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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Traição

 


Na penumbra da sala, reinava pesadamente o silêncio, apenas interrompido a espaços pelo crepitar do fogo na lareira. Lá fora o vento rugia, naquela temível manhã de janeiro, disparando gotas de chuva contra a vidraça.

Ele estava afundado no sofá individual ao pé da lareira, com os pés esticados sobre um pequeno banco e o olhar vidrado, perdido sobre o telemóvel que repousava na mesa de apoio. Estava já nos últimos anos dos quarenta, bastante magro e com olheiras profundas no rosto pálido. Os fios de prata no cabelo ondulavam à luz bruxuleante da chama. A sua mão esquerda brincava com o que parecia um pequeno cartão de visita.

Estremeceu com o súbito toque do telemóvel. Aquela melodia, escutada tantas vezes, trouxe-lhe memórias de ocasiões felizes... e outras nem tanto.

No ecrã do equipamento o rosto sorridente de um homem entre os trinta e os quarenta, de cabelos desgrenhados claros. O nome “Ricardo” piscava ao ritmo da música.

Após uns segundos de hesitação, ele soergueu-se, clicou para atender e encostou o telemóvel ao rosto. Do outro lado, uma voz grave e enérgica interpelou:

— Olá bom dia dorminhoca. Tudo bem?

— Bom dia... — A resposta foi rouca e arrastada. Do outro lado fez-se um silêncio, fruto da surpresa. — Desculpa, sei que esperavas a Sandra.

— Pois…, sim. Ela está? — A voz mudara de decidida para cautelosa.

— Não, ela não está. De facto, estava mesmo aqui a pensar se te deveria ou não ligar.

— Ligar-me?!? — Um tom de incredulidade. — Mas nós conhecemo-nos?

— Na verdade não e já agora, chamo-me Fernando e sou o marido da Sandra.

— Ricardo. — A resposta tardou um pouco. — Mas continuo sem perceber...

— Bem sei. — Um sorriso cansado perpassou nos seus lábios, algo divertido. — Queria ter uma pequena conversa contigo, não te importas que te trate por tu, pois não?

— Como disse, não nos conhecemos, mas não, não me importo.

— É verdade, não nos conhecemos, mas temos uma coisa muito importante em comum... a minha mulher Sandra.

A afirmação soou como um tiro e provocou um longo momento de silêncio nervoso

— Como? Não estou a perceber. — Era uma patética tentativa de ganhar tempo. — Que quer dizer com isso? A Sandra sabe que está a falar comigo? Que é que ela lhe disse?

— Não adianta negar. — O sorriso alargou-se. — Eu sei de tudo: os encontros nos motéis, os jantares, os passeios nos jardins... até mesmo a conferência há dois meses em Londres... — Não se ouvia o respirar do outro lado da linha. — … de todas as formas, não te posso censurar. Ela é uma mulher muito bela e inteligentíssima, uma combinação irresistível.

— Mas... quando soubeste? — Rendeu-se, percebendo que não adiantava negar.

— Oh, já sei há muito tempo. Quase que posso dizer desde o início.

— Não posso crer... e não disseste nem fizeste nada? — Ricardo tentou passar ao ataque. — Há quanto tempo achas que aconteceu?

— Deverá fazer dois anos em Março. Estou certo?

O silêncio do interlocutor era o assumir da culpa.

— Inicialmente não me apercebi de nada, claro. Pelo menos, nada que me fizesse suspeitar disto. — Fernando continuou. — De repente, a relação morna de um casal da nossa idade com muitos anos de casamento, tornou-se muito mais ativa sexualmente. Como já não era há muitos anos. — Limpou uma lágrima que correu no rosto. — Ela procurava-me mais frequentemente e não se negava tantas vezes aos meus “avanços”.

A chuva parara, entretanto e o latido de um cão ouviu-se longe, trazido pelo vento que amainava.

— Eu estava feliz, ela estava feliz, como poderia suspeitar? Nem reparava nas frequentes trocas de SMS, no falar mais baixo ao telemóvel em algumas circunstâncias... estava cego. — O suspiro que se seguiu saiu mais audível do que pretendera. — Até que um dia, ela chegara a casa mais tarde que eu. Estava a tirar as coisas da carteira e vi que trazia amarrotado um pano negro... onde consegui divisar pequenas rendas. Mesmo depois da sua atrapalhação em esconder, fiquei sem qualquer dúvida que trazia na carteira as calcinhas que vestira naquela manhã... Porque traria ela as calcinhas amarrotadas na carteira? Porque as tiraria?

— Há milhares de outros motivos para além de... — Ricardo tentou defendê-la.

— Pois há. Por isso não poderia ficar com a dúvida. Ela disfarçou e escondeu... e eu fingi não ter reparado.

— Ela deve ter pensado que não viste... — Pareciam dois amigos a conversar.

— Mas vi. E, louco de dor e confusão, andei atento a todos os seus movimentos, atitudes e horários... que cada vez aprofundavam mais as minhas suspeitas. Até que um dia, à hora do almoço, fui para a rua em frente à escola onde ela trabalhava e esperei. Não tardou que a visse... que vos visse juntos.

— Sim, encontrávamo-nos ao almoço muitas vezes.

— Para saber a extensão “do problema”, contratei uma pessoa para a seguir durante uma semana e dar-me um relatório; com isso fiquei a saber mais do que queria: o relatório era extenso o suficiente para incluir fotos, horários, os motéis e restaurantes que frequentavam e a altura aproximada em que começaram a ser vistos juntos. Um bom trabalho em suma.

— Nunca nos apercebemos de nada...

— Como eu disse, um bom trabalho. Mas o que me deixava louco era a sua naturalidade, a facilidade e o prazer com que fazíamos amor, a sua vontade e carinho. Parecia que continuava apaixonada por mim...

— E continuava. Ela disse-mo várias vezes. Sempre que lhe pedia para te deixar e vir viver comigo. Nunca o quis, dizia que te amava demais para poder viver sem ti e que o que existia entre nós era uma paixão que ela esperava que passasse um dia.

Foi a vez de Fernando ficar em silêncio por uns minutos. Ambos os homens calados a escutar a respiração do outro através do éter.

— Por fim acabei por me conformar. — Fernando retomou a narrativa. — Aceitei que ela seria discreta o suficiente para não me envergonhar e aceitei que deveria apreciar cada minuto da sua atenção, cada beijo e cada carícia, como dádivas que poderia perder a qualquer momento.

— Foi precisa muita coragem para uma decisão dessas.

— Não, não foi. Muita covardia isso sim, medo de ficar sem ela, sem a mulher que amo. Medo que se fosse e não tornasse mais. A vida sem ela seria insuportável. Mas nos últimos tempos é assim que tem sido mesmo com ela, insuportável.

— Daí esta chamada. — Ricardo sentenciou. — Concluíste que não consegues viver assim e vens pedir-me que me afaste.

— Serias capaz?

— Se isso for o melhor para ela... sim. — Suspirou audivelmente. — Também vou sofrer imenso. Deixei a minha mulher há uns meses, achando que facilitaria a decisão da Sandra, mas ainda não lhe disse que o tinha feito.

— Temes pressioná-la?

— Sim, ela é adorável, mas sob pressão é imprevisível. — Sentiu-se o sorriso na voz.

— Consigo perceber que também a amas, não se trata apenas de um caso.

— Não, não é. Desde o início, desde o primeiro riso, as primeiras palavras, fiquei completamente preso a ela. Julgava que depois de uma certa idade já não era possível uma paixão com tal intensidade.

— E aqui estamos nós os dois... apaixonados pela mesma mulher.

— Não tenho coragem de continuar a fazer-te o mal que temos andado a fazer. Até aqui achava que não sabias...

— Que era um corno feliz...?

— Não, nunca pensamos, pensei, em ti nesses termos. Eras apenas o outro que a impedia de vir para mim de vez.

— Agora não interessa mais, não vale a pena estarmos a discutir sobre isto.

— Que se passa? Zangaram-se? — Ricardo não conseguiu disfarçar a esperança.

As lágrimas corriam agora livremente pelo rosto de Fernando.

— Não, caro amigo, a Sandra teve um acidente de automóvel na noite passada, quando regressava de tua casa. Faleceu de madrugada no hospital... O funeral é às 9h de amanhã e o corpo encontra-se na capela do hospital. Se quiseres podes aparecer... todas as pessoas que a amavam são bem-vindas.







sábado, 26 de dezembro de 2020

Não-me-esqueças

 

"(...) ‘homem nenhum bate em mulher, Hilda, eles batem na própria verdade quando ela não é o que eles querem’ (...) ‘Antônia, eles batem na mentira, mas é a gente quem apanha’ (...) 

Os homens daqui são assim mesmo, (...) dão nome pra tudo o que é nosso. (...) São só homens, filha, homens obrigados a fazerem exatamente o que querem’.” 

(Trechos do romance Meu corpo ainda quente, de Sheyla Smanioto)

                                                                                                                    

O Reinaldo me chamou pro velório. Ligou hoje às 7 da manhã. “Estou muito triste, Carlão. É o amor da minha vida.” Quase não venho ao cemitério e não queria sair de casa tão cedo, ainda mais no último domingo do ano, durante o meu recesso; mas tive de vir dar uma força.

Meu amigo está mesmo abalado. Fica o tempo todo junto da urna mortuária. Óculos escuros, lágrimas salpicadas na camiseta preta, barba por fazer. Assoa o nariz de vez em quando, como que limpando a dor que escorre. Só se afasta um pouco do corpo morto da Gilda quando vai receber o carinho vivo dos amigos.

Vejo vários homens no velório. Quase todos conhecidos. Geralmente nos encontramos na empresa, no campinho de futebol ou no bar. Às vezes na saída da igreja. Nós nos comportamos bem durante o velório. Estamos e parecemos todos sóbrios. Entre o viúvo e os amigos, são permitidos abraços calorosos. Eu mesmo, quando cheguei, afaguei as costas dele um tempão. Nossos rostos ficaram bem próximos. Aqui não xingamos, falamos baixo, não zoamos. Por enquanto, não ouvimos nem contamos nenhuma piadinha machista. Acho que o enterro também vai ser contrito, civilizado.

De mulher, até agora só vejo a Gilda mesmo, que talvez nem quisesse ter vindo. Ela está bem no centro da capela para que possamos prestar esta última homenagem. Precisamos consolar nosso querido Reinaldo, que agora está só e chora a perda.

A morte da esposa parece ter despertado novas rugas no rosto dele. Dizem que o sofrimento envelhece mesmo, principalmente os homens bons. Pelo menos a mulher continua estampada nas duas filhinhas, ambas muito parecidas com a mãe.

Lembro que há menos de um mês a Gilda e o Reinaldo dançavam juntos, animados, na festa de um ano das gêmeas. Ensaiaram passos de um funk engraçado e apresentaram pras meninas, que davam pinote no carrinho de bebê. Uma família tão bonita! Agora desfeita. Como é que uma mãe jovem, atleta, estudada, servidora da Justiça, foi capaz de morrer de repente e deixar órfãs tão pequenas? Será que o Reinaldo vai conseguir cuidar delas sozinho, coitado?

 

Nunca tinha visto um defunto nu. É a primeira vez. Gilda está sem nenhuma roupa. Rosto à mostra e intimidades expostas sob o tampo de vidro. É um caixão com fundo e lados de madeira, mas a frente toda transparente.

— Quem preparou a Gilda, Reinaldo? Você acha certo ela ser enterrada desse jeito? — pergunto.

— Linda, né, Carlão? A mulher mais linda que já tive e, pra ser bem franco, a mais gostosa e a mais especial. Nunca vou esquecer essa mulher. Pena ela ir embora tão cedo.

— Pelo menos joga um manto em cima do caixão, cara. Cobre a sua mulher.

— Não. Sempre gostei mais dela assim do que vestida. O que é bonito tem que ser exibido, não é mesmo? Pensei em cada detalhe.

— Estranho. A funerária não foi contra expor a finada assim?

— A empresa faz o que o cliente manda. É só pagar. Eu pedi pro moço da funerária, e ele atendeu tudo. Passou o batom rosa nos lábios de cima e até aparou os pelos dos lábios de baixo. Só não raspou as axilas dela. O sujeito disse que é porque a posição estava meio difícil. A morte deixa as bonecas com articulação prejudicada. Ah, deixa pra lá. Ninguém vai ver os tais sovacos. E eu nunca mais vou poder nem tocar. Nunca mais.

— Nunca pensei que você pudesse...

— Experimenta enterrar a Tânia peladona também — ele brinca, parecendo esquecer o sofrimento por alguns instantes e até esboçando um sorriso.

Que bobagem. A minha mulher é forte e não vai querer morrer cedo, assim como fez a Gilda.

Quero ir embora, mas preciso ficar um pouco mais. Acho que vou ter que acompanhar o sepultamento. Sinto pena do meu amigo. Será que vai suportar a solidão?

 

O Reinaldo não sabe, mas no passado, há muitos anos, a Gilda dele já foi minha. Conheci a falecida bem de perto, por cima, por baixo, dentro e muito e fundo. Ela era quente mesmo e tagarela e espontânea, lembro bem. Me incomoda ver essa mulher nua de novo, só que nesta situação inerte. Murchou muito nova e está completamente nua. Coisa esquisita.

Não pretendo ficar fitando o corpo da morta. Respeito o meu amigo. Mas enquanto o Reinaldo recebe o Beto e o Muniz, lá na entrada da capela, aproveito para olhar, pela última vez, o rosto, os seios e os braços da minha ex-amante. Essa diaba continua linda. Só não encaro suas partes mais secretas porque, desculpe a franqueza, periga eu armar a barraca em pleno velório.

Eita. Há pequenas marcas roxas no pescoço e — será que só eu acho estranho? — três sulcos profundos perto do peito, embatumados/camuflados por muitas florezinhas brancas miúdas.

— São miosótis brancos, mais conhecidos como não-me-esqueças. O nome da planta não é sugestivo? Claro que eu nunca vou esquecer essa mulher, Carlão. Nunca.

Uma cor gelada e mais escura vai tomando o corpo da Gilda. Logo estará guardado na terra. A Gilda morreu mesmo de quê? Ainda não sei.

— Reinaldo, você seria capaz? Você tem alguma culpa nessa história?

Ele não responde. É um homem de bem. Só sofre, abatido. Será que só eu acho estranho? Sereno e resignado em sua desgraça, o viúvo continua velando o corpo nu de sua amada.

 

Maria Amélia Elói





quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

A visita do diabo

 



O dia amanheceu frio, mas luminoso. Nada fazia prever os acontecimentos dessa manhã.

Era terça feira, dia de o queijeiro passar a recolher a produção de queijo fresco da semana. Chegou na carroça puxada por um cavalo, seria perto das nove horas, e parou junto à porta da casa da queijaria, a uns cem metros da casa de habitação da quinta. Havia mais de uma hora que o casal e o filho tinham tomado a primeira refeição — o almoço —, provavelmente feijão frade cozido ou batatas com couves. O rapazito, em férias escolares de Natal, acompanhava o pai a observar o que fazia, mas sem largar o mais recente brinquedo que ele mesmo construíra: uma “espingarda”.

Dois ou três dias antes, na aldeia, assistira maravilhado à habilidade que um amigo aprendera nas aulas de Física do primeiro período: metia quatro ou cinco cabeças de fósforo num tubo inox (uma caixa de termómetro), aquecia a extremidade fechada com outro fósforo aceso e, passados instantes, o tubo disparava, como uma espingarda. A experiência foi uma inspiração para o rapaz de treze anos. Era evidente a mudança de nível que uma arma assim proporcionava. Podia facultar tiros tensos e certeiros. Não se podia comparar à fisga que até aí utilizava.

Logo que voltou ao campo, tratou de pedir a caixa do termómetro à mãe, amarrou-a a um pedaço de tábua, que afeiçoou em forma de coronha, e estava a arma pronta. Fez algumas experiências: aumentou a carga explosiva (tinha comprado várias caixas de fósforos de cera), juntou uns grãos de chumbo à frente das cabeças de fósforo, por fim, aplicou um bucha de cartão, para os grãos não caírem. Como os cartuchos do pai. Os tiros espalhavam um pouco o chumbo, mas os grãos ficavam bem cravados na casca dos troncos de mimosa que usava como alvo. Eram resultados muito prometedores. Tencionava experimentar em breve a nova arma na caça aos pássaros.

Dessa vez, o queijeiro não vinha sozinho; trazia o filho, assim disse. Só muitos anos mais tarde o jovem inventor suspeitou que aquele rapazola não era outro senão o diabo. Ou, pelo menos, o seu instrumento.

Apeou-se e dirigiu-se logo, seguro e sobranceiro, ao moço do campo. Que melhor surpresa podia esperar o habitualmente solitário miúdo rural? Orgulhoso, mostrou-lhe logo a "espingarda". Mas o visitante não parecia trazer tenção de brincar. Era entroncado e devia ter mais dois anos que ele, pelo menos. Dirigiu a curiosidade fiscalizadora para a cerca de troncos em que uma bezerra mugia a pedir a mãe.

Porque é que a bezerra está presa? — indagou, austero.

— Atão”, é a corte dela! — respondeu o miúdo, incapaz de explicar uma evidência.

Então, o visitante deu início à sequência fatal: com um resmungo indignado, destrancou a cancela, abriu-a e enxotou a vitela para fora. Solta, não se fez rogada e partiu em trote na direção que devia achar que estava a mãe. O jovem dono, incrédulo e atarantado, só emitia frágeis protestos:

— Atão”, soltaste a bezerra…

Mas o recém-chegado parecia ter um plano marcado. Mudou logo a conversa:

Isso dispara? — perguntou, interessado.

A atenção que o miúdo esperava para mostrar a sua "espingarda" foi o toque de mágica que o levou a esquecer o problema da vitela que ainda há pouco o desorientava.

Sim, sim. Queres ver?

Mostra lá! — concedeu o outro.

O rapazito correu para casa e rapidamente preparou o tubo, desta vez com uma carga de fósforos mais generosa, para fazer boa figura. Saiu com a "espingarda" carregada, fósforos e uma vela, e encaminhou o outro para trás da casa. Aí, acendeu a vela, encostou a coronha ao ombro e apontou a arma para um estreito tronco de mimosa a uns dois ou três metros, com a chama da vela a aquecer a extremidade do tubo.

Ao contrário do que era habitual, o estouro estava a demorar. Por um momento, o miúdo teve um assomo de receio. Nem sabia o que eram premonições. Baixou ligeiramente a cabeça, tapou mesmo o ponto de mira com a aba do chapéu que todos usavam no campo. Por fim, o estampido, uma dor fugaz, o negro.

Acordou com todos à volta dele, em grande alarido e alarme. O miúdo tinha dores, deitava sangue do olho, havia muitos pingos no chão. O tubo também caído indicava o que tinha acontecido: com a força de recuo, soltara-se da fixação à tábua e entrara pelo olho adentro do miúdo imprudente. Os pais estavam desanimados e zangados.

Fartei-me de dizer para não brincar com aquilo, que é perigoso, mas não… Só faz o que quer!

Já está “desmanzelado” o meu filho! — choramingava a mãe.

Logo depois, ensaiaram várias experiências visuais:

Tapa o olho esquerdo. O que é que eu tenho na mão? É uma colher ou um garfo? E agora, são dois ou três dedos?

Embora com forte perda de visão, conformaram-se por o ferimento não ter sido maior. O olho podia ter sido vazado.

Souberam então da ausência da bezerra. O que foi?; como?; porquê? — queriam saber. O miúdo, só tinha uma desculpa:

Foi ele!

Então e tu deixaste? E porque é que não foste chamar-nos? — eram perguntas cujas respostas o miúdo não sabia dar.

O pai estava descoroçoado. Andava a guardar aquela bezerra de boa raça para fazer criação. Começou por chamá-la, esperando que ela mugisse e a localizasse. O queijeiro também estava um pouco constrangido. No fundo, alguma responsabilidade havia do seu filho, nada habituado à vivência de uma quinta agrícola e pecuária.

Com os brados, outros vizinhos se juntaram à procura da vitela. Dividiram o grupo em três equipas e partiram em direções próximas daquela em que a vitela desaparecera. O miúdo ficou em casa com a mãe e durante um bocado ouviu os chamamentos das buscas, para os lados da zona florestal.

Passadas duas horas, chegou o pai. Vinha alterado. Não disse o que tinha acontecido. Não disse se tinham ou não encontrado a bezerra, nem o destino que lhe tinha sido dado. Certo é que a novilha não voltou à cerca. Pegou na espingarda e saiu, dizendo que ia dar uma voltinha à caça; para desanuviar, certamente. Menos de um quarto de hora depois, ouviram-se dois tiros bem próximos. Ele não costumava encontrar coelhos tão perto de casa, mas parece que desta vez tinha tido sorte.

Não; com a irritação, tinha acertado numa das cadelas. Coitada, entrou a ganir baixinho e a tremer, largando pingos de sangue de vários pontos da pele, e foi tentar encontrar alívio junto ao lume. Mas via-se que estava em sofrimento. O homem que numa só parte da manhã tinha tido um filho aleijado, uma vitela perdida e uma cadela chumbada saía e entrava em casa, visivelmente desnorteado. O peso do irremediável oprimia, uma e outra vez. Por fim, deve ter tomado uma decisão. Pegou novamente na espingarda, dirigiu-se para a porta e chamou a cadela ferida. Todos sabiam o que se seguiria. Mas antes de sair, parou, virou-se para o miúdo e convidou, a voz doce:

Anda! Queres vir? Anda!

O miúdo temia que o convite significasse o que lhe passou pela cabeça. Abanou a cabeça, receoso.

Mas, talvez o pai quisesse apenas fazer a pedagogia da dureza da vida, mostrando-lhe como a sua insensatez provocara a morte de uma cadela. Ou tivesse decidido, enfim, pôr-lhe nas mãos uma arma a sério. O mais assustador era o tom doce, amoroso mesmo, que não era muito comum no pai, muito menos nas últimas duas horas.

Anda!

Então, ó Domingos, deixa lá o menino! — à mãe também não passara despercebido o perigo. — Não vês que é uma criança? Vai, vai-te lá embora!

O pai saiu. De ouvido atento, o miúdo esperava o estampido a todo o momento. Sabia perfeitamente o que estava a acontecer. Imaginou a cadela a olhar para o dono, dono a quem servira lealmente, de espingarda apontada para ela.

«Podia ser eu» — pensou. Pareceu-lhe ver os enormes olhos negros da espingarda de dois canos a olhar para ele.

Um tiro, só um tiro se ouviu. O inevitável cumpria-se.

Joaquim Bispo


*

Imagem: Hecatombe na Herdade da Torre Bela, 12/2020.

* * *






quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

OS BENZIMENTOS DE MINHA AVÓ

 



 

         Miúda, serena, calma e doce. Mulher extremamente dócil. Submissa como nenhuma outra.

         Assim era minha avó. Silenciosa e terna. Não me lembro de sua voz alterada. Soava sempre no mesmo tom de cantiga de ninar.

         Mulher de movimentos leves e precisos. Criou nove filhos na escassez de recursos, gerenciando o pouco ou quase nada, e deu conta. E ainda deu conta de dar amor a todos os netos, a muitos que, de bando a cada ano, chegavam ao mundo.

         Leveza na lida dos afazeres domésticos. Casebre de barro, depois de tábuas, chão de terra batida. Sempre limpa. Amorosa e cuidadosamente limpa. E cheirosa. De manhã, quando passava pelos cômodos borrifando água com as pontas dos dedos no chão, antes de passar a vassoura, o cheiro da terra molhada lembrava a chuva. E depois, durante todo o dia era cheiro, cheiro... Do pão assado, do café coado, do feijão com alho, do arroz com cebola, da carne de panela, da linguiça frita, da pele de porco crocante, do pepino cortado, do limão espremido... E, no comecinho da tarde, o cheiro do bolinho de chuva, do bolo de fubá com erva doce, do biscoito de polvilho, do arroz doce com açúcar queimado e paus de canela, do doce de abóbora, de chá de folhas de laranjeira...

         Tudo doce e aconchegante, no mesmo sabor de uma infância bem vivida.

         E minha avó ainda benzia. Era a benzedeira da vila. Sempre arrumava tempo para atender quem batesse em sua porta.

         Seu benzimento, sua reza, tudo era brando. Igual a ela. Uma alquimia de sons e palavras que embalava os pensamentos e adormecia os pequenos. Crianças chegavam gritando e saíam dormindo. Isso eu presenciei inúmeras vezes.

         E o benzimento era feito. As orações eram sussurradas enquanto suas mãos costuravam um paninho. Isso mesmo! Dobrava um pequeno retalho de pano, colocava uma linha comprida na agulha, fazia o nó e começava a costurá-lo apenas em uma lateral. Conforme rezava, subia e descia a agulha com delicadeza, inúmeras vezes, costurando sempre de baixo para cima. Rezava, de vez em quando parava a costura, e docemente perguntava à pessoa que estava benzendo, ou ao seu responsável:

         - O que eu coso?

         A pessoa respondia com a explicação do mal que a afligia: dor nas costas, cólica, dor de cabeça, dor de garganta, tosse, fraqueza, noites mal dormidas, cansaço, rouquidão...

         Então minha avó, pacientemente, explicava para a pessoa que sempre que ela lhe perguntasse, por repetidas vezes: “o que eu coso?”, que ela respondesse: “carne quebrada”.

         E assim era feito.

         Depois que ela ouvia a pessoa falar: “carne quebrada”, juntava estas palavras à reza e respondia:

         - Carne quebrada, osso essssss...

         Por mais que eu apurasse meus ouvidos, chegando mesmo a prender a respiração, isso era tudo o que eu conseguia ouvir. Depois ia sussurrando palavras e as juntava às preces, e por aí seguia. Minutos e minutos de reza sussurrada. Cansei de perguntar o que ela dizia, mas ela nunca me contou.

         Esse ritual da costura deveria ser feito por três dias para a mesma pessoa, e o mesmo paninho seria usado até que a beirada costurada formasse um caseado firme, tantos os pontos feitos nos mesmos lugares. Cada pessoa benzida por ela levava seu retalhinho costurado, com agulha e tudo, e deveria voltar com ele nos outros dois dias. A linha só seria cortada no último benzimento, e o paninho costurado deveria ser jogado em água limpa e corrente ou queimado.

         E as pessoas voltavam, e as queixas dos males se esvaíam.

Um dia, depois de muito perguntar sobre o que ela dizia durante os seus benzimentos sussurrados, ela me pegou pela mão, colocou-me sentada diante dela, e docemente inquiriu:

- Por que quer saber o que eu falo quando estou benzendo? Quer seguir o ofício?

Fiquei tão assustada com a pergunta que respondi prontamente:

- Não!

Naquele ‘não’ quase gritado, eu deixei claro que nunca havia pensado nisso. Eu sabia que aquilo não era um ofício. Minha avó não ganhava absolutamente nada com as benzeduras. Era uma missão, um dom. Enquanto ela benzia e aliviava as dores e inquietudes das outras pessoas, ela abrandava o seu próprio coração, alimentava a sua serenidade. Benzer era vital para ela. Era uma doação sem medida, era uma entrega. Mas não para mim!

Desse dia em diante, nunca mais perguntei sobre o que falava enquanto benzia. Eu a respeitei, e nunca mais apurei meus ouvidos para tentar desvendar os seus sussurros sibilantes.

Não havia na vila criança ou adulto que não tivesse passado pelo benzimento de minha avó. Não tinha dia em que não atendesse os que a procuravam.

         Benzia enquanto havia a luz forte do dia. Mas, depois das seis horas da tarde, nem adiantava chegar. Não atendia em circunstância nenhuma.

         Havia duas coisas que não fazia depois das seis. Não benzia e não varria a casa. Mesmo que fosse da maior urgência, era perda de tempo insistir.

         E mesmo com a insistência de muitas pessoas, não se alterava para dizer não. Dizia mansamente uma, duas, quantas vezes precisasse negar o atendimento.

         Um dia chegou um senhor, e perguntou se ela poderia benzer um cavalo que estava doente. Minha avó se espantou. Não benzia animais, só benzia pessoas. Se bem que muitas vezes eu a vi passando as mãos carinhosas nos nossos gatinhos e cachorrinhos, e mexendo os lábios, como fazia nas rezas do benzimento! Mas, oficialmente, nunca ninguém trouxe bicho para que ela o benzesse.

         Receosa e surpresa com o pedido, ela explicou ao homem que não benzia animais. Mas, diante da insistência e da aflição do pobre coitado, penalizada com a situação, disse a ele que iria pensar e lhe daria uma resposta.

         Na verdade, ela não precisaria pensar. Ela pediu um tempo para conversar sobre isso com o meu avô. Tudo que fosse fora do combinado teria de passar pelo crivo dele.

         Se até mesmo o benzimento de pessoas que ela fazia ele não encarava muito bem, não acreditava naquilo, criticava o feito como uma perda de tempo da benzedeira e do benzido! Quando minha avó lhe falou sobre a benzedura do cavalo, ele ficou transtornado. Esbravejou, vociferou...

         O homem do cavalo era conhecido dele. Ambos trabalhavam como charreteiros da vila. Vida dura. E pobre.

         Minha avó, apesar de saber que ele não concordaria com a ideia desde o momento em que o homem lhe fez o pedido, ficou sem jeito de dizer não, e agora estava apavorada porque teria enfim que dar a negativa ao homem.

         Ficou tão aflita que não conseguiu pregar os olhos durante toda a noite. De manhã estava um bagaço... E tinha ainda a dura missão de dizer não ao homem do cavalo.

         Passado das quatro horas da tarde, ela ouviu as palmas vindas do portão.

         Chegou a estremecer. Era chegada a hora...

         Abriu a porta na certeza de que era o homem do cavalo. E era. O homem e o cavalo!

         Minha avó ficou tonta, as pernas tremiam. A visão que tinha era ainda mais assustadora. O cavalo estava com uma aparência horrível, muito inchado, nem entendia como ele havia chegado até ali.

         O sol estava muito forte, e aquele homem com aquele cavalo ali, diante dela, do lado de fora da cerca de balaústres... Nem sabia o que fazer.

         A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi abrigá-los do sol, colocá-los no quintal, na sombra da mangueira. E foi custoso fazer com que o cavalo andasse mais um pouco, que passasse pelo estreito portão e se ajeitasse na sombra.

         Quando tudo se acalmou, minha avó, toda sem jeito, tentou explicar ao homem que não benzeria o cavalo, mas ele insistia tanto que ela achou melhor fazer uma oração, uma reza pedindo a Deus que tivesse compaixão do sofrimento do bicho.

         Fazendo isso, rezaria com fé, poderia ser que o animal melhorasse, e o intuito principal dessa reza mais ligeira era que eles iriam embora antes do meu avô chegar! Tudo ficaria resolvido rapidamente.

E ela não faria de qualquer jeito, não! Rezaria com muita fé, mas rapidamente.

         Pensando assim foi para perto do animal. O coitado estava de pé, arrepiado, imenso de inchado, e mantinha os olhos fechados. Estava exausto com a caminhada até ali.

         Minha avó colocou a mão na testa dele, e nem assim o bicho abriu os olhos. Ajeitou o braço de maneira que toda a palma da mão tocasse no animal, e começou a rezar. E se entregou à reza. Mesmo aflita, com pressa, rezou serena.

         De repente, em meio à reza, o animal foi se movendo de mansinho, tremelicando, e tombou de lado.

         Foi um espanto danado!

         Minha avó deu um passo para trás e não conseguia entender o que estava acontecendo. Agachou-se perto da cabeça do animal, os olhos continuavam fechados. Correu os olhos pelo pescoço do bicho e parou na barriga. O cavalo não estava respirando, a barriga estava imóvel. O animal todo estava imóvel. Morto!

         Isso mesmo, o bicho estava morto. Estirado, imenso no seu inchaço.

         E minha avó, ali. Incrédula, apavorada, embasbacada, sem ação. Não demoraria nada e meu avô chegaria...

         Seria o caos! O que fazer com aquele animal caído?

A cada olhada que ela dava para o bicho, parecia que ele se agigantava. Um elefante no tamanho! E como tirá-lo dali?

O dono do cavalo permanecia calado. E imóvel. Não tinha o que fazer. Tinha de pensar. Pensar numa maneira de levar o animal dali.

E ficaram pensando. O homem, no cavalo, e minha avó, no meu avô. Aflitos...

E meu avô chegou.

Ainda na rua, desatrelou o cavalo da charrete, amarrou a corda comprida no cabresto e soltou o animal na data do outro lado da rua, um terreno vazio onde havia touceiras e touceiras de colonião. A charrete ficava ali mesmo, na calçada em frente da casa. Não havia risco. Não havia ladrão.

E entrou...

Em poucos segundos, o mundo veio abaixo. Ele gritou, esbravejou, amaldiçoou, praguejou, destratou... Foi um tendepá! E minha avó, calada. O homem do cavalo, petrificado. Parecia uma estátua!

Esgotados os desaforos e desacatos proferidos pelo meu avô, ele e o homem do cavalo decidiram pedir ajuda a um sitiante que morava perto da vila. Lá havia um trator muito velho, mas com boa vontade, poderia arrastar o animal dali para longe.

E foram atrás do socorro... E ele veio.

Parte da cerca de balaústres precisou ser derrubada para a operação da retirada do animal. E minha avó ouviu...

Quando, enfim, o cavalo foi retirado, a noite já ia alta. E minha avó ainda ouvia...

E ouviu por muitos dias...

Era uma pessoa resignada com a vida, submissa ao marido, e muitas vezes eu imaginava que um dia ela perderia essa resignação e faria o maior escarcéu, a maior gritaria, colocando fora toda a gama de desaforos que recebera da vida.

Eu sempre pensava que não era possível ser tão cordata, tão sem réplica. Uma hora a coisa ia descambar...

Fiquei na espera.

Ela se foi, e eu não vi esse espetáculo. Ela era assim. Era de boa têmpera. Tinha bom cerne, alma nobre, coração manso. Aliás, ela era só coração. Coração nas mãos que benziam, nos dedos que nos acarinhavam, nos braços que nos embalavam, na placidez do rosto que nos acalmava. Coração nas cantigas doces que nos faziam dormir, na serenidade da fala que chegava aos nossos ouvidos, nos olhos que nos enterneciam, e nos lábios que tanto rezavam por nós.

Era o coração que ela entregava nos benzimentos, nas rezas sussurradas.  

 

                      Regina Ruth Rincon Caires

 

 

 

 

                                              

                                                                                  

               

 

 

 





domingo, 20 de dezembro de 2020

O QUE ACONTECEU AQUI É PRA FICAR SÓ AQUI




Elisa espetou os cravinhos no tender, depois de uma noite banhado 

no caldo de abacaxi com gin. Celebrava tal ritual há anos, quando 

50 minutos depois retirava o assado pincelado de melado 

de um forno brando e paciente, na intenção de espalhar o aroma de 

Natal da infância por todos cantos da casa. Cumpria a liturgia com 

esmero, pois sabia que filha, filho, genro, nora e netos 

chegariam ainda a tempo de respirar o perfume de Natal caramelizado 

e saudarem a festa, dessa vez, no jardim de uma casa em Araras, num 

dezembro atípico, fresco e estrelado como uma quebra da tradição dos 

Natais acalorados e chuvosos. A chegada da família era o estopim da 

alegria programada. As roupas novas, a agitação das crianças em volta 

da árvore natural iluminada que emergia de uma montanha de presentes, 

os gulosos em volta da mesa, o espocar das rolhas de prossecos pescados 

em baldes de gelo eram sinais de uma festa igual mas diferente. 

Naquela noite, pela primeira vez em décadas de tender no ar, 

Elisa não estava ali. 


Maria Cristina espetou os cravinhos no tender, depois de uma noite banhado 

no caldo de abacaxi com gin. Celebrava tal ritual há anos, quando 50 minutos 

depois retirava o assado pincelado de melado de um forno brando e paciente, 

na intenção de espalhar o aroma de Natal da infância por todos cantos da casa. 

Cumpria a liturgia com esmero, pois sabia que filha, filho, genro, nora e netos 

chegariam ainda a tempo de respirar o perfume de Natal caramelizado e saudarem 

a festa, dessa vez, no jardim de uma casa em Nogueira, num dezembro atípico, 

fresco e estrelado como uma quebra da tradição dos Natais acalorados e chuvosos. 

A chegada da família era o estopim da alegria programada. As roupas novas, a 

agitação das crianças em volta da árvore natural iluminada que emergia de uma 

montanha de presentes, os gulosos em volta da mesa, o espocar das rolhas de 

prossecos pescados em baldes de gelo eram sinais de uma festa igual mas diferente. 

Naquela noite, pela primeira vez em décadas de tender no ar, 

Maria Cristina não estava ali. 


Os tempos eram outros. A pandemia havia obrigado o mundo a novos hábitos e as 

máscaras, o distanciamento prudente e os abraços subjetivos regiam o tom do 

Novo Natal. Mas Elisa e Maria Cristina não estavam ali. Estavam em outro tempo, 

que o acaso cuidou de revirar. 


Numa loja de brinquedos na serra, um dia antes. 

- Você? Elisa!

- Você, Maria Cristina!

- Estou boba! O olhar em cima da máscara não disfarça.

- Nem o seu. Continua o mesmo. 

- Tem casa por aqui?

- Alugamos uma em Nogueira.

- A minha é em Araras. Alugada também. Pra fugir da chatice do isolamento.  

- Netos?

- Cinco.

- Coincidência. Eu também. 


Houve um instante eterno de silêncio. Os olhos das duas as transportaram a tempos 

onde os relógios deveriam ter parado em reverência a um tempo que não merecia passar, 

tempos em que nada importava além do tempo a ser vivido. Estavam no casarão no Alto da Boa Vista 

da família uma amiga comum. Festão de casamento. Champanhe, música e jovens interessantes e 

interessados, gente bonita e feliz povoavam os jardins e as mesas bem decoradas. Elisa e Maria 

Cristina se esbarraram ao ar livre, uma derrubando sem querer espumante no vestido da outra. 

- Desculpe, mil desculpas. 

- Eu chamaria de sorte. 


E emendaram ali mesmo, naquele instante desastrado, uma conversa ilimitada e divertida, que 

gerou uma aproximação tão forte, que foram levadas de mãos dadas à pista de dança 

no salão estroboscópico. Começaram se esbaldando numa dança separadas, mas por conta da entrada 

de um DJ romântico, colaram-se. Rosto no rosto, mãos se conhecendo, olhos fechados enxergando 

sensações inusitadas. Ameaçaram um beijo transgressor, talvez inadequado. Tremeram pernas que se 

roçavam ao som de “Je t’aime, mois non plus”, suaram mãos agora entrelaçadas, sentiram perfumes 

mútuos e encharcaram calcinhas.  Sem que combinassem, fugiram para penumbra frondosa do ipê mais 

longe do jardim, o esconderijo mais protegido da efervescência da festa e dos possíveis olhares 

escandalizados. 


E ali mesmo se beijaram sôfregas, se desnudaram como podiam, subiram saias, abriram decotes, 

se conheceram uma por dentro da outra. Gozaram num tempo só, como se únicas fossem, princesas, 

soberanas, bruxas, molecas, genuínas, purificadas. Ofegantes e perplexas, juraram como se ensaiadas:

-  O que aconteceu aqui é pra ficar só aqui. 


E cumpriram a jura. Os tempos não permitiam avançar no tempo. E constituíram dívidas de um 

tempo não vivido, mas nunca anistiadas. Como credoras uma da outra, foram levadas a viver 

outros tempos, outros mundos, outras vidas, até que se encontraram por acaso, na tal loja

de brinquedos. Talvez num tempo tardio, talvez num tempo que não fosse o tempo do mundo onde 

o tempo gira com a normalidade do tempo ordinário como é.  


E assim se viram pairando na celebração familiar do Natal, nas mesas postas em cada um de 

seus jardins, tão pertos, tão distantes, com cada fundo do peito dizendo por um momento 

que não pertenciam ao tempo daquele aqui e agora, preenchido pela algazarra dos netos, 

do rasgar dos presentes, das palavras gentis, dos votos de felicidade dos maridos.  

Elisa e Maria Cristina não estavam ali.


Estavam juntas, no beijo que outros tempos não permitiram, nos abraços não acontecidos, 

nas calcinhas secretamente molhadas, nos corpos nus entrelaçados, no êxtase que ficou 

com gostinho de quero mais. 


Foi o que sentiram ao mesmo tempo Elisa e Maria Cristina 

na hora de fatiar o tender diante da família feliz.  






sábado, 19 de dezembro de 2020

Mas que deus(a)?


 

                                          

Aquela casca; aquela amálgama cinzenta, dita estéril, se misturava ao monturo quase na porta da entrada principal. E não expressavam mais que: “Assim, esse país não vai para frente…”; sem providências para alterar o status quo. A bem da verdade, para ser sincero, acredito que só eu me penalizava. E já não era moço, como tio Alencar relatava, para me impressionar com “trivialidades”. Além disso, fato que me colocava em choque com a minha condição privilegiada era ter de ouvir, da boca de Augusta – que pelo nome se achava pertencente à alta nobreza –, a vizinha de porta, as maiores reprovações a um sonho pretérito e inacabado de igualdade e de justiça social.

Bom, para começo de conversa, devo falar que morar na zona sul da capital tem a complicação entranhada de estar ilhado. E por que, ainda, resistia em morar aí? Sendo filho único de Maria de Alencar Sobreira, uma mulher digníssima, que fez tudo para aplacar as dores de meio mundo de gente, inclusive a minha, restou-me este apartamento de herança. Nada mais. A leitora pode dizer que sou ingrato, coisa do tipo; ou que poderia muito bem me desfazer desse engodo que chamo de apartamento. Poderia, sim. Mas, arraigado a tantas memórias, não seria um processo fácil, simples de se resolver; como se jogasse um troço descartável. Não se devem enterrar memórias despachando-as – enfim, pequeno e respeitoso, julgo desse modo.

Ano passado, quando me socorriam alguma lucidez e ânimo, expus o bendito à venda. O corretor me declarou, com ar suspeito, que as mobílias estavam muito velhas; que o mar não estava para peixe; e outras baboseiras mais. Ainda assim, insisti, com o intuito sôfrego de me desligar de algum engasgo do passado. Uma tarefa hercúlea para um mero mortal apaixonado. Se fosse inventar de ir para outro apartamento, não seria a mesma coisa; não comportaria as inúmeras caixas, portas, móveis, e todo um aparato que a ele estou irremediavelmente vinculado. Desisti, por impulso, da empreitada. Um amigo, o Joaquim – aliás, o único amigo –, na estrita significância da palavra, me confortou, pedindo que não fizesse isso; que, mais cedo ou mais tarde, o que estava manifesto em meu rosto assombrado com a mudança, poderia me arrepender.

 Permaneci alheio aos desconfortos que me cercavam. Falo propriamente dos vizinhos, e de uma parcela da família, que me enchia o saco para encontrar um novo rumo. Nesse novo rumo, incluía aprimorar a carreira; encontrar um emprego de “vergonha”, que louvasse o nome da família, e, claro, me separar do apartamento. O incômodo aí, talvez, era quedar numa velharia. O mesmo tio Alencar, para se ter noção da invasão que cometia em relação à minha vida, afirmava, categoricamente, que precisariam implodir esse prédio, porque “é uma tremenda duma sucata; um elefante branco; manco, ainda por cima, resistindo à modernidade. Basta!” – e o falava alternando grosserias e rezingas de um velho empolado em falsas insígnias.

Tio Alencar não admitia ser chamado de “seu fulano”. Nesse prédio, que não era o seu, advertira os empregados, porteiros e afins, para lhe chamarem de “doutor”, embora mal possuísse o título universitário. Mamãe, quando estava com raiva, confessava que o grandalhão, a sumidade em pessoa, havia conseguido concluir os estudos à base de muita “pesca”. Colava os exames dos colegas na cara dura. Todavia, deixemos isso para outra prosa, senão me estenderei muito ou fugirei do essencial.

O velho, repleto de sebo escorrendo pela cabeça despovoada, ainda estava mancomunado com a vizinha, posso crer. Ela, para me desarmar e me desarrumar, não cansava de ligar o som nas alturas, em pleno dia de semana, sabendo que estava em casa e que trabalhava, agora, em home office. Para não me perturbar, fui obrigado a comprar um tampão de ouvido, dos mais caros, e, com ele, não sobrevinha ruído. Mas, até que chegasse à minha casa, porque o encomendei de outro continente, tive de me contentar com tufos de algodão atochados nos ouvidos.

Augusta, não contente, arrumou um pequeno cachorrinho. Não tenho nada contra animais, exceto os humanos de sua estirpe. No entanto, ela adquiriu um escolhido a dedo, um pinscher, e não precisaria relatar o tormento de ter de ouvir, a cada meia hora, um estardalhaço quando alguém resolvia aportar no meu andar. O cachorro, logo de início, mesmo sendo mínimo, tinha uma caixa torácica das mais agudas, nunca vi… Se, por um acaso, se encontrasse com o cachorro poodle da neta da outra vizinha, então o barulho varava o dia e adentrava a noite.

Por mais desgastante que fosse, o martírio era, digamos, superável. Augusta não conseguia me atingir dessa maneira. Não obstante, a sua voz rouca de tanto fumar e o seu desdém às questões centrais, que dizem respeito à sociedade, como se solapasse qualquer diferença, notadamente humana, compactuando com as loucuras do presidente, agitando-se a cada pronunciamento fajuto, me levavam à loucura. Ela era o exemplo mais fiel do serumaninho médio brazileiro. Era, justamente por isso, que queria zarpar. Aí, no condomínio, havia uma grandiosidade incalculável de adoradores do satanás, mesmo se anunciando tementes a Deus. Mas que Deus? Na porta do apartamento da dita cuja, um adesivo declarando que a casa era abençoada e, mais embaixo, outro, dissonante para mim; desbotado, com o emblema da última eleição, com o novo número da besta, o dezessete.

***

O que me arrancava do eixo não eram esses pormenores, e, sim, o descaso com os moradores de rua, que, invariavelmente, habitavam, ou queriam habitar, os arredores do meu prédio. Volta e meia ouvia relatos de que soltavam bombinhas, objetos e, pasme, até sobravam agressões físicas, mesmo à luz do dia.

Naquela manhã de uma quinta-feira qualquer, da qual não aparentava haver nenhum sobressalto, a não ser a minha obrigação forçada de sair, de ter de me comunicar, se preciso, com algum morador e de realizar as compras no supermercado, saltou-me aos olhos um enigmático pacote. Estava bagunçado com os restos de tudo: eram caixas que armazenavam, dispersos, objetos descartados, comidas apodrecidas e dejetos de gente e de animal. Houve um leve reboliço, como uma carniça viva de vermes. Daí, irrompeu um som abafado, como se não conseguisse alcançar a atmosfera dos homens. Meti a mão, para o espanto de seu Luiz, o porteiro, que me olhava com nojo, com certeza comprovando a minha esquisitice. Remexi mais e, o assombro total, ali, acossada, uma linda criança me olhou no fundo dos olhos e, em seguida, soltou o berreiro. Arranjei-a numa ruma de jornais velhos que jaziam no local, para, em seguida, cobri-la com os melhores panos.

***

Depois de um longo processo judicial, o que acho bastante correto, para evitar o descarte humano, ou o tráfico de crianças, infelizmente corrente em nosso país, Letícia hoje ocupa todo o íntimo do meu ser; adorna a minha vida, com doçura e esperança. Chamam-me de louco, alegam que desonro a família, com os instintos mais espúrios. Não dou ouvidos. Letícia, ainda, apartou-me de tudo que me fazia mal; um anjo. Somos, eu e Letícia, a exuberante alma que declaro ser a minha permanente deusa.






quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Janela aberta













quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Família não há só uma

 

Se tivessem dito ao Sr. Jeremias que um dia optaria por passar o Natal num lar de idosos em vez de com a família, ter-se-ia escangalhado a rir. Mas teria tido a mesma reação se lhe dissessem que passaria os seus últimos dias num lar em vez de no seu confortável e luxuoso apartamento, com uma belíssima vista da sua zona favorita da cidade. Mas a vida tem realmente reviravoltas que só muito dificilmente antecipamos.

Tendo ficado viúvo bastante novo, ainda lhe passou vagamente pela mente a ideia de voltar a casar, sobretudo para ter alguém que o ajudasse com os filhos. Mas não conhecia ninguém que o tentasse e, a avaliar pelo que sucedera com alguns conhecidos seus, a combinação de uma nova esposa com filhos antigos dava muitas vezes mais problemas do que os que resolvia, sobretudo se ela insistisse em ter filhos ou, pior ainda, se já os tivesse.

Contratou, pois, uma empregada para cuidar da casa e das refeições e meteu os filhos num bom colégio, onde tinham aulas de manhã e à tarde, não havendo pois o problema de onde os deixar fora do horário escolar. E apesar de ter um horário de trabalho muito sobrecarregado, fazia questão de sair a tempo de os ir para casa à hora em que eles saíam do colégio e libertava totalmente os fins de semana para os levar às inúmeras atividades desportivas e artísticas que eram a paixão do momento e que, infelizmente para o Sr. Jeremias, estavam sempre a mudar. Tudo isto implicava, claro, muitas noitadas para conseguir pôr o trabalho em dia, mas não queria que os filhos fossem como muitos dos seus amigos, crianças criadas praticamente sozinhas porque os pais estavam sempre ausentes no emprego ou em distrações.

Ganhou até uma certa fama de misantropo por recusar a maior parte das saídas que lhe propunham, pelo menos até os filhos terem idade suficiente para saírem também com os respetivos amigos.

E apesar de uma certa inconstância nos seus gostos, que se calhar até era normal, foram crianças sem problemas e bons alunos. Após os estudos universitários da praxe, concluídos sem demasiado brilho mas com notas razoáveis e sem terem arranjado grandes problemas, ambos arranjaram logo um bom emprego e saíram prontamente de casa para apartamentos de que lhes ofereceu o valor da entrada.

E o Sr. Jeremias ficou, pois, sozinho, pela primeira vez em muitos anos. Começou por estranhar a solidão no amplo andar que sempre lhe parecera demasiado pequeno, graças em grande parte ao corrupio constante dos amigos dos filhos. Mas em breve se habituou e apesar das indiretas – e às vezes mais do que diretas – dos filhos para que vendesse o andar ou o alugasse, uma vez que estava agora numa zona privilegiada da cidade e renderia bom dinheiro, deixou-se ficar no seu cantinho, criando novos hábitos e rotinas. Limitou-se apenas a remodelar a casa, ao fim de tantos anos e com um uso tão intenso estava um pouco estafada e a precisar de uma modernização. E como a empregada de muitos anos decidira deixar de trabalhar, contratou uma nova por apenas umas horas por semana para a limpeza e roupa, comendo fora ou mandando vir as refeições.

Os anos foram passando, os filhos casaram, vieram os netos e sem que desse por isso foi surgindo um certo distanciamento entre eles. A filha sempre fora mais chegada à mãe em miúda e depois da sua morte nunca se chegara do mesmo modo ao pai. Por isso, mesmo quando ainda vivia em casa, pouco ou nada conversavam, limitando-se a dizerem o indispensável. E tinha muito pouco em comum com o filho, muito amigo de desporto e da farra desde jovem, atividades que não lhe interessavam grandemente.

De reuniões em grupo por ocasião de eventos festivos, como anos, Páscoa e Natal, passaram gradualmente a uma mera visita rápida uma vez por mês e à ceia do dia de Natal dada à vez por cada um dos filhos, uma vez que os netos preferiam festejar com os amigos fora de casa e os pais não alinhavam muito em festas tradicionais.

Como tudo o mais na sua vida, o Sr. Jeremias habituou-se rapidamente à nova realidade, passando os seus dias contente e feliz a ler, a ver alguma televisão, a dar uns passeios “higiénicos” pelo bairro e a organizar a coleção de selos que tinha desde miúdo.

Infelizmente, e como bem disse o poeta, a vida é feita de mudanças e uma queda desastrada na cozinha resultou na fratura de uma anca e garantiu ao Sr. Jeremias uma longa estadia no hospital e o uso de uma bengala para o resto da vida. Mas não foi só isso. Os filhos uniram-se e com o apoio do médico de família convenceram-no de que não poderia continuar a viver sozinho. Até lhe arranjaram um lugar num lar bastante razoável, numa vila dos arredores.

Mas ao contrário do que imaginavam, tendo-o “atacado” num momento em que estava com bastantes dores e deprimido, o Sr. Jeremias não se deixou ficar, apesar de saber que até tinham bastante razão no que diziam – e aqui para nós, temia vir a morrer sozinho em casa, sendo encontrado apenas quando fosse o dia da empregada. Ou pior ainda, ter nova queda e ficar para ali estendido sem ter quem lhe acudisse sabe-se lá por quanto tempo.

Mas se tinha de acabar a vida num lar, então seria um à sua escolha. E foi o que fez. Optou por uma residência luxuosa em plena cidade, onde, a troco da sua substancial reforma, tinha direito a uma suíte de quarto, sala e banho, que podia mobilar à sua vontade, fisioterapia, refeições à escolha (dentro dos limites definidos pelas dietas atribuídas a cada residente, claro), enfim, materialmente era quase tão bom como se estivesse em casa.

O filhos ficaram desiludidos, claro, já imaginavam um bom excedente mensal a cair na conta do pai, que um dia seria deles. Pior ainda, com o pretexto de que o lar era afastado do bairro onde sempre vivera e de que tinha saudades, o Sr. Jeremias contratou os serviços de um carro com motorista para o levar semanalmente à sua zona e que estava também disponível para outros passeios, longos ou curtos, que lhe apetecesse dar. A sua intenção era passar o menos tempo possível em contacto com os outros residentes do lar, achava-se demasiado velho para criar novas ligações. E usava, para essa e outras despesas adicionais, como um bom vinho às refeições, por exemplo, as suas chorudas poupanças.

Mas há um limite para os passeios que se podem dar. Por isso, muito a contragosto, inicialmente, o Sr. Jeremias lá foi passando alguns momentos na sala de convívio do lar, sobretudo quando o tempo estava mau e não apetecia mesmo nada sair. E pouco a pouco, quase sem dar por ela, passava ali várias horas por dia.

Para isso muito contribuiu a Sra. Emília, a decana lá do sítio, uma pessoa muitíssimo ativa apesar dos seus 80 e muitos anos, que adotara como missão pessoal fazer com que os “novatos” criassem novas amizades e interesses. Uma pessoa menos simpática seria considerada mandona e metediça. Mas era impossível alguém zangar-se com ela e aos poucos o Sr. Jeremias lá foi convivendo mais, acabando mesmo por fazer parte do núcleo íntimo da Sra. Emília, uma grande honra não concedida a qualquer um.

Começou até a oferecer esporadicamente uma saída ao grupinho, alugando para isso uma espécie de miniautocarro. E descobriu, com alguma surpresa, que se divertia bem mais acompanhado do que sozinho.

E chegou finalmente o primeiro Natal desde que abandonara a sua casa. Nessa época do ano o lar dividia-se claramente em dois grupos mais ou menos antagónicos, os que iam passar as Festas a casa, ou seja, com a família, e os que, por terem a família longe, estarem sós na vida ou desavindos com os seus, passavam ali a Consoada. Era uma época de grande azáfama para a Sra. Emília, ocupadíssima a tentar acalmar as inevitáveis tensões entre os que saíam e os que ficavam.

O seu grupinho era totalmente constituído por “permanentes”, a única possível exceção poderia ser o Sr. Jeremias que ainda não decidira o que iria fazer. O filho, a quem calhava a vez de recebê-lo para a ceia de Natal, só costumava convidá-lo oficialmente uns dias antes.

E teve de facto a visita do filho umas duas semanas antes da grande data. Estranhou vê-lo entrar com um presentinho nas mãos, costumavam trocar as prendas depois da ceia de Natal, mas podia até nem ser para ele. Mas era.

Com alguns rodeios, o filho acabou por lhe dizer que não o poderia receber para a ceia uma vez que decidira tirar uns dias de férias na neve. Mas a irmã ficara encarregue de o convidar, apesar de não ser a sua vez. Enfim, nada de especial, só uma ligeira alteração de planos.

Uns dias depois, quase em cima do acontecimento, apareceu finalmente a filha para o convidar para o Natal. Começou logo por lhe dizer que os filhos não estariam presentes, iam passar uns dias fora com amigos. Mais ainda, não seria exatamente uma festinha familiar, tinham decidido juntar-se a dois casais amigos e fazerem uma ceia melhorada para que todos contribuiriam. O pai era bem-vindo, claro, mas não devia admirar-se se o ambiente não fosse muito a seu gosto. Para além de ser a única pessoa de idade presente, só dificilmente teria algo em comum com os outros convidados. Mas a comida, apesar de diferente do tradicional nessa noite festiva, seria certamente boa, encomendada a uma das melhores empresas de catering da cidade. E podia vir-se embora quando quisesse, chamariam simplesmente um Uber.

O Sr. Jeremias deixou-a falar à vontade, sem qualquer comentário ou pergunta, mesmo em alturas em que se via claramente que a filha estava à espera de o ouvir queixar-se ou dizer algo contra os seus planos. Mas nem uma palavra disse sobre o assunto, limitou-se a descrever os seus últimos passeios e a perguntar por um ou outro dos seus antigos vizinhos, apesar de saber perfeitamente que a filha nunca se lembraria de os contactar, achava-os abaixo do seu nível.

Já a filha estava de saída, tendo combinado mandar buscá-lo ao início da noite, quando o Sr. Jeremias surpreendeu ambos ao dizer-lhe que não valia a pena incomodar-se, não iria. Tinha sido convidado por uns novos amigos para uma festa de Consoada e tencionava aceitar o convite. E não pôde impedir-se de notar o ar de alívio da filha, que prontamente disfarçou e lhe disse que ficava bem feliz por o pai estar a criar amizades.

E foi assim que o Sr. Jeremias se viu à porta da sala de convívio de um lar de idosos na noite de Natal, decidido a fazer boa cara ao que viesse a acontecer. Mas quando entrou e foi acolhido com grandes sorrisos de satisfação e muito carinho e viu a decoração que ajudara a criar e as caras alegres que enchiam quase metade da sala, teve a maior surpresa de toda a sua vida: sentiu-se em casa! Sentiu-se em família!