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sábado, 28 de julho de 2012

Revista SAMIZDAT no Topblogs 2012


A Revista SAMIZDAT está concorrendo ao prêmio de Melhor Blog de Literatura no Topblogs 2012.

Por isto, viemos aqui para pedir o seu apoio e o seu voto, clicando no botão acima.
Existem três opções de voto, através do e-mail, por sua conta do Facebook ou Twitter, sem complicação alguma.

Se você é nosso leitor habitual, já conhece a qualidade do nosso trabalho e compreende a importância de publicações como a SAMIZDAT para o panorama literário atual, apresentando o melhor da Literatura que ainda não aparece nas grandes livrarias, feiras literárias ou nos cadernos de Literatura dos jornais.

Nossa missão, hoje e sempre, é a de contornar o brutal processo de exclusão do mercado literário, que tenta relegar às sombras grandes talentos que, por qualquer razão que seja, não se enquadrem em seus restritos perfis de negócio.
Simplesmente não vamos nos calar nem deixar de lutar.

Se você está nos visitando pela primeira vez, gostaríamos de compartilhar com você algumas informações sobre a Revista SAMIZDAT.


 - criada em 2008, a SAMIZDAT foi uma das primeiras revistas digitais distribuídas gratuitamente em .PDF, apresentando autores brasileiros e portugueses, além de grandes nomes da literatura nacional ou internacional;
- foram 33 edições regulares e 1 edição especial;
- mais de 1000 obras publicadas no blog, com a participação de mais de 170 autores consagrados e estreantes, dos mais diversos gêneros;
- acessada por mais de 140 mil leitores no site;
- e lida por outros 130 mil leitores nas edições da Revista SAMIZDAT em .PDF.

Contamos com seu apoio, caro leitor, pois nosso labor e nosso esforço é e sempre será o de lhe trazer o melhor do nosso talento, com obras instigantes, profundas, divertidas, angustiantes ou informativas.

Se ainda estamos aqui, dia após dia e ano após ano, é pelo simples prazer de sermos lidos por vocês.

Obrigado,

Henry Alfred Bugalho
editor





sexta-feira, 27 de julho de 2012

Dedicatória

Após a estreia com algumas dicas, segue meu primeiro texto para este espaço.


Dedicatória


Alegrou-se com a notícia de que o livro seria dedicado a ela. Caminhou até a livraria com passos e um sorriso dignos de uma musa imortal, inesquecível.

Ao abrir na primeira página, leu: "Em memória de..."

O livreiro recolheu o corpo.









Eu gostaria de destacar que este foi o primeiro texto que enviei para um concurso literário na minha vida. Felizmente, a obra obteve uma seleção para publicação na coletânea de 2007 do Concurso de Contos Luiz Vilela. Infelizmente, o concurso foi extinto este ano... uma lástima.





quarta-feira, 25 de julho de 2012

O fundo da gaveta


Joaquim Bispo

James Burn era um detetive peculiar: só tratava de casos já julgados, cujo veredito tinha ditado a pena de morte. Era a sua forma de combater o que considerava “modo primitivo de aplicação da justiça” do país.

Mantinha um vasto ficheiro de pastas que consultava regularmente. Quando, por acaso de circunstância – geralmente por intervenção de familiares dos condenados – lhe chegava alguma pista extra, passava o respetivo caso para os pendentes, e, a partir daí, seguia o novo indício com minúcia e perseverança até o esgotar. A maior parte das vezes, a pista dava em nada; noutras, chegava a conseguir a reapreciação do caso, e, num caso ou noutro, a libertação dum inocente.

Eram estes casos que o enchiam de orgulho e lhe davam alento para o combate. Como outros admiram o diploma emoldurado na parede, ele, todas as manhãs, folheava as pastas dos condenados absolvidos: o caso do quase adolescente que fora condenado por violação e morte da namorada, crime que afinal tinha sido obra do padrasto; o caso do negro que morreria por injeção letal daí a dois dias, quando a sua investigação provou que estava longe do local no momento do assalto; e mais três ou quatro outros casos.

No fundo da gaveta jaziam os dois que ditariam a libertação de inocentes, mas que, infelizmente, tinham sido resolvidos tarde de mais para os condenados. A pena de morte antecipara-se. Quando tinha coragem para os folhear, invariavelmente, abria também a última gaveta da direita da escrivaninha donde retirava uma garrafa de Jack Daniel's. Como gostaria de viver num país civilizado!





terça-feira, 24 de julho de 2012

MICROCONTOS TEMÁTICOS DE EDWEINE LOUREIRO – PARTE I

Amigos leitores, a partir desta edição, estarei apresentando microcontos elaborados com base em uma famosa citação ou dito popular. Para o mês de Julho, a citação escolhida foi: Amai-vos cordialmente uns aos outros… (Romanos 12:10).
Boa leitura!
Edweine Loureiro
*

IN VINO VERITAS

Serviu-lhe uma taça de vinho, como prova do perdão, a ele concedido, por havê-la abandonado, há vinte anos, na porta da igreja. Na bebida, uma gota de cianeto de potássio.
***

SOBRE AMORES E WASABI

Num restaurante de sushi, no Japão, conheceram-se: ele, brasileiro, era auxiliar de cozinha; ela, japonesa, uma das garçonetes.
Casaram-se.
Seis anos se passaram e, agora, donos de um restaurante de sushi no Brasil, decidiram separar-se. Ela ficou com o restaurante; ele, com outra garçonete.
***

ESPORTIVIDADE

Abraçava aos adversários e apunhalava-os nas costas.
***





segunda-feira, 23 de julho de 2012

O sofá


(*)

O sofá me agrada, mas tenho que sair. Daqui a pouco, a noite chega e não é bom continuar por aqui. Muitas pessoas chegarão e eu prefiro a solidão. Não é que eu goste do meu isolamento, mas não gosto da multidão. Não gosto daquele barulho no ambiente, que atrapalha uma boa conversa. Além disso, nesse bar, o sofá é o lugar mais procurado. Ele é confortável, seguro e lembra sexo. As pessoas adoram sexo.

Talvez hoje o bar não encha, talvez só por hoje as pessoas esquecam as cervejas, a diversão e fiquem em casa com seus amigos, suas famílias.

Há anos que não tenho um relacionamento sério. Ás vezes, eu até gostaria de divertir-me um pouco com alguém, ou quem sabe namorar, casar, ter filhos. Mas a verdade é que não tenho mais paciência para relacionamentos, não tenho mais paciência com as pessoas. Acho que no fundo, não tenho mais paciência para mim. Tenho andado tão só, que com o tempo acostumei apenas com a minha presença, acostumei a viver sem ningúem.

Mas gosto de ir à cafés, restaurantes e bares; gosto de ver pessoas, gosto de assisti-lás, mas não gosto da interação. Há pessoas que não percebem que apenas quero ficar ali, distante, apenas olhando. Tem uns que tentam começar uma conversa, como se eu quissese conversar. Nesses momentos, só penso que gostaria que eles não me aborrececem tanto. Os homens são os piores.

Eles simplesmente não podem ver uma mulher sozinha em um pub. Eles acham que precisamos ter um homem ao nosso lado, então chegam e começam a falar. Na maioria das vezes, eu não quero conversar, tento encerrar o assunto, dizendo que estou lendo ou esperando meu namorado, mas eles continuam. É um aborrecimento total. E devaneio comigo mesma, 'eu só queria tomar uma bebida fora de casa, sem papos só para não estar em casa'. E quando alguns, mais ousados me tocam? Nesses casos lembro-me dos versos do poeta 'Não gosto que me toquem'.

Meu analista diz que são problemas mal resolvidos que tenho com o meu pai. Eu, simplesmente, acho que é porque não gosto de ser incomodada. Não é problema comigo. O problema é desses homens. Foram poucos o que conseguiram fazer com que eu me sentisse uma mulher de verdade, foram poucos os que fizeram com que eu sentisse. Pela minha experiência, a maioria são uns mal educados, insensiveis e egoístas. Pensam que sabem de tudo e que as mulheres não sabem nada. Tratavam-me como uma estupida, como se eu não tivesse voz para falar sobre os problemas do país, o sorriso da Monalisa ou sobre a vida.

Há muito que deixei de desejar um homem perfeito, gosto mesmo é dos imperfeitos, mas almejo ainda encontrar um que simplesmente me escute. Alguém com quem eu possa falar e que não seja meu analista.

Depois de um tempo, comecei a perceber que os homens são na verdade meninos de fraldas. Isso faz lembrar-me de um verso de outro poeta 'o menino é o pai do homem'. Não sei se isso faz muito sentido hoje em dia. Os meninos quando crescem, parecem ainda mais meninos. Ou pior, meninos sem confiança.

Talvez meu analista tenha razão. Talvez eu tenha problemas mal resolvidos com o meu pai. Mas a verdade é que nunca conheci um homem como meu querido pai. Ele era do tipo confiante, que me protegia e fazia com que eu sentisse segura ao lado dele. Ele sabia que não podia me proteger de tudo, mas se esforçava para fazer com que eu acreditasse que isso fosse possível. Ele tinha uma confiança, uma segurança ao falar comigo, ao cuidar de mim; uma segurança que nunca vi em nenhum outro homem. Todos que conheci eram inseguros.

Será que sou eu? Será que sou eu que os deixo inseguros? Nao, acho que eles são assim por natureza. Os meus homens, meu ex-namorados, casos não sabiam o que queriam da vida, esperavam que algo acontecem para que tudo fosse diferente. Queria um emprego melhor, mas não procuravam algo melhor ou atualizavam seus currículos; queriam uma vida diferente, mas continuavam fazendo as mesmas coisas de sempre; reclamavam das pessoas, mas continuavam saindo com elas. Sempre as mesmas. Com o tempo fui perdendo a paciência, fui cansando-me desses mesmos discursos. No final todos eles eram iguais, crianças com medo de encarar a vida. Eu eu antes de ser mãe, antes de ser dona de casa, eu queria ser mulher. Talvez por causa disso, hoje eu prefira ficar sozinha.

Mas gosto de ir a cafés e bares. Em especial neste bar, no qual tem esse sofá de couro, bordô, que tanto gosto. Ele é aconchegante, confortável e isso me enche de confiança. Lembra o meu pai. E isso traz me esperança. Penso em permiti-me uma vez mais, ter alguém em minha vida novamente. Então veio para esse bar, sento-me no sofá e tomo minha bebida. E mesmo que eu não queira admitir, sempre acho que vai chegar alguém e conversar comigo com toda a segurança, que não ficarei impaciente, que terei vontade de conversar com essa pessoa. Infelizmente, os homens que sentam ao meu lado são tão desinteressanes e chatos ou são casados. Então, prefiro ficar quieta no sofá, fingindo que leio ou fingindo que estou no celular.

Talvez o problema não sejam os homens, talvez seja eu. Talvez, meu destino é ser sozinha. É... pensando bem, eu sou muito complicada mesmo, nunca vou achar alguém que me entenda, que escute o que tenho a dizer, que me ame. E claro, que seja fiel.

Às vezes, até penso em dar chance a um desses caras inseguros, mas daí, imagino como seriam as coisas e percebo que teria que cuidar de tudo em casa. Imaginar uma rotina, na qual eu teria que cuidar de tudo, todos os dias, cansa. Talvez, eu esteja mesmo é cansada da vida. É que tudo é um tédio, nada de novo acontece.

Ás vezes eu queria viajar para um país distante ou encontrar alguém com quem eu me sentisse bem, então casaríamos, teríamos filhos e seríamos felizes. Simplesmente assim, ser feliz. Mas, acho que nada disso vai acontecer, eu não vou conhecer ninguém interessante, não vou viajar para um país distante. Mas uma coisa eu sei, gosto do sofá, gosto de me sentir bem quando estou sentada nele, e então vou ficando por aqui, sozinha no sofá, só mais um pouco, enquanto a noite não chega.



__________
(*) Direito da imagem atribuído a dee_gee, seguindo os critérios estabelecidos pelo Creative Commons .





sábado, 21 de julho de 2012

O Telemarketing e o Cronista


— Alô?
— Boa noite! Eu poderia falar com a senhora Zulmar?
— É ELE mesmo...
— Desculpe, senhor Zulmar. Nós estamos ligando para o senhor porque o nosso Banco constatou que o senhor é um ótimo cliente, senhor Zulmar e como prêmio por sua boa conduta, estaremos disponibilizando um cartão de crédito internacional com as duas primeiras anuidades grátis. E tem mais, senhor Zulmar! O senhor poderá cadastrar até quatro dependentes e...
— Mas eu vou ter que pagar a fatura no final do mês?
— Como, senhor?
— A fatura. Eu vou ter que pagar o que eu gastar?
— Claro que sim, senhor!
— Então que prêmio é este, seu eu vou ter que morrer numa grana? Obrigado, mas eu não estou interessado. Aproveitando que você me ligou, uma pergunta: a senhora tem carro?
— Carro?
— Sim, carro. Aquela caixa de aço com quatro rodas, movida a gasolina ou a álcool, onde a gente entra e ela nos leva de um lugar para outro...
— Não... senhor Zulmar eu não tenho...
— Puxa vida, que coincidência maravilhosa! Eu estou vendendo um Monza 1982 novinho. Você estaria interessada?
— Mas, senhor...
— Trata-se uma oportunidade rara. Novinho, não batido. Documentação ok, ar, vidro elétrico, lindo, lindo. Parece carro de mulher, aliás, você pensou que eu fosse uma não?
— Eu já pedi desculpas, senhor... é que o seu nome...
— ... Eu sei, parece de mulher. Aliás, quer que eu te conte a origem do meu nome?
— Senhor, eu não posso conversar agora... eu estou trabalhando...
— Mas a nossa conversa está tão agradável! Sabe, quase 10 horas da noite, eu estava mesmo sozinho aqui em casa,  sem fazer nada, torcendo para que uma operadora de Telemarketing me ligasse...
— Para quê, senhor?
— Para um papinho sem compromisso. E acho que dei sorte, pois sua voz é muito bonita, sabe? Rouquinha, sensual. Fico só imaginando como você deve ser aí do outro lado da linha...
— Senhor Zulmar... Devo lembrá-lo que a nossa ligação está sendo gravada....
— Melhor. Assim ficará registrado o  dia em que nos conhecemos. De que cidade você é, minha flor? Pelo sotaque, deve ser do interior de São Paulo. Mas não há problema. Nada que uma passagem de ônibus não resolva...
— (....)
— Alô? Meu amor, está me ouvindo?
— (....)
— Alô? Você deve ser tímida não? Tudo bem, mas, e quanto ao Monza 82? Vai querer comprar?
tum...tum...tum...tum...tum...tum...tum...tum...





sexta-feira, 20 de julho de 2012

Maria e Maria

Nasceu uma 92 segundos antes da outra. As gêmeas univitelinas de Raissa e Robledo pagaram todos de surpresa, quem diria uma barriguinha tão murchinha caberem duas crias tão robustas, tudo preparado, um berço, um enxoval, um chocalho, camisinhas de pagão e cueiros para uma que agora são duas. Dos narizes arrebitados à choradeira tudo era absolutamente igual. Sincronizavam hora da fome e arroto, banhavam-se nas mesmas águas mornas da bacia, sorriam simultâneos bilus bilus. Até o cocô vinha na mesma hora, com a mesma coloração e consistência. Para encerrar as confusões, quem é quem, cara de uma focinho da outra, nem uma pintinha para diferenciar,
os pais receberam sinais dos anjos e trataram de obedecer chamando as duas de Maria.
Maria pra lá, Maria o pra cá. Assim vingaram sem identidade própria, sem vontades próprias, sem desejos próprios. 
Na escola, usavam a mesma carteira, escreviam no mesmo caderno, partilhavam da mesma merenda:
sanduíche de pão com goiabada, que apesar de um só, tinha o tamanho de dois.
Cresceram Maria e Maria pulando a mesma corda, ninando a mesma boneca, lambendo o mesmo pirulito. Rezavam o mesmo terço, recitavam as mesmas poesias, contavam as mesmas prosas, cantavam as mesmas modinhas, riam das mesmas piadas. Declamavam os mesmos versos nos saraus familiares, quando o tio beberrão sempre encerrava a salva de palmas com a mesma voz pastosa: “essa menina é um talento, até parece que é duas.”
Menstruaram no mesmo dia e assim foram mês a mês, um reloginho de precisão suíça de incômodos e tpms, nada que uma só gota de atroveran para aliviar o ardor de duas cólicas. Mocinhas, viram de a mesma janela o amor chegar. E ele bem que chegou de repente: Amaro, garboso forasteiro, elegante nos gestos e no vestir, encantou-se pelas duas, de uma só vez. Com a mesma corte, derrubou Maria e Maria com charme e lábia singulares. Raissa e Robledo faziam gosto. Resolveriam com um único mancebo despachar as meninas predestinadas, sem preocupações de dois genros intrusos
no dia a dia da casa.  E assim começaram os três a namorar. A calça de tropical inglês roçando as baias das saias rodadas nos encontros no portão fez crescer fantasia que pernoitava na cama das duas. Segredavam-se em duo com sôfregos gemidos, suores dobrados, queimações duplas pelos entre pernas. Tocavam-se irmãmente descobrindo as delícias do fogo divino e não se decepcionaram na noite de núpcias. Depois da cerimônia, onde Robledo conduziu Maria e Maria, uma em cada braço
aos braços de Amaro, sob a estranheza de dezenas de olhares, o trio nubente enfurnou-se num sexo veemente e compartilhado. O rapaz era um espetáculo. Dava conta das duas com a mesma intensidade, produzindo esplendores sem que ninguém ficasse devendo a ninguém. Pouco a pouco as meninas iam se transformando em sacerdotisas do gozo e da luxuria. Mitos católicos e cartilhas de bons costumes foram se esvaindo entre os lençóis, quando todas as formas de afeto e prazer
eram experimentadas e descobertas a cada seção. Dedos, línguas, narizes, cotovelos e calcanhares, o que houvesse de extremidades rijas eram bem recebidas por lábios, grandes, pequenos, carnudos, recônditas protuberâncias enrijecidas, úmidas e pulsantes, cavernas aconchegantes, orifícios diversos. Discretos, não proclamavam à vizinhança e à parentada suas proezas, cabendo às maledicentes de plantão duvidar da virilidade de Amaro, esquisito rapaz que se submete a este situação,
quem tem duas na cama, acaba por ter nenhuma, rezava a corrente da inveja. Mentira desdenhosa.
Tão logo correu noticia da gravidez simultânea de Maria e Maria, engoliram as Matildes a verdade de que o rapaz numa noite só teria aumentado com duas matrizes a população mundial. Nove meses depois, Maria e Maria pariram trigêmeos cada uma, três meninos, três meninas, para orgulho de Raissa e Robledo. Melhor impossível: criaram duas filhas como se fosse uma e agora a vida em progressão geométrica ofertava três casais de netos numa tacada só. Lembraram do sinal dos anjos quando a gêmeas nasceram, imbuindo o casal da missão de purificar a raça humana, fazendo de duas ovelhas um ícone singular da concórdia.
Mas nem tudo foi paz na vasta prole. Longe disso. Os anos se passaram e o a população da casa de Amaro, Maria e Maria virou um saco de gatos. Da harmonia desejada surgiu o transtorno opositor. Como anti modelo às duas mães monozigóticas, aos avós obsessivos e a um pai conivente, o sexteto desgovernou-se. Floresceu cada um com suas manias, fé, times de futebol, jeito de falar, caráter, personalidade, fraquezas, caligrafia, paladares, vícios, preferências políticas, musicais e sexuais.
Rixas de irmãos era pinto diante que os tempos aprontaram: litígios ferozes, brigas severas, ameaças e tentativas de morte. Adolesceram os seis como se estranhos fossem. Mais que isso: inimigos, como inimigos são os radicas étnicos, ideológicos, torcedores, sectários e religiosos mundo afora, como espelho do rosto mais perverso da humanidade. Corroídas de desgosto, Maria e Maria, num pacto sinistro, beberam do mesmo veneno. Estrebuchou uma 92 segundos antes da outra. 
As gêmeas univitelinas de Robledo e Raissa, co-esposas de Amaro, e ungidas com os óleos da extrema fraternidade, foram enterradas num mesmo caixão sob as vistas dos pais devastados e de um marido combalido. Nenhum dos seis filhos compareceu. Dizem que andam pelo mundo disseminando a discórdia, plantando o ódio, promovendo a intriga, cultuando a inveja, espargindo a soberba, o egoísmo, a injustiça, a avareza, o rancor, o ciúme, a barbárie e a crueldade. Foram além
das fronteiras do bom senso, regente do fato que são as diferenças que movem a existência, e vestiram os capuzes da intolerância.
Robledo e Raissa enlouqueceram nos porões de um manicômio, pregando aos quatro ventos que eram os mentores do apocalipse, arautos do pior dos mundos, logo eles, que tanto fizeram do ideal da igualdade o turbo da vida. E ainda hoje, Amaro, o duplo viúvo, vive correndo atrás da produção do Fantástico para contar sua história estapafúrdia. Só que ninguém acredita.





quinta-feira, 19 de julho de 2012

Leitura em baixa

(Maristela Scheuer Deves)

Dias atrás, o escritor Marcos Fernando Kirst escreveu em sua coluna, no jornal Pioneiro, sobre o problema que muitas pessoas demonstram atualmente em compreender textos que tenham um pouco mais de complexidade que a permitida pelo limite de 140 caracteres do Twitter, por exemplo. Também já observei esse "fenômeno", em que alguns ditos leitores parecem não conceber frases que não se componham unicamente de sujeito + verbo + um único complemento. Textos que conectam ideias, abordam dois conceitos ou fazem intercalações na escrita parecem, para alguns, pecado mortal.

Pois agora surge uma pesquisa que mostra que essas observações têm fundamentação na realidade. Dados da pesquisa pesquisa Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf 2011), realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, e pela ONG Ação Educativa, mostram que, embora oficialmente o analfabetismo atinja menos de 10% da população brasileira, aqueles que realmente têm domínio pleno da capacidade de leitura restringem-se a 26% da população entre 15 e 64 anos.

Segundo o estudo, os analfabetos — considerados como aqueles que não conseguem executar tarefas simples de leitura — são 6% nessa faixa etária. Outros 21% teriam apenas um nível rudimentar de compreensão da escrita, com capacidade de localizar informações explícitas em textos curtos, anúncios ou bilhetes.

A maioria dos brasileiros, 47%, estaria no nível de alfabetização considerado básico: seriam os alfabetizados funcionalmente, que leem e compreendem textos de média extensão, leem números na casa dos milhões e têm noção de proporcionalidade. No entanto, teriam limitações quando a ações que envolvem maior número de elementos, etapas ou relações (como um texto mais complexo).

E só os 26% restantes, já citados, seriam plenamente alfabetizados, capazes de ler textos mais longos, analisar e relacionar as suas partes, comparar e avaliar informações, distinguir fatos de opiniões, realizar inferências e sínteses.

O mais assustador são alguns dados complementares da pesquisa. Entre as pessoas com ensino médio — das quais, como salienta o próprio texto do estudo, se esperaria que já estivessem todas no alfabetismo pleno —, a maioria (57%) permanece no nível básico, e apenas 35% têm a compreensão integral do que leem. Quando o universo é o das pessoas com nível superior, a situação melhora um pouco, e 62% mostram nível pleno de compreensão; mesmo assim, ainda se está distante do que se esperaria de alguém com no mínimo 15 anos de estudo.

(texto originalmente publicado no blog Palavra Escrita - www.pioneiro.com/palavraescrita)





Literatura x modismos


(Maristela Scheuer Deves)


Cresci lendo de tudo, de clássicos brasileiros e estrangeiros aos romances de Barbara Cartland, dos livros da série Vaga-Lume às edições de banca dos romances policiais de Agatha Christie, de gibis a fotonovelas. Li Machado de Assis e Paulo Coelho, Alexandre Dumas e Sidney Sheldon, Stephen King e Dan Brown. Encantei-me com a prosa poética do livro Iracema ("a virgem dos lábios de mel, com cabelo mais negro que a asa da graúna"), ri com as traquinagens de Emília e de Pippi Meialonga, maravilhei-me com a inteligência de Sherlock Holmes e me emocionei com as intrincadas tramas familiares tecidas por V.C. Andrews.

Faço essas citações aqui no início do texto para que não me acusem, mais adiante, de discriminação literária. E quero deixar bem claro: não sou daquelas pessoas que acham este ou aquele tipo de literatura "melhor" do que os outros (nem daqueles que insistem em rotular certos livros como pseudoliteratura). Não me considero intelectual e leio não porque acho que isso vá transformar o mundo, mas porque é algo que sempre me deu prazer.

Dito isso, vamos finalmente ao tema deste texto, os modismos literários. O título acima é, na verdade, uma provocação, uma vez que os livros não deixam de ser literatura por serem "da moda". O correto talvez fosse escrever "modismos literários x outros livros". Sim, pois é essa a sensação que tenho cada vez que olho a vitrine de uma livraria ou uma lista de mais vendidos: há livros "da moda" e livros que, por não estarem na moda, ficam relegados ao fundo das prateleiras e ao esquecimento dos leitores.

Claro que há uma impossibilidade física de todos os livros lançados ocuparem lugar de destaque numa livraria ou estarem entre os primeiros nas listas de mais vendidos. O que não entra na minha cabeça, no entanto, é o que faz com que praticamente todas as livrarias exibam as mesmas obras em destaque, ou que o gosto dos leitores de um país inteiro seja tão homogêneo a ponto de os mesmos títulos se repetirem indefinidamente. Já tive até mesmo essa sensação em feiras do livro, ao ver os mesmos títulos replicados em dezenas de estandes, com raríssimas exceções para algo diferente.

Além dessa exposição demasiada sempre dos mesmos, há também modismos de temática. Se um livro que mescla conspiração com elementos religiosos (vide O Código Da Vinci) faz sucesso, logo as prateleiras se enchem de livros com tramas semelhantes. Se são os vampiros light de Crepúsculo que estouram, multiplicam-se os títulos nessa área. Agora, a moda do momento é a literatura erótica - já que Cinquenta Tons de Cinza vendeu 13 milhões de exemplares mundo afora, novos livros nessa linha vão surgindo, e até mesmo clássicos como A Ilha do Tesouro (!) ganharão versões mais sensuais.

Está certo que já se escreveu de tudo e sobre tudo, mas algumas coisas são exagero. Também não entendo aqueles que leem algo só porque todo mundo está lendo. Fico lembrando de uma amiga minha, que dizia que não era boi de canga para andar sempre junto com os outros e fazer só o que os outros faziam. Cadê o prazer de passear entre as estantes, pegando livros ao acaso, olhando capas, lendo contracapas e orelhas, bisbilhotando as primeiras linhas para só então decidir o que levar?


Antes que alguém atire a primeira pedra, não tenho nada contra os best-sellers. Já li vários, apenas normalmente deixo a poeira do momento assentar para ver se o livro permanece e segue valendo a pena ser lido. Há exceções, claro, como uma de minhas últimas leituras, O Prisioneiro do Céu, do espanhol Carlos Ruiz Záfon, que aparece entre os 10 mais vendidos. A diferença é que não o li porque ele estava na listagem, mas sim "apesar de". Li porque já conhecia as obras anteriores do autor, porque gostava do seu texto, e porque a história parecia interessante.
 
Enfim, creio que não há mal algum em ler livros "da moda". Apenas sugiro que se tenha a mente aberta para ler também outras coisas e descobrir a variedade de boas histórias que há por aí. Não é só a vitrine que existe: revire também as prateleiras mais escondidas, folheie bastante, examine orelhas. Você poderá se surpreender, e descobrir que o mundo da literatura é bem mais rico do que pensava.





quarta-feira, 18 de julho de 2012

E O MUNDO NÃO SE ACABOU


Otávio Martins

Pela rua, distraído, comecei a cantarolar o samba do Assis Valente, “E o mundo não se acabou”. Uma viagem no tempo. Até agora, nada. Preocupação que só acabará pensei, se o mundo, realmente, se acabar.

Vali-me, logo que começaram, novamente, a anunciar que o mundo, em 2012, lá pra dezembro, irá se acabar, de alguma coisa da experiência do Assis Valente. Não vesti maiô; não beijei a quem não devia; não perdoei ninguém – trago-os na conta, ainda. Isso tudo ia “acontecendo” enquanto eu ia caminhando por aquela rua deserta, durante uma madrugada quente. Tão confusa a situação, que eu mudava de ideia a todo o momento. Muitas dúvidas. Por alguns momentos, dava a impressão que eu estava passeando pelo fim do mundo. Para confundir-me, mais ainda, lembrei que algumas pessoas costumam dizer que aqui, onde moro, é o fim do mundo. Com essa afirmação, quase deixei pra lá. Afinal de contas...

Assis Valente compôs esse samba em 1938. Depois de vinte anos, o mundo não se acabou, porém, Assis Valente resolveu dar cabo ao seu mundo. Na terceira tentativa de suicídio, num banco de praça, ingerindo um pequeno frasco de formicida. Como lhe haviam anunciado e garantido, mais tarde, fez o que fez. E o mundo se acabou. Pelo menos pra ele.

Por um breve instante lembrei-me de quando deixei São Paulo. Ali no bar do Zé, na Maria Antonia, tinha muito neguinho sumindo, fiquei com o fiofó na mão e me fui, sem muito pensar, passar uma temporada na Cidade Maravilhosa. Cidade de Assis Valente. Lá, ninguém me conhecia. Pelo menos não precisava andar me cuidando, feito um louco, apreensivo. De cara, fui trabalhar numa fábrica de confecções (roupas de praia), perto do Campo de Santana; na Rua da Constituição. Eu, hein? Tinha um cara lá, duma religião qualquer, que nem lembro o nome; meu colega de mesa, super-religioso.

Minha função? Notista. Eram os calções, sungas e outras coisas, que eu ia colocando com o preto no branco. Depois, era só entregar. O cara, acho, tentando me assustar, dizia que o mundo estava por se acabar.

Numa tarde, depois do trabalho – costumava ir para a Biblioteca, ali na Cinelândia – foi eu pisar o pé naquele espaço, uma “manifestação” relâmpago. Anunciavam os sujeitos que teria uma passeata monstro. Depois, conhecida como a dos cem mil. Diziam que era pra acabar com a “revolução”. Nem o mundo se acabou, nem a revolução. Veio

o tal de AI 5. Depois, pior, um conterrâneo meu (Bagé – RS), na sequência, meteu os pés, com coturnos e tudo, pelas mãos. Isso era 1968, trinta anos depois que o Assis Valente havia feito o seu samba, E o mundo não se acabou. Provavelmente, ali por perto, Rua da Lapa ou Largo do Estácio, talvez.

Deixei o Assis Valente pra lá – os compositores brasileiros, a gente nunca sabe se estão falando sério, vivem inventando coisas... – fui direto para o mais comentado de todo mundo. “Estive” lá pelos meados do século XVI. Nostradamus. Esse, dizem, sabia das coisas. Do seu tempo e dos tempos que ainda, até o dia em que o mundo se acabasse, viriam. Catei nos nichos da minha memória o que eu já havia ouvido, ou lido, sobre esse cara. Considerado o maior profeta de todos os tempos. Não deixou pra ninguém. Falava, parece, de coisas concretas. Não em crenças, ou invencionices. Até os Maia consultei. Claro, pesquisei outros. Uns garantiram, até, que outro mundo teria quando este se acabasse. Uma espécie de mundo eterno. Infinito. Não é como o amor, na visão do Poetinha, “que seja eterno enquanto dure”. É infinito pra mais de metro; o eterno de certos profetas, até para alguns poetas. Umas simples noções sobre o apocalipse, também me interei. Porém, nada que preocupasse muito. Ainda, trazido por uns reles cavaleiros. Não chega a meter medo, pra valer.

Eu estava - falando sério - preocupado e ensimesmado com a ideia do fim do mundo, propriamente dito. Tenho lido e estou perfeitamente informado, jornais, revistas, TVs, rádios, Internet e, até, no boca a boca; todos são unânimes – batata - 2012 é o fim. Já nem faço mais planos para 2013. Caso o mundo não se acabar em 2012, nem sei o que será de mim. O fim do mundo, em 2012, será a minha tábua de salvação. Tem gente que, por qualquer coisinha à toa, exclama: É o fim do mundo! É só força de expressão. Por vezes, dizem só por dizer.

Pelos meus cálculos, com base nas profecias desse tal de Nostradamus, os Maia, e outros, não precisarei nem me preocupar em ir reservando alguns trocados para presentear os meus parentes e amigos no “próximo” Natal. Ontem, saí dos eixos, total... Comprei uma garrafa de uísque importado. Larguei os nacionais. Economizar, pra quê?

Pensando assim, lembrei-me duma outra do Assis Valente, “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...”

Mesmo que 2013 venha, apesar de todas essas profecias, será, sem dúvida, um ano inteiro de muito azar. Treze, com um zero à esquerda, é treze, mesmo. É esperar pra ver. Ou bater, três vezes, na madeira.





segunda-feira, 16 de julho de 2012

Caballero de la Triste Figura

Foto: Google Imagens

De que é feita a tua loucura?
Ou por acaso és um desses que se julgam a salvo das quimeras?
Se o és, te fazes mais tolo do que aqueles que alucinam sentimentos. Do que aqueles que criam fantasias para contrapor-se às verdades impostas pela ardilosa sensatez.
Então, é isso mesmo que escuto? Que não te crês mesmo insano?!
Não te assustas com vozes que contradizem tua vontade, nem te sentes impelido a seguir em frente quando os pés aconselham a permanência?
Diz-me, com convicção, que não sentes qualquer dúvida quanto às regras e obrigações que comandam este mundo?
Diz-me que não sonhas de olhos abertos, ou pelo menos à noite, quando a escuridão acumplicia as sensações!
Não amas? Nunca?!
Sequer o homem ou a mulher que te amarfanha o leito? Nem o filho que te insulta e parte de ti vezes e vezes? Ou o livro que te permite deleite e pensamentos? Ao menos as Escrituras que te garantem castigo: o eterno e o terreno?
E se por nenhum desses sentes amor, ao menos amas teu país, que te injuria a chicote ao pretender para si o que não dividirá contigo?
Não? Nenhum amor?
Talvez, ames o nada...
Pois que é no nada que se aconchegam as almas congeladas. Os pés que jamais sairão a percorrer caminhos desenhados em dor, desejo, intenção.
No nada inexistem sonhos a excitar o corpo. Nem prazer, nem gozo, nem medo...
Ah, a alienação do nada! Essa, sim, a utopia mais cobarde a enganar os tontos, a pedir-lhes que se mantenham... sãos!
E sãos se arrastam, entre sala e quarto, homens apáticos como as ovelhas que se locupletam em pasto e obediência. Não abrem janelas, não deixam que o solo lhes toque as botas ou os calçados finos. Morrem assim, entre quarto e sala. Sãos e obedientes.
Eu não! Eu preferi que rissem de mim.
Deixei que meu peito jorrasse delírios, e resgatei minha criança que dormia. Assustei, agredi, combati os gigantes da opressão que me cercavam sorrateiros.
E o fiz sem qualquer certeza de intenção. Nunca tive intenções, como não as possuo agora. Que de intenções vivem os que manipulam e subjugam.
Eu fiz tudo, e tanto, por amor. Por amor aos sussurros que floresceram em gritos dentro de mim. Afinal, quem mais, se não eu, poderia fazer-se companhia das solitárias vozes que se aprisionavam em minha cabeça?
Hoje, que sou leito e fraqueza, as vozes se foram. Custou-me, para alcançar esta morte triste e silenciosa que já me consome, sentir o deboche dos homens, e perceber sua ganância ou indiferença em relação ao reino que me dediquei a defender. Custou-me receber em corretivos a fúria dos que cruzaram com minhas fantasias e não as compreenderam, nem se apiedaram delas.
A abjeta cegueira dos homens deu-me a única certeza que ousei acalentar nesta vida: de que eu fazia por eles o que não fariam por si mesmos. E, por tal causa, prossegui em desvario.
Ouve, então, o conselho que te dá o Caballero de la Triste Figura: apressa-te a fazer-te louco! Pois gigantes, há muito, te espreitam.





domingo, 15 de julho de 2012

que nem cão


Que nem um animal que quisesse dono
quisesse companhia,
quisesse mais do que lamber o próprio pêlo.

Gaivota caida do seu ninho,
bicho sem jeito a debicar o pó da estrada.
Asfalto quente e os carros atrasados.
O vai e vem dos carros,
e o animal ali desprotegido.

Um eu perdido.
Um eu desesperado,
sem chão que pise e nem telhado.
Um eu magoado a querer  aconhego.
Dois dedos de conversa.
Um dito que lhe seja dirigido
– olá, bom dia! – e seguem sem ouvi-lo.

O céu a desabar,
o mar em tempestade,
e o sol escaldando infernos.
E o frio.
Um imenso frio que nem desaba em neve
e nem o chão se faz em gelo.
Simplesmente, arrefece,
que nem um cão vadio !











 Mulher Cão (1994) de Paula Rego





sábado, 14 de julho de 2012

Último homem sobre a terra


La Promenade sur la Falaise, Monet

O silêncio,
nada de rumores, conversas.

O silêncio
não fosse o quase-silêncio
da voz do arrependimento,
voz que grita: estupido que és!

Não há mais dramas repleto de personagens
assistidos por uma plateia também lotada,
apenas um monólogo para um teatro vazio.

Não há mais a dialética
que constrói o mundo,
somente um dogma patético...

Resta uma masturbação,
não há relação alguma,
nenhuma,
uma sequer...

Como o último habitante da terra,
sobrevivente de uma humanidade
que acordou extinta,
não sabemos se comemoramos sua condição heroica
ou lamentamos a plena solidão.

Como alguém que necessitasse
a interação, a troca, o diálogo
qual vegetal à luz,
padece e perece esse derradeiro ser,
sem uma mísera réstia de sol.

Porém terão morrido todos os homens,
não a esperança (o ato de quem espera),
e cremos que algum dia,
nalgum canto do teatro,
se fará ouvir não só a voz que grita estupido és!
quiçá, oxalá!, rebentará um broto de palavra alheia.





sexta-feira, 13 de julho de 2012

Imagem de Barro | Mais um quarto


"Melhor parar agora de registrar minhas ações, os verbos serão conjugados todos em voz passiva e não quero voltar à condição de Costela."

Conto dividido em quatro partes.
Parte I: Mais um quarto.


Nossas temperaturas estão a um bom tempo equilibradas e altas, o calor incomoda ainda mais quando se divide cama da solteiro. Estou de costas e me chego ainda mais em seu corpo, quero mais calor. E, para sentir a respiração leve do seu metabolismo desacelerado, enrolo meus cabelos e coloco-os de lado, pousando a cabeça encima. Então vou afastando-a até sentir que o seu nariz afogou-se em meus cabelos e que meu perfume impregne o escritório, a academia, o avião ou qualquer lugar onde esteja; que acorde e diga que sonhou comigo.

Não sei bem se o amo, se esse querer-bem é o objeto cantado tantas vezes. Mas me protege e me dá orgasmos (no plural mesmo). Talvez me sinta acomodada, numa zona de conforto, como diriam os profissionais de recursos humanos. Só não sinto nosso relacionamento seguro, acho que relacionamentos não são seguros, não são isentos das incertezas quanto ao futuro. Parei de sair com outros caras, mas não por respeito à virilidade, mas à feminilidade. Tento ficar quietinha, respirar o mais suave possível para não ser descoberta em vigília.

Pena não conseguir dormir em camas estranhas à minha. Nunca me acostumei a outras e não descubro o por que. Não me esforço muito também, talvez Deus tenha me feito assim, intuitivo que é; talvez tenha em meu subconsciente algum bloqueio que me impeça de suspender o alerta a e a atividade sensorial em habitats excêntricos. Me disseram que pode ser pela mudança do ambiente ao redor. Nunca fui boa investigadora, desisto das respostas após poucas tentativas frustradas ou incertas.

Desisto e levanto. Calço uns chinelos que ficam grandes e vou arrastando-os até a escrivaninha, onde acredito estar a minha calcinha. Visto-a. Apanho uma lapiseira e uma folha A4 na impressora, escolho um livro de capa dura na prateleira e vou sentar-me na varanda. Todos dormem, ou fingem, tanto faz. Não há o que escrever. O livro é de Administração de Marketing.

Não sei também se ele me ama, nunca ouvi nada parecido, nem na cama. Mas isso pouco importa de tão importante que é. Melhor não pensar. Nem nos conhecemos. O pior não é nunca ter escutado palavras como paixão ou amor, o pior é não fazer parte dos planos. A questão não é nem não fazer parte dos planos, também não quero me casar, acho que é não compartilhar os planos. Não vou me fazer de culpada (não posso em consideração a mim mesma), mas gostaria de saber dos seus anseios, suas aspirações. Medos já seria demasiado, homens são herméticos e nem eles o conhecem; talvez esse seja um subterfúgio para construírem.

Vem a inspiração. Checo se o grafite está OK. Há um cofre e não há o segredo./ O cofre está fechado./Talvez os séculos com suas armas corrosivas o abra/ talvez.. Está frio e logo estará na hora de acordar.

Tivesse agora, fumaria meu primeiro cigarro. Ninguém sorri enquanto fuma, me disseram. Não quero sorrir. Acho que só deveríamos sorrir ante a morte, pois ai é certo que não haverá mais futuro para se chegar. É um erro sorrir enquanto se luta. Não tenho nada, porque o que conquisto jogo fora para ir atrás de mais, senão morro. E o cigarro me parece uma parada técnica. Meu pai fumava e quando discutia com a minha mãe sempre pausava para um cigarro na varanda, quando voltava, estava mais sereno e a mulher logo acalmava também. Na verdade queria pensar assim e fumar, mas acho as duas coisas muito másculas. Queria ser uma mulher dedicada e fiel, mas também não ser essa. Tentarei fumar, mas só em festas.

Já estamos enjoando um do outro, acho. O nosso elo mais forte é na cama, talvez o único. Antes nos víamos quase todos os dias, nem que fosse para dar uns beijinhos apenas, no cinema ou em mesas de fundo no bar. Agora fodemos no fim de semana e ele nem em liga todos os dias. Está decaindo ao sexo casual, ou banal, como dizem. Necessidades fisiológicas de ambos supridas, cada um em sua solidão. Acho que já posso começar a procurar outro ou fazê-lo acreditar isso.

Gostaria que, ao tocá-lo/ ele se abrisse/ (como se a senha estivesse em algum buraco de mim)/ só para desmistificá-lo/ ver que não há nada insólito/ que induz a idolatria./Igual/ mas não reciclável..

Há tempos não via o dia germinar; o negro está ficando azul-marinho. Está também cada vem mais frio. Entro, fecho a porta e me sento próxima à varanda com a persiana aberta, numa poltrona de antiquário. Não temos mais muito assunto. Filmes, só vemos os recreativos de Hollywood que não dão muito que comentar. Música, temos gostos totalmente opostos e nenhum de nós é eclético e tão pouco queremos dar o braço a torcer na questão. Conversas banais sobre cotidiano e vida alheia logo que deixam enfadada. Queria que ele me explicasse suas empresas, motores de automóveis, futebol que seja. Queria que me aplicasse testes.

Agora está azul-turquesa e os pássaros começam a lavrar o café-da-manhã. Qual será a diferença entre ave e pássaro? Logo acordará. Deixa a persiana aberta para que a luz do dia seja seu despertador natural. Criativo.

//O que preciso é que esteja ao meu alcance/ como um brilhante/ para ditar a hora de usá-lo/ e de negá-lo.

Já está ficando azul-azul. As nuvens, de invisíveis, foram pintadas dum laranja que fosforesce e já estão descorando. Acho que vou me deitar. Destaco a parte escrita da folha, amasso a não-escrita e tento fazer uma cesta na lata de lixo, mas erro. Levanto e vou arrastando o chinelo em direção à cama. No caminho coloco o poema na bolsa e displicentemente o livro e a lapiseira na escrivaninha. Admiro, ainda em pé, suas pálpebras trêmulas: certamente, em sonho, me perdeu.

Sento-me na cama devagar e deito tentando imitar uma pluma. Ele dorme de lado e um pouco encolhido, tento encaixar meu corpo ao seu. Conchinha. Novamente enrolo meu cabelo e faço dele travesseiro. Deixo a região da clavícula e cervical nuas, sei que ao acordar ele irá atacá-la como um anti-vampiro que dá vida ao despertar sensações diversas...

Dissolveram a aquarela azul, e agora está aguado e límpido. Os pássaros já quietaram e as nuvens estão brancas. Acho que as coisas voltaram ao normal após a turbulência que o rompimento da madrugada causa, inclusive eu.

Roço minha bunda em seu púbis em intervalos desritmados, se ele acordar um pouco mais cedo e se deparar com meu corpo livre, quererá. Não há porque terminar esse relacionamento, afinal de contas temos o que precisamos um do outro. Não sei se me portaria bem como cúmplice, talvez não seja esse o porque de sermos. Estamos mais para um ser válvula de escape do outro, mas não no sentido portuário, tange ao circense, algo sem itinerário ou contratos. A tradução literal de boyfriend e girlfriend talvez seja a que melhor nos defina.

Ele está acordando e já vai pulando em minha nuca com os lábios. Melhor parar agora de registrar minhas ações, os verbos serão conjugados todos em voz passiva e não quero voltar à condição de Costela. Acho. Toma minha barriga com o braço e trás para si. Ataca meu pescoço e vou esquivando-me para frente ante suas investidas. Mas nesse movimento nossas partes inferiores se friccionam e ele já se faz sentir.

Ocorreu-me o título: ídolo de barro. Espero que ele me faça esquecer.


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Ídolo de Barro

Há um cofre e não há o segredo.
O cofre está fechado.
Talvez os séculos com suas armas corrosivas o abra,
talvez.
Gostaria que, ao tocá-lo
ele se chorasse
(como se a senha estivesse em algum buraco de mim)
só para desmistificá-lo
ver que não há nada insólito
que induz a idolatria.
Igual
mas não reciclável.

O que preciso é que esteja ao meu alcance,
como um Brilhante,
para ditar a hora de usá-lo
e de negá-lo.

*

Wellington Souza

Créditos da Imagem:
...simplesmente mulher..., por Marisa Duarte.





quarta-feira, 11 de julho de 2012

Luzes apagadas






Vejo fileiras de cadeiras em cima das  mesas,

um  galo embalsamado...

e vagueio, imersa, em meus sentimentos vazios...

O piscar da noite, com um sutil sorriso da lua,

dão o tom de bocejos da solidão,

da  melodia inacabada...



o dia reclama da noite

hei, voce aí, quero o meu avesso!

e a noite desce... implacável!

deitando sem rubores,  em cima do dia,

cavalgando, como velhos amantes,

E aí... geram o amanhecer




Meninas da noite se despem de resíduos mornos de noites impuras,

corpos trêmulos trepidam em ruas embargadas

a garoa fina escoa , derretendo seus cabelos em purpurinas




O sol vinga o massacre da noite

o dia  descoberto acontece em sua realeza

e os amantes amam, amam, amam...

The end





terça-feira, 10 de julho de 2012

Dickensianas

Henry Alfred Bugalho


Dickensiana

De dia, ela e outras duzentas operárias na fábrica. Mas, no refúgio de seu quartinho, à noite, ela povoava o mundo com as mais incríveis histórias, a dona suprema de seu universo secreto.

O Legado

Tal qual em um sonho, o escritor assistiu a seus personagens desfilando diante de si.
Reconhecia-os bem por seus gestos, falas e fisionomias; todos eles únicos como se fossem filhos. Alguns detestáveis, inesquecíveis pela maldade, mas outros eram gentis e bons, exemplos de virtude.
O autor despedia-se deles, certo que cumprira sua missão. Acenando pela janela para cada um que saía pela porta, embrenhando-se pela Londres adormecida, ele sussurrou:
— Sejam imortais, meus caros...



Um Labirinto

Vim de muito longe para encontrar-te, pelo labirinto de ruas que traçaste em minha imaginação.
Pensei que me esbarraria nos entes que concebeste, todos tão presentes e vivos para mim, mas não os encontrei.
A cidade se transformou, já não é mais cinza e suja, já não é mais repleta de ladrões e limpadores de chaminés, nem de órfãos e viúvas em fábricas.
Dias e noites vários deambulei em vão.
Enfim, nas páginas amarelecidas de um volume esquecido num banco de praça, tu te revelaste. Então tudo fez sentido.


Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

http://www.henrybugalho.com/






Quer ser escritor? Então aprenda a escrever! - Dominando frases, parágrafos, ortografia, pontuação, verbos, adjetivos e advérbios


Juro que nunca deixo de me surpreender quando conheço algum pretendente a escritor que não sabe escrever.

Ninguém é obrigado a saber tudo, a conhecer perfeitamente todas as regras gramaticais e ortográficas, e até os grandes escritores ficam em dúvida, de vez em quando, como é a escrita correta de uma palavra ou outra. Além disto, existem erros de digitação ou de revisão, pois, como já diz o ditado, "errar é humano".
No entanto, geralmente é muito fácil perceber quando se trata de um deslize, ou quando se trata de desconhecimento mesmo das normas da Língua Portuguesa.

Não pretendo dar uma aula de português, pois para isto existem dezenas de gramáticas e referências na internet, capazes de sanar todas suas dúvidas. A minha intenção é ser muito mais prático, indicando-lhe alguns aspectos que você deveria prestar atenção durante a escrita.

Frases e parágrafos, ou como organizar seus pensamentos

A frase é a unidade mínima de expressão de uma ideia, que pode ser composta de uma única palavra, ou de várias, como:

"Vá!", ou

"João havia se perdido na mata, sem ter a mínima noção de como faria para retornar à trilha".

Nestas duas frases acima, temos a expressão de ideias completas. No primeiro caso, uma ordem foi dada por alguém para outra pessoa (ou animal) para que ela vá a algum lugar, no segundo, uma ideia mais complexa e elaborada.

É possível compor frases imensas, às vezes com várias linhas, e o grau de complexidade das frases dependerá de sua intenção enquanto escritor, mas também do domínio que você tiver do idioma e para quem se destinam seus textos.

Já os parágrafos podem ser compostos de uma ou mais frases, com uma ideia completa e, comumente, bem desenvolvida.
Na escrita literária, podem haver parágrafos bastante breves, especialmente em diálogos, ou parágrafos imensos, ainda mais em obras modernistas, às vezes com livros inteiros escritos num único parágrafo.

A extensão e sofisticação das frases e parágrafos podem ditar o ritmo de uma narrativa, tornando a leitura da história mais ligeira ou mais cerebral.

A não ser que você deseje se expressar obscura e confusamente, a meta de quase todos os escritores é que o leitor o compreenda da melhor maneira possível, evitando mal-compreendidos, ou, caso queira criar ambiguidade, fazendo-o propositalmente.

Ortografia, ou a escrita correta das palavras

A ortografia é uma convenção que determina qual é a escrita correta das palavras. Nem sempre houve um consenso quanto à ortografia e, até recentemente, as escritas no Brasil e em Portugal possuíam sutis particularidades.

Algumas palavras são difíceis mesmo de serem escritas, pois o português é uma língua difícil e com várias exceções ("exceção" é uma destas palavas que sempre causam confusão).

Existem várias palavras homófonas, isto é que, que possuem a mesma pronúncia, mas que podem ser escritas de maneiras diferentes, como:
"concerto" (Um concerto de Mozart), ou "conserto" (mandei meu carro para o conserto), ou
- "sessão" (de cinema, de teatro, de tortura...), "seção" (uma parte ou divisão, "seção de achados e perdidos") e cessão (ato de ceder, como "cessão de direitos autorais").


Também há palavras homógrafas, isto é, com a escrita igual, mas com sentidos diferentes, como:
- "pelo" (preposição, "ele ia pelo caminho"), ou "pelo" (substantivo, "o pelo do cavalo era branco"), ou
- "manga" (fruta), ou "manga" (da camisa ou da blusa).


Em se tratando de ortografia, as duas melhores recomendações para um escritor são:
1 - ler muito, pois através da leitura você enriquecerá seu vocabulário, aprenderá palavras novas e identificará as formas corretas delas e
2 - ter sempre um dicionário por perto, mesmo que você tenha de passar, a princípio, boa parte do seu tempo procurando as palavras para aprender a escrita correta delas. Um dicionário é um grande aliado de um autor.

Pontuação, ou determinando o ritmo da leitura


Pontuar bem é um dos maiores desafios para um escritor, seja ele um iniciante ou veterano. A utilização adequada das vírgulas, pontos, dois pontos e todos os demais sinais de pontuação são cruciais para determinar o ritmo da leitura. Veja dois exemplos abaixo:

1 - "Mas o canalha não era nenhum bundão. Ele começou a se debater, acertou uma cabeçada na minha boca e, muito mais jovem e forte do que eu, se libertou. Com o jogo invertido, ele me esmurrou, pisoteou-me e cuspiu na minha cara, encurralando-me cada vez mais no beco.
Juro que tive medo daquele homem, nariz ensanguentado e ódio no olhar. Roleta sacou uma faca, vinha em minha direção. Eu, no chão, me arrastava para trás, para fugir daquele assassino." (trecho de Roleta-Russa em O Covil dos Inocentes)

2 - "Por quantas pessoas não passamos pelas ruas sem nos darmos conta? Eu já havia estado naquele mercado uma dúzia de vezes apenas no último mês e não a havia visto antes. Será que havia sido recém-contratada ou eu simplesmente havia ignorado a mulher com colete vermelho, cabelos louros presos num rabo de cavalo e aquelas rugas ao redor de seus olhos azuis. Todos os dias, resvalamos em milhares de indivíduos, todos muito ocupados em seus afazeres, concentrados, rumo a algum lugar, indigentes, desocupados, idosos, crianças, gente que vem e que vai. Talvez até passemos por pessoas que já foram importantes em nossas vidas, mas estamos tão entretidos brincando de viver que nem desperdiçamos nossa atenção." (trecho de Margot Adormecida)

Nestes dois parágrafos, temos ritmos de escrita e de leituras completamente diferentes.
No primeiro, um romance policial, as frase são mais breves e dinâmicas, ainda mais nas cenas de ação; no segundo, as frases são mais longas e que exigem uma concentração maior do leitor. São propostas diversas para estilos literários distintos.
Isto não quer dizer que todo livro de ação deva ser escrito com frases custas, repletos de pontos-finais, ou que todo romance mais intelectual deva ter frases longas e rebuscadas, pois tudo dependerá da sua intenção.
O importante é compreender que a pontuação terá um papel fundamental no ritmo de sua narrativa.

Escrever como se fala, ou escrever da maneira correta?

Este é um debate cabeludo que sempre atrai defensores acalorados em ambas as frentes.

Imagino que você já deve ter percebido que não falamos exatamente como pregam as gramáticas, muita gente "vai no banheiro", "assiste um filme no cinema" e fizeram alguma coisa interessante "há muitos anos atrás".
A língua falada se transforma muito mais rapidamente do que a linguagem literária, palavras nascem e morrem, gírias são criadas ou caem em desuso, simplificamos e abreviamos, tudo para facilitarmos a comunicação.
No ato da escrita, existem duas vertentes principais:

1 - aqueles que gostam de escrever como falamos, com todos os erros gramaticais implicados nesta escolha, como em:


"Zé Carlos engatilhou a espingarda, abriu uma fresta na porta e espiou.
— O bicho ‘tá lá fora, Maria! — ele tremia.
— Deixa, Zé. Aqui dentro ele não faz nada... — Maria, incerta." (trecho de O Bicho Roncador)

2 - aqueles que gostam de uma escrita literária artificial, como em:

"Fui iludido. Não há hostes celestiais para me receber no paraíso; não há som de trombetas. Não há nada. Um vazio me invade; um vazio mais forte que o amor. Estamos perto do fim. Acredito que, se alguém um dia se lembrar de mim, ele possa aprender uma lição: toda profecia, cedo ou tarde, se realiza." (trecho de O Rei dos Judeus)

Em essência, nenhuma das duas está certa ou errada. Pense na Literatura como um universo regido por leis próprias, onde você, o escritor, é o Deus supremo e absoluto, que cria tudo de acordo com sua vontade.
Uma escrita mais próxima da linguagem falada pode, por um lado, criar uma identificação maior com o leitor, no entanto, por outro, pode também causar certo estranhamento. Leia os contos ou romances de Guimarães Rosa, com diálogos extraídos da linguagem única do sertão, e perceba quão realistas e, ao mesmo tempo, literários eles são. Já uma escrita mais rebuscada e arcaica também pode soar estranha, pois ninguém fala assim na vida real.
Para mim, o ideal é caminhar no meio termo, tentando equilibrar estes dois extremos.

Verbos, ou o poder da ação

A melhor maneira para expressar bem uma ação é escolhendo o verbo apropriado para isto. Esta não é uma tarefa muito simples, confesso, pois ao tentarmos ser muito inventivos, podemos recair na cafonice.

Para diálogos, existem uma porção de verbos dicendi, ou seja, verbos declarativos, como: disse, falou, respondeu, replicou, interveio, perguntou, questionou, redarguiu, indagou, comentou, admoestou, e assim por diante. Apesar de a lista ser longa, o recomendável é não abusar demais.

Leia o exemplo abaixo e me diga o que pensa:

— Maria, aonde você pensa que vai? — indagou Pedro.
— Isto não lhe interessa! — retrucou ela.
— Mas eu sou seu marido. Você me deve satisfações! — replicou Pedro.
— Marido, sim... Meu dono, não! — redarguiu Maria.
— Não me desrespeite, mulher — admoestou-a o esposo.


Os verbos dicendi, nesta situação acima, mais atrapalham do que colaboram para a dinâmica do diálogo. Na minha opinião, seria melhor restringir-se somente a "disse", "perguntou" e "respondeu", ou, o que seria ainda melhor, sem nenhum verbo declarativo, como abaixo:

— Maria, aonde você pensa que vai? — indagou Pedro.
— Isto não lhe interessa!
— Mas eu sou seu marido. Você me deve satisfações!
— Marido, sim... Meu dono, não!
— Não me desrespeite, mulher.

Você conseguiu entender bem o diálogo sem os verbos? Perceba que mantivemos o primeiro verbo para identificarmos o nome do marido, pois talvez fosse uma informação importante no contexto, caso a discussão prosseguisse.

No entanto, em narração, um verbo bem escolhido é o segredo do poder de uma oração.

Por exemplo:

"Um terrível acidente. Ele passou por cima do colega com o rolo compressor."

O verbo "passou" é extremamente ameno, retirando boa parte do impacto da cena. Releia agora este trecho com outro verbo:

"Um terrível acidente. Ele esmagou o colega com o rolo compressor."

Esmagar é muito mais gráfico e chocante, ainda poderíamos ter escolhido "triturar", "esmigalhar" ou até "pulverizar", que já seria um pouco exagerado, a meu ver.

A escolha dos verbos deve ser consciente, mas com parcimônia. Quando o esforço é demasiado, é fácil exagerar e perder a mão. Novamente, o equilíbrio é o melhor caminho.

O Perigo dos Adjetivos e Advérbios

Adjetivos são as qualidades dos substantivos, por exemplo: feio, gordo, magro, alto, baixo, triste, escuro, liso, opaco, raso, e assim por diante.
Advérbios são palavras que modificam os substantivos, os verbos ou os adjetivos, como rapidamente, felizmente, depressa, realmente, aqui, ali, depois, quase, sim, não, muito, entre tantos outros.

O uso excessivo de adjetivos e advérbios num texto é tentador, que seduz facilmente os escritores iniciantes e muitos veteranos.

Leia o exemplo abaixo:

"O opulento e poderoso senhor de engenho oprimia demasiadamente os enfraquecidos escravos negros, que se recolhiam macambúzios à obscura senzala após um duro e longo dia de labor."

São tantas informações, tantos adjetivos e advérbios numa única frase, que quase queremos desmaiar após lê-la.
Escrever bem não é a mesma coisa que escrever muito, ou escrever longas e complicadas frases.

Escrever bem é expressar bem uma ideia. Às vezes, precisaremos de várias frases e parágrafos para isto, mas, em outros casos, basta uma única palavra.

Conclusão

A escrita é um exercício.

Quanto mais praticarmos, maior será o domínio sobre ela, mais cômodos ficaremos e melhor a compreenderemos.

Ter dúvidas, questionamentos ou errar não são motivos para vergonha. Deveria ter vergonha aquele escritor que não reconhece que a escrita é um aprendizado perpétuo, que depende de tentativa e erro, da leitura de outros autores e da revisão constante de seus próprios trabalhos.

Escrever é refinar-se, trabalhar conscientemente com as palavras, escolhendo-as como quem seleciona pedras preciosas para serem lapidadas. É um labor demorado, mas recompensador para aquele autor dedicado.

Talvez demore anos até que você comece a ficar satisfeito com suas obras, no entanto, estudar, ler e escrever muito e sempre são essenciais.