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quarta-feira, 29 de abril de 2020

A Vida Que Eu Quero


Cabelo comprido, desgrenhado e barba de vários dias, com passos inseguros, o homem arrastou-se pelo meio da esplanada. Aparentava uns sessenta anos e envergava um blusão bege sovado e umas calças de ganga, que já tinham conhecido melhores dias, terminando numas sapatilhas de pano, sujas e rasgadas. Para dar um pouco de dignidade, trazia debaixo do braço um jornal, dobrado, como se o fosse ler.
O empregado do café reconheceu-o e deixou-o passar pela sua frente, após o qual exibiu uma careta mista de tristeza e desprezo, acenando negativamente com a cabeça.
O vagabundo dirigiu-se ao funcionário que se encontrava na caixa, atrás do balcão, que exibiu uma expressão contristada, assim que se apercebeu da sua presença.
— Bom dia senhor António. — Entaramelou o recém-chegado, em ar de gozo, demonstrando uma clara embriaguez. — Ainda tens os jornais de ontem?
— Boa tarde, senhor Fernando. — Corrigiu-o o outro, que aparentava uns trinta anos, baixo, de cabelo curto. No rosto simpático, os olhos pequenos, fitavam o interlocutor com preocupação, respondendo ao cumprimento com a formalidade, que não era obviamente usual.
— Ou isso. — O outro não se preocupou, rematando rapidamente. — Para mim, bom dia ou boa tarde, o que interessa é que seja bom e bom, é poder ter qualquer coisita com que forrar o estômago.
— Não comeste nada ainda? São quase cinco da tarde… — Novamente a expressão de preocupação. — Mas para beber havia…
— Oras! Era o restito de uma garrafosa que me deram ontem, que ajudei a descarregar um camião. — Riu-se o Fernando, levando a mão às costas. — Hoje estou aqui que não posso das cruzes.
— Não te pagaram? — António surpreendeu-se.
— Pagaram pois! — O outro escandalizou-se. — Não te disse que me deram uma garrafa de tinto? Isso e duas latas de atum, a larica é que era muita e dei cabo de tudo à noite.
— Valha-te Deus! — Havia lágrimas nos olhos do mais jovem.
— Que queres que faça? — Justificou-se o mais velho. — O pessoal agora põe o papel todo no papelão, ninguém dá nada para recolher, tenho de correr quilómetros à cata. O sovina do farrapeiro anda a chular-me e cada vez paga menos, além de que acho que a balança está aldrabada.
— Vem. Anda a comer alguma coisa. — António abriu o balcão, para que o outro entrasse para a cozinha.
Enquanto o vagabundo se sentava à mesa, onde normalmente se preparavam as refeições, o outro deu instruções à cozinheira para que preparasse um prego em prato “bem abonado” e trouxesse uma bebida qualquer sem álcool. Depois sentou-se frente ao convidado, ignorando os resmungos da mulher.
 — Mas arranjas os jornais ou não? — Insistiu Fernando, apesar de estar já pronto para comer. — É que se não, tenho de ir à minha vida, procurar noutro lado.
— Sim, tenho ali muitos jornais, acalma-te. — Sossegou-o o mais novo. — Então agora andas ao papel, é?
— Tem de ser! Um gajo tem quem de ganhar a vida, não é? — Afirmou Fernando, convicto.
— É assim que ganhas a vida? Dá para comer?
— Assim, assim. — O velho encolheu os ombros. — É mais para o tabaquito e uns copos, aqui e ali. Comer, normalmente é à noite, quando vem o pessoal da ajuda de rua; uma sopita quente, uma carnita e uns iogurtes. Dá para o gasto. Dantes, andava a pedir, ou a arrumar carros, mas andava sempre com chatices, havia gajos que assaltavam ou riscavam os carros que eu devia estar a guardar e se eu chiava, ainda lerpava por cima. O lixo é mais seguro, embora não possas mostrar que tens guito, nem trazer muito papel junto, ou vem por aí algum cabrão e leva-to.
A cozinheira pousou o prato fumegante na frente do homem, que atacou o manjar com unhas e dentes, enquanto ela se deixou ficar em pé, junto dos dois.
— Ontem, como me emborrachei, — disse com a boca cheia, — esqueci-me da sopa e prontos, lerpei.
— E onde dormes? — Intrometeu-se a cozinheira.
— Por aí! — A refeição desaparecia sofregamente, mas ele não deixava de responder ao interrogatório. — Antes dormia numa casa abandonada, mas deitaram-na abaixo. Fico normalmente na antiga mercearia do Silveira, que está vazia há muitos anos.
— Porque não fazes o que eu te disse já tantas vezes? — Os olhos de António reluziam e sentiam-se os dentes cerrados com força por trás dos lábios finos.
— Nããã! — Recusou o outro. — Que vou fazer agora, da maneira que estou? Já viste o meu aspeto?
— O aspeto pode ser composto.
— Tenho vergonha, não percebes? — Com o prato vazio, o vagabundo impacientava-se. — Que vou fazer agora para casa, para uma família a que não pertenço? Velho, desdentado… derrotado! Vai buscar os meus jornais, que tenho mais o que fazer!
Com as lágrimas nos olhos, António afastou-se, a saber dos jornais.
— A minha vida é esta! Estavam cheios de mim no trabalho, mandaram-me embora, velho de mais para me empregar, novo demais para a reforma, que querias que fizesse? — Reafirmou Fernando, perante a expressão de desaprovação da cozinheira. — Ir para casa viver de subsídios, ou ouvir piadas de que sem o filho não sou nada? Há quatro anos que vivo nas ruas e safo-me bem! Quero lá eu saber de casas cheias de regras e mulheres mandonas! Sempre fui senhor de mim e ganhei o meu sustento! Em mim, mando eu!
— Pelo menos enquanto te derem de comer e não precisares que cuidem de ti! — Exclamou com desprezo a mulher, empurrando-lhe um saco plástico, com duas sandes, para debaixo do braço.
Sem recusar a oferta, o velho saiu da cozinha para a entrada do café, onde recebeu o embrulho com jornais amarrotados.
— Obrigado pela comida! — Atirou Fernando, afastando-se a cambalear.
A cozinheira materializou-se ao lado de António e abraçou-o com carinho, ao ver as grossas lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Ele, estático, com a visão do sem-abrigo a afastar-se, moveu os lábios, num sussurro: “Até à próxima, pai.”


Manuel Amaro Mendonça





domingo, 26 de abril de 2020

Pra que a morte não caiba



Pra que a morte não caiba

(Maria Amélia Elói)

Cabe o fim dos tempos
a eternidade
o embargo
o estorvo
nesta quaren-quasequatrocen-tena.

Estranho.
Triste.
Não há recém-nascido no berço.
O resguardo é outro.

O terço, nas mãos que o contam,
pede só o retardo
da morte,
seu egresso
e fracasso.

Está tudo suspenso.

Uma preguiça
cansada de durar tanto.
Um medo de criança
ante a vida postergada.

Não pode cão na praça
beijo, namoro.
Não pode menino solto
brincadeira no pátio da escola
nem bola de sorvete na sorveteria da esquina.
Não pode circo, cinema
vento e árvore na calçada
trânsito 
abraço e bolo de aniversário.
Não pode nem hóstia, nem hóstia.

Todos à parte, vigiados, segregados, devidamente higienizados, limpos.
Sem refresco.
Desejos sucintos.

Só pode o necessário.

E eu entendo, mas não é fácil.
Obedeço. Só a vida é necessária.

Resta o fôlego da fé
resistência.
Toda a dor da abstinência.
Pra que a morte não caiba.


Imagem: André Cerino, "A pequena pianista", da série Imaginário, 150 x 150 cm, acrílico sobre tela, 2019.






sábado, 25 de abril de 2020

A culpa



Quando preparava a torrada do pequeno almoço, no primeiro dia de férias na terra, o homem cortou-se. Aquele golpe trouxe-lhe à memória um longínquo episódio que estava enterrado sob camadas de esquecimento: devia ter já vinte anos quando ele e um dos melhores amigos de então, tinham pela última vez marcado a canivete os respetivos símbolos tribais numa árvore junto à ribeira. Era então a zona de banhos da juventude, sobretudo estudantil, à falta de uma piscina municipal, só construída trinta anos depois. Recorda que, por aqueles dias, alguma coisa se quebrou naquela amizade, mas tem ideia de que nunca chegou a saber o porquê. O que não impediu um sentimento de culpa que permaneceu. Teria sido uma palavra infeliz?; um ato mal-entendido? Talvez uma questão de saias. Lembrava-se que o amigo catrapiscava uma jovem, mas que não levou o intento adiante.
A tropa chegara abruptamente para toda a gente. Cada um seguiu rumos diferentes e nunca mais se viram, nem souberam um do outro.
O homem decide que nessa mesma manhã irá à ribeira, nesta fase de balanços de vida que atravessa.

Há muito que o homem não se aventura sozinho por aquele ermo. Vai contemplando as formas imperfeitas que um falcão desenha no céu luminoso da manhã de agosto, enquanto caminha. Um ténue halo de poeira, que só o falcão vê, sobe do antigo caminho dos moleiros. O caminhante avança resoluto por aquele trilho rural entre muros baixos, alguns derrubados. Passa muito das dez horas e o calor já promete torrar cada vivente. Aqui e ali, giestas e saragaços secos comprimem aquela senda abandonada, até restar quase só uma vereda. Em tempos, passavam por ali carroças e carros de bois; agora, talvez só pequenos rebanhos e algum caminhante desavisado.
O temerário tenciona passar as horas de maior calor no Pego da Azenha, um troço pitoresco da ribeira que desliza, relutante, a uns três ou quatro quilómetros da sua terra. Em adolescente gostava de se refrescar ali, banhar-se, brincar na água. Há quarenta anos, a corrente estava represada e criava uma piscina natural, com a graça de estar pontilhada de rochas arredondadas pela correnteza.
Avista ao longe o vulto de uma criatura que vem na sua direção. Estranha a presença, sente alguma apreensão. A agricultura está extinta na zona, a pastorícia está reduzida a cercados onde o gado fica por sua conta. Quem mais se aventurou por aquele percurso solitário com o calor a tornar-se já desconfortável?
O homem toma consciência do total isolamento em que está mergulhado. Não estava à espera. Apesar de ter sido criado no campo, desde a partida para a tropa que se tornou um urbano-dependente. Já não tem familiaridade com o espaço rural, muito menos com os seus habitantes. Recorda a navalha que todos usam.
Porque foi lembrar-se disso? Não há nenhuma razão para temer outro homem que ande por ali. Em alguns bairros arredados dos centros das cidades, aí, sim, acredita que há que ser cuidadoso. A figura, de ar envelhecido, talvez devido à barba grisalha, caminha com calma, mas determinação, ajudada por um pau tosco.
O visitante abranda o passo, para fazer coincidir o cruzamento com uma zona mais larga do caminho, em que terá havido um charco no inverno. Controla o outro de olhar baixo. Avança pelo carreiro que contorna pela direita a terra seca gretada; o desconhecido pelo outro lado. No ponto em que estão mais afastados, o homem levanta o olhar, sem levantar o rosto; o outro para, mirando o oponente, sem se voltar.
O homem sente um incómodo, um presságio de perigo; parece-lhe reconhecer aquele rosto carrancudo escondido pela barba. Diria que, se fosse mais novo, poderia ser ele próprio. Um arrepio surpreende-o. O olhar do outro é intenso e acusador. Sem palavras, sem ameaças, aquela presença domina-o com as maiores acusações, as mais fundas imputações de culpa. Luta para afirmar, garantir, convencer-se da sua inocência. Em vão. O olhar duro do estranho não lhe dá oportunidades de fuga.
Desculpa! — acaba por articular.
O olhar do outro desarma, acalma, adoça. Baixa por momentos o rosto, depois encara o caminho e recomeça a andar, no mesmo ritmo calmo de antes.
O homem desaba em si. Sente um grande cansaço. Retira-se para debaixo de uma azinheira raquítica que por ali está, senta-se encostado ao tronco e nem dá pelo passar das horas de calor intenso desse dia.

Joaquim Bispo
*
Imagem: Cruzeiro Seixas, Vencedores e vencidos dos combates cerimoniais, não datado.
Proveniência: Coleção Prof. Doutor Rui-Mário Gonçalves.

* * *






quinta-feira, 23 de abril de 2020

JUVENAL E O ENTREGADOR DE PÃES


                                

             
           

           O dia de Finados estava se aproximando...
         Época do ano que rendia um ganho a mais para Juvenal, e que o ajudava a remendar as dívidas. Era pintor de parede, ajudante de pedreiro, enfim, era o que precisava que fosse. Pau pra toda obra! O que não lhe faltava era disposição. Homem de meia idade, sem estudo, nascido e crescido por ali. Benquisto, transitava bem entre todos os moradores da vila.
         O cemitério, que ficava na saída da vila, na parte alta, podia ser visto de longe. Era imenso, todo cercado com muro de tijolos. Dentro, muito espaço. A pequena capela ficava perto do portão de entrada, e, por toda a volta, túmulos largamente espalhados. No fundo do terreno, uma área enorme, desocupada, reservada para servir aos futuros funerais por muitos e muitos anos.
         Alguns jazigos eram religiosamente cuidados durante todo o ano. As famílias visitavam seus mortos semanalmente, quinzenalmente. Limpavam, podavam as plantas que cercavam as sepulturas, cuidavam da pintura quando descorada. Esses jazigos sempre estavam impecáveis! Os demais ganhavam trato apenas na época de Finados. E sempre havia muito trabalho. As chuvas, com as suas enxurradas volumosas, levavam a terra, as calçadas e os tijolos das sepulturas. E havia, ainda, as rachaduras provocadas pelas acomodações do terreno. Além disso, o sol impiedoso descorava as pinturas, deixava tudo muito triste, desgastado.
         Naquela época não havia floricultura nem flores plásticas. As flores colocadas nos túmulos eram colhidas nos quintais das casas. As famílias, no amanhecer do dia de Finados, levavam as flores e as acomodavam em vasos com água, sem a menor preocupação com doenças. Não se falava em dengue.
         Se não fosse dessa maneira, recorriam às flores de papel crepom e de pano, feitas em casa, ou às coroas de flores de lata. Compradas na funerária, pedidos feitos de acordo com as encomendas, essas coroas eram do tamanho de um aro de bicicleta. Tinham as folhas e flores feitas de lata, material parecido com o zinco, todas recortadas, trançadas, presas nos fios de arame que formavam a circunferência. E pintadas à mão.
         Essas coroas resistiam por anos e anos, mas desbotavam. Então, anualmente elas recebiam uma demão de tinta. Tinta a óleo verde para as folhas, e as flores sempre vermelhas, amarelas, ou brancas. Eram essas as cores que Juvenal usava. Não colocava outras cores. Nem sei se havia...
         Nunca ninguém ousou misturar o vermelho com branco para fazer a flor rosa. Vivi essa realidade por anos e anos a fio, e nunca vi uma flor de lata pintada de outra cor que não fosse vermelha, amarela, ou branca.
         E todos estes serviços, desde o aterramento dos túmulos até a pintura das coroas de lata, tudo era feito por Juvenal. Bastava olhar o túmulo no dia de Finados. Pelas cores da coroa era possível saber se tinha, ou não, recebido os cuidados do Juvenal.
         E, para dar conta de todo essa demanda, Juvenal começava a trabalhar com muitos dias de antecedência. Primeiro, fazia os serviços mais grosseiros. Aterrava, consertava as calçadas, recolocava os tijolos que faltavam, recompunha os túmulos com rachaduras, cuidava dos rebocos, da pintura dos jazigos. E eram muitos... Dezenas e dezenas deles. E, por último, ficava o serviço de pintura das coroas de lata. Que também eram muitas.
Trabalhava das seis da manhã às seis da tarde. Levava a comida num caldeirão com tampa, assim não perdia tempo em voltar para casa no meio do dia. E como trabalhava!
Particularmente nesse ano, bem no período de Finados, o trabalho estava atrasado. Talvez pelo calor excessivo, talvez por ter assumido mais tarefas que nos anos anteriores, ou até mesmo porque Juvenal estava mais velho, mais lento. Enfim, não interessava a razão, o que importava era que o trabalho estava atrasado, e precisava ser feito a tempo.
Assim, na véspera, faltando um dia para Finados, Juvenal, que precisava finalizar a pintura das coroas, e sabendo que para isso precisaria de mais horas de trabalho, decidiu que pintaria durante toda a noite. E assim fez. Afinal, uma noite em claro não o prejudicaria em nada.
Quando começou a escurecer, pediu ao coveiro que, antes de sair, deixasse acesa a luz do poste ao lado da capela. Juntou ali as coroas ainda a serem pintadas, as tintas, os pincéis, a moringa com água, e continuou seu trabalho.
Estava uma noite tranquila. Apesar do calor insuportável do dia, a brisa da noite era fresca. Noite escura, sem lua. E Juvenal trabalhava sem parar...
Lá pelas cinco horas da manhã, contente por estar chegando ao fim da empreitada, começou a ficar incomodado. Estava com fome, e não havia nada para comer. Tinha trabalho para mais duas horas, mas estava faminto.
Sem parar com as mãos nos pincéis, pensava, insistentemente, numa maneira de arrumar alguma coisa para comer. De repente, ouviu o trotar de um cavalo bem distante. Longe, bem longe...
Apurou os ouvidos, e percebeu que era a carroça do entregador de pães. Isso mesmo! A padaria do Seu Miguelão Português, única da vila, oferecia esse serviço. Os pães eram feitos na madrugada, e o empregado saía com a carroça para fazer as entregas nas casas dos fregueses mensalistas. Também vendia pães para quem os quisesse comprar.
Era uma carroça pintada de branco, feita de folha de flandres, ou de zinco, fechada, com portinhola na parte de trás. Nas laterais havia o desenho de um imenso bigode preto e uma boca com um discreto sorriso. Coisa do Seu Miguelão Português, que nem tinha bigode!
Em cada entrega, o empregado parava a carroça, descia, abria a portinhola traseira, acondicionava os pães em sacos de papel, e os colocava no embornal pendurado no portão, ou na porta, ou na parede da casa do freguês. Sempre havia um embornal esperando. E, muitas vezes, o próprio freguês estava de pé, aguardando na calçada.
Serviço trabalhoso e demorado.
Juvenal se animou. Afinal, quando a carroça passasse por ali, ele poderia comprar dois pães e aplacaria a fome. E continuou pintando enquanto esperava que o entregador rodasse pelos quarteirões, e finalmente descesse pela rua do cemitério. Não podia perder tempo!
Quando percebeu que a carroça estava bem próxima, Juvenal correu para o canto do muro do cemitério, subiu num cavalete de pau que ficava ali, e com a cabeça acima do muro, ergueu os braços e começou a balançá-los no ar para chamar a atenção do entregador de pães, sem que precisasse gritar. Afinal, ainda estava escuro, e muitas pessoas ainda dormiam.
O cemitério ficava num terreno bem alto, a rua da frente era de terra, forrada de pedriscos e cascalhos soltos, e formava uma ladeira em direção da vila.
Costumeiramente, quando o entregador de pães passava diante do cemitério, um tanto ressabiado, naquele lugar ermo, numa noite escura, tratava de fustigar o cavalo para que fosse mais rápido. Ao começar a descer a ladeira, vislumbrou no canto do muro a cabeça de Juvenal, os braços erguidos sendo sacudidos no ar... Na escuridão não dava para saber quem era quem. E ele nem queria saber... Ficou endoidecido! Soltou as rédeas, levou as mãos à cabeça, enfiou os dedos pelos cabelos e destampou a gritar. Urrava de pavor...
O cavalo, com as rédeas soltas, desembestou numa carreira doida ladeira abaixo. A carroça quase nem tocava as rodas no chão. Voava! E foram tantos solavancos que as amarras se soltaram, a carroça se desvencilhou, tombou. O entregador de pães, aos berros, foi arremessado longe, caindo sobre uma moita de capim. E berrava. Sentado, com as mãos enfiadas nos cabelos, os olhos estatelados, gritava...
Juvenal, atordoado, continuava no canto do muro, também com as mãos na cabeça. Tudo aconteceu tão rápido... Só então percebeu que havia assustado o entregador de pães
Como estava sem a chave do cadeado do portão, o coveiro o deixara trancado, Juvenal fez um esforço danado para pular o muro e ganhar a rua. E, no escuro, saiu à procura do entregador de pães.
Orientado pelos gritos, foi chegando perto. O cavalo escafedeu-se. A carroça estava ali, virada, de rodas para cima, pães esparramados pela rua inteira misturados com a terra, com o cascalho, uma desordem absurda!
Tateando no escuro e guiado pelos berros, avistou o entregador de pães. Esgoelando, ensandecido! E procurou aproximar-se, devagarinho...
Quanto mais se aproximava, mais ele berrava. E foi chegando gente... O entregador de pães acordara toda a vizinhança. Acho que toda a vila, tamanha a multidão que se juntava!
E todo mundo ali querendo saber o que estava acontecendo, o entregador se esgoelando, arrancando os cabelos, e Juvenal no meio daquela doideira. Numa encabulação que fazia pena!
Juvenal implorava ao entregador de pães que se calasse, ele queria explicar o que havia acontecido. Queria falar que foi ele quem acenou no muro do cemitério, que estava com fome, que estava trabalhando... Mas, que nada... Inútil. O entregador de pães só queria gritar...
O dia estava clareando, e Juvenal continuava ali, sentado no capim, olhando para os pães espalhados pela rua, na terra. E o entregador, aos berros.
Foi chamado o Seu João da botica, o único farmacêutico da vila. Ele tentou, por inúmeras vezes, falar com o entregador de pães. Inutilmente... Então, à força, cinco homens o imobilizaram e o levaram para o posto de saúde. E ele, gritando.
Pelo que se conta, ele gritou por dois dias e duas noites, até que a voz acabou. E, por muito tempo, acordava no escuro da noite e punha-se a gritar.
O entregador de pães se foi há muito, mas durante o tempo em que viveu depois daquele dia de Finados, nunca mais foi o mesmo.
E Juvenal, que partiu um pouco depois, nunca conseguiu explicar ao entregador de pães o que realmente acontecera naquela madrugada. Sempre que tentava, o entregador se transtornava, e os gritos voltavam. Então, ele acabou desistindo.
Deixou por isso mesmo...



                                                                        Regina Ruth Rincon Caires





segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ah, se eu pudesse.

Minha mãe queria que eu fosse médico, mas teve a sabedoria 
de jamais interferir no meu destino. 

Um dos primeiros brinquedos que tenho 
lembrança foi uma maletinha de médico, com estetoscópio, 
seringa, espelho de refletir luz, pinça, tesoura, martelinho 
para bater no joelho, tudo de plástico inocente para uma 
criança. E saía eu auscultando e receitando chá 
de carqueja, minâncora, emplastro Sabiá, maravilha curativa
e Sabão Aristolino a quem passasse na minha frente, fossem
avós, tios, babá, cozinheira, primos e coleguinhas da escola. 

Isso durou pouco e minha mãe, apesar do seu desejo 
oculto, não ligou muito por eu ter abandonado a maletinha 
no fundo do baú da infância. Logo me interessei por 
outras coisas e no fim da adolescência já era publicitário, 
redator, atividades que me levaram a diretor de criação, 
executivo de agência de propaganda, roteirista, escritor 
e professor, coisa que sou até hoje. Com muito orgulho.

A única vez na vida em que me aproximei de algo que 
sugerisse uma atitude médica, foi nas enchentes de 1967
no Rio. Era escoteiro e meu grupo se apresentou como 
voluntário numa escola municipal transformada em 
acolhimento para desabrigados. Num daqueles dias caóticos, 
um médico me convocou para ajudar uma velhinha tuberculosa 
a entrar numa ambulância, sem antes discorrer 
um almanaque de cuidados em que deveria prestar atenção. 
Claro que como bom escoteiro, cumpri a missão de luvas e 
um lenço amarrado no rosto. Morrendo de medo que a velhinha 
me cuspisse.

Assim encerrei minha participação na nobre atividade.
E nunca mais fiz nada, além de um ou outro band aid num curativo 
de filho.

Hoje lembro muito da minha mãe, que não está mais aqui. Imagino 
o quanto ela estaria comovida com o trabalho dos médicos nessa 
Terceira Guerra Mundial contra um inimigo sem rosto, sem pátria,
sem causa. E eu também estou encantado e reverente, diante dos batalhões 
de profissionais da Saúde. Seres humanos superiores, desprendidos,
generosos, estoicos, vocacionados, comprometidos, determinados,
missionários, esbanjando conhecimento, consciência da ciência, lutando,
salvando e morrendo nas trincheiras dos hospitais em todos os cantos
do mundo. Comandantes da vida, senhores do destino possível, às vezes 
Golias, às vezes Davi, mas sempre gladiadores em defesa do que 
há de humano. 

Tenho vontade de dar marcha a ré no tempo. Ah, se eu pudesse: 
uma rezinha só, por algumas décadas. E puxar a saia plissada 
da minha mãe, interrompendo seu correr esbaforido para a escola: 
“Mãe, eu quero ser médico sim. Acha minha maletinha.”





domingo, 19 de abril de 2020

A insignificante história de um mortal



De mais a mais, Eudósio foi ganhando ares e plumas, ao caminhar. Já partia, depois das rebordosas comezinhas, do alto dos seus cinquenta anos, como se dissesse, parafraseando o herói: “Vou-me embora pra Pasárgada”.
De fato, ninguém mais acreditava em soluções viáveis para o sujeito lunático; perdido na vida. Não aparava um pelo sequer, e não era penitência coisíssima nenhuma, como tantos pensavam; desgrenhados, em suas oscilações involuntárias, e sem rumo certo, formavam, no seu palavreado, “tufas de vida e de sabedoria”. Rebatia, com entusiasmo, qualquer malicioso enxerido, ensinando: “Só se consegue a liberdade com o sincero desprendimento”.
Um típico vagabundo, para Eustáquio, seu irmão, empresário e dono da Casa do Povão, que de povo só ostentava o nome e o formigueiro de gente, no centro da cidade, com o sugestivo slogan: “Vem pechinchar! Essa é do povão!” (quando queria dizer, e pensava, sobremaneira, “Vem se foder”; achando graça, sozinho, no escritório confortável nos fundos dos fundos do galpão). A clientela atulhava, ávida por promoções e afins, e, de tanto alvoroço, criou uma saída estratégica ainda mais nos fundos da loja, para não se deparar e sofrer o revés do azar de se contaminar e ser, um dia, povão. Acreditava, com as suas imensas teorias compiladas da internet, que pobre é uma casta baixíssima determinada por seu deus, pois que, numa sociedade que se preze, há de haver camadas; altos e inferiores; poderosos e ralés; um que manda e outro que obedece; e por aí vai…
Nada disso lhe causava grandes desconfortos. Sentia-se, ao contrário, feliz por contribuir com a divisão, com os estamentos, com o “processo natural das coisas” – e com as graças de seu deus, para, no fim, quiçá, no que trabalhava arduamente, restabelecer a monarquia nesse país.
O bem-aventurado Eudósio, para fugir à regra do endeusamento ao ego do “eu” familiar, alargando ainda mais o desprendimento, entregou-se, de corpo e alma, ao redentor dogma de uma vida de luz, rebatizando-se por Multiverso, porque se sentia, antes de tudo, plural, do mundo e do universo; pronto para receber os ataques e redistribuí-las, as más energias, pelo corpo, dissipando-as na terra, para a sua absorção natural.
Aberto e desavergonhado; detentor de nada; adepto à conexão substância, de si com o plano astral, e só. Abandonou, ainda aproveitando algumas referências cristãs, pais, irmãos e família, para flainar, com os poros abertos, extremamente dilatados, instruídos à recepção; e, para isso, se mudou, sem deixar rastros, para o Sudeste do país, a fim de, precipuamente, apelar à singeleza de Guimarães Rosa, à verdade crua de Aleixo, evaporando-se, então.
Foi tido como uma afronta à família, que já não o aguentava mais. Claro que os maldizeres foram protagonizados pelo irmão, Eustáquio, o autoproclamado “dono da porra toda”. De tão puto, rogou praga à sua vida; não queria supor o nome sujo da família por unzinho qualquer. Repelia, fosse de quem fosse, uma palavra que suscitasse ou sugerisse tal louco chamado Eudósio. Porque aquilo era um desocupado. Porque sempre fora um porcalhão, desmiolado. Porque fazia passar vergonha meio mundo de gente da família, enquanto ele, o requintado – ou requentado – Eustáquio, dava gostos, e muitos gostos, à prestigiada família Rocha Aguiar.
Dona Leocádia caiu enferma gravemente, sem previsão. Mas o que mais preocupava era a lembrança, ainda que com Alzheimer, sempre presente do caçula. Ela não se referia ao filho como aluado; não seguia a toada do resto da família amargurada, e pedia, a todo custo, perdão por ele. “Mas, mamãe, aquele safado nem lembra que a senhora existe! Deixe de pensar nesse canalha!”. E a cansada senhora repetia a questão; pedia que jurassem perdoá-lo. Morreu enquanto dormia, num dia frio, nebuloso. As vizinhas, dona Jandira e dona Maria, diziam, a quem quisesse ouvir, que era obra de sua dor, por despejarem tanto ódio ao filho desviado. As chuvas fortes que se seguiram foram prenúncios e lacunas para as derradeiras súplicas. E dizem, no sertão, que quem morre assim morre desimpedido, livrando-se de uma carga e dando-a a outro – a sina e a graça do dever cumprido.
O instante inspirava cuidado, porque não só Eustáquio, mas boa parte da família atribuía a culpa a Multiverso. Voltou, num reflexo quase imperceptível, inesperadamente, para se aportar no velório da mãe. Pairou uma onda de fulgor incrível, que abrandou o recinto. Com roupas esquisitas, beirando a trapos, parou em frente ao caixão da mãe e deu-lhe um beijo demorado na testa. Uma espécie de novo Big Bang, a explosão; a conexão resplandeceu tudo. Todos se quedaram abismados, confusos. Os irmãos, abestalhados, se prostraram de joelhos; e, mais um pouco, Multiverso desapareceu por entre a multidão, de cerca de oitenta pessoas, que, ainda assim, tentou segui-lo para lhe tocar e, quem sabe, sugar algumas boas energias do novo messias, o redentor tão esperado.
Dias depois do inusitado, relatos espalhafatosos tomavam a capital e davam conta de uma espécie de monge, uma divindade, algo assim, ter operado um contato suprassensorial, fato passado e repassado no programa mais espetaculoso dos domingos, da tevê local. A sorte, a diversão e o ganha-pão do sensacional apresentador era saber se o homem seria um extraterrestre ou um fantasma; e chamou “especialistas” variados e bisonhos, que sabiam de tudo e de nada, para decifrar o sucedido.
Especulou-se; mexeu-se daqui e de acolá, até em rede nacional, o misterioso caso do Redentor de Quixadá. Enquanto que a ele, o Multiverso, assim como antes, nenhum mortal seria capaz de acompanhar. Esvaiu-se no tempo e no espaço, para nunca mais.





sexta-feira, 17 de abril de 2020

Quatro poemas de Melina Guterres








Fazer poesia
é despir-se
É nudez
profunda.




                                                                                                Proibido

                                                                                                Se não pode ser fortaleza
                                                                                                Não seja ventania
                                                                                                No meu mundo é proibido usar a palavra
                                                                                                amor em vão.





Sentir

Sentir
Censurado
Não cabe

Sentir
podado
é violência

Sentir
é a liberdade translúcida





                                                                            Flor de Aço

                                                                     Eu não tinha poesia
                                                                     Eu via tudo
                                                                     Fantasia
                                                                     E do céu de mim mesma
                                                                     Uma pedra
                                                                     De aço
                                                                     Em flor
                                                                     Capaz de derrubar muros
                                                                     Com perfumes
                                                                     Transportar
                                                                     Montanha de sul a norte
                                                                     Quem achou que era frágil
                                                                     Se enganou
                                                                     A flor de aço
                                                                     Germinou.








Melina Guterres (Mel Inquieta) é jornalista, agitadora cultural, criadora do portal Rede Sina (www.redesina.com.br), poetisa e feminista. Mais da poesia dela em: 
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Youtube: https://www.youtube.com/user/melguterres









quinta-feira, 16 de abril de 2020

Pele de cordeiro, bafo de lobo



"Se os fatos são contra mim, pior para os fatos".
 [Nelson Rodrigues] 


Domingo. O senhor Romualdo esperava numa poltrona confortável que o carro do neto estacionasse na porta da frente. Iria à missa matinal, sentaria no banco da frente, de cara para o celebrante, levantaria o corpo minguado para as orações e se recostaria no banco de madeira para a preleção, como os demais fiéis, sem se importar com as pessoas piedosas que lhe diriam para não fazer tanto esforço. Aos 82 anos, ainda tinha vigor.
Na igreja, olharia com orgulho para o neto ao seu lado. O filho, Alberto, nunca havia gostado de missa nem de religião, mas o neto, Lucas, tinha puxado a ele: era carola desde menino. Ele se sentiria feliz quando o neto o amparasse para não impedi-lo de cambalear. Que paciência tem este meu neto! Sempre cuidando de mim, repetiria em pensamento. Em seguida, se concentraria para saborear a rotina da missa até o final da cerimônia, quando o padre se aproximaria do seu banco e lhe daria a comunhão antes dos demais, numa deferência à sua idade avançada.  
O velho Romualdo era mesmo um homem de igreja. Aos sete anos, idade exigida na sua época, tomou-se de tal fervor para receber a primeira eucaristia sem nenhuma mancha de pecado que decidiu, por vontade própria, suspender o futebol e os passeios que o pai lhe concedia aos fins de semana. Nada de distrações até o dia especial.
— Preciso estar puro, mamãe, puro para receber o corpo de Cristo — dizia ele, mãozinhas postas e olhos no céu.
— Rominho — ponderava ela, orgulhosa — desse jeito teremos um sacerdote na família!
O menino, porém, continuava a se recusar às idas ao jardim zoológico, à cachoeira ou a qualquer outro lugar em que a intenção fosse divertimento. E no dia da sua primeira comunhão, vestido de branco, terço entre os dedos e cabelo fixado por gomalina, Romualdo abriu a boca ao consumo da hóstia como as virgens se entregam ao primeiro beijo.
Quando conheceu sua primeira esposa, Idalina, Romualdo já tinha 28 anos e os pais lhe cobravam, havia algum tempo, esposa e netos. Apaixonou-se mais pela beatitude da moça que por seus dotes de quituteira, bordadeira e pianista. Posso saciar o estômago, os olhos e os ouvidos com alimentos mundanos, mas é a consistência da alma que me sacia os sentidos, disse à dona Ester, mãe daquela jovem de 18 anos que se encantou de imediato por ele. Desde então, tornou-se o pretendente ideal para Idalina, com todas as bênçãos da sogra. Firmaram compromisso e casaram-se três anos depois.
Dona Ester, aos 39 anos, era de uma beleza madura. Já o sogro, em seus 60 anos, não era nem mesmo simpático. Romualdo, no entanto, identificara-se desde o início da vida marital com aquele homem sisudo, evitando de forma quase indelicada a mãe de sua esposa, de quem dizia não gostar sem explicar o porquê. Aos amigos, vira e mexe confessava não entender como Idalina, “quase uma santinha”, pudera ter nascido de uma mãe como aquela. E calava-se, atiçando a curiosidade de todos. Por isso, o espanto foi imenso quando, por ocasião da viuvez da sogra, acontecida logo após o casamento dos dois jovens, Rominho a convidou para ir morar com eles. E insistiu.
Idalina irradiava alegria com a presença da mãe em casa. Como boa filha que era, amava e respeitava Ester. Por isso, passou a cobrir Rominho de mais mimos ainda, em agradecimento. Agora, meus dias são mais curtos até a hora em que você volta do escritório, meu bem — dizia-lhe constantemente, olhos brilhantes. — Mamãe me faz companhia, me ajuda a costurar, a fazer compras, a preparar o seu jantar.
E assim foi. Até que Idalina morreu de parto prematuro, deixando vivo o pequeno Alberto. Primogênito e filho único, o menino entrou em casa no colo de dona Ester, ladeada por um Rominho entristecido e pensativo. Atrás deles, com ar de tédio, uma enfermeira vestida de branco esperava sem saber o que fazer.
— Quer segurar seu filho? — perguntou a sogra.
— Não, dona Ester. Não quero pôr as mãos na criatura que me tirou Idalina! — respondeu com um soluço.
— Mas a criança é inocente — ela retrucou.
— E por acaso eu tenho culpa de ter ficado sem a minha mulher?
A enfermeira, olhos virados para o lado, fingia não ouvir o diálogo entre eles, mas o excesso de desinteresse a traía, demonstrando que seus ouvidos anotavam cada palavra dita ali para jorrá-la mais tarde nas rodas de mexericos do bairro onde morava.
— Chamou o bebê de assassino! — diria.
— Coitadinho! — se apiedariam os vizinhos.
Encerrando o curto diálogo com a sogra, Rominho deixou-se cair na chaise longue onde Idalina costumava tirar pequenos cochilos ou ler revistas para senhoras. Dona Ester retirou-se com a enfermeira e o bebê para o andar de cima. 
Pouco depois, a campainha da porta tocou. Dois policiais procuravam “pelo senhor Romualdo Diniz”, como informou a empregada a Rominho, que se levantou lentamente para atendê-los.
— O que os traz aqui? — perguntou, com cara de poucos amigos.
— Uma denúncia — respondeu o mais velho — uma denúncia do hospital-maternidade.
Sobressaltado, Rominho buscou o apoio da mesa.
— Do que se trata? — quis saber, cauteloso.
— Maus-tratos seguidos de morte.
— Como?!
— Dona Idalina Diniz veio a óbito em razão de espancamento. O obstetra que a atendeu nos informou que o parto foi prematuro porque ela já apresentava um quadro recente e agudo de hemorragia interna — explicou o mais calmo dos dois.
— Espancamento? Como? Os senhores estão dizendo que...
— Senhor Romualdo, nós precisamos que o senhor nos acompanhe até a delegacia para algumas declarações — atalhou-o o outro policial.
Idalina havia mesmo morrido vítima de violência. Empurrões, sacudidelas, pancadas com objeto arredondado — leu o promotor, durante o julgamento. Mas nada foi provado contra Rominho, que se safou pelas mãos de um advogado experiente. Os amigos, os empregados, os sócios do escritório calaram-se. Alguns por desacreditarem mesmo que ele pudesse cometer tal barbárie. Outros porque lhe deviam favores ou dinheiro e não queriam aborrecê-lo. Porém, o que mais os impelia a confiar na inocência de Rominho era que sua própria sogra, dona Ester, o apoiara durante todo o julgamento e, ainda por cima, continuava a morar com ele e o pequeno Alberto.

Dois anos depois de enviuvar, Rominho conheceu Marialva, uma cópia moral da falecida. Igualmente recatada e mansa, a moça possuía, ainda, um grande predicado: era rica, muito rica. Casaram-se. E Marialva seguiu feliz em sua rotina de dona de casa apaixonada, até que um médico lhe tirou de vez qualquer esperança de ser mãe: era estéril. Desse exato dia em diante, perdeu o juízo e desligou-se da realidade. Deixou de cuidar do pequeno Alberto, passou a agredir dona Ester, a espiar as empregadas atrás das portas, a rasgar as roupas de Rominho e a repetir para os vizinhos e transeuntes, aos berros, da sacada de seu quarto: "Eles querem me matar! Eles querem o meu dinheiro". 
O próprio pai internou-a, condoído pelo estado lastimável da moça. No dia seguinte, para relaxar, como aconselhou o genro, ele e Rominho partiram para uma pescaria prolongada, onde os dois se consolaram e prometeram fazer de tudo para ajudar Marialva a melhorar. 
Isso nunca aconteceu.
Com os anos, o menino Alberto, que brincava, e ria, e cantava para o pai e para a avó perdeu seu viço, tornando-se subitamente um homem amargo e desconfiado. Saiu de casa e só voltou para apresentar ao pai sua esposa e o pequeno Lucas, desaparecendo novamente logo em seguida. Aos 18 anos, Lucas procurou o avô e pediu para morar com ele. Desentendia-se com a rudeza do pai. Desde então, avô e neto tornaram-se unha e carne. E o rapaz era a alegria de Rominho. 
A missa terminou. Os pensamentos de Rominho se aquietaram. Avô e neto partiram sem pressa para outro ritual dominical: visitar dona Ester no asilo elegante para doentes mentais. A visita seria de meia-hora, seguida de um farto almoço, cujo cardápio era sempre escolhido por Rominho. Naquele domingo, porém, encontraram a idosa arquejante.
— Não completo os 90 anos, Rominho! — disse ela, voz fraca, ao genro.
— Que bobagem bisa! — atalhou-a Lucas — A senhora ainda vai pegar no colo um filho meu!
Olhos esbranquiçados pelo tempo, trêmula, dona Ester pediu ao bisneto que pegasse uma pequena bolsa sobre a mesinha de cabeceira ao lado da cama. Com a respiração entrecortada, disse ao rapaz:
— O que está aí dentro lhe pertence. 
Perdeu a consciência de imediato e nem o médico de plantão nem os equipamentos modernos daquele asilo de luxo a puderam salvar. Rominho, estranhamente calmo, parecia aliviado pela morte da sogra com quem dividira, por anos, o mesmo teto.
Em casa, naquela noite, Lucas lembrou-se da bolsa que jogara sobre a cama ao chegar em casa. Dentro, folhas de papel amareladas e dobradas, que ele colocou esticadas sobre a escrivaninha. Reconheceu de imediato a letra irregular da bisavó materna:
                
Lucas,

Quando você ler esta carta, já estarei morta. Escrevo para lhe contar algumas coisas sobre o seu tão amado avô Romualdo. Não acredito que ele tenha coragem de lhe dizer que fui eu quem matou a minha filha, sua avó Idalina. Mas tenho medo de que ele o engane com meias verdades e siga sendo essa criatura que o mundo julga inocente e honesta. Ofereço a você a verdade inteira.
Idalina morreu em consequência da surra que eu lhe dei. Foram socos, pontapés e muitas pancadas com a escova de cabelo. Eu não tinha intenção de matar a minha filha. Mas matei. Não contava com a hemorragia. Seu avô se salvou por milagre das acusações que quase o incriminaram como assassino. E você deve estar agora horrorizado, perguntando-se por que foi que eu fiz isso.
Rominho e eu nos tornamos amantes desde o primeiro dia em que nos vimos, antes mesmo de ele se casar com Idalina. No dia em que ela nos pegou fazendo sexo, de madrugada, avançou sobre mim, desesperada. Eu apenas revidei. Disse a ela que Rominho era meu, só meu. Mas ela avançou de novo sobre mim. Então, eu lhe dei uma surra. Ela passou mal, foi levada às pressas para o hospital, seu pai nasceu e ela morreu de hemorragia interna. A polícia fechou o inquérito como “inconcluso”. Segundo eles, não havia provas suficientes para condenar seu avô. Rominho calou-se, com medo que eu contasse que ele era meu amante. Covarde. Sempre foi. Seguimos morando juntos como sogra e genro. Seguimos amantes. Cúmplices. Até que aquela outra mulherzinha, Marialva, se meteu entre nós, e eu tive que me livrar dela também.
No mesmo dia em que Marialva soube por seu médico que era estéril, eu contei a ela esta mesma história que lhe conto agora. Disse a ela que Rominho e eu iríamos nos livrar dela como havíamos nos livrado de Idalina. Aquela idiota correu e perguntou ao seu avô se era verdade. Ele não negou. Apenas calou-se, como sempre, medroso. Ela começou, então, a enlouquecer, dia após dia, antevendo que teria o mesmo fim que Idalina. Patética! Depressão, disseram os médicos. Mas não é o que eles sempre dizem? 
Quando o meu neto, Alberto, seu pai, descobriu, foi diferente. Não era para ele saber de nada, mas nos pegou juntos na cama e avançou sobre nós, como a mãe dele fizera anos antes. Pensei que também teria que acabar com ele, mas não foi preciso. Ele recuou. Depois disso, fechou-se em si mesmo e tornou-se uma criatura arredia, até que um dia partiu. E foi aí que eu soube que Rominho e eu nunca estivéramos em perigo. Seu pai era tão covarde quanto o seu avô.
Há poucos anos, com a desculpa da minha doença, Rominho me internou aqui, nesta prisão de luxo. Pena que eu já estava debilitada e não tive forças para matá-lo também. 
Estes são os fatos. Não escrevo para pedir perdão. Não me arrependo de nada. Fiz o que queria fazer e sou feliz por isso. Mas achei que você deveria saber de tudo. Porque Rominho, agora, não está mais em minhas mãos. Está nas suas, meu bisneto.

Ester