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terça-feira, 22 de julho de 2008

Contadora de histórias - Giselle Sato


Todos os dias faço um café, pego a caneca preferida e ligo o computador.
Pesquisas, traduções e trabalhos variados.
À medida do possível, organizo a bagunça e vão surgindo as idéias. Uso 50% de muita perseverança, 40% da mais pura teimosia e 10% sobra para a velha intuição.

Escrever uma crônica é um exercício maravilhoso, vou contando os fatos e visualizando as situações.
Algumas vezes um personagem se rebela e toma conta da situação. Perco o fio da meada e o jeito é recomeçar, vou adaptando a história inicial e colocando o abusado nos eixos.

Contos infantis. Puxo de um lado e ajeito de outro, criança é exigente e sincera.
Meus pequenos leitores mandam e-mails exigentes: -Querida tia Gi, seu conto é legal, mas muito triste, poderia mudar o final?
A maioria envia histórias e redações. São crianças talentosas e cheias de imaginação. Pedem conselhos.

Poesias. Essas brincam com o escritor, embotam os sentidos e confundem a intenção.
Tomam rumos inesperados. As palavras ganham vida e a idéia inicial cresce na entrega de sentimentos.
Momentos pessoais e vivências. Ser imparcial na criação do poema é cabo de guerra entre razão e sensibilidade.

Mas criar é realmente um vício. Irresistível apelo da imaginação do narrador.
Contar histórias faz meu dia mais feliz, partilho um pouco do riso, experimento um novo caminho, algumas vezes apenas distraio o leitor. E isto me basta.

E pensar que tudo começa bem cedinho, aproveitando a brisa da manhã e um café quentinho recém coado.
Com cães e gatos ao redor buscando companhia e embalando o soninho com o som do teclado.





UM DESEJO


- Até a primeira, ou até a última gota? – perguntou Akan, parado no jardim de rosas amarelas. Sua armadura prateada refletia o ouro do sol e das flores, fundindo os tons num alo brilhante.

- Até a última, meu irmão – respondeu-lhe Akin, olhando mais ao longe, onde despontava um botão de rosa vermelha, como lágrima de sangue em meio a um canteiro de trigo a ser colhido.

Afastaram-se um do outro. O vento acariciava as rosas e estas retribuíam o carinho nas pernas dos guerreiros que eram irmãos de sangue duas vezes, de ventre e de voto.

- Com ou sem a Arte? – perguntou Akan enquanto sua espada entoava a primeira nota, chiando ao sair da bainha.

- Não se pode usar a Arte contra um Irmão – sorriu o outro.

- Há muitas coisas que não podemos fazer contra um Irmão e, apesar disto, lutaremos até a morte.

Akin avançou. Sua espada cumprimentou em batalha a arma do germano. Companheiros, amigos, fiéis devotos da Ordem de Sáah, agora empunhado armas como inimigos, a fim de resgatar o Botão Vermelho do Jardim de Nandra.

Atravessaram quase todo o continente, cada um por seu caminho. Akan venceu Morgo, a serpente do pântano e outros incontáveis desafios, mas quase pereceu no embate com as Valkírias. Ele era forte e a Arte ajudou a superar todos os obstáculos.

Akin viajou pelo oeste, o caminho onde apenas um homem de muita coragem poderia ousar. Ali enfrentou gigantes, as duas Jahis - que queriam comer seu coração enquanto pulsava – e a última barreira foi o Demônio chamado de Abadom.

Chegaram juntos à entrada do jardim e contemplaram o campo dourado. Depois de muito caminhar, avistaram a rosa vermelha, o Botão de Nandra.

No presente embate, a espada de Akin resvalou na armadura do oponente. Faíscas chisparam no prata como o sangue espirrando da carne.

Akan atacou uma, duas, três vezes, mas o irmão não arredou o pé; defendeu e contra-atacou. Os minutos da luta se transformaram em horas e o sol estendeu um tapete de rubra luz para que a lua viesse assistir a batalha.

Sob o brilho da Mãe Noturna, os irmãos lutaram. Os golpes ficando mais fortes, arrancando partes das armaduras. Ambos já lutavam sem o peitoral e o elmo.

Nasceram juntos, eram gêmeos; cresceram na mesma casa e foram dedicados ao Sumo Guerreiro no mesmo dia. Mardan foi o mestre dos dois e ambos tinham o mesmo nível na Ordem de Sáah.

Tanto eram iguais que partiram em idêntica jornada e tinham o mesmo motivo.

Um erro. Foi o único que Akan cometeu na luta que travavam. Sentiu o ferrão ardente atravessar-lhe logo acima do coração. A carne e ossos cederam lugar à lâmina do irmão.

Deu dois passos para trás e dois outros golpes riscaram-lhe o ventre. Caiu sobre o berço de flores e Akin prostrou um joelho em seu peito, encostando a ponta da espada no pescoço.

- Mate-me, Irmão – disse o derrotado.

- Não posso.

- Sim, você pode – sorriu Akan, o suor se misturando ao sangue. – A coragem sempre foi maior em você.

Respiravam no mesmo ritmo, mas Akin não conseguia despedir-se do irmão.

- Eu não teria forças para ver vocês dois juntos – argumentou Akan – Ame-a, por nós dois. Ame-a, como se a estivesse amando por mim e por você. Colha o botão.

Os guerreiros fecharam os olhos e a espada de Akin entoou a última nota, rompendo os ligamentos e atravessando o pescoço gorgolejante até mergulhar na terra fértil.

Akin beijou a face morta do irmão e caminhou pelo jardim. Ajoelhou-se ao lado do botão e as mãos fortes seguraram-lhe o talo. O rompimento veio seguido de luzes que cintilaram e um brilho que acompanhou a rosa até ser deitada numa pequena caixa de marfim.

Andou pelo vale e subiu em seu cavalo. Retornou pelo mesmo caminho, onde os maiores obstáculos já haviam sido suplantados.

Entrou em seu país e alcançou o Castelo de Nór. Uma miríade de guerreiros completava todo átrio do palácio e sacerdotes lhe deram passagem pela imensa escadaria.

O peregrino entrou no salão real, enquanto oitenta guerreiros se curvaram. Ajoelhou-se diante do Imperador e ergueu a caixa sobre a cabeça; entreaberta, ela mostrava a flor cintilante.

- Eis o Botão de Nandra, meu Senhor – levantou a fronte. – Dê-me a prometida mão da minha princesa.

Há muitas coisas que podem superar o amor entre irmãos, mas nenhuma delas é mais forte que corações fraternos desejando a mesma dama.

Akin e Akan se apaixonaram por Mirah, a única filha do rei, prometida ao guerreiro que trouxesse o Botão de Nandra.

Muitos peregrinaram às distantes terras do norte. Nunca se ouviu falar de alguém que houvesse retornado.

Mas os irmãos, mesmo sabendo do intento um do outro, partiram em busca da rosa.

Durante a jornada, desejavam intimamente ou morrer, ou que o outro perecesse no caminho. Mas nada disto ocorreu. A morte só os envolveria através do braço irmão, dando o último golpe.

- Claro – disse o imperador levantando seu protuberante corpo do trono. – A mão da princesa Mirah será sua – desceu os sete degraus – tão logo eu confira o que há em suas mãos.

Pegou a caixa de marfim e voltou para seu trono. Primeiramente sorriu e depois o som de sua gargalhada reverberou pelas paredes do salão.

- Matem-no! – sentenciou.

Os oitenta guerreiros avançaram de seus postos, enquanto Akin levantou-se aturdido. O corpo do peregrino respondia aos ataques como um olho que fecha ao rufar de uma nuvem de poeira. Reflexo. Flechas, espadas e lanças eram desviadas ou aparadas.

Para cada defesa que fazia, retornava dois contra-ataques; dois corpos inimigos dilacerados. Akin atacava com a espada, com o punho e com a Arte – rajadas de energia azul, que ora saiam da palma de sua mão esquerda, ora riscavam junto ao fio de sua arma, rasgando corpos dos oponentes à frente.

Combatendo, Akin subiu os sete degraus do trono. Guerreiros protegiam o rei, que apertava no peito gordo a caixa de marfim.

Quando matou o último inimigo, a porta do salão se escancarou e uma infinidade de soldados, vestidos em seus trajes azulados, invadiu o local.

Akin virou-se num átimo e apoiou o pé esquerdo no trono, entre as pernas do imperador. A espada, ébria do sangue de oitenta vidas, tingiu de vermelho o pescoço do rei, se afundando na banha, sem cortar-lhe a carne.

- Fale! – gritou Akin ouvindo o som dos arcos retesarem no outro extremo da sala. – Matei meu irmão por amor. Não hesitaria em tirar sua vida por vingança.

O rei ofegava, seus dedos roliços correndo em cima da caixa, titubeando se tocava ou não a brilhante rosa. Antes de decidir, Akin bateu-lhe no punho, derrubando o botão. A Rosa de Nandra caiu ao sopé do trono, se misturando ao sangue dos corpos na escadaria.

- Fale! – gritou.

- Um Desejo – disse o imperador tartamudeando. – O botão de Nandra contém Um Desejo. E só um coração que desejasse o Amor poderia colhê-lo.

É impossível descrever o que sentiu Akin. Amou a princesa e por ela se embrenhou naquela viagem. Lutou contra a fúria do tempo, contra criaturas terríveis e travou a maior de suas batalhas, entregando à Morte o seu amado irmão.

Akan não foi o único a morrer em vão. Outros guerreiros pereceram diante da artimanha do imperador, na busca de seu Um Desejo, a maior das magias existentes.

Ao degolar o imperador, passou a ter um sentimento de fácil descrição: justiça.

Virou-se para o salão infestado de soldados com armas em punho ou arcos preparados. Um a um, foram se ajoelhando, se curvando até as cabeças tocarem o chão. Havia um novo imperador em Nór, que acabara de conquistar o trono na forma das Leis Ancestrais: pela espada.





segunda-feira, 21 de julho de 2008

Carta de Amor

Marcia Szajnbok


Queria te escrever uma carta
Que não fosse de despedida
Que, antes, fosse mesmo de chegada,
De começo, de ponto de partida,
Onde eu pudesse, amigo, te propor
Este meu jeito estranho de definir amor:

Norte na bússola dos sentimentos,
Referência a cada um desses momentos
Em que alguém se sente engolfado pelo vendaval dos acasos...

Companhia doce, terna, absolutamente especial
Nas cotidianas banalidades que chamamos vida-real
Alegres champanhes, ternos abraços, tristes silêncios...

Um tanto de desejo, de suave intimidade
Construída sobre o sólido pilar da liberdade:
A confiança absoluta em si mesmo e no outro
A ponto de não se preocupar se é muito ou pouco...

Grandeza sem medida, sem espaço ou tempo
Que no instante derradeiro, na presença clara da morte,
Nos sirva de conforto, justificativa e alento...

É tênue a fronteira entre amor e amizade,
Mera linha pontilhada feita de fumaça
Que esmaece tanto mais quanto mais o tempo passa...

Sentimento sem nome, toca o real
Sentimento sem tempo, portanto eterno
Nem grande nem pequeno, já que absoluto...

(Certamente Fernando Pessoa tinha razão:
Todas as cartas de amor são ridículas, a minha não é exceção.
Mas, afinal, amar não é também essa espécie de flagelo
Em que se mostra o ridículo, esperando que o outro enxergue o belo?)





Brincando with Cole Porter

Marcia Szajnbok


Será que você ouve Cole Porter like I do?
‘Cause a voice within me keeps repeating you, you, you...
E como I’ve got you under my skin
Eu queria acreditar que, um dia, I could win

E porque pr’a mim, baby, you’re the top
Mais que o Coliseum e o Louvre Museum
E a Tow’r of Pisa e a Monalisa
E o Mickey Mouse e o Big Ben
I wonder if you think of me assim também!

E te ver é sempre uma alegria
Mas na tua ausência I miss you till I die
E lá vou eu from major to minor
Everytime we say goodbye...

E porque sempre que te encontro
You do something to me
Fico pensando em minha vida –
Sem você, what should it be?

Você preenche meus sonhos e meus devaneios acordada
Night and day you are the one
Não consigo desejar mais nada
Only you beneath the moon and under the sun...

Então, se birds do it, bees do it, even educated flees do it
Why not, nós dois, devagarinho...
Let’s do it, let’s fall in love, só um pouquinho!

(Sempre me ponho na vida a rimar português com english words
Os versos são mancos...
Coração não combina com heart, nem amor com love...
Também fora do papel, nada combina com nada, but the feelings flow...
Por que tanta complicação?
I look for the answer in the skies above and in hell below...
Como chamar esse sentimento estranho?
Como transformar, dentro de mim, versos brancos em alexandrinos
Hai-kais em sonetos
Dissonâncias dodecafônicas em perfeita harmonia?

Que será dessa voz desafinada que soa em mim
E deseja,
E desafia?)





sábado, 19 de julho de 2008

Capital

Parei meu carro em frente ao Cristo Redentor

Cambaleou pra perto um homem mascarado

“O que é que você vem pedir ao meu Senhor?”

Falei que tava com um pneu furado

Eu não acredito que a crença seja o melhor pra mim

Então eu sigo me sentindo, como um sonho ruim

Eu perguntei pra ela, “qual é o problema, meu bem?”

Ela disse que iria viajar pra longe

Eu disse, ”por favor, não se vá. Se você for eu não vou esperar”

Me disseram que eu era louco, e eu acreditei.

Então esqueça tudo que eu falei.

Alguém alguma vez te disse, a cor dos seus olhos?

Pois eu te digo, são castanhos, verdes, pretos ou azuis

Caiu minha máscara e eu quero ficar sempre com você

O carro já está bom, vamos embora





sexta-feira, 18 de julho de 2008

Só os pobres merecem balas-perdidas


Nas últimas semanas, a população brasileira ficou chocada com algumas ações desastradas da polícia. Num curto intervalo de tempo, policiais do Rio de Janeiro e do Paraná, perseguindo bandidos, abordaram automóveis errados e fuzilaram pessoas inocentes — uma criança, uma jovem e, mais recentemente, o refém dum assalto, foram executados.

Estas tragédias comoveram as pessoas, pois se aqueles indivíduos pagos para protegerem os cidadãos são justamente quem os matam, que tipo de segurança é esta?

Mas deixando de lado a dor dos familiares, vítimas do absurdo que é a segurança pública no Brasil, toda a ênfase dada ao despreparo dos policiais é duma hipocrisia sem tamanho.
Qualquer um que já foi alvo da violência urbana sabe qual é o primeiro pensamento que se tem posteriormente: “bandido bom é bandido morto”.

A maioria das pessoas não hesitaria, caso questionadas, em condenar a pena de morte, mas se alguém em sua família for seqüestrado, estuprado, ou assassinado, o desejo natural é de retaliação. Logo se esquece de todas as aulas de catequese, de “dar a outra face”, e queremos o “olho por olho, dente por dente”. Este é o sentimento mais instintivo possível: punição na altura do crime cometido.

E o clamor popular é sempre o mesmo — basta de impunidade. Não adianta tapar o sol com a peneira e aguardar que alguma instância do judiciário, ou do sistema penitenciário resolva o problema da criminalidade. Alguns preferem comprar um revólver e deixar em cima do armário, outros preferem que a polícia atue como justiceira e, mais do que manter a ordem, atuem também como juízes e executores. E isto é o que tem ocorrido no Brasil há décadas. Quem não se lembra da chacina da Candelária? Ou da execução do seqüestrador do ônibus 174 no Rio? Ou quem já não ouviu sobre a reputação da Divisão Antiseqüestro do Paraná, que praticamente erradicou este tipo de crime no estado porque os bandidos eram executados? Ou quem nunca viu imagens do carro blindado do BOPE — vulgo “Caveirão” — invadido as favelas e mandando bala pra todo o lado?

Não é de hoje que a polícia “mata a cobra e mostra o pau” e, no fundo, num lugar bem escondido, é o que todos desejamos. Se a Justiça não funciona, alguém tem de dar cabo da impunidade. Não é isto parte do fascínio que o filme “Tropa de Elite” exerceu sobre o brasileiro, ver em ação uma equipe policial incorruptível e que faz alguma coisa?

No entanto, só os pobres merecem ficar em meio ao fogo cruzado. Deixe isto para os favelados, que desde há muito estão acostumados com trocas de tiro de madrugada, com balas-perdidas atravessando suas janelas, portas e paredes, perdendo seus filhos para o narcotráfico, ou sendo executados, equivocadamente, por policiais. Enquanto o massacre e a carnificina estiverem nos morros ou nas baixadas, longe das vistas e das câmeras de TV, então tudo bem!

Mas ai destes policiais despreparados se eles atingirem um cidadão de classe média!

Pois, no Brasil, só pobre merece ser confundido com bandido...





A notícia do fim do mundo

Volmar Camargo Junior


Inflação no Brasil, crise nas hipotecas americanas, polícia metralhando cidadãos e matando criança porque o vidro do carro era escuro, militares entregando rapazes de um morro para traficantes de outro morro, pais que jogam crianças do alto de edifícios, mães que jogam crianças no mato, ladrões que arrastam menino pelo cinto de segurança de carro roubado por quilômetros, mulher parindo no meio da rua, dezenas de crianças morrendo na maternidade, centenas de milhares de crianças sendo filmadas e fotografadas enquanto fazem sexo com maiores de idade, trabalhadores honestos se masturbam vendo fotos e filmes de crianças fazendo sexo com maiores de idade, canalhas que enriquecem ilicitamente manipulando o sistema financeiro brasileiro e não podem ser presos porque um exército de advogados têm o respaldo do Supremo Tribunal Federal para mandar soltá-los, os mesmos canalhas não podem aparecer na televisão algemados porque representa uma arbitrariedade da polícia, país do Oriente Médio divulga cenas de mísseis sendo disparados contra seus vizinhos, Paris esteve em chamas, japonês esfaqueia pessoa na rua, norueguês (ou era sueco) mantinha a filha presa em um porão por décadas e tinha filhos com a própria filha, pais ingleses dão sumiço à própria filha em Portugal, presidente de país africano manda matar opositores e qualquer um que não vote nele no pleito democrático, menino mata colega com o revólver do pai – mas era só uma brincadeira, não sabia que estava carregada.

E dizem que o mundo vai acabar por causa do peido das vacas.











quinta-feira, 17 de julho de 2008

Pequenas Coisas

Raymond Carver
Trad.: Henry Alfred Bugalho

Mais cedo naquele dia, o clima mudou e a neve derretia em água suja. Veios escorriam da pequena janela, à altura dos ombros, que dava para o quintal. Carros patinavam na rua lá fora, que começava a escurecer. Mas estava escurecendo dentro também.
Ele estava no quarto socando roupas para dentro duma valise quando ela apareceu na porta.
Estou feliz que você esteja indo embora! Estou feliz que você esteja indo embora! ela disse. Você está ouvindo?
Ele continuou pondo suas coisas na valise.
Filho da puta! Estou tão feliz que você esteja indo! Ela começou a chorar. Você nem consegue olhar na minha cara, consegue?
Então ela avistou a foto do bebê sobre a cama e a apanhou.
Ele olhou pra ela, ela enxugou os olhos e o encarou antes de se virar e voltar para a sala-de-estar.
Traga isto de volta, ele disse.
Apenas pegue suas coisas e saia, ela disse.
Ele não respondeu. Fechou a valise, vestiu o casaco, escrutinou o quarto antes de apagar a luz. Então ele foi para a sala-de-estar.
Ela estava na passagem para a pequena cozinha, segurando o bebê.
Eu quero o bebê, ele disse.
Você está louco?
Não, mas eu quero o bebê. Vou mandar alguém vir buscar as coisas dele.
Nem pense em tocar neste bebê, ela disse.
O bebê começou a chorar e ela descobriu a manta de sobre a cabeça dele.
Oh, oh, ela disse, olhando para o bebê.
Ele se moveu em direção a ela.
Pelo amor de Deus! Ela disse. Ela recuou para dentro da cozinha.
Eu quero o bebê.
Fora daqui!
Ela se virou e tentou manter o bebê erguido num dos cantos atrás da estufa.
Mas ele veio. Ele alcançou por sobre o fogão e apertou com suas mãos o bebê.
Solte-o, ele disse.
Saia, saia! Ela gritou.
O bebê estava corado e berrando. Na escaramuça, eles derrubaram um vaso que pendia atrás da estufa.
Então ele a prensou contra a parede, tentando fazê-la soltar. Ele segurou o bebê e empurrava com toda sua força.
Solte-o, ele disse.
Não, ela disse. Você está machucando o bebê, ela disse.
Não o estou machucando, ele disse.
Pela janela da cozinha não passava luz. Na penumbra, ele se ocupava dos dedos em punho dela com uma das mãos e com a outra agarrou o bebê pelo braço perto do ombro.
Ela sentiu seus dedos se abrirem à força. Ela sentiu o bebê sendo tirado dela.
Não! Ela gritou assim que suas mãos se afrouxaram.
Ela ficaria com ele, com este bebê. Ela agarrou o outro braço do bebê. Ela segurou o bebê pelo pulso e se reclinou para trás.
Mas ele não desistiria. Ele sentiu o bebê escorregando de suas mãos e puxou para trás com muita força.
Desta maneira, o assunto havia sido decidido.

“Pequenas Coisas” de Where I’m Calling From: The Selected Stories Atlantic Monthly Press, 1988. Copyright © 1988 por Tess Gallagher.
O conto foi publicado como "Meu" em Furious Seasons And Other Stories Capra Press, 1977 e como "Mecânica Popular " em What We Talk About When We Talk About Love Knopf, 1981.



Raymond Carver (25 de Maio de 1938 – 2 de Agosto de 1988)

Escritor norte-americano, célebre por seus contos e poemas minimalistas.

Carver nasceu em Clatskanie, Oregon e cresceu em Yakima, Washington. Carver estudou por um tempo com o escritor e teórico John Gardner na Chico State College em Chico, Califórnia. Publicou um grande número de contos em diversos periódicos, incluindo The New Yorker e Esquire, contos que mais tarde foram reunidos em livros. Suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes coleções norte-americanas, como Best American Short Stories and O. Henry Prize Stories.

A escrita de Carver é normalmente associada ao minimalismo. Seu editor na Esquire, Gordon Lish, foi fundamental neste processo. Por exemplo, quando Gardner aconselhava Carver a usar 15 palavras ao invés de 25, Lish aconselhava Carver a usar 5 no lugar de 15. Durante este tempo, Carver também submeteu suas poesias a James Dickey, então editor de poesia da Esquire.

Carver morreu em Port Angeles, Washington, aos 50 anos, vítima de um câncer.

Fonte: Wikipédia





As Baleias Cinzas

Yolanda Arroyo Pizarro
Trad.: Henry Alfred Bugalho

“Dedicado a meus dois matrimônios literários:

Para Alma Rivera, por me dar seus ombros para secar as lágrimas.
Para Emilio del Carril, por seus beijos na nuca.
Finalmente, à musa que sempre há de ser musa, Mamota, idolatrada perpetuamente por esta seresteira de amor.”



Como se vive depois de algo assim? Depois da opressão atravessando-lhe o peito? O coração volta a bater igual? Pode-se respirar com semelhante perturbação sobre as têmporas?
Caminho sobre o convés com os olhos molhados. Lanço o olhar para as velas içadas. Retorno ao timão e nele dou uma leve volta. Vamos decididos, eu e meu barco, até o novo destino. Não consigo ficar impávido, de braços cruzados. Não tenho culpa. Vou protestar. Vou renegar e negá-lo. Diante daquela acusação, o silêncio me tragou antes de eu o engolir. Ainda assim, não pude abrir a boca naquele momento, mas hoje, agora, vou confrontá-lo.

A água parece uma plataforma de centelhas cinzentas querendo tragar o horizonte. Os vultos, como dum veludo lúgubre, áspero, abrem-se e se fecham, crescem e se apequenam, saltam e submergem. Não têm dentes, mas mostram-me as barbas que surgem da boca, as barbas creme que lhes pendem em cada lábio. Devoram as profundidades. Devoram minhas lembranças? Terão tragado minhas memórias, como fazem com o fundo marinho, absorvendo sedimentos e crustáceos, separando os pedaços do resto com seus filamentos?

A impressão que recebo, ao me aproximar duma baleia adormecida, é, sobretudo, de imensidade. É como se cada olho de baleia aprisionasse um universo. Fita-se o olho, a esfera, e alguém se pergunta se dentro de cada córnea pode haver uma dimensão diferente. Enormidade, solidão de espaços, de carnes, de dura pele cinzenta. Sua presença é inquietante, esmagadora. Inspira-o uma tristeza irremediável que não se extingue, como a própria espécie. Hoje, as baleias choram comigo.

Ω

— Minha filha vem me visitar — vou recolhendo a âncora e me volto para esperar a reação de Ambrosio à notícia. Ele fica feliz. Não a conhece, mas está louco para conhecê-la, pelo menos é o que sempre me diz. Considero Ambrosio como um filho e cada vez que posso falo para ele de minha Viveca. Às vezes, mostro-lhe algumas fotos dela, de quando ela estava na escola, ou quando era pequena e me ajudava no pequeno negócio de pesca que tínhamos. Era linda a menina. Parecia um palito de dentes, fraquíssima, mas sempre linda. Também lhe mostro a única foto que ela me enviou quando se foi para estudar biologia marinha na universidade. Nela, via-a mais cheia, crescida, mesmo assim, linda. Havia se embrenhado por várias ilhas do Caribe. Chegou a viajar à Espanha também e depois voltou ao México para fazer um trabalho com a UNAM. Tudo isto ela me contou na única carta que certa vez me escrevera. Desde há muito que não nos vemos. Nestes dias, acabou de me enviar um telegrama. “Irei visitar-te. Viveca”, dizia. Penso em voltar a vê-la e tenho calafrios na barriga. Gostaria de me lembrar de mais coisas de quando ela era pequena. O salitre me torna isto impossível.

Ω


“Em momentos como este, o ser humano percebe que se aproxima duma criatura que ultrapassa sua compreensão, duma presença misteriosa encarnada num inacreditável cilindro negro.” Terminei de ler a citação. Viveca olhou para cima, recostada à amurada do barco, os olhos saltados, duas tranças de cabelo arruivado em cada lado de sua cabeça, a saia de querubins quadriculados. Minha Viveca era pequenina.

— Jacques Yves Cousteau, o oceanógrafo — ela disse. Sorri orgulhoso e fechei o livro, aquiescendo. Minha filha memorizava cada vez melhor. Inclusive, melhor do que eu. Esta manhã, assim que acreditei estar pronto para a travessia, havia me esquecido dos trajes de mergulho em algum lugar da cabana. Não me lembro exatamente onde. No entanto, ela, aos sete anos de idade, conseguia gravar na memória citações como aquela e até mais extensas. Havia trazido nos ombros, sem que eu a fizesse se lembrar, sua mochila com a toalha, o biquíni, o snorkel e os óculos de mergulho. Esta tarde, pela primeira vez, havíamos avistado o cetáceo.

Depois deste, periodicamente, continuamos vendo-os em nossas travessias. As águas reluzentes da baía Magdalena nos presentavam com muitos e belos vislumbres do impressionante animal. Tornei-me guia. Comecei a trazer grupos de pessoas, cada vez maiores, para que vissem aquele fenômeno marino com o mesmo tamanho dum ônibus. Aquelas massas colossais não se assustavam; pelo contrário. Pareciam desfrutar da companhia. Observavam-nos curiosas na medida em que saíam à superfície para respirarem, a cada três ou cinco minutos. A princípio, cabíamos todos a bordo dum pequeno barco, que fui consertando aos poucos com minhas próprias mãos. Logo, com a cobrança do espetáculo natural que as baleias nos obsequiavam e que eu coletava com prazer, pude adquirir uma embarcação um pouco maior.

Converti-me em guia porque muita gente ansiava por observar estas maravilhosas criaturas. Todos os anos, emigravam para as lagunas da Baixa Califórnia para se acasalarem e parirem. Poucos marinheiros e pescadores se atreviam a enfrentá-las. As razões eram diversas. Muitos dependiam da pescar para subsistirem e não desejavam investir num novo projeto, que talvez nem desse resultado. O que os pescadores sabem sobre ser guias turísticos? O que sabem os marinheiros sobre se dirigir às pessoas, falar para elas, explicar-lhes sobre a vida marinha de certas espécies? Dedicar-se a lançar suas redes e levar comida à boca de suas famílias os afastavam de alguns desafios como aquele. Eu mesmo pensei como eles por um tempo. Trabalhar duro para sustentar os seus era o lema. Mas as bocas para alimentar foram diminuindo em meu círculo consangüíneo. Uma febre estranha cobrou as vidas de minha mulher e meus filhos homens. Ficamos apenas eu e a menina. Em um arroubo de intensa tristeza, quis mudar minha rotina, para não me recordar de meus finados. As perdas são demasiadamente cinzas, muito mais cinzas que as baleias adormecidas. Acredito, e agora que reflito acredito com maior veemência, que foi aí quando minha mente começar a ofuscar as memórias.

Ω

Viveca chegou e trouxe consigo um aroma de corais e algas salgadas. Acredito estar quase certo de que Ambrosio havia ficado impressionado com a beleza dela. Está alta e arredondada. Está com uns quilinhos a mais que não lhe caem mal e que em nada contribuiu para que Ambrósio deixe de olhá-la todas as horas. Ficará com a gente dez dias, que é o tempo que leva a transportadora da cidade para voltar com seu caminhãozinho cheio de turistas. Havia se hospedado numa casa dos arredores e promete me visitar em casa todas as vezes que puder. Entre passear e visitar seu velho pai, ela deseja tirar fotos das baleias e redigir ou escrever algo como um ensaio de biologia marinha, deste assunto que havia estudado na universidade.

Desligo o motor e nos aproximamos remando sileciosamente. Estamos hoje no barco pequeno. As baleias parecem alheias por completo a nossos movimentos. Já estão acostumadas. Podemos observar a cerimônia de corte. Chapinham, giram sobre si mesmas, esguicham, mergulham. Ostentam a nadadeira caudal. Viveca nos conta que estas submersões tão sincronizadas se chamam “saídas de reconhecimento”. Põem a cabeça para fora d'água e avistam os arredores.

— Você deve saber, Francisco — ela me disse, e ainda me pergunto por que Viveca havia decidido por não me chamar de “papai” — As baleias adormecidas têm boa memória.

Eu as invejo. Gostaria de conseguir me lembrar de mais coisas sobre a mãe de Viveca e sobre meus dois filhos que se foram. Ambrosio concorda, pensativo. Sorri para mim e logo olha para Viveca. Dá-me pena admitir, mas ela o havia ignorado completamente desde que chegou.

— No século dezenove, submeteu-se estes animais a uma caça tão encarniçada que quase foram exterminados no Pacífico oriental.

— Como eles chegaram até aqui de tão longe? — pergunta Ambrosio, mais para deixar de se sentir invisível diante de Viveca do que por qualquer outra coisa. Ela dá de ombros, olha para mim e me pede que, por favor, empreste-lhe uma blusa porque está com frio. Desço à cabine e trago-lhe uma.

— Obrigada, Franciso — ela me diz, e volto a me sentir estranho, incômodo, até receoso. Mas não o digo. Não o digo.

— Pelo calorzinho. E pela comida. Chegam até aqui de tão longe por comida. Dão-se um banquete de pequenos crustáceos no Pacífico, e logo seguem buscando alimento até chegar a estas lagunas. Levam de dois a três meses para chegarem. Neste trajeto, elas perdem boa parte de seu peso. Neste período, dependem quase exclusivamente de sua reserva de gordura. Em quarenta e sete, outorgou-se proteção total a elas pela Comissão Baleeira Internacional e, em anos recentes, o governo mexicano estabeleceu para elas santuários e reservas. Atualmente, a baleia cinza já não é considerada como espécie ameaçada.

— Sabemos que as fêmeas prenhas são as primeiras a chegar nas lagunas e aqui parem os baleatos — Ambrosio aproveita o repentino ataque de atenção — nascem das costas, nós vimos. Ajudam em cada parto outras duas fêmeas; as tias, nós dizemos.

— Sim, atuam de parteiras, Viveca. Este assunto é dos mais agradáveis — eu lhe digo.

— Francisco, como se chama aquele baleato que nasceu no dia do seu aniversário? Você se lembra? Demos-lhe um nome... — Ambrosio me pergunta, logo a dar uma gargalhada.
Tentei me lembrar, mas não consegui. Tornou-se impossível para mim.

Ω

Conto a meu grupo de turistas que, ainda que seja proibido ficar a menos de trinta metros destes cetáceos, às vezes a baleias-mães, dominadas pela curiosidade, dirigem-se com suas crias até os barcos e até deixam ser tocadas. Eles gritam emocionados quando se dão conta de que meu comentário é mais uma advertência do que qualquer outra coisa, porque uma das baleias já havia se acercado, saca seu olho por sobre a água e nos borrifa com sua pequena ducha salgada. Exibe umas manchas brancas na pele, causadas por cracas e outros parasitas. Escutamo-la respirar e, com prazer, voltamos a nos deixar molhar por seu esguicho. Ambrosio mostra um cartaz bastante atraente, em cores vivas, que anuncia um preço bastante módico para aqueles valentes que desejassem acariciar a pele da baleia.

— Os cetáceos permanecem nas lagunas por dois ou três meses, de janeiro a meados de março. Aproveitem agora para tocá-los — Ambrosio tenta convencer — Já está quase se acabando a temporada.

Os turistas correm e fazer uma grande fila no convés. Todos vão pagar por aquela recordação tão única. Como Viveca viaja conosco hoje, eu a olho. Ela está do outro lado, parada perto do timão. Estudo seu perfil. Uma das velas possui a mesma cor que seus olhos. Está triste. Aproximo-me um tanto indeciso.

— Amanhã é o décimo dia, filha. Você vai com a transportadora? Voltará?

— Não. Vou ficar outros dez dias mais.

Fico feliz.

— Que bom! Assim podemos passar mais tempo juntos.

Ela me encara. Sem rodeios, desafiante. Seu olhar é gélido. A comissura de seus lábios se aperta de modo de estranho.

— Temos de conversar, Francisco. Por isto vou ficar.

Ω


É possível. Pode ser? Não reajo. Minha intenção é tentar entendê-la, mas não consigo. Ela me conta, fala para mim, confessa-me uma mar de palavras sem fundo. Exige de mim.

— Como não pude perceber? Passei o resto de minha vida odiando-o, esquecendo-o, brincando de crise nervosa em crise nervosa. Veja minhas unhas, roídas, mastigadas até a metade do dedo. Quase não tenho unhas, quase não durmo. Nunca sonhei depois do que me você me fez. Sempre tenho pesadelos. Sonho que você retorna e volta a fazer-me o mesmo. Como pode dizer-me agora que não se lembra? Tenho estado internada em sanatórios, postergando meus estudos, afetando minhas notas, para que hoje você me diga que não se lembra do que me fez? Tenho tentado até agora superar meus fantasmas. Vim vê-lo a pedido de meu psiquiatra. E isto é tudo que você consegue me dizer? Que não se lembra?

Como explicar-lhe? Como se vive depois desta opressão atravessando-lhe o peito? O coração volta a bater igual, após do que lhe foi dito, após do que lhe foi informado? Estou me dando conta? Pode-se voltar a respirar com semelhante perturbação sobre as têmporas?

Caminho sobre o convés com os olhos cheios de lágrimas. Ergo o olhar para as velas içadas. Retorno ao timão e lhe dou uma leve volta. Vamos decididos, meu barco e eu. Vou apontar com o dedo para Viveca. Vou gritar. Não posso ficar impávido. Não sou culpado do que me acusa. Vou protestar. Vou renegar e negá-lo.


Esqueço-me que a acusação não foi feita hoje. Foi anos atrás. Esqueço-me que Viveca não está para que eu a confronte, que não sei de Ambrosio há séculos, que já não sou guia de nada. Esqueço-me que minha filha não pôde agüentar a dor de viver com algo tão forte. Esqueço-me seu rosto sem vida, suas veias abertas, a poça escarlate sobre o convés, as velas manchadas e as baleias farejando fluídos raros. Esqueço-me de seus gritos noturnos, suas pernas de batalhadora, suas bofetadas enquanto empurra. As perdas são demasiadas cinzas, muito mais cinzas que as baleias adormecidas. Esqueço-me porque, no fundo, dói e lembro-me demais.

fonte: Boreales


Yolanda Arroyo Pizarro
Romancista, contista e ensaísta porto-riquenha. Foi eleita como uma das escritoras latino-americanas mais importante com menos de 39 anos do Bogotá39, convocado pela UNESCO, o Hay Festival e a Secretaria de Cultura de Bogotá para celebrar Bogotá como a Capital Mundial do Livro 2007.
Agraciada com vários prêmios literários nacionais e internacionais; seis na Argentina, um no Chile, sete em Porto Rico. Escreveu para os jornais El Nuevo Día, El Vocero de Puerto Rico, Claridad e La Expresión, e seus ensaios e colunas se encontram no site de literatura cuidadseva.com, nas revistas virtuais Cataliticos.com, Derivas.net, Letras Salvajes, Letralia.com e Narrativa Puertorriqueña. Alguns de seus contos integram as revistas culturais Identidad de la UPR Aguadilla, Revista Púrpura, Preámbulos e Tonguas de la UPR Río Piedras. É autora dos livros de contos, Ojos de Luna (2007) e Origami de letras (2004), além dum romance, ganhador do Prêmio Club 2006, Los Documentados (2005).





quarta-feira, 16 de julho de 2008

Prelúdio de Uma Saudade

Foi no Beco das Garrafas que eu a conheci. O piano do Luis Carlos Vinhas comboiava a doce voz de Sylvia Telles quando, logo na entrada da Ma Griffe, uma garrafa vinda do alto de um edifício explodiu em minha cabeça. Os treze pontos na testa foram até abençoados pois, graças a eles e a curta paciência do pai de Eulália com a nova bossa musical que o beco irradiava, eu encontrei a mulher da minha vida. É claro que retirei a queixa na polícia quando dei de cara com aquela formosura de pequena, redondos olhos negros, cabelos de mel e pele tostada pelo sol de Copacabana.
Meu sogro de princípio deu do contra: “Onde já se viu? Namorar um boêmio?”. Tranqüilizou-se um pouco quando descobriu meu status de colunista famoso da “Última Hora”. Mesmo tendo certa ojeriza pelos membros da imprensa, seu Peçanha viu que por Eulália eu havia posto de lado as noitadas e os excessos. Acabou por aceitar o nosso namoro.
Namoro de moça de família, de pegar na mão como maior ousadia. O pessoal do jornal até estranhou e os camaradas do Beco das Garrafas deram por minha falta mas, meu sentimento por Eulália era paixão, das boas.
Casamos na Igreja de Nossa Senhora de Copacabana. Ela de véu, grinalda e flor de laranjeira, como rezava a tradicional família carioca. Fomos morar nesse apartamento na rua Rainha Elizabeth, até hoje nosso lar, e onde no momento ouço o violão de João Gilberto sair do aparelho de Cd, invadindo os cômodos, dedilhando “Chega de Saudade”. Nosso casamento tinha tudo para ser tranqüilo mas a droga da boemia falou mais alto. Em pouco tempo lá estava eu de volta às noitadas, às boates, às mulheres soltas por esta Copacabana que eu tanto amo.
Eulália agüentou tudo espartanamente. Criou nossos filhos, suportou meus porres, a falta de dinheiro, os sumiços no carnaval. Mulher de verdade.
Porém, tudo deve mesmo ter um limite pois Eulália estrilou em ódio quando descobriu o meu moleque, já com cinco anos, resultado do meu rabicho com uma guria lá dos pampas, trinta anos mais jovem, largada em Copa e que fazia ponto num inferninho chinfrim na Avenida Princesa Isabel. Não agüentei a barra pesada da situação e meu coração apitou, avisando do infarto.
Uns dias no CTI e agora me recupero aqui em casa. Como forma de punir-me pelas minhas travessuras de homem na terceira idade, minha esposa deu-me o ultimato mais dolorido que a dor dos enfartados. “Vou cuidar de você até o doutor lhe dar alta. Depois, o divórcio”, diz ela todo dia, mal despertamos. Assim, deitado nessa cama, vivo um dilema: permaneço doente ou morro de uma vez. Sem Eulália não posso viver. A cura significa o abandono. Mal penso no restabelecimento das minhas forças e já vem um prelúdio de saudade, um sofrimento de véspera. Lá na sala, João Gilberto castiga meus ouvidos com os versos: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”, acirrando a angústia. Não, Eulália! Não te quero longe de mim! A doença ou a morte!





terça-feira, 15 de julho de 2008

Entrevista com Santiago Nazarian

Santiago Nazarian é autor dos romances 'Mastigando Humanos', 'Feriado de Mim Mesmo', 'A Morte sem Nome' e 'Olívio'. Em 2003, recebeu o Prêmio Fundação Conrado Wessel de Literatura, por seu romance de estréia. Em 2007, foi eleito um dos autores jovens mais importantes da América Latina, nas comemorações do Hay Festival em Bogotá, capital mundial do livro. Suas obras foram publicadas também na Europa e América Latina. Mora em São Paulo e, além de escritor, é tradutor, roteirista e colabora com diversos periódicos.

Santiago, você foi um dos quatro autores brasileiros convidados para o Bogotá 39 (encontro literário que reuniu 39 escritores com menos de 39 anos, representantes da nova literatura latino-americana – denominada de boomcito). Tendo participado do grupo, você identifica uma preocupação comum entre estes vários autores? Você se sente com uma responsabilidade maior após este encontro? Como ele tem influenciado sua visão da literatura?

Santiago Nazarian: Para mim, o encontro serviu para identificar a proximidade do Brasil com a América Latina de uma maneira mais geral, não apenas literária. Aliás, 2007 foi um ano em que eu estava descobrindo a América Latina, viajando pelo continente, Chile, Argentina, Colômbia – antes disso eu conhecia muito melhor a Europa. Mas num encontro desses, com escritores de vários países vizinhos, você vê como somos muito mais próximos na questão cultural, no humor, na afetividade e até mesmo na aparência física do que com os europeus. Claro, pode parecer uma constatação óbvia, mas serve também para nos lembrar o quanto desprezamos os países vizinhos. Brasileiro viaja pra Argentina, Chile no máximo, e acha que no resto dos países são todos cucarachas. Bom, cucarachas somos todos nós. É engraçado notar também que o oposto não é verdadeiro, os outros países têm uma relação mais próxima entre eles e até mesmo com o Brasil. Um exemplo é como havia jornalistas argentinos, uruguaios, cobrindo o Bogotá 39, mas não havia nenhum jornalista brasileiro. Os jornais daqui, inclusive, ignoraram totalmente o encontro – a organização do evento, e nós escritores, oferecemos a pauta. Talvez se fosse um encontro em Paris, fosse interessante para os jornais daqui, mas um encontro de escritores latino-americanos em Bogotá... Não gerou nem notinhas. Então acho que foi isso, o evento serviu para eu me identificar como latino-americano, mas não mudou muito minha visão da literatura em si, ou da minha responsabilidade, continuo encarando a literatura como uma trilha pessoal; tenho meus temas pessoais, minha visão particular e prefiro me ver assim do que encaixado num movimento ou mesmo numa geração.

Qual é, na sua opinião, o maior desafio que o autor brasileiro tem de enfrentar?

S.N: A falta de leitores. Isso se dá por questões culturais, econômicas e sociais diversas. A falta de leitores é um mal que aflige cada vez mais a literatura mundial, mas o Brasil, como um país subdesenvolvido, sente com especial ênfase. Há também questões particulares que dificultam a difusão da literatura brasileira, como a própria barreira da língua, já que o português é tão pouco falado no mundo. Até mesmo as traduções se tornam mais difíceis, à medida em que as editoras têm menos leitores de português para avaliar as obras, traduzir, etc.

O site da revista piedepágina, edição nº 12, inclui o texto Literatura para despertar zumbis, de sua autoria. Nele, há um trecho com a seguinte frase: Talvez com a maturidade literária, eu tenha apenas me tornado realmente jovem, tenha aceitado minhas referências, meu universo, sem medo ou barreiras para expressar minha arte.
Você pode falar mais sobre que influências são essas? O que é influência na sua opinião e até que ponto um escritor é influenciado?

S.N: Influência é a manifestação e transformação do repertório. Todos nós temos um vasto repertório, que incluiu literatura, música, moda, etc. Algumas vezes, informações que obtivemos em determinado momento da vida se manifestam inconscientemente na nossa arte. Já outras vezes, essas manifestações são conscientes, nos dão elementos, idéias, para nossa própria arte. Na literatura, como arte elitista, convencionou-se a desprezar a influência da cultura pop. Mas qualquer um que nasceu dos anos 60 para cá está mergulhado em cultura pop – filmes, música, TV – por mais que negue essa influência. Durante algum tempo eu tentei – conscientemente – abordar na minha literatura apenas os elementos da alta-arte, desprezar esse lado pop também, porque achava que ele poderia ralentar minha escrita. Com o tempo fui percebendo que a grande conquista poderia ser assumir essas influências e tentar trabalhá-las de uma forma genuinamente literária. Essa tem sido umas das minhas principais preocupações, em matéria de estilo de uns quatro anos para cá.

Ainda no texto Literatura para despertar zumbis, encontra-se: Talvez, a cada romance que eu escreva, bata um sino no meu inconsciente: “como posso fazer para ofender acadêmicos e perder prêmios?” Não sei desde quando – ao menos no Brasil – escritores se aproximaram mais de professores do que de artistas. Escritores se tornaram aliados das instituições. Quero ser aliado dos transgressores...
Isso soa muito bem, tendo a arte como o caminho possível, dentro da civilização, para darmos um destino aos nossos impulsos transgressores, mesmo perversos... Aliás, Elizabeth Roudinesco está lançando um livro na Flip, falando sobre essa questão da perversão e da perversidade.
Você concorda com essa idéia, de que a criação artística em geral, e a literária em particular, já que trabalha com palavras, é a melhor das hipóteses para dar conta dos impulsos transgressores que temos dentro de nós?

S.N.: Eu acho que a literatura, como arte de uma minoria (e para uma minoria) pode e deve tratar de questões que não são tratadas em outros lugares. E mais, por ser uma arte conteudista, não conceitual, tem o dever de se aprofundar nas discussões. Então, enquanto no campo jornalístico e no discurso demagógico se diz “criança precisa estar na escola”, no campo literário pode-se ver o outro lado da questão, o quanto o modelo de ensino atual é precário, o quanto a posição do professor é muitas vezes uma posição hipócrita, o quanto o ensino pode ser mais uma forma de exercer poder do que de gerar discussão. Isso é só um exemplo, mas um exemplo real de uma das discussões eu ofereço nos meus livros. Enquanto o discurso demagógico diz: todos os homens são iguais, o discurso literário pode dizer “não, as pessoas têm diferenças e essa sociedade não admite diferenças.” E a literatura de ficção deve se permitir ser politicamente incorreta, revelando preconceitos, perversões, porque não se pode fingir que essas coisas não existem, que não existem no mundo e que não existem na cabeça das pessoas; que uma dona de casa de meia-idade não pode querer torturar uma criança, por exemplo. Se passa na cabeça das pessoas, se passa na cabeça do escritor, precisa ser colocado no papel, porque a arte é a melhor ponte entre a vida subjetiva de cada um, talvez a única ponte entre essas vidas internas. A literatura tem de ir além da verdade oficial, da verdade permitida, a literatura tem de ir além da verdade, oferecer essa possibilidade além. Sua única barreira é a criação humana.

Sobre seu romance Mastigando Humanos: o que você tem lido, ouvido, visto sobre ele? Você mesmo diz que ele é diferente dos três anteriores. O que o motivou para essa mudança? E por que um jacaré?

O romance foi escrito com essa consciência do meu papel de “jovem escritor”. Quero dizer, enquanto jovem, eu me sinto no dever de trazer algo novo, trazer novas referências, novas estéticas. Em “Mastigando Humanos” procurei fazer isso de forma bem radical, todo o tom pop e bem humorado do livro vai nesse caminho. A escolha do jacaré foi uma escolha afetiva – já que eu sempre gostei e estudei répteis, e também por ser um pouco como eu vejo o adolescente: agressivo, com um enorme apetite, mas ainda com certa timidez, um pouco desajeitado. O livro trata basicamente da passagem da adolescência para a idade adulta. Em geral, foi bem recebido, as críticas foram melhores do que eu esperava. Foi finalista do Portugal Telecom e afins.

Tendo em vista sua participação em sites, incluindo seu blog Amor & Hemácias, como você percebe a influência da internet no mundo literário?

É uma forma de comunicação com o leitor, com outros autores, uma forma do escritor mostrar o que está fazendo, o que tem lido, etc. Para mim, serve apenas para isso. Já é o suficiente.

Em seu blog, você fala sobre comprar ou baixar um filme para ter e rever quando quiser. O mesmo que acontece às músicas que marcam certos momentos de nossa vida. Quando você usa o verbo ter, significa ser uma espécie de co-autor com o artista? O que você pensa da obra artística depois que ela deixa as mãos de seu autor?

Não, quando eu uso o verbo “ter” eu me refiro apenas ao objeto cultural, que pode até ser um objeto virtual, no caso de uma música ou um filme. Acho que a obra nunca pertence tanto ao público quanto ao artista, e digo isso me colocando nos dois lados da questão. Como público, eu nunca me sinto tão “possuidor” de uma obra de arte, em identificação intensa com ela quanto com minha própria obra. É como eu disse anteriormente, a obra de arte - a literatura - é uma ponte entre a vida subjetiva do artista e a vida do receptor, mas essa troca sempre é limitada. Você tem a ponte, pode chegar até lá, dar uma olhada, mas não vai residir naquele castelo, entende? É uma visita turística, limitada. Pode parecer pouco, mas não é, porque a chave final estará sempre no autor. E se basta para ele, se responde às perguntas dele, é válido, responderá a perguntas diversas de várias outras pessoas.

Como é a relação com seus romances enquanto estão no rascunho? Você é verborrágico ou meticuloso? Planeja o texto todo antes ou deixa que as coisas vão acontecendo?

Verborrágico, claro. Meus romances mais recentes eu até tive certo planejamento, criei os personagens, sabia exatamente onde queria chegar, como iria terminar, mas as frases vão surgindo espontaneamente, é como uma pintura em que vou pincelando por cima. Nada é apagado.

Em seus trabalhos de tradução, nota-se que você não os faz apenas por encomenda de editoras, mas também por prazer próprio. Isso reflete uma preocupação em apresentar, no Brasil, autores estrangeiros que você julga de qualidade, mas que são ignorados por nossos editores. Diante disso, qual sua opinião sobre a política editorial brasileira?

Eu já sugeri algumas coisas para as editoras com que trabalho, já tentei emplacar algumas traduções, mas é muito raro eles aceitarem as sugestões. Achava que isso era uma limitação que eu tinha, mas recentemente vi o Paulo Henriques Britto dizendo que a Cia das Letras raramente aceitava as sugestões dele também. Então eu faço mais trabalhos por encomenda. Até porque, tenho um gosto um pouco atípico. Grande parte dos autores estrangeiros que gosto, sei que não seriam comercialmente viáveis no Brasil. É preciso saber separar, encarar com certo olhar mercadológico.

Pode nos adiantar algo sobre o enredo do seu novo romance O Prédio, o Tédio e o Menino Cego? Ele seguirá a linha psicodélica de Mastigando Humanos?

Sete meninos entrando na adolescência se apaixonam por uma professora, que é uma infanticida serial. É isso. Um pouco menos psicodélico do que o Mastigando Humanos, porque não tem toda a alegoria com animais e tal, mas ainda assim tem certa dose pop, certo humor negro, eu diria que é um romance existencialista bizarro.


Coordenador da entrevista:
Carlos Alberto Barros

Perguntas feitas por:
Alian Moroz
Carlos Alberto Barros
Henry Alfred Bugalho
Marcia Szajnbok
Volmar Camargo Junior
Zulmar Lopes





segunda-feira, 14 de julho de 2008

Filosofia

Fazia amor como quem filosofa. Sócrates e Pitágoras foram doces loucuras. Platão, a experiência pouco platónica. Com Heraclito… viraram o quarto às avessas. Chegou a vez de Kant e mudou de namorada.

Palavra

A palavra extensa, ocupava incompreensivelmente boa parte do conto.


Capuchinho, a verdadeira história

Capuchinho era uma menina prendada que, não obstante, foi indecentemente comida pelo Lobo. Entretanto, o Ministério Público vai formalizar a acusação…


Atraso

A Caravela atrasou-se irremediavelmente. Quando, por fim, chegaram à Índia, o moço perguntou se tinham reservado a mesa, se iam querer “pão de alho”, se pretendiam acompanhar a comida com “Tika” ou “Cobra”…

O nome

Sempre que lhe perguntavam o nome, respondia com uma longa história. Naquela noite, quando no bar do hotel, a loira lhe perguntou qual era a sua história, respondeu Manuel. Sem hesitar!





Meu Quarto

Na escuridão de meu quarto; é o momento de reflexão. Enxergo o que não vejo; ouço o que não escuto. Imagino o inimaginável.

Olho para um lado; há um ser que chora suas mágoas e grita de dor. No canto havia uma criança medrosa e insegura e solitária mas com vontade de viver. Noutro, há um jovem também medroso e inseguro que chora por seus fracassos. Dum lado um homem reflete sobre seu insucesso. Doutro lado; há só escuridão e nada mais.

Na escuridão de meu quarto; é o momento de alegria e de tristeza. Sinto a glória de um rei e sua nobreza, sinto a angústia e agonia de um plebeu e sua pobreza.

No meio do quarto há uma cova onde são enterradas minhas alegrias, quando há, e jamais são lembradas. O coveiro também está por perto.

Os quadros dependurados mostram minhas tristezas que são lembradas a cada minuto.

No quarto ecoam gritos de dor e vozes angustiadas que me atormentam a cada instante. Ouço uma voz fria me chamar...





Tensão – O Desabrochar de uma Rosa

Era sua primeira vez. Ele suava, tremia e cada vez ficava mais nervoso. Ficou ali sentado, passava milhões de coisas pela sua cabeça. A dúvida tencionava seus nervos tornando seu corpo enrijecido como pedra. O suor lavava todo o seu corpo e encharcou as suas roupas. Os olhos arregalados e avermelhados. Ele rangia os dentes, um barulhinho de causar arrepios. A tremedeira aumentava a cada instante. Ele se levantou e começou a andar pela sala de um lado para o outro. Andou uns quinze minutos e voltou a se sentar no sofá, onde estivera antes. Pensou mais um pouco. Deu uma longa inspirada e expirou vagarosamente e num breve suspiro foi com tudo, freneticamente. Sorriu aliviado; deitou e dormiu.





Festa Surpresa

Henry Alfred Bugalho

Desconfiava que a mulher o traía. Na cama, sempre encontrava pentelhos e manchas de porra.
Resolveu dar o flagrante. Se escondeu no armário; quando ouviu risinhos e gemidos, saltou para fora, atirando. Matou a empregada e um motoboy qualquer.

A mulher, fidelíssima, estava há semanas preparando uma surpresa para sua festa de aniversário. Tardes inteiras na casa da amiga enchendo bexigas.





Microcontos - Denis da cruz

Tempo

Deco queria tempo para escrever. Naquele dia, se organizou. “Vou redigir pelo menos um conto”, pensou.

Trabalhou o dia todo, apressando cada um de seus afazeres e impondo-se um ritmo sobrenatural.

No fim da tarde, tudo encerrado. Fechou a porta do escritório sem levar embaixo do braço qualquer trabalho para terminar em casa.

Tão logo abriu a porta de seu “doce lar”, permitiu-se estirar ao sofá, “só pra descansar um pouquinho”.

Exausto, dormiu como uma criança. Acordou no outro dia, de cara inchada e terno amassado.

Para o conto? Não deu tempo.


Veloz

Por aquelas redondezas, Matin era o mais rápido no gatilho.

Perdeu o título – e a vida - quando alguém o superou.


Trânsito

- Barbeiro! – Gritou Cirilo, colocando a cabeça para fora do carro e xingando o motorista que lhe dera uma fechada.

Enquanto energicamente esbravejava, atravessou o cruzamento e atropelou uma velhinha.





Microcontos: Coisas de Mulher (cont.)

IV.
Ansiedade, apreensão, expectativas. A primeira vez tinha de ser perfeita.
- Você não disse que era virgem? Como é que não sangrou?
Os corpos ainda juntos, as almas irrecuperavelmente apartadas.
O amor que tu me tinhas era vidro e se quebrou...

V.
A festa foi ótima. Todos comeram, beberam e se divertiram muito. Quando saíram os últimos amigos, desligou a musica, apagou as luzes.
Era madrugada. Era seu aniversário. E os restos da casa cheia tornavam mais consistente o vazio.
Ali mesmo, no chão da sala, chorou, chorou, até dormir cansada, como as crianças.

VI.
Sentada no chão, o ouvido colado à porta do banheiro, a menina pergunta: -Mãe, você está aí?
Lá de dentro, entre risos, vem a resposta: - Não, não estou aqui... fugi pela janela!
O pequeno corpo para sempre dividido: a boca-razão sorri, o olhos-emoção lacrimejam.





Microcontos

Volmar Camargo Junior



Autoridade


O pedinte encontrou uma nota de cinqüenta. O polícia viu-o enfiando a nota no bolso.
— Passa pra cá!
— Não mesmo! Eu achei, é minha.
— É, mas quem tem o cassetete sou eu.



A última do Juca



— Ouvi dizer que o Juca foi abduzido.
— É mesmo? E quem contou?
— Aquela vizinha nova, que veio de Júpiter.


Mãe da noiva

Costurou um vestido de noiva para a filha que não teve. Foi internada e passa bem.



Estricnina

Era um problema na vizinhança. Cão ou gato que entrasse em seu quintal não voltava. Na primeira sexta-feira depois do Natal, encontraram-no morto dentro de casa. Havia indícios de veneno até no suor de suas axilas.


Dez segundos

Mariana volta da festa. Em dez segundos vai estar morta. O pai está dormindo com a tv ligada e não ouve o celular. A mãe está no quarto com o namorado e não ouve o celular. O motorista do ônibus solta a fumaça do cigarro pela janela e só freou quando sentiu o solavanco. Mariana já está morta.





domingo, 13 de julho de 2008

O Palco

Ele estava tenso... muito tenso mesmo! De tal modo que seus músculos grandes e possantes, flectidos sob a pele escura, espelhavam com precisão cirúrgica o que lhe ia na alma. Sua mente seguia pronta e solícita a lista de exigências e necessidades e as muitas regras de "tão bem fazer" que cuidadosamente lhe tinham sido transmitidas por quem aprendera de quem aprendera, de quem aprendera. Falta de espaço para a distracção, essa eterna banida e eterna mal querida daquele que está concentrado e em palco, no acto... Para magnífica peça não menos magníficos executantes, essa era a regra!

Olhou. Mais uns segundos e a cortina abriria deixando adiante apenas o palco nu e vazio para preencher. Preparou-se com todo o cuidado. A vista viu o pano vermelho fugir rapidamente para ambos os lados deixando à sua frente o horizonte aberto, escancarado, convidativo. Os primeiros acordes chegaram exuberantes e cheios de energia a seus ouvidos e desencadearam de imediato qual acto reflexo, qual mola invisível seu salto em frente e inicio dos passos previamente bem treinados. O fulgor da arte. A magia. A dança!

Entre passos, olhava e via passar como num relâmpago as caras e atrás delas as expressões. E isso era o que lhe dava maior prazer! Sentir aquele hipnotismo forte que emanava e que permitia fazer acontecer. Acompanhava-os com a vista enquanto os roubava por um momento ao seu quotidiano rotineiro medíocre e sempre igual, aquele "sempre o mesmo fazer" das suas tarefas de sucesso. Sentia-se rei do mundo e das passadas. "Black Power". Eterna exuberância negra! Talento, perfeição, capacidade elevada a sua máxima potência. Tudo perfeito! Então... olhou melhor, focou...

Olhou para si mesmo e para a dura realidade do presente! Esqueceu por momentos o futuro que de impossível era incerto! Este palco em que actuava era do tamanho do mundo e muito maior que outro qualquer palco e outro mundo! Ao contrário da do seu sonho, a sua coreografia actual era parada, estática e silenciosa. E ninguém lhe ligava. Nela ele aparecia mostrando os ossos salientes à flor da pele num corpo magro mal nutrido, desprezado, escanzelado. Era seu único equipamento o pedaço de pano roto, todo ele feito de improviso e não de técnica, atenção ou qualquer cuidado. À sua frente, o prato mal disfarçado, vazio chamava insistentemente pela comida que de lá longe não prometia sequer conseguir chegar.

Olhou para si mesmo com seus olhos de criança mais uma vez. Depois fechou os olhos deixando gradualmente a escuridão entrar e chutou para longe aquele "ele" que este ele nunca teria a oportunidade de ser.





sábado, 12 de julho de 2008

Sonetos

Amargonia

Dor... a dor bem sentida é inspiração
Ela pode transformar lágrimas em versos
Dor de amar, amargura, todo o coração
Ele inteiro; inteirinho em sonhos imersos.

Desejar e sofrer; sofrer e desejar.
Querer, não querer, continuar a sofrer
Mas sempre –e intensamente amar de verdade
Para sempre, te amar por toda eternidade.

As lágrimas são cachoeiras de rimar
A dor com amor e sofrer com florescer,
A morte com sorte, solidão com paixão

E você comigo –toda a vida florida.
Os versos são campos cheios de margarida
Poesia feita, esfacelado coração.

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Eu tão sozinho sonho sonho tanto
Que tudo eu tenho e não tenho nada
O sol, lua, uma terra encantada...
Eu morro, morro, me calo - em pranto.

Você bela Rainha deste Reino
Encantado e do outro... dou meu Amor.
... u’a rosa, minha vida, uma flor
E com tanta beleza me fascino.

Você partiu sem ao menos ter vindo
Ilusões... por noites passei sorrindo
Junto de você... é muita saudade.

Sonhos... delírios... algo que me agrade...
Sou o Príncipe esperando a Rainha...
Eu sinto tão feliz... mas me definha...





Digressões do Dia Numa Estranha Manhã do Entardecer no Outono da Primavera

Eu estava na minha caminhada matinal, como fazia todos os dias. Era uma manhã agradável, linda, ensolarada e fresca, com uma leve brisa gélida. Andado sem rumo e distraído fui parar numa parte totalmente desconhecida, nunca estivera antes e nem sabia, até o momento, que existia.

Essa parte da cidade era diferente das outras, tinha tons cinzas e pretos, com arquiteturas antigas, mórbidas e carregadas de tristeza, com ares melancólicos.

Continuei caminhando, observando cada lugar em que passava. Já estava perdido e não sabia o caminho de volta. Não havia ninguém nas ruas.

Avistei uma imponente catedral enegrecida, aspecto sombrio, pesado, parecia chorar angustiada. Uma imensa torre onde havia um relógio que marcava seis horas e os ponteiros giravam ao contrário.

Encontrei diante de mim uma rosa. Jamais tinha visto uma assim. Olhar para ela me causava dor e angústia, como tudo ali. Era a Morte. Achei que estivesse seca e morta, mas ao tocá-la percebi que não. Tentei arrancá-la, puxei, torci, puxei novamente com as duas mãos, machuquei-as. Os espinhos fizeram cortes profundos que sangravam e ardiam. Ela estava presa e deixei-a.

Vi alguns clarões no céu e em seguida escureceu. Fiquei no escuro, não enxergava nada, não via minhas mãos, não via meu corpo. Comecei a tatear a parede com as mãos doloridas e sangrentas para me guiar e sair dali. Encontrei um interruptor. As luzes acenderam e eu estava agora numa casa, nunca estive ali, mas me pareceu familiar.

Fiquei parado, tomando conhecimento da casa. Era uma sala de jantar e tinha uma grande mesa de madeira. Percebi que era observado por uma garota, uma menininha. Escondida atrás do batente, vi apenas um olho azul e sua pele alva. Ela saiu correndo, subiu a escada. Segui-a. Tinha os cabelos longos, castanhos e usava um vestido com rendas e bordados, e sapatinhos azuis. Entrou na primeira porta. Deduzi que era um pequeno quarto. Continuou e saltou pela janela aberta. Olhei e não a vi. Uma pequena rosa vermelha suavemente planava e dançava no ar até beijar o chão. Permaneci a olhar a rosa que dormia na relva macia. A paisagem era um grande gramado que se perdia no horizonte e se encontrava com o céu alaranjado do entardecer. Havia árvores e flores por toda parte. Era o Amor. A paisagem mais linda que já vi em toda minha vida. Sentia-me bem, leve e feliz. Resolvi descer e caminhar pelo campo.

Ao me virar para sair, deparei-me com meu quarto de quando eu tinha cinco anos. Uma nostalgia me inundou. Vi minha cama desarrumada como sempre deixava. Minha pequena escrivaninha junto à parede, no canto, e alguns papéis e lápis em cima. Nas paredes tinha muitos desenhos colados por toda a parte. Desenho de toda a família: papai, mamãe, irmão, irmã. De meu gato, meus amigos e monstros reais da minha imaginação. No chão havia muitos brinquedos espalhados: lego, carrinhos, soldadinhos, índios e animais. Foi com relutância e olhos cheios d’água que deixei meu quarto. Desci a escada e me guiei à porta.

Estava nevando, todo o gramado e árvores cobertos de neve. Vesti um casaco e cachecol que encontrei no mancebo ao lado da porta, peguei a rosa vermelho-sangue e caminhei pelo campo para qualquer direção onde meu coração me guiasse.





sexta-feira, 11 de julho de 2008

MINIs

Ana Mello
Fuga

O ônibus é rápido.
Na janela tudo passa - árvores, rio, nuvens.
Não passa a saudade, não volta a cidade.
Nem o amor da Maria.

Amor adolescente

Delicioso aquele beijo.
Primeiro amor tem gosto de chocolate novo, de água depois do futebol.
Tem cor de primavera e cheiro de alfazema.
Dizem que amor é tão forte que até dói.
Mas o que dói mesmo é namorar menina com aparelho nos dentes.

Quimera

As panelas brilhavam o fogão também, tudo bem areado.
As desilusões e amarguras, Maria extravasava na cozinha.
Sempre sonhou com príncipe, não de riqueza ou coroa. Realeza no carinho, no amor sincero e incondicional.
Não foi possível.
A vida lhe deu somente um homem, calado e trabalhador.

Dilema

Do outro lado das grades – a liberdade.
Mas fazer o quê depois de 30 anos na prisão?
Morreu enforcado, um dia antes de ter cumprido a pena.

Coração assaltado

Quando botou o anúncio na rádio, não esperava ter a bolsa devolvida. Tudo estava no lugar, mais um bilhete do ladrão:
- Quero só uma chance, te observo há dias.
Vamos sair para dançar?

No inferno V

Não comi o pão que o Diabo amassou.
Mas as empadinhas, não resisti.

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A autora, por ela mesma
“De profissão sou téc. Química. Escrever é para mim diversão e uma forma de interagir com as pessoas, fazer amizades, aprender. Tenho alguns prêmios literários, um conto premiado pela Carris, poesia nas janelas dos ônibus e trens de Porto Alegre e haicai selecionado em concurso da UFRGS. Todos estão também em livros. Adoro minicontos e além de publicá-los no meu blog MINICONTANDO, sou editora da REVISTA VEREDAS e tenho oficina de minicontos. Além disso, sou colunista do site SORTIMENTOS.COM e coordenadora do Movimento Internacional Poetrix no RS.”


Conheça mais do trabalho de Ana Mello

Minicontando: http://minicontosanamello.blogspot.com/





quinta-feira, 10 de julho de 2008

Síndrome de Caim

O psiquiatra bávaro Wilhelm Schröder realizou, durante sua carreira, extraordinários avanços na área de psicopatologias. Foi um dos assistentes de Otto Loewi para a sintetização da acetilcolina, viajou por toda a Europa catalogando as patologias psiquiátricas e foi o primeiro a identificar a Síndrome de Caim, ao analisar mais de setecentos casos de fratricídio.

As características mais evidentes da Síndrome, segundo consta na obra que trouxe notoriedade a Schröder, Kompendium der Psychopathologie, são:

a) extrema rivalidade entre irmãos, de ambos os sexos, em busca de aprovação duma terceira parte: pai, mãe, grupo social, comunidade, amigos;
b) o primogênito ou irmão mais velho apresenta distúrbios comportamentais, geralmente de natureza agressiva e/ou destrutiva;
c) por ser uma psicopatologia de difícil identificação, ainda mais tendo-se em conta a natural inclinação da prole em disputar o afeto dos progenitores, só se constata a gravidade dela após animosidade (violência física ou verbal) entre irmãos ou, nos casos mais extremos, fatricídio, sendo o irmão mais novo objeto da agressão;
d) natureza crônica, comumente desenvolvida durante anos ou décadas de convivência conflituosa.

A repercussão das teorias de Wilhelm Schröder foi imediata e elas foram acolhidas pelos mais importantes psiquiatras de sua época. Em seu diário, Schröder relata seu entusiasmo:

Os anos de trabalho árduo compensaram. Finalmente, aqueles senis doutores se curvam diante de mim, até Hermann (Keller) me escreveu congratulando-me. Como deve ter sido difícil para ele engolir seu orgulho!

No entanto, havia três casos específicos que intrigaram Schröder.

O primeiro era de duas irmãs adotivas austríacas: Lotte e Gretchen K.

Gretchen havia sido trazida ao lar da família K. pouco antes de atingir a puberdade e o convívio com o novo núcleo familiar foi harmonioso. Lotte, dois anos mais velha, recebeu-a sem reservas, o que facilitou a ambientação de Gretchen.

Contudo, Gretchen padeceu duma desconhecida enfermidade, obrigando os pais adotivos a dispensar-lhe atenção especial; de irmã, Lotte se transformou em enfermeira.

A doença da filha adotiva se agravava sem razões aparentes, nenhum médico conseguia determinar suas causas. No entanto, a morte não adveio, como se esperava, para Gretchen, e sim para Lotte, esfaqueada na garganta enquanto servia almoço à irmã.

O brutal assassinato perpetrado por uma adolescente foi capa de todos os jornais europeus, e durante algum tempo, os índices de adoção decresceram drasticamente.
Quando interrogaram Gretchen sobe os motivos para ela ter matado aquela considerada como sua melhor amiga, Gretchen foi assertiva:
— Ela estava me envenenando, desde o dia em que cheguei nesta casa.

E realmente, após a morte de Lotte, o estado de saúde de Gretchen melhorou evidentemente. Mesmo assim, ela foi enviada a uma casa de correção, onde ficou confinada até os vinte e um anos, quando então não mais se teve notícias dela.

O segundo caso era ainda mais curioso. Hans F. era o filho do primeiro casamento de Johann F. Quando enviuvou, Johann, com cinqüenta e cinco anos, se casou novamente com uma mulher muito mais nova do que ele, Tatyana, descendente duma linhagem russa, apenas vinte anos de idade.

Tatyana logo engravidou e deu a luz a Louise. Hans F. estava em seus trinta e cinco anos quando do nascimento da irmã. Ele era um homem bem-sucedido, sócio duma exportadora de equipamentos industriais, proprietário de imóveis em Berlim e dum chalé na Basiléia, casado e pai dum menino que ainda não havia completado um ano.

Antes do nascimento de Louise, o filho de Hans era quem ocupava o lugar central nos cuidados do avô, porém, ao nascer a filha temporã, naturalmente Johann passou a se dedicar aos cuidados de Louise.

Naquele Natal, estando todos reunidos à mesa da ceia, Hans subiu ao quarto onde a irmãzinha dormia e a sufocou com um travesseiro.

A morte do bebê foi considerada por causas naturais. Hans revelaria o assassinato apenas alguns anos depois, ao ser diagnosticado portador duma doença terminal.
Sob o peso da verdade, seu pai o deserdou e sua esposa o abandonou.
Hans cometeu suicídio com um tiro na cabeça, uma foto de Louise repousava em seu colo.

O terceiro e mais surpreendente dos casos, que influenciaria diretamente a carreira do Dr. Schröder (o que ele só descobriria posteriormente), dizia respeito a um rumor, à boca pequena, de que Gustav Schröder era o favorito para receber o Prêmio Nobel de Fisiologia, graças a suas pesquisas na área cardiovascular.

Wilhelm Schröder era mais velho e razoavelmente conhecido por seus pares, mas a notícia de que um rapazola, recém-saído da Universidade, estivesse sendo cogitado para o mais importante prêmio na área médica, foi demais para o primogênito.

Na medida em que o dia do anúncio do prêmio se aproximava, os boatos se tornavam mais freqüentes e consistentes — o nome de Gustav Schröder se fortalecia. Organizaram uma festa para comemorar a indicação.
No diário de Wilhelm, na entrada escrita poucas horas antes da festa, ele escreveu:


É inacreditável! Há uma década que dou meu sangue por meu trabalho e, com muito custo, consegui um pouco de renome. Mas meu irmão, sabe-se lá por que cargas d’água, por um simples trabalho acadêmico, está sendo considerado como um gênio da medicina.
Todos se achegam e me dão tapinhas no ombro, congratulando-me por ser irmão dum futuro ganhador do Nobel. Tenho nojo deste povo ignorante.

Naquela noite, brindaram à saúde de Gustav parentes e amigos, a premiação era tomada como certa, todos estavam inebriados.
No fim do jantar, após todos terem se recolhido, Wilhelm e Gustav sentaram-se no quintal para fumar.

“Eu perguntei a Gustav o que ele pensava de mim”, conta-nos Willhelm Schröder em seu diário, “e ele me respondeu que eu era seu irmão mais velho”.
— Digo profissionalmente, Gustav. O que você pensa de mim como médico?
— Você é ótimo, Wilhelm... — Gustav refletiu — Tem um potencial que poderia ser melhor explorado, talvez precise de um pouco mais de ousadia, mas tem tudo para ser reconhecido no futuro.

Numa única sentença, Gustav disse três palavras proibidas no vocabulário de Wilhelm — potencial, ousadia e futuro. O irmão mais novo dizia ao mais velho que, em menos tempo, havia obtido mais do que o outro jamais conseguiria.
Wilhelm retirou do casaco o revólver, gesto que ele havia ensaiado uma vintena de vezes durante o jantar e o apontou para Gustav:
— Quem você acha que é para falar deste jeito comigo?
— Você me perguntou o que eu pensava sobre você, meu irmão, apenas respondi com sinceridade.
— Mas você é um rapazinho muito do arrogante mesmo! Quando minhas pesquisas já estavam circulando pelas mãos dos mais importantes médicos da Europa, você era ainda um meninote de calças curtas, tomado por acnes, se masturbando após ver Greta Garbo no cinema. E vem me falar de potencial!

Wilhelm Schröder confessou que não tinha intenção de apertar o gatilho, no entanto, a poderosa rivalidade inconsciente foi fator determinante (esta uma das características da Síndrome de Caim).
Wilhelm disparou três vezes contra o irmão.

Jacques Dubois preparou uma edição revisada e atualizada do Kompendium der Psychopathologie. Ele havia sido aluno do Dr. Schröder; posteriormente, discípulo e assistente. Mesmo após a prisão do mestre, Dubois continuou investigando as psicopatologias, especialmente aquelas referentes à Síndrome de Caim.

Assim que foi publicada, Jacques Dubois enviou um exemplar da nova edição para Dr. Schröder no sanatório.

A princípio, Wilhelm Schröder se orgulhou pelo trabalho do discípulo, uma revisão que tornou a obra mais completa e precisa, refinou alguns conceitos e desenvolveu estudos apenas esboçados por Schröder, no entanto, no capítulo destinado à Síndrome de Caim, Schröder se deparou com a descrição do próprio caso.

Ele já havia refletido sobre o ocorrido, sem nunca compreender como um psiquiatra renomado poderia ser vitimado pela patologia que descobriu e cujos sintomas estudou.

Encontraram Wilhelm Schröder morto em sua cela, após receber uma dose letal de morfina ministrada por Isolde, uma enfermeira com quem ele manteve um sigiloso relacionamento amoroso naqueles anos de cárcere.
A última inscrição no diário de Dr. Schröder dizia o seguinte:

Sempre me questionei sobre como a posteridade se recordaria da minha passagem pelo mundo dos vivos.
Lutei para conquistar meu espaço, realizei grandes obras e equívocos maiores ainda.
Mas de médico brilhante a caso psiquiátrico, isto jamais!





quarta-feira, 9 de julho de 2008

"Enchendo Lingüística" na SAMIZDAT

Volmar Camargo Junior


Já estava planejando essa coluna há algum tempo. Na comunidade do Orkut da Oficina da E-TL (a mãe da SAMIZDAT), criei um tópico com esse mesmo título. O objetivo é discutir assuntos teóricos pertinentes, algo que refletisse as dúvidas momentâneas dos oficineiros. Dessa forma, resolvi transferir alguns dos melhores temas discutidos na comunidade-mãe aqui para a revista-filha. Queremos dividir com o leitor não só as nossas criações, mas também as nossas dúvidas, nossos dilemas de trabalhadores da escrita.

Nessa primeira edição do Enchendo Lingüística trago o primeiro tema que propus para os oficineiros. Os créditos da tradução e da fonte estão logo abaixo do texto.



Teses sobre o conto
(Ricardo Piglia)

1. Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida". A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.

2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

3. Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.Os pontos de cruzamento são a base da construção.

4. No início de "La Muerte y la Brújula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. "Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da "Historia Secreta de los Hasidim". O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das "Mil e Uma Noites" em "El Sur"; como a cicatriz em "La Forma de la Espada") da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.

5. O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.

6. A versão moderna do conto que vem de Tchecov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de "Dublinenses", abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.

7. "O Grande Rio dos Dois Corações", um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.O que Hemingway faria com o episódio de Tchecov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.

8. Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o "kafkiano".A história do suicídio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.

9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.A história visível, o jogo no caso de Tchecov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

10. A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em "La Muerte y la Brújula", a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "El Muerto"; com Nolan em "Tema del Traidor y del Héroe"; com Emma Zunz.Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.

11. O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. "A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato", dizia Rimbaud.Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

Ricardo Piglia é escritor argentino, autor de, entre outros, "Respiração Artificial" (Iluminuras) e "Dinheiro Queimado (Companhia das Letras). O texto acima foi publicado originalmente em "O Laboratório do Escritor" (Iluminuras).

Tradução de Josely Vianna Baptista


Esse texto trouxe-me um problema sério. Eu nunca havia pensado em termos de "história 1" e "história 2", nem para escrever, nem para ler um conto. Agora, relembrando os textos que eu escrevi, e boa parte dos que li aqui na Oficina, chego a conclusão que essa É a regra e não a exceção.

Vamos com um exemplo prático, um conto meu: "O Convite" (publicado aqui na Samizdat mês passado).

1930. Uma menina chega em casa com os pais, após uma ida até o banco. A mãe guarda o dinheiro dentro de uma lata de farinha. O irmão chegará à noite e ela começa a arrumar a casa para o jantar em sua homenagem. Durante a faxina, a porta se abre e ela faz uma brincadeira, convidando o recém-chegado invisível para entrar. Durante a mesma noite, a menina acorda com a impressão de haver alguém dentro de casa. Em instantes, ouve-se barulho na cozinha e constata-se que um ladrão roubou as economias da família. Depois desse evento, a família começou a ficar pobre e endividada. A menina acompanha as mudanças em toda a cidade: pessoas ficam pobres de repente, bancos fecham, famílias esperam ajuda do governo até para comer. Seu pai recebe uma proposta de trabalho com o cunhado, e aceitando, põe a casa onde vivem à venda. Quando estavam fazendo a mudança, a menina dá-se conta que esqueceu o album de fotografias, voltando para a casa deserta. Em seu quarto encontra uma pessoa desconhecida e misteriosa: uma mulher velha de aparência horrível. Esta apresenta-se como a Miséria, que tempos antes a mesma menina a havia convidado gentilmente para entrar.

A história um é, obviamente, a narração desses eventos: banco, faxina, jantar, assalto, visão das mudanças na cidade, mudança de casa. A história dois é o advento do convidado invisível. A presença desse convidado, a Miséria, é explicado à medida que as coisas vão "piorando" na vida da protagonista: as economias são roubadas, o pai perdeu o emprego, o irmão afasta-se outra vez da família, as instituições bancárias vão à falência, a sua família vende a casa e precisa mudar-se.

O conto mostra-se surpreendente por causa da "ação" dessa história dois, que é revelada no final. Quanto à segunda tese, Piglia foi bastante preciso ao dizer que essa história secreta é o que vai determinar os modos que o autor vai valer-se para contá-la.



Para mim, enquanto leitor, essas teses trouxeram uma nova luz - ou melhor, uma luz mais clara para a lanterninha que eu vinha usando. Enquanto escritor... bem. Vou começar a observar melhor.