descobri pelos desenhos. Lembra o que um dos marinheiros disse? Os desenhos sobre “simbolizar a paz” não eram marcações nas notas frias, mas tatuagens temporárias de pombas brancas na virilha das moças. Para o mercado do sexo isso quer dizer que são muito novas. Mas elas só admitiram que eram menores de idade quando engrossei e afirmei que o único “Pombo” ali era eu e que a coisa ia feder se não falassem a verdade.


– Isso é um escárnio com nossa equipe, Magalhães! – zangou-se Barbosa.


Os policiais algemaram as duas de cinqüenta falsas por rufianismo e deram um sermão nas três falsas de vinte. Enquanto falavam, porém, um bêbado fantasiado de almirante resolveu entrar em cena. Agitava uma cédula estranha, onde o número 50 e a onça que a estampavam pareciam borrados, com pouca nitidez e sem a marca d’água.


– Opa! Alguém troca essa nota de cinquenta aqui pra mim?





quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Canção de Carnaval

Canção de Carnaval

Rubén Darío
trad.: Henry Alfred Bugalho

Musa, à máscara apronta,
Ensaia um ar jovial
E goza e ri na festa
do Carnaval.

Ri na dança que gira,
mostra a perna rosada,
E soa, como uma lira,
Tua gargalhada.

Para voar mais ligeira
Ponha duas pétalas de rosa,
Como faz tua companheira
A mariposa.

E que em tua boca risonha,
que se une ao alegre coro,
deixe a abelha portenha
seu mel de ouro.

Una-te à mascarada,
enquanto imita um clown
com a face pintada
como Frank Brown;

Enquanto Alerquim revela
que ao prisma seus tons rouba
e aparece Pulcinella
com sua corcova,

diga à Colombina a bela
o que dela penso,
e a uma garrafa desarrolha
para Pierrô.

Que ele te conte como rima
seus amores com a Lua
e te faça um poema em uma
pantomima.

Dá ao ar a serenata,
toca o áureo bandolim,
Leva um látego de prata
para o spleen.

Seja lírica e seja bizarra;
com a cítara seja grega;
ou gaúcha, com a guitarra
de Santos Vega.

Move teu esplêndico torso
pelas ruas pitorescas,
e joga e adorna o Corso
com rosas frescas.

De pérolas rega um tesouro
de Andrade no régio ninho
e na beca de Guido,
pó de ouro.

Penas e aflições olvida,
canta deleites e amores;
busca a flor das flores
pela Florida:

Com a harmonia te encantas
das rimas de cristal,
e desfolha de suas plantas
um madrigal.

Pirueteia, baila, inspira
versos loucos e joviais;
celebre a alegre lira
os carnavais.

Seus gritos e suas canções,
seus comparsas e seus trajes,
suas pérolas, tons e rendas
E pompons.

E leve a rápida brisa,
sonora, argentina, fresca,
a vitória de tua risada
funambulesca!

***

Canción de Carnaval
Rubén Darío

Musa, la máscara apresta,
ensaya un aire jovial
y goza y ríe en la fiesta
del Carnaval.

Ríe en la danza que gira,
muestra la pierna rosada,
y suene, como una lira,
tu carcajada.

Para volar más ligera
ponte dos hojas de rosa,
como hace tu compañera
la mariposa.

Y que en tu boca risueña,
que se une al alegre coro,
deje la abeja porteña
su miel de oro.

Únete a la mascarada,
y mientras muequea un clown
con la faz pintarrajeada
como Frank Brown;

mientras Arlequín revela
que al prisma sus tintes roba
y aparece Pulchinela
con su joroba,

di a Colombina la bella
lo que de ella pienso yo,
y descorcha una botella
para Pierrot.

Que él te cuente cómo rima
sus amores con la Luna
y te haga un poema en una
pantomima.

Da al aire la serenata,
toca el auro bandolín,
lleva un látigo de plata
para el spleen.

Sé lírica y sé bizarra;
con la cítara sé griega;
o gaucha, con la guitarra
de Santos Vega.

Mueve tu espléndido torso
por las calles pintorescas,
y juega y adorna el Corso
con rosas frescas.

De perlas riega un tesoro
de Andrade en el regio nido,
y en la hopalanda de Guido,
polvo de oro.

Penas y duelos olvida,
canta deleites y amores;
busca la flor de las flores
por Florida:

Con la armonía te encantas
de las rimas de cristal,
y deshojas a sus plantas,
un madrigal.

Piruetea, baila, inspira
versos locos y joviales;
celebre la alegre lira
los carnavales.

Sus gritos y sus canciones,
sus comparsas y sus trajes,
sus perlas, tintes y encajes
y pompones.

Y lleve la rauda brisa,
sonora, argentina, fresca,
¡la victoria de tu risa
funambulesca!

fonte: http://www.encarnaval.com/Literatura/canciondecarnavalDario.asp

***

Sobre o autor
Rubén Darío

(Metapa, atualmente Ciudad Darío, 1867 - León, Nicarágua, 1916).

Poeta nicaraguano. Na sua juventude, Rubén Darío viaja por São Salvador, Chile e Argentina, onde lê e assimila os simbolistas franceses. Desenvolve uma intensa actividade jornalística e, em 1892, integrando uma representação diplomática, desloca-se a Espanha, onde entabula amizade com os escritores modernistas e da Geração de 98. Em 1905 é nomeado embaixador, residindo a partir de então em Paris e em Madrid. Quando eclode a Primeira Guerra Mundial volta à Nicarágua, onde morre.
A primeira obra importante de Rubén Darío é Azul, obra em prosa e em verso. Prosas profanas, colectânea de poemas, assinala o triunfo da nova sensibilidade poética, estando nele presentes os principais elementos do modernismo: o exotismo, os ritmos franceses, a sensualidade, a ornamentação e o colorido. Cantos de vida y esperanza contém poemas mais íntimos e de uma maior simplicidade expressiva. É evidente e decisiva a influência directa de Rubén Darío no desenvolvimento da poesia de língua castelhana do século xx.

fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/ruben_dario.htm





terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Borboletas na barriga

Mariana Valle

Eu gosto dele. Tá bom, eu gosto bastante dele. Mas o que eu mais gosto nele é a leveza de não saber o dia de amanhã.

É um ter vontade de ficar mais e ao mesmo tempo não ter a mínima ideia de quando isso vai acontecer. E curtir. Curtir esta incerteza. Aproveitar apenas o hoje. É tão bom viver a vida sem roteiro...

Cansei da segurança. Da hora marcada, do papo burocrático à noite pelo telefone. “O que você fez hoje? Tá com saudade?”

Tenho saudade é daquele aperto no peito que dava ao ver o objeto de desejo passar. Das borboletas na barriga quando eu sentia a aproximação do fulano. Dos incansáveis minutos relembrando todas as palavras e entonações do pequeno diálogo travado entre nós dois. Das milhares de conversas imaginárias que eu tinha com ele em frente ao espelho do meu quarto na casa da minha mãe. Nada como ser adolescente de novo!

Amar é... Lembra daquele desenho do casal fofinho que completava essa sentença das mais diferentes maneiras? O negócio é o seguinte: amar é foda, mas no momento eu quero paixão.





domingo, 14 de fevereiro de 2010

Festa no céu

Polyana de Almeida


Seu Jacinto veio me chamar no meio da noite. Rugiu, gritou, mandou meu nome e disse: já está na hora.


Esfreguei os olhos, alisei meu bendito queixo, e deixei as pálpebras caírem soltas num piscar de sonho. Mas a nitidez das coisas, as cores, o tato, o tom pálido dos espaços me desmentia – já não durmo, já não sonho. E vivo?


—Com que roupa eu vou?

Sem resposta, ele me guiou até a porta.

—Espera mais um ano?

Assinalando um Não com cabeça, ele me puxou pelo braço. Toquei as mãos velhas do preto, senti a casca rugosa da palma, lixa. Apertei sua mão. Tem pulso firme, o velho, pensei. A mão áspera de anos, mas a firmeza da lida. Com suas mãos, eu antevia sua história. A cabeça toda branca. O rosto talhado, sulcos dos anos e do bacalhau. Deve passar dos setenta, talvez. Deve conter as histórias do mundo no desenho pesado das mãos e nas costas. E anda, pensei, como pode andar?

—Pra dentro, sinhô-moço. Vai chover. Logo mais há de começar.


—Você vai se quiser, seu Jacinto. Prazer em conhecê-lo. Eu quero bandear um pouco pelos arredores. Depois trato de entrar. Ou eu me encarrego de sumir.

E voltou. Retornou para a escuridão de onde mal havia se apartado, como um desses mitos da noite, que na noite ficam. Tão logo, as gotas invadiram o espaço, num leve correr devasso. Eu levantei a cabeça e deixei que a água abraçasse minha face. Gotas escorrendo, uma atrás da outra, nas bochechas, na boca, nos olhos. Essa vila, essa vila tem feitiço, lancei. É coisa que não há. Andei certas distâncias, falei, contei o monte do passado, o cheiro da mata molhada, a lama debulhada sob os sapatos a roubar o cheiro do ar, o cheiro da vida. O barulho encharcado dos espaços, cada passo entrando no chão, como se a terra me tragasse em minha chegada. Tão cedo. Para não mais sair, para nunca mais sair. O cheiro forte da natureza, plena e esvaziada, agredia a insipidez das narinas acostumadas com os excessos do corpo, combate deflagrado. A náusea do novo; ficará aqui se nós o tomarmos como nosso. Cedo demais.

Do escuro, uma porta me aguardava. Girei a maçaneta, e adentrei o espaço. Um vasto salão caiado em branco, tinta desgastada, abrigava o vazio desolador dos fins de festa. Garrafas ao chão, serpentina jogada aos cantos, um brilho espalhado, dissipado no ar, cadeiras postadas junto à parede, ou em roda. Ao longe, podia ouvir o ruído sussurrado de uma vitrola antiga. O som ia, aos poucos, tomando os meus ouvidos, me abraçando, chamando meu ritmo. Quis tamborilar na palma das mãos o batuque dos dedos, o batuque privilégio, a umbigada de meus vinte e seis anos, cantarolando murmúrios dos tempos que não voltam mais.

— Se ainda pudesse... Um último desejo...

Como num piscar, a porta abriu-se novamente. Uma multidão avançou, preencheu o salão, em um barulho contínuo. Uma preta, senhora de roupas grandiosas, e colares variados, aproximou-se e segurou minhas mãos. Eu a beijei, em reverência, reconhecendo-a.

—Estamos esperando. Vem logo escutar o samba que fizemos para te dar. Da tua voz tirei a melodia e a harmonia eu fiz com teu olhar.

—Tia Ciata, um último desejo.

—Noel, pode mandar, sinhô-moço.

—O meu destino foi traçado. Mas eu me vou é muito cedo, eternamente hei de sorrir pra não chorar. Uma jura que fiz: eu nasci pra batucar.

—As cordas vão dizendo que o samba é só teu. E no céu há festa, Noel. Estamos esperando...


Tamborilei um pouco, juntei-me à multidão e cantei: Eu vou pra outra Vila, onde o samba também é sina...



(Homenagem ao centenário do nascimento de Noel Rosa, prodígio do samba, que morreu aos 26 anos, em 1937. Os trechos a seguir são de excertos ou títulos de suas composições: “Festa no céu”; “Seu Jacinto”; “já não durmo, já não sonho”; “Com que roupa eu vou?”; “Espera mais um ano?”; “Você vai se quiser”; “Prazer em conhecê-lo”; “Essa vila, essa vila tem feitiço”; “Ou eu me encarrego de sumir”; “o batuque é privilégio”; “Um último desejo”; “Estamos esperando. Vem logo escutar. O samba que fizemos para te dar.”; “Da tua voz tirei a melodia e a harmonia eu fiz com teu olhar”; “O meu destino foi traçado”; “(...) eternamente hei de sorrir pra não chorar.” “Uma jura que fiz”; “eu nasci pra batucar.”; “As cordas vão dizendo que o samba é só teu”; “Estamos esperando”; “Eu vou pra Vila”.)





sábado, 13 de fevereiro de 2010

A primeira noite de Melissa

José Guilherme Vereza

Depois de algumas horas de sono profundo, sob a vigília curiosa de Thales, Melissa vira de bruços,
senta lentamente sobre os calcanhares, os cabelos longos e castanhos claros tapam seu rosto.
Começa a se espreguiçar como um cachorro vadio. Alonga os braços, estala os dedos finos, abre a fecha as mãos.
A lentidão dos movimentos é acompanhada por um Thales paciente, diferente do apressado que quer sempre deixar a cama vazia de gente
quando encerram as funções. Dessa vez, é pego de surpresa por uma vontade de fazer carinho.
Percorre os dedos pelas costas de Melissa caminhando pela coluna vertebral,
subindo suavemente ao pescoço e descendo até os inícios dos glúteos. Sem malícia, sem outras intenções,
a não ser retribuir uma noite de afeto.

- Que gostoso... fico toda arrepiada.
- É meu jeito de dizer bom dia.
- Eu também quero desejar bom dia pra você.

Melissa vira-se de costas para a cama, traz Thales pelos braços,
num golpe hábil de quem aprendera com o balé dominar o corpo a seu favor.
Ficam rosto com rosto, ele por cima, ela por baixo, enrascando as pernas longas numa armadilha
que Thales não sairia nem se quisesse.
Roçam pélvis com pélvis, apertam-se até não poder mais, beijam-se, sugam-se,
contrariando os que dizem que não se beija ninguém antes escovar os dentes. Danem-se as abluções.
Nem Thales nem Melissa querem perder o gosto da manhã de uma noite bem aproveitada.
E reiniciam o ritual de urros e suores, gostosuras e ferocidade, estranhos e inusitados.
Não estavam acostumados com isso. Ela jamais se entregara tanto. Ele, por fastio, jamais repetiu a dose com mulher alguma.
Não era dado a delicadezas. O contrato sempre cessava à última gota, quando Thales ainda melado pulava da cama
em busca da carteira para encerrar aquela lengalenga.
Dessa vez, algo de novo estava acontecendo entre os dois.

- Você é diferente. Por um momento você me fez esquecer que a gente não era o que a gente é.
- E o que a gente é?
- No principio, eu sou um cliente e você uma prestadora de serviços.
- E no fim?

Os rostos se encostam. Os olhos se fecham. Os lábios se falam.

- Duas pessoas querendo entender o que está se passando.
- Duas pessoas que por alguns instantes viveram a ilusão de um encontro químico, amoroso, carnal e...,
desculpe ir longe demais: a-pai-xo-nan-te.

Melissa se levanta de supetão. Thales fica paralisado diante da mulher estabanada que tentava recolher
as roupas espalhadas pelo apartamento. O vestido na varanda, as sandálias na sala, o sutiã na mesa de jantar e a calcinha
- sabe-se lá onde foi parar o diabo da calcinha no momento em que foi extirpada sob a fúria dos esfomeados.
Agora, enquanto recolhe o que vestia antes do baile, Melissa balbucia pensamentos em voz alta.

- Tia Aurita me avisou... esse trabalho não é para mim. Namorado é namorado, cliente é cliente...
Onde está a calcinha... não posso sair sem calcinha...
- Na cozinha, Melissa.
- E você para de me vigiar. Acabou o serviço!
- Não estou vigiando... estou apressando a sua saída.

Melissa fuzila Thales com testa franzida e pálpebras tremelicando.
Num silêncio furioso, amaldiçoa sua própria hesitação.
Seu instante de sinceridade e fraqueza estavam em vias de encerrar o sonho aventureiro
de uma carreira bem sucedida de mulher de tantos e tantos homens ricos, poderosos, maduros.
Achava que estava vacinada contra qualquer trapaça. Mas entregue a uma esfinge de homem,
logo o primeiro cliente, perdeu o juízo.
Sentiu um macho amoroso derramar afeto entre suas pernas e o que é pior:
deixou-se retribuir como uma donzela possuída por um príncipe.
Que pieguice mais ridícula. Como uma aprendiz da vida pode fraquejar ao primeiro serviço?
Que homem era aquele, que encostado à cabeceira, braços cruzados, tórax nu, sorria de canto de boca,
deixando escapar um olhar intermitente entre o inquisidor e o pidão,
próprio dos machos perversos e dos meninos meigos que as mulheres gostam de botar no colo?
Que homem era aquele que emanava uma superioridade meio besta,
ao mesmo tempo em que suplicava com os olhos que ela ficasse mais um pouco, um pouquinho só,
para que a eternidade cuidasse de resolver o imbróglio causado pelas surpresas do acaso?
Melissa respirou fundo.

- Me dá logo o dinheiro.
- Tá aqui o pagamento. Como combinado com a tia.
- Melhor assim. Contrato é contrato.
- Tá certa. Fomos longe demais. E veste logo essa calcinha.
- Quero ir embora logo, sem nada por baixo. Se achar a calcinha, fica de souvenir pra você.

Melissa bate a porta sem olhar para trás. Esbaforida, desce a ladeira saltitando entres os paralelepípedos,
tentando trazer junto o coração que cismava em ficar naquele apartamento bagunçado.
Foge sem querer fugir, enquanto um Thales atordoado encontra a calcinha embolada numa fronha.
Leva a lingerie rendada até o rosto, fecha os olhos, beija, morde, passa a língua,
esfrega no nariz, cheira profundamente o tecido, inalando uma sensação inédita e inebriante.
Tem ímpetos de pagar o celular:

- Volta, estou morrendo de saudade. Vamos passear de mãos dadas,
ir ao cinema, tomar sorvete.

No mesmo, absoluto e coincidente instante, numa sinergia rara e transcendental,
Melissa desacelera a fuga fingida e inicia uma meia volta.
Tem ímpetos de bater na porta de Thales.

- Voltei, estou morrendo de saudade. E quer saber? Meu nome é Ana Luiza.





sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Quarta-feira de Cinzas


Cirilo S. Lemos













Até que a Terça da Folia do Clube Vicentino não era um programa tão ruim assim, afinal. Renato odiava o Carnaval, mas os beijos que a mulata fantasiada de coelhinha dava em seu pescoço compensavam o barulho, o tumulto, os marmanjos vestidos de mulher rodopiando orgulhosos pelo salão. E como compensavam.
Deslizou a mão pelas costas dela até sentir o rabinho de algodão no biquíni branco. Convidou-a para um lugar mais reservado. Ela sorriu e o arrastou pelo braço até o banheiro.  
            Não sabia o que uma mulher daquela vira num cara como ele, mas podia apostar sua coleção de Sandman – dez deliciosos volumes encadernados, capa dura, papel especial – que o fato de estar bêbada tinha algo a ver com isso. Ao diabo com as explicações, ele pensou, quando sentiu uma mão abrir seu zíper e se enfiar em sua calça.
            – Você tem camisinha aí? – sussurrou a coelhinha.
            – Tenho – respondeu Renato, o coração ao pulos. Arrancou a carteira do bolso, abriu-a atabalhoado: o pequeno envelope plástico de perfume levemente adocicado devia estar lá desde seus treze anos, mas ela não precisava saber disso.
            – Sabor morango. Adorei – ela riu ainda mais alto e tascou-lhe um beijo, a boca deliciosamente quente. Realmente quente. E era macia, úmida. Algo reagiu nas partes baixas. Renato agradeceu ao calor por dilatar seus vasos sanguíneos e aumentar o fluxo de sangue.
            – Está tão quente aqui... – a coelhinha gemeu, desgrudando-se do corpo de Renato. Engolia o ar em grandes bocados. – Quente demais.
            Renato esfregou a testa suada. A temperatura parecia mesmo estar subindo.
– O ar condicionado deve ter pifado. Oitocentas pessoas espremidas num lugar minúsculo e a direção do clube deixa o ar pifar. Depois reclamam quando são trocados pelo Clube Veneza – ele disse. Seu interesse, porém, era outro. Agarrou a coelhinha pela cintura e a puxou para si. Ela veio, mirando-o com olhos sanguíneos, e o enlaçou com um abraço vulcânico.   
            Renato tentou penetrá-la outra vez. Foi como enfiar o pênis numa churrasqueira.
            – Que isso – ele gritou, arrancando depressa a camisinha meio derretida.  
            A coelhinha cambaleou para trás, o suor formando uma nuvem de vapor ao seu redor.
            – Você está bem? – dava para sentir um cheiro leve de cabelo queimado. – Moça, pelo amor de Deus.
            A coelhinha desabou ao chão, e então irrompeu em chamas como se fosse um galão de álcool. Uma fogueira humana, agitando desesperadamente braços e pernas. A fumaça negra se espalhou pelo banheiro.
            Renato correu em busca de ajuda, tropeçando nos próprios pés, sem acreditar no que acabara de presenciar. Ao chegar ao salão, viu dezenas de foliões – homens, mulheres, crianças – transformados em incêndios ambulantes.
Entrou em pânico.
A gritaria terrível tornava impossível pensar direito. Mais e mais pessoas explodiam em chamas e se consumiam em instantes sem razão aparente. Renato correu para a saída, onde uma multidão apavorada se acotovelava na porta estreita tentando fugir. Um homem ao seu lado se transformou numa bola de fogo. Com os olhos ofuscados, Renato caiu e foi pisoteado. Levantou-se com esforço. Atravessou a porta misturado à floresta de braços coloridos, pernas envoltas em meias, troncos emplumados, cabecinhas de fadas, bailarinas e piratas. Chegou à rua.
– Ah, porra.
            Gente em chamas por toda parte, gente rolando pelo chão tentando extinguir o fogo que lhe devorava os corpos, gente se atirando de prédios ou na frente de automóveis para fazer a dor passar, gente sem saber o que fazer ou aonde ir, como ele.
            Correu para o estacionamento, sem coragem de olhar para os clarões repentinos que surgiam ao seu redor. Alcançou seu carro. Enfiou a chave na ignição. Pessoas em chamas cercaram-no implorando por ajuda, tentando abrir as portas, socando os vidros. Renato viu um homem se jogar contra o pára-brisas, o fogo torrando-lhe a pele. Estremeceu. Ia ter de atropelar aquelas pessoas para poder sair com o carro. Não teria coragem de fazer uma coisa dessas. Mas tinha de ir para casa, saber se o pai estava bem. Abriu a porta do carro com um chute, derrubou um dos infelizes e correu para longe dali.
            Como ir para casa? Em qualquer direção que olhasse, via dúzias de piras incandescentes alucinadas. Os urros vinham de toda parte e se misturavam às buzinas, sirenes, choros, latidos, marchinhas abandonadas de Carnaval.
            Ali perto, diante de uma cruz vermelha de vários metros, um pastor berrava ao microfone sobre o Fim dos Tempos e a Destruição dos Pecadores. Louvava ao Senhor por trazer sua Justa Punição e seu Fogo Purificador no último dia da celebração hedonista da carne. Fiéis endossavam as palavras do pastor com gritos de aleluia e braços erguidos. Era uma igreja grande e próspera. Homens de terno impediam que as pessoas assustadas buscassem abrigo dentro dela.
A multidão apedrejava as portas de vidro e forçava a entrada. Os homens de terno – seguranças, na verdade – ameaçavam atirar nas pessoas para afastá-las. No fim, dava no mesmo estar dentro ou fora: fiéis e infiéis, todos começaram a queimar um a um. Renato não viu quando o pastor se tornou uma bola de fogo clamando pelo espírito santo: correra ao ouvir os tiros, perguntando se Deus tinha algo com aquela loucura toda, e quase foi atropelado por um ônibus em chamas ao atravessar a rua.
Entrou num beco entre dois prédios altos. O cheiro enjoativo de carne queimada se misturava ao ranço dos sem-teto encolhidos de medo. Pilhas de cinzas fumegantes se espalhavam por toda parte. Renato sentiu o estômago se contrair. Vomitou.
            – Coisa estranha, né? – disse um mendigo. Encharcava o corpo com uma garrafa de coca-cola cheia de urina.
            Renato não respondeu. Continuava vomitando.
            – Vou deixar o corpo bem molhado para me proteger do fogo. O mundo inteiro tá assim, meu chapa, a porra do mundo todo. E sabe por quê? A radiação ultravioleta. Tem um vírus nela. Não se pode brincar com o planeta, garoto. Ele tem pais vingativos.
            – Besteira – grunhiu Renato, um gosto azedo na boca. Cambaleou para longe dali.
            – Que explicação você tem? – ainda ouviu o mendigo perguntar.
            Avenidas, condomínios, favelas, ruas, praças, edifícios, casas, bares, carros, bordéis. Em todos os lugares as pessoas – e somente elas – queimavam até a morte. Haveria explicações para isso?
A televisão e o rádio instavam a população a não sair de suas casas. Autoridades apareciam falando e falando. Precisavam mostrar ao povo que ainda havia alguma ordem no país, apesar de tudo. Mas não havia. Militares e políticos também queimavam, e o próprio presidente se transformara numa labareda duas horas antes. Nada de ordem ou hierarquia, apenas um colossal incêndio humano.
Renato seguiu pelas ruas em busca de um jeito de ligar para o pai. Todos os telefones que encontrava pelo caminho estavam mudos. Ao longe, ainda dava para ouvir o eco mórbido de pessoas explodindo em chamas. Mas o silêncio se tornava cada vez mais presente. A cidade esvaziava.
            Parou no meio de uma ponte, onde um pequeno grupo de pessoas saltava e desaparecia nas águas escuras do rio. Renato se perguntou se teria coragem para uma atitude dessas. A idéia de morrer afogado lhe parecia ainda mais aterradora que morrer queimado.
            Uma fuligem gordurosa começara a cair sobre a cidade. Quanta gente precisava ser carbonizada para se produzir aquela quantidade de neve morta?
            – O fim do mundo – ele suspirou, observando o fogo que agora se espalhava também pelos prédios. – Não há graça nisso.
Um velho subiu no parapeito da ponte. O último dos suicidas. Com um sorriso triste, saltou e foi engolido pelo rio. Renato ficou observando as bolhas na superfície da água. Nas primeiras horas da quarta-feira de cinzas, se viu só. 





quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

biscoitos de manteiga


   Maria de Fátima

   Um ventinho a soprar de fora fez restolhar o cortinado que protegia a entrada da varanda: um tecido leve, branco, vaporoso e muito limpo. Isaura disse, levantando o olhar na direcção onde Iria estava sentada mais perto da janela:
   – Está fazendo fresco. A amiga, se não se importa, feche essa janela.
  E Iria debruçou o corpo, ergueu-se apenas o necessário para prender um no outro os batentes de vidro, mas foi reparando no que ía na rua, ali à altura de um primeiro andar baixo:  
   – Parecem foliões. Devem ir para a sociedade, que hoje é sábado-gordo.
   Disse assim para que a outra soubesse o que ela estava vendo, e voltou a refastelar-se no cadeirão a esborrachar as florinhas miúdas pinceladas no tecido a par com umas aves que talvez fossem pintassilgos.
   – Os carnavais já não são o que eram – disse Isaura Torpes, revirando os olhos como se tivesse dito, assim dizendo, uma verdade enorme.
   E talvez fosse. Ao menos assim parecia entender Iria, a olhar a outra e a deixar descair o lábio inferior, a remoer duas ideias, a preparar a boca babosa para a frase que disse:
   – Eu também concordo…
   E a seguir foi o silêncio que era cada uma das senhoras a vasculhar memórias onde se reencontrasse vestida de pajem ou de dama da corte ou bailasse num baile.
   Entrou na sala uma moça a empurrar um carrinho desses de distribuir refeições, e disse, com um sorriso de quem está quase a sair de serviço, mas continua a cumprir obrigações:
   – Minhas meninas, o lanchinho.
   E foi colocando um bule e duas chávenas sobre uma mesa que parecia estar à espera de servir para alguma coisa, e retirou o pano que tapava um prato a deixar ver uma fiada de biscoitos. Cheirou na sala à manteiga de que os bolinhos seriam feitos, no mesmo instante em que uma madeixa do cabelo que a rapariga tinha preso numa touca, descaiu, e quase roçou a superfície do líquido escaldante que caía na chávena de Isaura.
   Terá sido disso que Iria se apercebeu dos confetis quase a soltarem-se sobre os guardanapos, quase a caírem numa orgia colorida sobre a mesa e sobre cada chá. Uns papelinhos vindos, sabe Deus de que baile da noite passada onde a empregada tivesse andado apertada nos braços de um arlequim ou de um soldado. Ou nem a moça teria brincado, talvez que nem se tivesse mascarado, e lhe tivessem atirado o confeti quando passava numa rua. Num e outro caso, esquecida de que ao outro dia, por volta das quatro e um quarto, serviria chá àquelas senhoras.
   – Isaura, a menina viu o cabelo dela?!
   Assim clamou Iria quando a empregada se afastou saracoteando umas nalgas largas sob a bata em quadradinhos azuis.
   Mas a outra sorriu-lhe, ou ao menos era um sorriso o que tinha colado no rosto magro já muito plissado em torno dos olhos e nos cantos dos lábios.
   Isaura nem deve ter-se apercebido do perigo que seria caírem na sua chávena papelinhos azuis, verdes e amarelos, além dos encarnados que decerto viriam de mistura. Que Isaura apenas tinha olhos para o que aqueles papelinhos lhe tinham avivado de memórias: episódios de Entrudos da sua juventude e outros, mais atrasados que sua mãe contara. E foi recontando sem pedir licença e sem retirar do rosto aquele riso miudinho, bem disposto.
   – Ai o que a mim me lembrou a ver os papelinhos …
   A minha avó chamava-se Maria da Assunção, mas todos a conheciam por Marquinhas. Naquele Entrudo, como de costume, em cada sala de baile estava armado o mastro com fitas e balões, e havia uma mão cheia de saquinhos de pano cheiinhos de areia ou serradura, conforme. E havia rolos de fitas multicores – as serpentinas – e saquinhos repletos de confetis. Os sacos de pano eram feitos expressamente – nos meses de frio, ao serão, mal passavam os reis, e já em cada casa havia ao menos um par de mãos a recortar tecidos velhos, a pespontá-los e a colocar-lhe um atilho no local por onde seria, nas vésperas de se iniciarem os festejos, colocado o material que, enchendo-os, e depois de atados, os iriam tornar em arma de brinquedo e arremesso. Os saquinhos prenhes de serradura ou areia da praia jogados a um e outro no cortejo ou atirados da janela ao incauto que passava na rua.
   – Costumes. – disse Isaura a ver se a outra dormitava ou se mantinha atenta ao que estava contando.
   Nesse Entrudo, minha avó juntou as quatro filhas, minha mãe entre elas, e vestiu-as com saias embebidas em muita goma e com muita roda; colocou na cabeça de cada uma um lenço de ramagens e, no braço, a uma pediu que levasse um cesto, a outra que segurasse uma galinha, à minha tia mais novita pendurou no braço uma bilha de trazer azeite, e à minha mãe, a avó Marquinhas disse que levasse um bácoro aconchegado no avental – um porco ainda mal desmamado que minha mãe segurou com desvelado cuidado.
   Minha avó materna, vestiu-se parecida com as filhas, mas colocou arrecadas nas orelhas, herança da mãe dela, e um xaile sedoso, negro e com cadilhos a descaírem na camisa branca. Na cabeça colocou um lenço todo ele em seda pura, ou imitando:
   – Sei lá eu… – e Isaura riu-se, ainda mais, a acrescentar, para compor o quadro que ouvira repetido à avó e à mãe:
   – Um lenço vermelho sobre as tranças que a minha avó tinha muito pretas.
   E prosseguiu contando.
  
   Pela hora em que o povo, e o resto da sociedade, começava a dirigir-se à sala de baile a que, por profissão e escalonamento social, lhe cabia em uso, minha avó Marquinhas deu a cada filha uma mascarilha que ela mesmo tinha feito em flanela preta com dois buracos para que assomassem os olhos. Em si mesma colocou, preso por fitas de cetim, no mesmo tom, uma rede negra, de tal modo colocada que se lhe ficavam a ver-se apenas os dois olhos. Nas mãos enluvadas de vermelho, Marquinhas segurava um baralho.
   – Seriam onze horas e o baile na sociedade dos ricos ía animado. – Isaura afirmou assim como se lá tivesse estado e prosseguiu o conto sob o olhar atento de Iria.
  
   Minha mãe contava que havia muita gente pelas escadas e que se apartaram a fazerem filas enquanto elas subiam, e que gritaram: deixem entrar as ciganas, que seriam elas com minha avó adiante e o bácoro grunhindo preso nos bracinhos de minha mãe ainda quase criança.
   Contavam, uma e outra, e houve tempo que contavam as duas, ao despique, que no salão parou o baile, arredaram-se cadeiras e as senhoras olharam-se a perguntarem o que seria aquilo, e riam a verem a minha avó andando de um lado para o outro na roda que se fizera no salão mais chique da cidade.
   Marquinhas e as suas quatro filhas ensaiando o que nem tinham ensaiado.
   Minha mãe diz que teve medo daqueles risos todos a olharem para ela muito aflita a segurar o porco para que não fugisse.
   Minha avó Marquinhas sentou-se com a saia em balão espalhada no sobrado e, espetando o dedo, chamou cada uma das filhas segundo a sua função:
                       tu que tens o galo, senta- te minha filha
                       tu que tens o bacorinho, aninha-te neste chão real
   – Minha mãe jura que a minha avó disse assim quando se referiu ao lugar onde ela se devia sentar.
    Isaura parou um pouco a beber um gole de chá.
   E minha avó chamou a filha que trazia a bilha e a outra que levava a galinha e sentou em sua volta as quatro meninas.
   Minha mãe contava do medo que tinha tido das caras dos senhores, rindo a mostrarem dentes de oiro e a olharem para ela lá do alto da roda que haviam feito em redor do espaço que elas ocuparam.
   E a minha avó leu sinas e deu sentenças, coisas que ela dizia ver nas cartas, ou seriam umas que inventava e outras que sabia de verdade serem casos de pessoas que estavam na sala ou eram aparentados.
   Todos riam: olha, olha o que diz a cigana, e a perguntarem entre dentes, sobretudo as senhoras: quem será que assim se atreve? e a desviarem-se, que sabiam que no Carnaval valia tudo.
   E foi quando se deu.
   Parece que minha mãe dormiu ou pelo menos descuidou o segurar no bácoro e este soltou-se, fugiu a grunhir por entre os pés dos foliões, senhores da classe mais alta da cidade.
   E minha avó Marquinhas, esquecida da função de ler as sinas, a levantar as saias e a correr pelo salão de baile a tentar apanhar o porco e a deixar as filhas e a galinha sentadas no salão.

    – Eram outros carnavais e não esta pouca-vergonha das mulheres sem roupa que vê na televisão e nos jornais.
    Assim atalhou Isaura, já Iria tremelicava o lábio desejosa de contar o que entretanto lhe lembrara:
– Houve um ano…
  

   É preciso dizer que Iria começava sempre deste modo cada conto que contasse.

   Houve um ano… disse ela, e foi seguindo:
   Houve um ano em que me mascarei de qualquer coisa. Entrouchada. Era assim que se dizia lá na terra quando não se assumia uma figura, mas era só a gente a entrapar-se, fosse lá como fosse, para sair à rua que era aí a festa: andar cada um de cara tapada nem que fosse com um pano de renda ou um trapo com dois buracos mal cortados, isso se não havia mascarinha, e não havia quase nunca. E lá íamos a mangar de uns e doutros. Mascarinha, diz-me o teu nome. E a gente a fazer voz disfarçada – voz de máscara – ríamos estouvadas como devem ser as mascarinhas a andar de sala em sala onde houvesse um baile.
   Ao outro dia, ou na mesma noite, como era divertido conversar com o moço a quem tivéssemos atazanado o juízo, sem que ele nos conhecesse, e ouvi-lo dizer: sabes quem é aquela mascarinha assim e assim? e ele a descrever a nossa triste figura quando disfarçadas, e a gente: não, não conheço
   Mentiras inocentes.

   – E sabe, Isaura, foi nesse Entrudo que comecei a namorar o meu Francisco, que Deus o tenha no Seu abençoado seio.

   E benzeram-se as mulheres a tasquinhar ainda um pedacinho de biscoito amanteigado.





quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Um Amor de Carnaval

Todos os anos era a mesma história: no feriado do carnaval, descíamos para a praia.
Às vezes, era para ficarmos num camping, curtindo a farra e os desconfortos de uma barraca, do fogareiro elétrico e da janta à base de miojo, mas também ocorria de minha mãe alugar uma casa no litoral, que dividíamos com várias outras pessoas, amigos ou parentes.
O primeiro grande desafio era o congestionamento-monstro na rodovia. O trecho Curitiba-praias, que num dia normal fazíamos em uma hora ou menos, convertia-se num êxodo — três ou quatro horas de carros enfileirados, que sumiam na estrada a contornar a Serra do Mar. A visão do oceano, distante e plácido entre as colinas, só aumentava a nossa ansiedade, então eu e minha irmã começávamos a nos acotovelar no banco traseiro, enquanto minha mãe gritava e nos ameaçava com uma surra assim que chegássemos à praia.
— Vocês dois vão dormir com a bunda quente hoje!
Eu chorava, minha irmã mostrava a língua para mim e os carros simplesmente não se moviam sob o sol escaldante.
Isto quando um acidente no trajeto não piorava o fluxo, como da vez que um caminhão de pepinos capotou, espalhando barris azuis com pepinos em conserva nas duas mãos da estrada, e com a cabine do caminhão dependurada para fora da mureta, pendendo na beira do abismo.
— Dizem que o motorista foi esmagado... — curiosos comentavam, todos aguardando fora de seus automóveis, já que não nos movíamos um milímetro sequer — a polícia recolheu o coração dele do asfalto.
E, para piorar, assim que o tráfego havia sido normalizado, minha mãe não conseguia dar a ignição.
— Maldito carro a álcool! — ela berrava, dando tapas no volante, então tínhamos de sair correndo, pedindo ajuda aos outros motoristas para empurrar o Gol branco que sempre morria, especialmente nos dias frios de Curitiba.
A chegada à praia era sempre cheia de empolgação, pois então não mais avistávamos montanhas, prédios ou rodovias, mas apenas a imensidão azul que vislumbrávamos a cada quadra perpendicular ao mar.
Assim que estacionávamos na frente da casa, uma vez destrancada a porta, eu e minha irmã checávamos todos os cômodos, isto quando havia mais de um, para nos certificarmos se havia camas, beliches ou colchões suficientes para todos, pois não raras vezes tinha mais gente do que lugares para dormir, então recomeçava a briga para decidir quem ficaria onde, e quem acabaria dormindo no chão, num colchonete que era igual a deitar-se diretamente no assoalho.
Logo em seguida, sob apelos desesperados das crianças, começavam todos os preparativos para a praia propriamente dita: filtro solar, guarda-sol, calção de banho, boné, e toda a parafernália que apenas os não-nativos precisam carregar para curtir as férias.
A primeira providência que eu tomava, ao atingir a areia pelando, era jogar meus chinelos para a minha mãe e correr para a água.
— Não vai muito fundo! — ela gritava e eu só respondia com um aceno. Minha irmã vinha logo atrás, justificando que ficaria de olho em mim, mas que, na verdade, queria paquerar os rapazolas que em bandos conversavam um pouco após a arrebentação.
Nós dois ficávamos no rasinho, eu tinha uns seis anos e ela treze, “pegávamos jacaré” e eu aproveitava para fazer um xixi na água.
Foi neste primeiro dia que vi uma menininha, brincando na areia com baldinho e pá. Ela olhava para mim e fiquei com vergonha.
Minha irmã voltou para perto da minha mãe, para tomar banho de sol, e me deixou sozinho, no raso, pulando as ondas baixas. Sentei-me na areia molhada, voltado para aquela menina, e fiquei olhando, ainda muito tímido, para ela.
Mais tarde, minha mãe nos chamou para almoçar, retornamos à casa e foi quando descobri que a menina que me fitava estava hospedada na casa ao lado, do outro lado do muro. Minha mãe conversou com a mãe dela por alguns instantes, talvez estivessem se apresentando, depois voltou e me disse:
— Você viu que bonitinha a menina aqui do lado?
— Não — respondi, com medo de me entregar.
Naquela noite, minha mãe e as amigas saíram para dançar, em algum baile de carnaval, e deixaram-me com a minha irmã.
Antes de saírem, alguém disse para minha mãe:
— Ouvi dizer que tem lança-perfumes neste baile.
— Eu não gosto disso — minha mãe respondeu, e pensei que era besteira dela, já que ela gostava de estar sempre muito bem perfumada.
Eu e minha irmã jogamos baralho, ficamos sentados um pouco na varanda, mas fatalmente acabamos brigando. Ela puxava meus cabelos e eu metia-lhe belos pontapés nas canelas. Mas eu sempre acabava apanhando, era menor e mais fraco; esta equação só se inverteria muitos anos depois. Até lá, eu era sempre a vítima.
Nos dias seguintes, continuei me encontrando com a menininha, e revezávamo-nos entre ela brincar no mar e eu na areia, ou ela na areia e eu no mar. Não tínhamos coragem de nos aproximar, de dizer “oi” um para o outro, então brincávamos apartados por vários metros, numa confidência e camaradagem que apenas duas crianças podem ter, mesmo sem trocar palavra.
Depois, ficamos ainda mais ousados, passamos a brincar simultaneamente no mar, ou na areia, ainda distantes uma porção de metros. Ele mexia nos cabelos cacheados, e eu me acocorava na água, fingindo estar mergulhando, para dar uma mijada.

O feriado do carnaval acabou e retornamos a Curitiba.
Alguns dias depois, começava o ano letivo e eu teria de encarar a grande etapa na vida de um ser humano: a Primeira Série. Como todas as demais crianças, chorei quando minha mãe me deixou na porta da escola, mesmo sabendo que ela apenas daria a volta no quarteirão e entraria pela porta lateral, já que ela era a professora de Educação Artística. Mal sabia eu que, daquele dia em diante, minha mãe seria uma das minhas professoras por oito anos consecutivos.
Conheci meus coleguinhas, minha professora, e saímos para o recreio, cada qual carregando a sua lancheira com suquinho e pão de forma com queijo e presunto.
Para minha surpresa, em meio à criançada que corria pelo pátio, pulava amarelinha, brincava de pega-pega, de corda, avistei a mesma menininha da praia.
Obviamente, não tive coragem de me aproximar, mas percebi que ela também havia me reconhecido e cochichou com suas amigas.
A mesma barreira permaneceu entre nós, até o dia dos namorados, quando, apaixonadíssimo, criei coragem e entreguei-lhe um buquê de flores. Ela sorriu, acanhada, escondeu o buquê atrás das costas, esmagando algumas das flores, e correu para longe de mim, refugiando-se para junto das colegas.
Eu tinha uma namorada!
Ao invés da imagem típica do carnaval, do sexo, da carne, da exposição, dos confetes e serpentinas, da bebedeira e das drogas, da obrigação machista de comer uma garota, na minha mente se gravou esta memória fugidia de um amor de infância, puro e imanente.
Gravou-se a recordação da minha primeira namorada, que havia conhecido no carnaval.





domingo, 7 de fevereiro de 2010

Só um Balão

por Ju Blasina

Balões parecem-me
Tão felizes
Coloridos, lustrosos
Pairando alto
Flutuando leve
Subindo ao céu
Tão belos ao longe
Tão cheios
De cor, de ar
De vida, talvez
E só quando estouram
Revelam o interior
Tão vazio e oco
Seu corpo, já
Frágil, disforme
E morto

Às vezes sou só
Um balão
Cuja corda dou
Em tuas mãos
Cuja beleza deixo
Aos teus cuidados
Ao teu olhar
Cuja vida depende
Do teu ar. Infla-me!
E te darei em troca
Minhas cores e
Meu feliz estar
Para nele te alegrar

Segure-me firme
Mas não muito
Amarre-me forte
Mas nem tanto
Não quero
Subir ao céu
Nem quero
Romper-me ao chão
Quero ter só
O brilho das cores
Do teu balão





Oqdz...

Por Ju Blasina


...Da Carência
Sentou no controle remoto e gemeu, jurando que foi sem querer. Ao menos nas cinco primeiras vezes.


...Da Clemência
Implorou para não fizesse aquilo, daquele jeito, naquele lugar, mas Clemente era surdo seletivo.


...Da Indecência
Enrubescia sempre que ele ameaçava espiar-lhe as calcinhas. Não pela falta de decência da parte dele, mas pela carência da parte delas.


...Da Cadência 
Seu ritmo era perfeito! Estava indo tão bem... Pena terem-lhe faltado
as pilhas.





Ser genérico

por Ju Blasina
De tão indeciso nasceu hermafrodita. E não bastasse, nasceu em trânsito: os pais viajavam em férias pelo interior do Interior quando se deu o trabalho de parto. Era um domingo, dia de todos os santos, e no interior do Interior não há hospitais. Viajavam de uma cidadezinha de nome estranho A para uma de nome esquisito B, quando as dores começaram. As primeiras contrações se deram ainda em A, o bebê coroou em B, mas só teve o cordão cortado em C, cidadezinha menos inóspita.

Os pais, temendo escolher a opção errônea, recusaram influenciar-lhe o sexo. E então, com a consciência leve pela não decisão a qual preferiam chamar de “criação liberal”, chamaram ao bebê por um nome neutro e vestiram-lhe em cores neutras na esperança de que o gênero se revelasse junto ao desabrochar do crescimento. 

Passou a infância dividido entre Barbies e Falcons, panelinhas e playmobiles, bambolês e berlindes, mas foi na adolescência que a confusão piorou... E tudo o que antes parecia complicado, mostrou-se simples se comparado ao que estava por vir: futebol com os garotos ou shopping com as meninas? Vestido ou smoking para o baile de formatura? E o pior: com quem dançar?

Não bastasse o dilema pessoal e social de toda adolescência, o que dizer da sua? Uma explosão hormonal com ares de Big Bang! Ah, se ao menos agradasse a apenas um gênero, talvez a lei de oferta e procura selasse o seu destino, mas não... Sua beleza andrógina o tornava alvo genérico, cortejado por ambos os sexos. E seu corpo, sem preconceitos, respondia independente do gênero que o despertava. E na maior parte do tempo sentia-se assim uma pessoa feliz, indecisa e indefinida. Pena que o mundo só ofereça um espaço de cada vez. 

Tornou-se um indivíduo tão promíscuo e volúvel que nenhum relacionamento engrenou. Nunca soube se preferia ficar por cima ou por baixo, por dentro ou por fora. Algumas vezes já nem tinha certeza se gostava de alguma coisa de fato, ou se só as fazia em busca de respostas que nunca vinham.

Envelheceu cheio de rótulos que não lhe cabiam e dúvidas que lhe roubavam o pensar. Toda vez que precisava usar um banheiro público, parava em frente à porta num profundo e reflexivo pesar que mais ninguém compreendia. O mesmo ocorria ao abotoar de uma camisa, fechar de um cinto ou cruzar de pernas: qual é o lado certo? Qual é o lado...

Foi pai e mãe, biologicamente falando, mas não assumiu nenhum dos papéis. Não por falta de comprometimento para com os filhos, mas sim para com os pais. Sentia-se culpado por não poder dar-lhes uma resposta satisfatória, qualquer que fosse.

O excesso de opção foi seu maior castigo, sua maior tormenta. Foi só na morte que encontrou a paz. Seu epitáfio exibe sua primeira revelação, compreendida somente por suas últimas palavras, foram elas:

“Deixem-me
Apenas
Ser”





sábado, 6 de fevereiro de 2010

C

O
N
C
I
S
O
S


BACCO

Não há como aceitar
cordeiros
– não sendo um deus assim como eu.




DESFIBRILADOR

Nas vidas em que a vida não desperta os sentidos
só resta a poesia
tentativa última de elo com o mundo exterior.



#


Se
o
mar
cabe
em
uma
concha,
por que o amar transborda do coração?




RETALHO

E o que somos nós,
senão um mosaico
de lembranças
num mural de fé?