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terça-feira, 28 de março de 2023

O Mundo Pula e Avança

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 8

Eles não sabem nem sonham

Que o sonho comanda a vida

E que sempre que o homem sonha

O mundo pula e avança

 

António Gedeão (pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho)

Professor e poeta português

(1906-1997)

 

Apesar do choque inicial, a maioria das pessoas achou que as cabeças dos homens-macaco seriam uma boa oferenda aos deuses e não foram por isso removidas dos postes onde foram empaladas.

O inverno avançava em passos largos e os grupos de caça já regressavam com presas cada vez mais pequenas ou mesmo de mãos vazias. A neve caía, por vezes durante dias sem interrupção e havia um manto branco mais ou menos permanente a cobrir toda a paisagem.

Os cereais começavam a reduzir drasticamente e as frutas armazenadas comeram-se ou tiveram de se deitar fora por se estragarem. Temendo a fome no clã, Erem mandou convocar aqueles cuja opinião tinha em maior conta, embora o acesso fosse livre e frequentado pela maior parte dos aldeões. Em volta de uma enorme fogueira que derretera toda a neve e gelo em volta, os enregelados vizinhos foram-se acumulando, mantendo-se encostados para conservar ao máximo o calor corporal.

Na sua voz grave, Erem expôs o problema que todos tinham conhecimento; corriam o risco de não ter alimentos suficientes para sobreviver à época dos grandes frios e necessitavam de arranjar soluções.

Depois de várias vozes que se limitaram a apresentar queixas ou sublinhar as dificuldades já sentidas, pediu a palavra Alim, o mais velho dos nómadas, cujo grupo estava já completamente integrado na comunidade.

Ele começou por abordar o frio que todos sentiam nestas reuniões, que, aliás, deveriam repetir-se mais vezes sobre outros assuntos. Sugeriu que fosse construído um edifício maior onde coubessem de forma confortável os membros de um conselho que debateria o futuro do clã. Necessitariam de menos lenha para se aquecerem e os problemas das pessoas teriam um lugar onde serem apresentados para se obterem soluções.

Imediatamente se levantaram um conjunto de vozes discordantes que alegavam a incapacidade de se construir um espaço grande o suficiente, duvidavam da necessidade do mesmo ou até se queixavam do tempo que levaria a construir. No entanto, havia muitos rostos sorridentes que aprovavam a ideia.

Erem foi um dos que se interessou e pediu silêncio, fazendo sinal ao outro para continuar.

Alim explicou que era o que se fazia em muitas das localidades por onde passaram e que a construção de espaços maiores do que as pequenas casas redondas que erguiam não era muito complicada. O seu filho Beki ajudara por várias vezes nessas construções que juntavam madeira encaixadas e pedras, tudo unido por lamas endurecidas. Estava certo de que conseguiriam construir algo suficientemente digno recorrendo a esses conhecimentos. O tempo para o fazer; não há caça, nem agricultura, nem frutas, de certeza que se arranjará sempre uns pares de mãos para se avançar com a obra. A necessidade da mesma era outra questão: todos sentiram uma vez ou outra dificuldade ou um assunto que deveria ser trazido ao conhecimento da comunidade e que por vezes até nem o fazia porque chovia, ou estava muito frio, ou até muito calor.

Lemi, Erem e Zia conferenciaram entre eles em voz baixa enquanto Fikri ridicularizava a ideia, secundado por alguns outros. Naci, que chegara tarde e indolentemente, aproveitou o desdém do amigo para afirmar que quem decidia o que devia ou não ser apresentado ao clã era o seu chefe e não um estrangeiro qualquer.

Uma vez mais, Erem ergueu as mãos a pedir silêncio. Reafirmou que a ideia tinha interesse e iria ser discutida com ele mais em pormenor… via muitas possibilidades para essas “casas grandes” nomeadamente para um melhor armazenamento dos víveres do clã, em vez de estarem distribuídos por várias pequenas casas. O problema que os trouxe ali, no entanto, continuava sem sugestões de resolução, mas também nesse tema Alim alegava ter algo a sugerir e o chefe fez-lhe sinal para que continuasse, enquanto Lemi exigia silêncio às vozes discordantes.

A sugestão do homem ia no sentido de se iniciar uma atividade por demais conhecida por ele e o seu grupo: o comércio; tinham pouca comida, mas havia peles e ossos trabalhados, alguns tecidos, ou mesmo um, ou outro animal. Visitariam as aldeias em redor e fariam trocas por outros itens mais vantajosos e comida. Asil poderia dar algumas das estatuetas que esculpia, Enis os tecidos que produzia, até mesmo algumas das mezinhas de Nehir se podiam trocar.

Uma vez mais, Naci fez-se ouvir acima dos outros alegando que ninguém no seu juízo perfeito trocaria comida em pleno inverno, o outro, porém, tinha a resposta na ponta da língua; lembrou terem peles curtidas e arranjadas e que haveria quem trocasse animais vivos por elas, que consomem muito tempo e necessitam habilidade para ficar prontas.

Mas Alim tinha mais uma surpresa; aproveitando ter deixado o seu oponente sem resposta, informou ter um presente para o chefe da tribo, enquanto se aproximava e ofertava Erem com um objeto comprido, quase do seu tamanho, enrolado em pele.

Erem desenrolou rapidamente o objeto, revelando ser um elegante arco recurvado, totalmente diferente daqueles grosseiros que quase não utilizavam devido ao pouco alcance e força obtidos. Observou cuidadosamente a obra, perante os olhares admirados da assistência e apreciou como era composto por osso, madeira e couro endurecido, formando um elemento só mantido sob tensão por uma corda de tendão. O estrangeiro sorriu-lhe e explicou, enquanto lhe entregava uma seta, que levou muito tempo a fazer aquele trabalho, porque a cola utilizada precisava secar por muitos dias. Também a seta era habilmente trabalhada, resultando numa haste direita, lisa, com algumas penas na parte de trás e uma reluzente ponta de cobre.

A assistência abriu um caminho, sem que fosse preciso pedir, assim que o chefe em gestos lentos preparou-se para disparar a elegante arma.

Erem apreciou a tensão obtida no arco e esticou o máximo que pode, sempre pronto para ouvir o conhecido estalo que significava a destruição por esforço do utensílio. Não conseguiu, porém, que o objeto se partisse; estava já a ficar sem força para esticar muito mais quando soltou a corda e um velocíssimo projétil voou com um silvo pelo espaço aberto pela comunidade, desaparecendo de vista depois das últimas casas da aldeia. Algumas crianças saíram a correr a persegui-lo, apesar dos gritos de dissuasão das mães, para que não se afastassem, pois começava a escurecer.

Um clamor de espanto e admiração ecoou por toda a assistência, enquanto falavam entusiasticamente uns com os outros. Aquela era uma arma fantástica; poderiam caçar animais de distâncias maiores, antes que eles se apercebessem nem sequer da sua presença. Entre a alegria e excitação, ninguém se apercebeu do olhar rancoroso de Naci, que abandonou a reunião logo seguido por Fikri.

As novas ideias eram bem recebidas pelo chefe do clã e pela maior parte dos seus elementos, ajudava a isso a presença de estrangeiros das outras aldeias, que começava a ser frequente, fruto da admiração pela construção do santuário. Começavam a ser encarados com alguma naturalidade os grupos que vinham ajudar na construção por um ou dois dias, trazer oferendas ou simplesmente rezar aos deuses. Alguns fixavam-se em tendas nos arredores, com autorização do chefe, embora com o aviso de que teriam de respeitar as determinações do chefe, não teriam a palavra nas reuniões do clã, nem teriam acesso à distribuição de alimentos que era feita aos doentes, velhos e órfãos. Mas mesmo assim, isso representava uma ofensa para Naci e um reduzido rol de descontentes que desprezavam os estrangeiros e os seus conhecimentos.

As sugestões de comércio de Alim produziram o resultado necessário e poucos dias após partir com mais três homens e dois trenós carregados de bens, ele regressou com várias cabras, ovelhas e cereal. Ficou muito feliz ao deparar com a construção de um grande edifício a decorrer no extremo do casario. O progresso chegara a Barinak, que quer dizer santuário, o nome pelo qual começava a ser conhecida a aldeia nas redondezas.

O inverno estava no seu pico. A neve depositava-se sobre neve tornando as deslocações difíceis, alguns dos estrangeiros que visitavam o santuário, procuravam Asil pelas suas estatuetas em madeira que trocavam por objetos decorativos e até já havia encomendas para objetos de maior tamanho que seriam pagos com algumas cabras ou mesmo meio javali. Alguns queixavam-se de serem atacados e roubados no caminho para Barinak, outros diziam ter conhecimento da morte de um ou outro “peregrino”. Além de penosas, as viagens tornavam-se perigosas.

O Clã do Leão das Montanhas florescia em pleno inverno, quando a maioria apenas sobrevivia, mas os velhos inimigos não dormem. Uma noite, envolvido na escuridão, um estranho bando invadiu a aldeia e matou dois dos estrangeiros que residiam nos arredores, feriu com gravidade uma mulher do clã e roubaram toda a carne pendurada a secar. Entraram numa das casas onde estava armazenado cereal e levaram o que puderam, espalhando e espezinhando o restante pelo chão. Os homens-macaco haviam chegado.

 

 

 

             7 - A Obra Nasce

Parte 7 – A Obra Nasce

A seguir:         

Parte 9 – Velhos Inimigos

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

Manuel Amaro Mendonça

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sábado, 25 de março de 2023

A Paixão de Toní

 

Aqueles tempos não eram bíblicos, mas os fariseus e os humildes viviam juntos nas mesmas cidades, nas mesmas aldeias, nas mesmas ruas, como em todos os tempos. Não era a riqueza que fazia uns soberbos e néscios, nem a pobreza que fazia outros simples e sensatos.

A década de 50 atirou muitos jornaleiros para as cidades, a fugirem de uma agricultura em decadência. Digamos que foi esta a razão que fez Gregório e Rosinda, com pouco tempo de casados, deixarem a casa humilde de pedra à vista numa aldeia do interior e rumarem a um bairro-dormitório da grande Lisboa. Naquela, não havia muito para pôr na panela de ferro, habitante permanente e sossegada da pedra do lar, a um canto da casa; nesta também não, embora as paredes estivessem pintadas e a cozinha só tivesse panelas de alumínio.

Entre biscates incertos e desilusões de cidade, Gregório, aos poucos, foi-se deixando ficar pelos bancos das tabernas mais tempo do que o recomendável. Rosinda, igualmente frustrada entre limpezas de assoalhadas e reprimendas de patroas já esquecidas, elas próprias, das origens humildes, terá ido sendo atraída para maneiras de viver mais fáceis. Quem pode atirar a primeira pedra? Uma coisa leva a outra; o casamento não se aguentou. Sem grandes ralhos nem dramas. A chama partira, a vida familiar tornara-se outra coisa, mais mesquinha, mais sórdida, mais alienada. Gregório foi-se acomodando à precariedade das ocupações, desde que fosse dando para beber um copito.

Um dia, Rosinda resolveu voltar para a terra. Talvez a pensar numa vida mais modesta, mas menos constrangedora, talvez apenas a fugir do que já não queria. Quem sabe? Talvez com um pequeno pé-de-meia que daria para se aguentar algum tempo. Na aldeia tinha família. Alguma coisa se havia de arranjar.

Poucos dias depois, pela tardinha, Toní Alfazema, um janota de Lisboa apresentou-se-lhe à porta. A exigir-lhe que voltasse com ele para Lisboa. Que a Madalena também tinha vindo e estava à espera. Mas Toní insistia que queria o cordão de ouro que ela lhe roubara. E ameaçava-a. Teria ou não teria, ela negava. Ouvindo passos na rua, gritou. Por coincidência, era um seu irmão que vinha do olival. Não era momento nem juiz para avaliar verdades, propriedades nem razões. Um intruso ameaçava a sua irmã e isso só tinha uma resposta.

Toní trepou como pôde umas escadinhas de madeira e encontrou-se encurralado num sótão que nem dava para se pôr de pé. Sem mais saída, arrancou umas telhas e escapou para o ar livre. Não foi longe. O alarido crescia na rua. Naquele tempo, as ruas das aldeias ainda tinham habitantes. Em pouco tempo se juntou muito povo que deu caça ao estranho. Estava alapado num quintal próximo, junto a um galinheiro.

Os primeiros que o agarraram não lhe fizeram mal. Só queriam esclarecer as coisas. Se o tipo fugia, por alguma coisa seria. Rapidamente, a vozearia identificava o fugitivo como o malandro que desencaminhara a Rosinda. Seria um galifão destruidor de matrimónios ou um reles chulo que se agradava mais do dinheiro que as mulheres podiam gerar do que do seu corpo? Um ou outro, eram igualmente podridões andantes, tão longe dos valores sagrados da aldeia. Ou assim se apregoava.

— Está um carro de praça no largo da cruz. Não o deixem fugir!

Então, uns cuspiam-lhe na cara e davam-lhe bofetadas, e outros punhadas nas costas e na barriga. E gozavam:

— Adivinha quem é que te deu.

— Ela roubou-me um cordão — esbracejava o saco de pancada.

As mulheres também se chegavam e gritavam:

— Malandro! Velhaco! Vadio! Corrécio!

O cortejo atravessava lentamente as ruas escuras da terra. Os homens subiam a parada:

— Filho da puta; cabrão; paneleiro; chulo!

E iam “molhando a sopa”. Um deles aplicou-lhe um murro bem dado do lado esquerdo.

Toní foi ao chão pela primeira vez. Quando se levantou, ergueu os braços a pedir calma. Olhava em volta, perdido.

— Deixem-me ir embora. Eu não fiz nada. Ela é que quis.

Uma grande vozearia respondeu-lhe. Claramente, era indiferente. Aquele moinante desviara uma filha da terra para o deboche. Um fariseu tirou um fueiro de um carro de vacas, deixado no terreiro que atravessavam, e assentou-o, com força, no lombo daquele libertino, tentando exorcizar o medo secreto de que a sua mulher lhe fosse infiel.

Toní caiu pela segunda vez. Levantou-se a custo, muito dorido, com o temor no olhar. Claramente, não podia esperar compaixão daquela gente.

— Deixem-me ir embora, que eu nunca mais cá volto.

Mais varapaus foram aparecendo. A populaça enfurecida acompanhava condignamente Toní ao Largo do Calvário, onde o táxi o esperava, seguida por toda a canalhada da terra, que desfrutava a seu modo daquela festa inesperada. Saltando e berrando. A corrupção dos costumes, personalizada naquele meliante, era a justificação para a condenação por unanimidade. Mas talvez a dinâmica das multidões e os medos e ódios surdos para com o meio cosmopolita explicassem melhor tal ferocidade de comportamentos. Ninguém queria ficar sem fazer justiça. Mesmo à chegada ao Calvário, um cajado acertou de través na cabeça do bicho.

Toní desabou pela terceira vez. De visão enevoada ainda vislumbrou a salvação no táxi ali parado.

Agora a turba queria saber se o tipo do carro também era da pandilha. O taxista, de braços no ar, implorava, como se fosse o mau ladrão:

— Não me batam. Eu não tenho nada a ver com isso; só vim fazer um serviço.

Mas não se livrou de uns tabefes. E logo repararam em outra pessoa encolhida no banco de trás. Puxaram-a para fora. Tinha cara de mulher, dizia que era amiga da Rosinda, mas usava calças.

— Deve ser um paneleiro disfarçado de mulher — gritou um.

— Vamos despi-lo para vermos se é mesmo mulher ou um atravessado — lembrava-se outro, ideia muito acarinhada pela maioria da homenzarrada.

Logo a rapariga foi despida e toda a gente verificou as suas credenciais de mulher. Uma das tais, com certeza. O alarido da canalha baixou um pouco, que não dava para berrar e mirar como era o corpo nu de uma devassa de Lisboa, ao mesmo tempo. Nessa noite, as mulheres casadas da terra, sobretudo as de alguns fariseus, iriam ter de aceder a uma súbita e urgente inspiração dos maridos.

Tudo estava consumado. Para que se cumprisse o que está escrito no ditado que diz: “Cá se fazem, cá se pagam”. A malandragem de Lisboa tinha aprendido a lição. Podiam seguir. Entrou a rapariga, a cobrir-se como podia, com as roupas rasgadas; entrou também para o banco de trás Toní, sujo, rasgado e a deitar sangue da cabeça. Finalmente o motorista, a dar graças a Deus por conseguir escapar sem grandes danos, na pele e no carro.

Na estrada escura e interminável para Lisboa de finais da década de 50, Toní gemia, sangrava e desfalecia. Madalena consolava-o, sem sucesso. O taxista acelerava, apesar das inúmeras curvas da estrada. As horas passavam, mas nunca mais chegavam a Lisboa. Um pesadelo aflitivo, uma angústia mortal. Toní não aguentou. Morreu antes de Ponte de Sôr, tombado no colo de Madalena.

Os jornais regionais relataram a ocorrência de modo sucinto, a Guarda foi depois à aldeia, a perguntar os “quês” e os “comos”, mas sobretudo os “quens”. Mas toda a gente só soube dizer que foi o povo. E era verdade. Um povo mais do que outro, mas era verdade: foi o povo.

Joaquim Bispo

*

Este conto foi um dos selecionados para a 39ª edição (maio/junho de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:

https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/selecionados

*

Imagem:

Giandomenico Tiepolo, Cristo à Coluna, 1772.

Museu do Prado, Madrid.

* * *





quarta-feira, 22 de março de 2023

As Duas Bestas

 


De entre escombros e ruínas, de vidros estilhaçados e metais retorcidos, de corrimentos e manchas e afluxos, de entre o selo das intempéries assomava a mansão negra e seus andares. Assentada num jardim onde o mato estabelecera seus domínios e propósitos, onde uma fonte de mármore glorificava três anjos ou gárgulas infantis cujos olhos lacrimosos, e cujo desespero, advinha das chuvas, a casa destoava do antigo bairro industrial ao erigir-se em detalhes: vidraças incólumes, não obstante a mantilha de poeira; cortinas e fechaduras; sinal nenhum de violação.

A desbravar a rua, sujeito ao itinerário das entregas, o Carteiro exercia sua liberdade com os olhos, e as ruínas ele escrutou até acreditar na inocência das sombras ou no descaso dos sons. Atarracado e forte, sua existência era circunscrita ao uniforme, e de parar em frente à mansão, de admirá-la em silêncio e através do silêncio, da bolsa retirou um envelope retangular, branco, e leu as faces do papel. Então contemplou a porta, o número acima dela, e contemplou a grade e seus vãos e, por fim, a maçaneta do portão. Colocou o invólucro embaixo do braço, bateu palmas.

Um segundo, soou o grito oriundo das basculantes frontais.

No rosto do Carteiro o sol firmava sua carranca, e a camisa embebia-se em suor. Pelas cercanias o chirriar de duas corujas manifestava-se como o bater de um coração oco e malfadado. A porta escancarou-se e do breu distinguiu-se um homem alto e magro, calvo, o terno negro a contrastar com o alvor da cútis. Ao passar pelo umbral ele abriu a sombrinha de hastes enferrujadas, aprumou-se, ateve-se à escuridão por si concebida e caminhou até estacar diante da grade que delimitava o terreno. O Carteiro encarou-o, dir-se-ia assombrado com extravagância da figura ou com a ausência de cabelos, sobrancelhas, cílios ou rugas.

Pois bem, disse o Estranho, e sorriu.

O Carteiro estendeu e enfiou a mão por entre duas barras, o envelope em evidência. Do pulso avançar o Estranho cingiu-o e segurou-o e, com um movimento vertiginoso, além das apreensões, mordeu-lhe o antebraço.

Demônio, gritou o Carteiro e lutou para soltar-se, atuou em oposição. Malgrado o sol não o atingisse, não violasse o manto das trevas ou a castidade dos tecidos, o Estranho recuou. Em seu rosto o sangue emoldurava-lhe a boca, e os olhos, continuamente abertos, também se sujeitavam às sortes do vermelho.

Maluco dos infernos, gritou o Carteiro assim do Estranho evadir-se para dentro de casa, não antes de renunciar à sombrinha e ao ato de trancar a porta. Como se em busca de socorro ou de testemunhas o Carteiro voltou-se às ruas, às bocas de lobo e ao meio-fio, e abandonado por Deus e por seus irmãos ele encetou uma fuga incerta e desesperada. Ao cansar ou julgar-se seguro, distante da mansão, sentou num murinho de tijolos e examinou o ferimento. Não era profundo, e o sangue cessara de manar. Da bolsa ele retirou um frasco, sacudiu-o e borrifou a lesão, e, entretanto, não acusou o açoite do álcool. Tremia o pulso injuriado, tremiam as mãos. Enfaixou o antebraço com as ataduras do kit de primeiros socorros e retomou sua caminhada.

Na Central da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, aos curiosos, fingiu a verdade. Um cachorro avançou, disse, à guisa de esclarecimento. Nada de mais, mas vou ao médico, asseverou, não obstante na garganta o sobrelevar de veias e vasos sanguíneos reclamasse maiores e melhores motivos. De volta às ruas ao fim do expediente, entre o anoitecer e os tantos outros sóis da metrópole, e desmentindo as próprias palavras, seguiu para sua casa, onde, convalescente, delirou de febre e esvaiu-se em suores de coloração amarelada. Refeito à manhã, o rosto corado e macio como se rejuvenescido, com o seu automóvel dirigiu-se à mansão maldita. Era sábado. Estacionou em frente às grades e, de dentro do veículo, escrutou os arredores, a casa em si, e nem o céu salvou-se de julgamentos e sentenças. Porém não acusou a visão do estranho ou de arbitrariedades incomuns. A porta encontrava-se fechada, e assim as janelas e basculantes. Atrás dos vidros, cortinas assomavam feito tapumes. Regressou ao lar.

Segunda-Feira, e do ferimento restara um hematoma. O Carteiro não comera e mal dormira, e anunciava-se em olheiras e alvores faciais. Mordia os lábios, então ressecados e violetas, e, todavia, cantarolava e sorria, murmurava a sós. De ingressar na Central, renunciou a curiosos e curiosas e pôs-se a trabalhar. Separou a cota diária de cartas, definiu seu itinerário, emudeceu ao examinar o último dos envelopes. A missiva, subscrita por um tal de Dr. Nigel, e procedente da Transilvânia, era endereçada à mansão negra. O destinatário chamava-se Almon Sarif. Após verificar os carimbos, se abas e dobras estavam seladas, jogou os demais invólucros na bolsa e, apressado, troteou até o covil do sanguessuga. Era um dia de sol como para ele sempre haveria de ser. Ruas desoladas, silêncios acintosos. Defronte à casa, amarrotado e suado, bateu palmas. Em dois, três minutos, a porta abriu-se, e do vestíbulo destacou-se o homem de preto, a sombrinha aberta, o rosto inexpressivo e branco. Aproximou-se ele do portão e, ao parar, nada falou, somente estendeu a mão livre, coberta por uma luva de couro. O carteiro não entregou a carta, não se moveu, mas, levantando-a, disse,

Vem pegar.

Antes de terminar a frase o Estranho segurava-lhe o pulso por entre as grades, e ao ser forçado contra as barras o Carteiro reagiu e socou e esmurrou a sombrinha, livrou-se das garras alheias e evitou de ser abocanhado. O Estranho posicionou o guarda-chuva sobre si e, sob gritos e insultos, em desesperos debandou rumo ao interior da casa. Tomado de fúria, com a íris dos olhos esfumaçadas, à pedradas o Carteiro arrebentou dois ou três vidros, gritou. A pele da face e dos braços avermelhara-se como se há muito exposta ao sol. Ele afagou-se, passou a mão testa e grunhiu, aos saltos distanciou-se. A carta, além da cerca, restou por sobre a grama.

Na Central, tirou sua garrafa de água da bolsa e sentou-se. Petrificado contra o encosto de uma cadeira, o olhar perdido nos mais evidentes vazios da parede, desatarraxou a tampa e sorveu um gole. De pronto convulsionaram-se os músculos e nervos do pescoço, enegreceram-se as gengivas. Ele cuspiu o líquido no pavimento, com força ou ódio jogou a garrafa longe, massageou a garganta. Balbuciava profanidades quando uma das estagiárias aproximou-se, indagou acerca de seu estado.

Tudo bem por aí?

Era alta, corpulenta, e o sorriso bondoso lhe maculava o semblante.

Tudo, retrucou o Carteiro, a face voltada para o chão. É o calor, a minha pressão, acrescentou, e fios de saliva rosada pendiam dos lábios.

Vou chamar o supervisor, disse ela e, ao virar-se, alinharam-se o traseiro e o rosto do Carteiro. Este levantou a cabeça. O bumbum, formado por duas circunferências exatas, distorcia as estéreis linhas do corredor. Ele abriu a boca. Pontiagudos e longos, os caninos assomaram da escuridão. Antes de a menina andar, o Carteiro agarrou-lhe as pernas e mordeu-lhe uma das nádegas.

E essa é a sua história.

Ou, ao menos, a estória que, prestes a ser condenado, narrou ao juiz da vara criminal.


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domingo, 19 de março de 2023

De dá dó

 


 

Ulisses era um menino esperto. Segundo a mãe, “muito acima da média”. Era considerado um mini gênio pelos que o conheciam. Logo foi incentivado a ir a programas de televisão. “Todos têm o direito de saber do prodígio”. Saiu, veja só, em rede nacional, num programa dominical. A mãe e o pai já projetavam uma vida à la Maisa – aquela. Ora, se o menino, aos três anos, proferia os nomes de quase todos os países do globo, além dos estados e capitais do País, e ainda “falava inglês” – claro, há um tremendo exagero, se ela mal sabia falar o português –, poderia render um bom futuro. Os seus olhos se transfiguravam em cifras, monetização pura, quando se tocava no nome do filho. Para isso, o pequeno Ulisses tinha de passar as tardes, que adentravam as noites, decorando cada vez mais coisas; era um escravo do “conhecimento”. O pai se dizia visionário, e o colocava no alto posto de apresentador de televisão, porque tinha “traquejo para a coisa”. Prevendo a fama, os pais foram à escolinha de bairro para determinar que o pequeno só ficaria ali – o que seria uma honra para o colégio – se tivesse uma educação especial, com uma professora à sua disposição. A diretora entendeu a necessidade, mas relatou que a escolinha já mantinha uma professora e uma psicóloga, que atendiam muito bem os casos de crianças com superdotação, altas habilidades e outros casos particulares do gênero. Refutando, o pai e a mãe, em uníssono, disseram que a escola negligenciava, e não tinha condições de educar um “fenômeno”. A diretora contestou, delicada, relatando que Ulisses não era o único na escola. Para que ela foi dizer isso? Retiraram arbitrariamente a criança, que, agora, ficaria aos cuidados dos pais – ora com um, ora com outro, e o maior tempo com a babá. Como os contatos dos curiosos não faltavam, a mãe resolveu pedir as contas do “empreguinho” que tinha de vendedora de uma loja no centro da cidade. A avó de Ulisses, mãe de Tânia, esperneou, gritou, falou que os pais estavam doidos: Ulisses era só uma criança, que precisava viver como os demais, no meio da criançada de sua idade. Com o primo Artur, a mãe fez questão de cortar a relação – ainda que o filho insistisse em vê-lo –, e arrumou uma tremenda briga com a cunhada, mãe do menino, porque ele era um “mau exemplo” para o Ulisses; não estudava que prestasse; não tinha nada interessante a oferecer; era meio “leso”; e gostava de “brincadeira de pobre”. Afonso Lucas, o pai, contava o dia para, também, pedir as contas da firma. Calculava que em dois anos seriam, no mínimo, milionários. “Tânia, aquela menina lá da tevê saiu da miséria no segundo ano em que aparecia nos programas, porque foi contratada pelo Raul Gil. Temos de dar um jeito de ele ir lá”. Mas o menino não tinha um pingo de carisma. Era introvertido, com muito medo de gente. Para completar, pouco se movia ou falava; não olhava nos olhos; era um bichinho arredio, “de dó” – como no bom coloquialismo se diz. Fizeram de tudo para empurrá-lo ao dito programa: ligavam insistentemente para a televisão, falaram com produtores, com diversos funcionários do canal, e, enfim, marcaram o dia da apresentação. O menino, coitado, não sabia de nada. E, para completar, exibia uma espécie de cansaço pelo ritmo que levava – os pais, contudo, atribuíam isso à preguiça, brigavam com ele e forçavam-no a cumprir o cronograma traçado. Foram a São Paulo. Receberam tratamento de reis, com passagens, hotel e alimentação. “Tá vendo, Tânia, é daqui para melhor!”. Ficaram três dias na cidade que não para. A apresentação seria ao vivo, no sábado; e voltariam no domingo. A criança só saiu do quarto no dia da exibição, pois tinha muito o que decorar. Ulisses logo se encabulou com o grande carro da emissora. O motorista, simpático, tentava manter contato, e nada recebia de volta. Ao chegarem, cinco horas antes, foram encaminhados a uma sala preparada para as crianças e seus pais. De todos que ali estavam, Ulisses era o único que era mantido em clausura, estudando. Não deu outra: quando o “Seu Raul” chamou o menino ao palco, anunciando-o efusivamente, ele voltou correndo para os braços da mãe, em completo desespero. Seu Raul, então, foi tentar buscá-lo na coxia, mas o menino soltou berros e deslanchou a chorar. A cena foi chocante; a sensação era a de que o menino estava num matadouro, gritando como um porco a caminho do abate. O apresentador abortou a participação do menino, chamando, assim, outra criança. Tentaram mais uma vez; não teve jeito. Ao término do programa, Seu Raul foi tentar conversar com o menino mudo, que havia se enfiado embaixo de uma cadeira; nem os pais conseguiam arrancá-lo de lá. Foi levado à psicóloga da televisão, que recomendou ao menino um acompanhamento, pois que tinha indícios de autismo. Em Fortaleza, a constatação: era, sim, autista. Os pais rejeitaram o tratamento, agredindo a médica que os atendeu, chamando-a de incompetente. A saga terminou – ou começou uma nova – quando o menino foi internado, com estafa e síndrome do pânico. Os genitores decidiram que o filho problemático ficaria com a avó materna: não tinham tempo para lidar com isso. Ulisses, agora, é uma criança muito diferente, menos ansiosa e, sobretudo, amorosa. A avó, ele diz, é a sua “razão de viver”.






sexta-feira, 17 de março de 2023

O Sistema - poesia de Elizângela Moreira Gonçalves.







 





segunda-feira, 13 de março de 2023

À má fila - O instinto

 

À má fila – O instinto

 

Dia após dia, o pardal ia degustando os restos de comida que as crianças deixavam pelo chão. Às vezes as sobras quase não davam para meio do papo, mas essa desgraçada situação não acontecia com grande frequência. Na maior parte dos dias aquelas sobras davam para o almoço e também para o jantar. Bastava que os petizes, no entusiasmo das brincadeiras, deixassem esquecidos num qualquer canto os suculentos lanches.

O pardal para ter acesso à comida tinha que aguardar com paciência o final das brincadeiras. A partir daí, o movimentado campo inimigo passava a território livre e os despojos ficavam totalmente à sua mercê.

Nas primeiras vezes, o espertalhão do pássaro voava rasante, na tentativa de escapar ao controlo de qualquer radar inimigo. Avistado o objectivo, aterrava o mais silenciosamente possível e dirigia-se pata ante pata até à comida, sempre com as asas em posição de voo e a olhar para todos os lados não fosse aparecer-lhe o perigo pela frente. Aliás, cuidados redobrados era o que lhe recomendava o instinto de sobrevivência que lhe vinha desde o ovo. Uma espécie de sexto sentido que lhe segredava que o perigo estava sempre à espreita. Porém, com o andar dos tempos foi ganhando confiança, ao ponto de lassar os cuidados, deixando assim de sentir aquele chamamento do instinto. Sem precauções voava a descoberto e após a aterragem saltitava ligeiro ao encontro da comida. Aquela refeição tornara-se por demais fácil e isenta de perigos. Nem sequer tinha concorrentes à altura, chegando sempre sozinho às sobras.

Um dia sentiu-se indisposto e ficou empoleirado no ramo da árvore mais tempo do que o costume e, por isso, voou atrasado para o repasto. Depois de ter aterrado, procurou as sobras por todo o lado, mas nada havia para comer, nem sequer uma amostra de migalha para provar. O campo das brincadeiras estava completamente limpo. Talvez a miudagem não tivesse ido brincar, ou talvez a mãe não lhes tivesse levado o lanche, mas isso agora pouco ou nada importava.

O que desgraçadamente importava é que hoje o esfomeado pássaro teria de ir em busca de alimento para outro lado qualquer. Ao outro dia, ainda antes da hora habitual, o pardal levantou voo e lá foi com rumo certo. Pacientemente esperou pala sua hora e quando ela chegou aquilo é que foi saltitar em direcção ao apetitoso manjar. Contudo teve de refrear os instintos esfaimados, porque um anafado melro, mais que negro do que a própria fome, passou por ele e atirou-se sofregamente ao banquete. Pela certa o maldito intruso tinha descoberto o filão naquele sinistro dia em que ele se sentiu indisposto e decidiu ficar mais algum tempo no remanso do ramo.

Enfrentar directamente aquela ave negra nem por sombras, seria uma luta desigual. Teria de encontrar outra solução mais adequada à desproporção das forças em presença. De momento nada lhe vinha à mente, a não ser a malfadada ideia de mais um dia de jejum forçado. Mais tarde, no embalar suave do seu ramo, teria de procurar, naquele outro sentido que os pássaros têm, a solução para o problema em equação. Depois de muita procura na informação disponível no seu ADN encontrou um caminho seguro: tramar o figurão.

Como? À má fila! Bastava fazer umas malfeitorias no local das brincadeiras dos miúdos e atirar as culpas para aquele famigerado oportunista. Assim que o melro se foi embora, o pardal saltitou para vazio local, largou caganitas por todo o sítio e pirou-se antes que alguém tivesse oportunidade de o ver.

Quando a mãe dos miúdos viu toda aquela sujidade nem queria acreditar. Furiosa com tamanha desfaçatez pôs-se à espreita e reparou naquela ave negra que por ali se passeava. Certa de que aquele passarão era o culpado de toda aquela sujidade a mãe decidiu vingar-se. A vingança veio em forma de um fingido morango colocado estrategicamente num local bem visível.

Com os olhos postos naquele delicioso e suculento quase fruto estavam três potenciais candidatos: o pardal, sumido atrás de um arbusto, o anafado melro no lado oposto encoberto por uma árvore e um robusto corvo, passante de ocasião, poisado em cima dum poste. Cada um deles já chamava a si o pitéu quando, a menos de uma garra de distância do desejo, se instalou um gato, a lamber-se com todos os vagares que o tempo lhe tinha dado. O almejado objecto daquele trio tinha-se afastado para lá do infinito, segundo cálculos dos próprios interessados. Bastou, tão só, uma pequena hesitação, ir, ou não ir, e já era tarde demais. Mas se o acaso o trouxe e o destino o levou felinamente silencioso. Talvez tenha ido em busca de outro alimento, porque aquele morango, disse-lhe o instinto, não pertence à sua dieta alimentar. Agora que o alpendre se encontra vazio do indesejado felino, a mãe, à espreita numa nesga do cortinado, espera que o melro por lá passe em busca da degustação do dito morango. Porém, numa jogada de antecipação o corvo bate as asas e aterra primeiro junto ao objecto do desejo. O que o corvo não sabe é que aquele engodo não é um morango, mas uma chiclete assassina fingindo ser um morango que traz a morte no ventre. Ainda não sabe, mas talvez venha a saber momentos antes daquele instante em que a vida se faz morte. Por detrás das vidraças uma frustrada mãe olha para aqueles três pássaros que recortam o azul do céu.

 

 

 

 

 

 





sexta-feira, 10 de março de 2023

Confissão

 


O filho do falecido buzinava insistentemente em frente a pequena casa paroquial. Estava atrasado para a cerimônia de enterro.

Quando chegou, todos estavam impacientes e assustados. O homem, que ocupava o caixão lacrado, fora atacado pela fera. Mais uma vítima, na pequena Vila de Santa Cecília.

– Padre Cristóvão, o que acontece com o morto quando chega no céu e lhe falta alguma parte?

– O que chega ao céu, meu filho é a alma e o espírito não é material.

– Ainda bem, padre. Não sobrou muita coisa inteira do meu pai. O bicho não parece matar por fome, acho que é uma raiva insaciável.

– Como aconteceu?

– Dizem que depois de tomar uns goles ele fez uma aposta. Pegou a pistola e disse que acabaria com a besta. Foi até a encruzilhada e começou a uivar, como provocação. Uivou até cansar. Depois, ninguém ouviu mais nada. Acharam o corpo a uns dois quilômetros mata adentro. Nem sinal de que foi arrastado. Só um pouco de sangue na vegetação.

Na mesma noite da morte, um grupo de homens se formou e foram a caça. Sob a luz da lua cheia e com lanternas e tochas nas mãos percorreram todos os arredores e não encontraram nada. Uma senhora jurava que havia visto a criatura próximo da igreja. Coberta com pelos escuros, só o que se via eram os olhos que pareciam arder como brasa. Andava curvada, como que a tentar se apoiar sob quatro patas.

Depois do enterro, formaram-se várias rodas de conversas.

– Fazia tempo que o assassino não atacava gente – disse o delegado Pereira.

– Isso é coisa de onça – afirmou o prefeito.

– Se fosse onça, alguém já teria visto ela ou suas marcas.

– É lobo, melhor meio lobo, meio homem, afirmou o professor Leovegildo.

– Besteira. Lobisomem é lenda, invencionice. Deve ser mesmo é um assassino em série. Só não sei como é que ele transporta os corpos. Pra enganar a polícia, de vez em quando mata um animal.

– E como é que o senhor explica as marcas de garras e dentes nos ossos, delegado?

– Ainda não sei, mas vou descobrir. Por falar nisso, professor, o que o senhor fazia ontem à noite quando tudo aconteceu?

– Eu estava em casa, corrigindo as provas dos meus alunos. 

– Tem como comprovar?

– Posso apresentar uma pilha de provas.

– Fique tranquilo, foi só uma brincadeira. Ontem, quando tudo acontecia, eu fazia uma batida nas casas de luz vermelha e acabei chegando tarde. Quando soube do ocorrido, fiquei preocupado com minha santinha. Encontrei a pobre Shirley ajoelhada, rezando. Sabe como é a vida de policial, a família não sabe se você vai voltar vivo pra casa.

– Imagino o que ela tenha passado delegado, ainda mais depois do alvoroço na cidade com o sumiço do Pedro Tiriba – disse o professor.

– Acredita em lobisomem, Padre Cristóvão? – perguntou o prefeito.

– O demônio é capaz de tudo. Pode transformar a vida das pessoas. Gente boa pode se transformar num monstro.

– O senhor acha que pode ser alguém da vila, padre? – questionou o delegado.

– Até hoje não apareceu ninguém no meu confessionário dizendo ser o tal licantropo.

– Lica o que? Perguntou o prefeito.

– Licantropo, do grego lycos – lobo e anthropos – homem. Diz a mitologia grega que Zeus transformou o rei de Árcade, que lhe serviu carne humana, numa criatura meio lobo, meio homem – explicou o professor.

– E veio navegando até aqui? Nem mar nós temos. – Interferiu o Bentinho que já estava emendando uma bebedeira na outra e ouvia a conversa.

– Preciso ir. Daqui a pouco temos a Missa.

– O senhor parece cansado padre. Está pálido, com os olhos fundos – observou o delegado.

– Não passei muito bem a noite. Algo que comi deve ter feito mal.

– Difícil a vida de padre, não dá pra rejeitar a comida oferecida pelos fiéis, não é mesmo? Boa é a minha vida, que ninguém quer por perto. Dizem que desconfio de tudo. É a minha sina.

O padre apressou-se. Precisava atender às confissões, antes. Quando chegou ao confessionário, a primeira da fila era a mulher do delegado. Ela abusava do decote e da saia curta.

A mulher pregou os peitos na grade do confessionário e despejou:

– Padre, meu coração não me deixa em paz. É uma paixão atrás da outra. Eu me arrependo, venho até aqui, pago as minhas penitências, mas sou fraca e tudo volta a acontecer. Ontem, enquanto todos corriam atrás da besta, eu fazia a minha lição de casa com o professor Leovegildo. Ele é tão jovem, tão bonito. Não que eu não goste do meu marido, mas não consigo resistir.

– Tenha fé em Deus, minha filha. Ele é capaz de perdoar mesmo os imperdoáveis.

– Eu juro que pensei nas últimas penitências que me recomendou e antecipadamente eu orei. Pode perguntar ao meu marido, quando ele chegou ontem, cheirando a cachaça e perfume barato, eu rezava!

– Vou lhe passar as penitências de hoje.

– Padre, me dê dobrado, pois ontem pequei por pensamentos também. Quando tudo acontecia, para que fosse mais gostoso, eu imaginei que o professor fosse o senhor, com o seu ar selvagem.

– Vamos triplicar as suas penitências.

– Puxa! O senhor não peca?

– Todos pecamos, todos temos nossos segredos.

– Não vai me dizer que o senhor sai com alguma mulher aqui da comunidade, sai?

– Como se este fosse o maior dos pecados...

– Como disse padre?

– Eu quis dizer que fofocar e colocar palavras na boca dos outros é um dos maiores pecados.

– Eu não sou fofoqueira, padre. Não conto pra ninguém que quando eu espreito pela janela, para me certificar de que o Pereira não está por perto, vejo o senhor sair quase toda noite.

– A senhora devia cuidar da sua vida, Dona Carlota. Aconselhar e ouvir o pecado de toda uma comunidade afeta o pastor, compreende?

– Para alguns pode ser pastor, eu vejo o senhor como lobo.

– Como?

– Nas minhas fantasias eu sou a ovelhinha.

– Que Deus lhe acompanhe, minha filha.

Como acontecia das outras vezes, tudo se acalmava. Na lua cheia seguinte alguns animais desapareceram.

O inverno chegou e com ele uma temporada de chuvas. Com o céu encoberto, muita gente esqueceu da fase da lua. Sentiam-se seguros em suas casas e para suas aventuras.

Certa noite, o professor Leovegildo esperou o movimento da rua se acalmar e foi em direção da casa do delegado. Dona Shirley disse ter comprado uma lingerie nova.

Quando chegou, estranhamente, a porta já estava aberta. Não se ouvia nada. Quando o delegado não estava em casa, ela colocava a música combinada para tocar. Leovegildo resolveu espiar por uma das janelas da casa. No momento em que aproximava o ouvido, algo saltou pela janela, levando consigo uma das folhas da veneziana que atingiu em cheio sua cabeça.

Atordoado, visão turva, ele viu a monstruosidade do ser que se afastava rapidamente. Leovegildo pareceu ter visto um crucifixo no pescoço da fera.

O professor hesitou, mas entrou. Sentiu o cheiro de enxofre. No quarto, sobre a cama, os restos de Dona Shirley tingiam de vermelho os lençóis. O coração, arrancado do peito, ainda parecia pulsar.

Leovegildo vomitou até quase virar do avesso. Tocou o rosto desfigurado da mulher, fechando seus olhos. Apavorado, saiu correndo debaixo da forte chuva, algumas vezes iluminado pelos relâmpagos da tempestade. Não percebeu quando cruzou com Bentinho, deitado sob a marquise do armazém de secos e molhados.

Quando o delegado chegou em casa, ficou transtornado. Pegou todas as armas que tinha e acordou todos os homens da vila. Com armas de fogo, facas e foices, saíram em busca da fera.

O professor, não queria se expor, mas não aguentou ficar sem fazer nada. Precisava dividir aquilo com alguém. Lembrou que algo dito em confissão não poderia ser revelado pelo confessor, então resolveu procurar o Padre.

A porta principal da capela estava apenas encostada. Entrou e se deparou com outra cena estranha. Padre Cristóvão, apenas de cueca, ajoelhado em frente ao altar, usava as disciplinas se autoflagelando. Suas costas sangravam. No interior da capela, o mesmo cheiro de ovo podre do enxofre.

Cristóvão, quando percebeu a presença, saltou rapidamente, deixando à mostra um crucifixo de prata sobre o peito. Segurou-o e apontou em direção à sombra que se aproximava.

– Sou eu, padre. Professor Leovegildo. Preciso me confessar.

– A esta hora, meu filho. Deixe para amanhã.

– Depois será tarde!

– Espere alguns minutos, preciso colocar minhas vestes.

Leovegildo ajoelhou-se num dos bancos e pedia que Deus cuidasse da alma de Dona Shirley. Apesar dos defeitos, ela era uma boa pessoa. Aplacou a solidão dele em muitas noites. Imaginar aquele corpo, antes cheio de vida, inerte, destroçado, lhe fazia muito mal.

O padre retornou. Pareceu ter passado rapidamente pelo chuveiro. Sentou-se ao lado de Leovegildo.

– A confissão vai ser aqui mesmo?

– Sim, aqui os únicos ouvidos são os de Deus.

Leovegildo voltou seus olhos para o altar, buscando forças para contar o que tinha visto.

Quando baixou os olhos, no degrau que dava acesso ao púlpito, mesmo sob a tênue luz que tremulava no ambiente, percebeu um pequeno pedaço de tecido. A mesma estampa da calcinha que vestira Dona Shirley.

– Vamos lá, meu filho, me conte o que houve?

Ele permaneceu em silêncio, enquanto organizava os pensamentos.

– Talvez eu não precise lhe falar, padre. Acho que o senhor sabe mais do que eu sei. Me diga padre, o senhor protege a criatura?

– O que insinua?

– Minha cabeça está confusa. Acabei de sair da casa do delegado. Dona Shirley foi destroçada com violência. Vi uma criatura peluda, forte, cheirando a enxofre saltar pela janela. O licantropo carregava um crucifixo no pescoço, parecido com o seu. Sua igreja cheira a enxofre também e aqui, o mesmo tecido da roupa da vítima. O senhor sabe quem é a fera?

– Você está enganado – disse olhando nos olhos de Leovegildo.

– Seus olhos, estão avermelhados. Não, você não protege a criatura, você é a criatura.

O professor saltou, pegando um dos pesados candelabros da igreja.

– Não grite! Ambos temos nossos segredos.

– Mas eu não matei ninguém.

– Em qual palavra as pessoas vão acreditar, na de um padre ou na de um professor, amante da mulher do delegado e de outra meia dúzia de senhoras?

– Sabe, padre, nunca vi o senhor como uma pessoa má, por que faz isso?

– Não é uma questão de escolha. É uma maldição.

– Mesmo que seja uma maldição, por que se esconde atrás de uma batina?

– Sendo padre, posso amenizar um pouco da dor daqueles que faço sofrer.

– Não poderei esconder isso.

O aparente silêncio do interior da capela foi rompido com a entrada da turba armada.

– Lá está o lobisomem! – Gritou o delegado.

As pernas do padre Cristóvão fraquejaram. Não reagiria. Melhor, a maldição acabaria.

Leovegildo se sentiu aliviado, mas foi surpreendido quando levou um soco no rosto e foi arrastado por dois sujeitos muito fortes.

– Delegado, o que está acontecendo? Está prendendo o homem errado!

– Bentinho, diz para o professor o que foi que você viu.

– Eu não vi nada não, delegado – respondeu, temendo que o professor se transformasse diante de todos.

– Seu bêbado frouxo. Ele viu o senhor saindo da minha casa. Como explica esse sangue escorrido em sua camisa, professor?

– Não fui eu. Padre diga a eles o que aconteceu!

– Sinto muito, mas como confessor, não posso expor o que me foi dito.

Leovegildo não viu mais nada, depois que levou um golpe na cabeça. Quando acordou, já estava seminu, amarrado a um poste, sobre a lenha de uma fogueira posta a seus pés. A multidão estava furiosa.

– Faça um último pedido a Deus, meu filho – disse-lhe o padre.

– Que o senhor queime no inferno, padre.

– O delegado portava uma lança improvisada, feita de um cabo de enxada. Na ponta, o crucifixo de prata, antes usado pelo padre.

Pereira, aproximou-se e disse em seu ouvido:

“Lobisomem ou não, esta noite não foi a única em que o senhor entrou na minha casa. Bentinho me contou tudo”.

Num único golpe, a ponta maior do crucifixo penetrou o coração de Leovegildo. Dizem que ele uivou como um lobo. Mas quem acredita nas histórias populares.

Dois dias depois, o padre Cristóvão partiu, dizendo-se abalado por tudo o que aconteceu.

O lobisomem nunca mais apareceu na vila. Ressurgiu numa outra cidade, distante. A mesma cidade onde agora morava o professor Cristóvão, o homem amaldiçoado por ser o último filho de sete irmãos, o descendente do grego castigado pelos deuses.

 

 





quinta-feira, 9 de março de 2023

Simbologia precisa-se


 

Com um suspiro de satisfação, Raquel colocou o símbolo final no longo e trabalhoso texto que passara os últimos dois dias a escrever. Fora complicado, estivera, até, várias vezes à beira de desistir ou, no mínimo, de o simplificar, mas ainda bem que não o fizera, estava uma maravilha, modéstia à parte...

E iria, sem dúvida, melhorar imenso a sua posição no grupo, quem sabe, poderia até ser o necessário para lhe dar acesso ao Clube Platina de que todos falavam, embora sem grandes certezas de que existisse. Mas fazia todo o sentido que um organismo tão complexo como aquele não se ficasse por um mero escalão de Ouro a que até nem era muito difícil aceder.

Depois de se estirar várias vezes, muito “à gato”, para tentar contrabalançar as muitas horas que passara sentada, Raquel dirigiu-se para o abastecedor de bebidas e serviu-se de um bom café simples e forte. Não que precisasse de se manter acordada, mas, após tanto tempo parada, sabia que devia ir fazer uma pequena, mas enérgica, caminhada e precisava de uma injeção de cafeína que a aguentasse até a adrenalina entrar em ação.

Depois de mudar de roupa, desligou e meteu no seu esconderijo o pequeno tablet que usava para os trabalhos dos Simbólicos, ativou os alarmes, os oficiais e os que criara, e só depois saiu de casa.

Como, afinal, se sentia mais enérgica do que seria de esperar, decidiu ir até ao parque mais próximo, onde havia bons trilhos de caminhada. Assim não teria de estar atenta a veículos e outras pessoas, podendo divagar à vontade.

E foi o que fez. Enquanto respirava o ar puro daquele espaço verde e acelerava o passo numa quase corrida pôs-se a pensar na primeira vez que ouvira falar dos Simbólicos e do muito que evoluíra desde então.

Estava no seu último ano de estudos e decidira tentar, mais uma vez, fazer uma pequena pesquisa na biblioteca. Esta estava às moscas, como sempre, só lá ia quem queria investigar “livros a sério” e, muito francamente, só muito poucos os conseguiam ainda ler. A língua, ou antes, as línguas tinham mudado radicalmente, tendo dado lugar a uma nova linguagem de abreviaturas e símbolos sem regras gramaticais ou outras e que estava sempre a evoluir. E a maior parte dos elementos das gerações mais novas já só comunicavam, por escrito ou oralmente, usando este idioma universal e muito simplificado.

Para os mais idosos, e o avô de Raquel era um deles, não passava de uma algaraviada sem nexo. Mas poucos resistiam e estava, de facto, a tornar-se a única língua vigente no mundo.

Ficou, pois, intrigada ao ver um grupinho de três jovens sentados a uma mesa com vários calhamaços à sua frente. Falavam entre si e tiravam notas copiosas, outra arte em extinção, a conversão automática de voz em texto matara-a.

Reconheceu vagamente um dos rapazes, tinham pelo menos uma aula em comum e via-o sempre sozinho, tal como ela. Decidiu, pois, aproveitar essa vaga ligação para investigar o que estariam a fazer.

E fora assim que descobrira os Simbólicos.

Eram, basicamente, um grupo de pessoas de todo o mundo que queriam usar os idiomas tal como existiam antes da disseminação descontrolada da nova linguagem. A ideia até nem era fazer voltar tudo ao antigamente, só queriam ter a possibilidade de escolherem livremente.

E foi com grande espanto que Raquel descobriu que eram vistos como um grupo anarquista e perigosíssimo, a ser destruído a todo o custo! Também esta era uma atitude comum a todos os governos do mundo, qualquer que fosse a sua “cor”, com exceção, claro, de uma ou duas chamadas ditaduras que, remando contra a maré, proibiam era a nova língua.

Daí o enorme secretismo que rodeava todo este movimento. Raquel veio eventualmente a saber que só lhe tinham revelado a situação porque o tal rapaz conhecido, o Jorge, já a vira várias vezes a ler pequenos textos antigos, por isso decidiram iniciá-la quando ela lhes falou naquele dia.

E Raquel aceitou, entusiasmada, pareceu-lhe tudo uma brincadeira muito divertida.

Basicamente, e como a nova língua só usava abreviaturas e símbolos, os fundadores do grupo tinham criado uma lista em que esses mesmos elementos não representavam palavras mas sim frases inteiras escritas em “língua de gente”, como lhe chamavam.

Por exemplo, um Sol pequeno queria dizer “Bom dia, como estás?”

E a ideia era os membros escreverem algo a sério que depois convertiam no que parecia ser, à primeira vista, um texto moderno.

É claro que havia o problema de já ninguém sabia ler ou escrever a sério – exceto os poucos que ainda estudavam línguas antigas e que eram fortemente desencorajados a fazê-lo, começando pelo custo caríssimo e sem a menor bolsa de estudo... Mas tinham contornado esse problema dando acesso a meios de aprendizagem que começavam por ser muito simples, pelo aspeto teriam até sido para crianças!

E, pequeno detalhe, eram aconselhados a ter um tablet totalmente reservado para este uso e a guardá-lo muito bem a menos que quisessem vir a ter problemas com as autoridades.

Raquel lançou-se de corpo e alma aos estudos e às mensagens, tornando-se em breve fluente na lista que lhe tinham enviado. E foi quando descobriu que havia vários níveis no movimento, ao ser convidada a passar para o Grupo Madeira.

Novos estudos e listas foram-na fazendo subir de nível, estando agora no Ouro, com uma listagem de 33 000 elementos, muitos deles a representarem frases e ideias bem complexas. E não era nada fácil, como há um número finito de símbolos e de abreviaturas, isso fora contornado acrescentando-lhes pequenos detalhes, pontos em vários sítios, sombreados diferentes, enfim, um sem acabar de detalhes capazes de mudarem totalmente o significado de um texto ou, até, de o transformar numa algaraviada sem nexo.

Os textos também eram agora diferentes, de simples mensagens a outros elementos tinham passado a autênticas dissertações sobre vários assuntos, alguns propostos, outros de livre escolha, e, até, a composições originais. Como a que passara dois dias a compor e que fora, muito francamente, o seu melhor de sempre.

Inicialmente perguntara-se – e indagara abertamente – porque se davam ao trabalho de fazer a conversão simbólica. Mas se tivesse pensado um bocadinho teria logo visto que isso permitia estar a escrever ou a ler em público, desde que tivesse memorizado a lista. Quanto aos elementos desta, bom, era facílimo introduzi-los no aparelho usado em vez dos que vinham de fábrica.

É que as precauções aconselhadas, e que aumentavam de nível à medida que se ia progredindo, só diziam respeito ao tablet que continha o material de estudo e a lista completa, ou seja, símbolo e significado. No aparelho público, fosse de que tipo fosse, só podiam estar os símbolos, sem mais nada, tal como se fossem os da língua que era, para todos os efeitos a oficial.

Assim, quanto mais decorassem mais podiam divertir-se a escrever coisas proibidas à vista de todos. E Raquel fora sempre muito boa nisso, mal subia e tinha uma nova lista atirava-se a ela e não descansava enquanto não a soubesse de cor.

E era por isso que suspeitava que tinha de haver algo mais acima do Ouro, pelo menos mais um nível ou, quem sabe, vários. É que uma boa parte das dificuldades que tiveram com o seu último texto tinham vindo, precisamente, da ausência de simbologia que dissesse o que queria dizer.

Infelizmente, não podia perguntar a ninguém, só conhecia pessoalmente o grupinho da biblioteca e tinham perdido o contacto, exceto com Jorge, mas este tinha desistido pouco depois, por isso não a poderia ajudar.

Refrescada pelo passeio e ar puro, Raquel decidiu voltar para casa. E durante todo o percurso, uma única ideia repetia-se vezes sem conta na sua cabeça, “Será que tenho uma mensagem de passagem de nível à minha espera?”


Luísa Lopes

Foto de Unseen Studio na Unsplash





sexta-feira, 3 de março de 2023

COMO DAS OUTRAS VEZES


eu tive que me perder

para me encontrar

retroceder para seguir

adiante no meio do escuro.

 

um porto seguro

me esperava com

a tenacidade de uma

ave migratória em idílio.

 

o ninho estava quase

pronto na escarpa do morro

para abrigar-nos da maldade

e gerar um novo ser, que se foi!