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domingo, 27 de fevereiro de 2022

Triunfo

Não tenho a voz
embargada por emoções

não grito
não resisto

estou certo da derrota
tanto quanto da impermanência

- tenho em mim
a serenidade dos prostrados

E contento-me com pouco

cultivo revoltas
em fogo brando

e rumino ideias fixas
certezas impassíveis

como nuvens de tormenta
eles passarão

e nós ainda estaremos aqui

sobre as ruínas
- triunfantes
 





sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Sense and sensibility

— Você combina mais pelada — ele disse.

Uma frase dessas, sem aviso prévio. Ela se maravilhou.

Quando ele trazia declarações de pólvora, olhava pra ela profundamente. Parecia conhecê-la todinha. Sabia seduzi-la.

— Você combina mais pelada — repetiu, adivinhando que ela queria ouvir isso sempre, de novo. 

Por si só, ela não acreditaria na beleza, na atração do próprio corpo. Ela costumava pensar que teria ficado coberta, se ele não tivesse aparecido na história dela com aqueles olhos e palavras e membros que souberam despi-la uma e tantas outras vezes.

Quando ele falou daquele jeito, foi um milagre de felicidade. — Você combina mais pelada. Ela tinha mania de colecionar citações dos muitos livros que lia, mas nenhuma era tão perfeita, nenhuma fazia a vida valer tanto a pena quanto esta, dita a ela pelo homem que amava. Uma surpresa descobrir (não só sentir, mas saber também, ouvindo dele) que a paixão continuava, mesmo depois da primeira, da segunda, da centésima, da milésima primeira vez dela e deles. Ela sorriu sem graça. Ainda corava ao tirar a roupa e ostentava (agora mais que antes) a alegria de ser amada de verdade.

— É assim que você é. Pelada. E como é linda! — ele completou. Ela já estava arrepiada, mas se derreteu ainda mais. As palavras que ele dizia eram de uma franqueza e de um despojamento e de uma sensualidade que a desconcertavam. 

Ela havia lido que, quando chegasse àquela idade, perderia o desejo e inventaria desculpas para não se deitar com o companheiro. Mas nada disso aconteceu com ela. Gostava cada vez mais de se dar praquele homem.

— Interessante. Eu combino mais pelada? — ela perguntou.

— Sim.

E logo os dois se entregaram, atraídos por instinto e intenção. Definitivamente não eram um casal jovem nem perfeito, tinham várias dívidas a pagar e doenças a debelar. Mas não tinham dúvida: continuariam no caminho das desvergonhas e delícias. Era o mais certo a fazer.

Estavam sempre juntos, metidos a perseguir e orbitar o espaço fora da realidade. Havia tanto tempo que seus corpos brincavam de chegar àquele lugar que descobriram, que construíram e que queriam sempre visitar. Hoje fizeram de novo. Deixaram roupas, amarras, problemas, pensamentos. Chegaram lá. Naturalmente. Ao paraíso.

E foi incrível. Ela esqueceu que a calça 48 não mais servia, que o melasma do rosto havia escurecido, que os parênteses ao lado dos lábios estavam mais marcados, que o plano de saúde estava cada vez pior e mais caro, que a raiz do cabelo precisava de tinta, que era tempo de climatério. Só queria continuar sem casca nem pudor junto do seu velho, porque a nudez lhes caía bem.


Rememorando e planejando indecências e gozos, combinando tão bem assim, pelados, são, no entanto, obrigados a se vestir rapidamente, pois o neto mais novo acaba de bater com força na porta do quarto. 


Maria Amélia Elói





quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Vocação de mabeco

 

Ruffy era um dobermann preto, nascido no Zimbabué em casa de um inglês. Ao fim de uns anos, o inglês, “farto de aturar pretos”, voltou para a Europa abandonando o animal, que não teve outro remédio senão desenrascar-se sozinho. Nas primeiras semanas, sobreviveu a virar caixotes em Lupane, a sua pequena cidade das margens do Gwayi; depois, decidiu que não era um coitadinho qualquer, como alguns que ele via a mendigar comida, e aventurou-se pelos matos. Percebeu rapidamente que, na savana, era onde podia encontrar muita comida, com o contratempo de ser ligeira a fugir. A princípio, teve de se contentar com restos de carcaças, algumas já com um cheiro pouco apetitoso. E muitas vezes teve de ser ele ligeiro, para escapar de bocas que não se importavam de comer carne de cão.

Tomar contacto com os mabecos foi inspirador. Viu-os de longe, caracteristicamente malhados, em matilha, a perseguir zebras ou antílopes ou tudo o que não fosse demasiado grande. Eram incansáveis. Podiam correr quase uma hora, até cansar a presa, que era sucessivamente mordida em corrida e ia perdendo vigor. Por fim, rodeavam-na, despedaçavam-na em poucos minutos, ingeriam quanta carne podiam, alguma da qual era depois regurgitada para as crias ou para outros membros que não tinham podido acompanhar a caçada.

Não eram flor que se cheirasse, bem o percebeu. Naqueles contactos visuais, sentiu medo. Em numerosas ocasiões, pensou em voltar para as ruas dos homens. Se estes cães selvagens o vissem, não teria qualquer hipótese. Passou a ter cuidados redobrados, não atravessando espaços abertos, mas, quando se sentia seguro, passou a tentar a caça à maneira dos mabecos. Muitas corridas não deram em nada, mas, uma vez por outra, conseguiu abater presas pequenas. Começou a ganhar autoconfiança. Um dia abalançou-se a perseguir um javali, mas, depois de uma pequena corrida, o javardo virou-se a ele. Surpreendido, levou uma naifada que lhe atingiu o flanco e a coxa esquerda. Conseguiu escapar e escondeu-se nuns arbustos espinhosos, a lamber as feridas.

Ruffy pensou que era o fim. Sem conseguir correr, iria morrer de fome, se não morresse dos ferimentos. Ao fim de dois dias, um grupo de mabecos deu com ele. Então, não teve dúvidas do que o esperava. Os primos selvagens rosnaram-lhe, foram-se aproximando de cabeça baixa e dentes arreganhados, mas, inesperadamente, cheiraram-no, devem ter encontrado afinidades de raça, perceberam que estava ferido, pareceram ficar indecisos. Depois de umas idas e vindas, para dentro e para fora dos arbustos, com cuidado, por causa dos espinhos, um macho com aspeto soberbo, regurgitou uma massa carnosa junto ao focinho de Ruffy. O dobermann não pensou em mais nada; só que podia matar a fome imediatamente. A massa, vagamente acastanhada, demorou menos tempo a chegar ao estômago do cão, do que a sair da goela do mabeco. E, no dia seguinte, o grupo voltou. E, novamente, o alimentou. Afinal, era malta de bem. Ao fim de três dias, seguiu os seus salvadores.

Alvo de curiosidade do bando, mostrou-se sempre humilde, prostrando-se e ganindo a cada aproximação mais desconfiada. Aos poucos, começou a acompanhar a matilha nas caçadas. Não tinha a velocidade nem a técnica dos mabecos, mas ajudava nas estratégias de separação de uma presa de um grupo. Depois corria, enquanto conseguia. A princípio, quando chegava ao local do abate, a presa já tinha sido esfacelada e os líderes do grupo já se tinham alimentado. Mas sobrava sempre alguma coisa. Aquando da primeira zebra, abandonaram quase metade da carcaça aos abutres.

Ao fim de uns meses, já tinha o seu lugar no grupo, em posição subalterna, é certo, mas participava em todas as caçadas com grande entusiasmo e mesmo alegria. Surpreender a presa incauta, lançar-lhe um latido «Eu vou atrás de ti», perceber-lhe o medo, persegui-la implacavelmente, integrado na matilha de uma dúzia de mabecos, conseguir mordiscar-lhe o ventre ou uma pata, participar no derrube final, ferrar-lhe os caninos na goela, senti-la a esvair-se, a desistir de lutar, exaltava-o até ao uivo. Depois do ardor e da alegria da perseguição, a festa das carnes, das vísceras arrancadas, engolidas a correr, uma e outra vez. Como estava contente por se ter decidido pela savana, em vez de andar aos caixotes na cidade, a catar restos azedos, a morrer de vergonha alheia pelo comportamento de outros cães!

Mas a vida na savana não é só vitórias. Come-se e é-se comido. Talvez um ano depois de chegar à savana, enquanto a matilha estava emboscada a observar a movimentação de uma manada de gnus-de-cauda-preta, foi cercada por várias leoas caçadoras. Também elas tinham estudado a matilha e concentraram o ataque no elemento mais fraco: o cão da cidade. Separado do resto da matilha em fuga, correu quanto pôde, mas a velocidade não era comparável. Não ouviu nenhum “Eu vou atrás de ti”, das leoas, mas o terror que o invadiu não tinha paralelo com qualquer outro medo que já tivesse sentido, nem mesmo quando fora encontrado ferido pelos mabecos. Parecia que os músculos não respondiam como esperava. Sentiu-se perdido.

No auge do cansaço, enfrentou as leoas. “Porquê eu?”, ganiu. “É muito injusto!” Ruffy era um animal pequeno, comparado com tantos outros que dali se avistavam; não percebia porque o tinham escolhido a ele. “Com tantos gnus e zebras, porquê eu?”, ululou. “Aqueles não perseguem vocês... Eu enfrentei sozinho um javali; vocês vão ver!”, ameaçava.

Os dentes que mostrava eram temíveis, mas as leoas eram três. Rodearam-no, num jogo que os predadores em grupo sabem jogar. Quando a presa investe contra um, os outros atacam-no por detrás. O confronto desigual terminou rapidamente. As primícias da carcaça foram para o macho alfa, que se aproximou sem pressas. Depois de se saciar, o leão estendeu-se por perto, a ver as leoas dividir o restante sem lutas, em cedências tácitas, consumindo-o totalmente no local. Na savana, fora do grupo, não havia justiça, nem contemplação com os pequenos e os coitadinhos; vigorava uma desapaixonada luta pela sobrevivência.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Grupo de mabecos. Da net.

* * *





quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

VIDA ARTEIRA

 



 

Num espreguiçar sem fim, entreabriu os olhos e percebeu que ainda era noite. No morno da cama e perdido no aconchego acetinado dos lençóis, avistou apenas uma réstia prateada que entrava pela janela aberta, dando aquela sensação prazerosa do despertar antes da hora marcada. Poderia desfrutar do prazer de virar para o outro lado e dormir mais um bocadinho.

         E, naquela pasmaceira, tentou esboçar as etapas do dia. Domingo, compromisso com a visita, com o espetáculo. Desde o dia anterior, a maleta, com a fantasia nova e a peruca, estava acondicionada no porta-malas. Os sacos com os brinquedos, também. Restava apenas ajeitar, na mochila, a maquiagem e os apetrechos de banho.

         Nem bem clareou o dia, o carro deixou a garagem. O percurso seria mais longo; o destino, daquele dia, era na Baixada. Ligou o rádio e não conseguiu conter o riso. Isso era recorrente: ria sempre, quando se lembrava das caras espantadas dos vendedores. Durante anos, em todas as concessionárias que visitou para comprar um carro, defrontou-se com o espanto, ao solicitar que todo o sistema de som do veículo fosse desativado, deixando apenas o rádio em funcionamento. Os vendedores o olhavam como se fosse um alucinado, ou como um rico cheio de esquisitices, caprichos de endinheirado. Nunca tentou explicar, seria complicado. Eles não conheciam a Berenice.

         De início, Berenice vendia bolo numa barraquinha improvisada no entorno do Ibirapuera, parada obrigatória nos passeios de domingo. Certo dia, ela colocou um aviso na parte de cima do avental, declarando que estava à procura de emprego em casa de família.

Estando de mudança para o sobrado em condomínio próximo, ele precisaria de ajudante. Entregou a ela um cartão para que, no dia seguinte, o procurasse. Falariam sobre o trabalho.

Berenice chegou bem cedo, olhava tudo com muita surpresa. Uma papelaria enorme, vários vendedores e clientes se amontoavam pelos corredores, dirigiu-se a um dos caixas e mostrou o cartão, explicando que deveria procurar aquela pessoa. Imediatamente foi levada ao escritório.

Genuinamente despachada, logo após os cumprimentos, danou a falar:

− Com todo o respeito que tenho pelo senhor, quero deixar claro que lhe chamarei de patrão. É o que é. Patrão é patrão e pronto. Não adianta querer mudar as coisas. O senhor não é o dono da casa em que vou trabalhar? Imagine só se, a cada vez que for preciso falar com o senhor, eu tiver de dizer: Senhor Bonifácio! Fica complicado.

− Combinado, Berenice, assim será.

− Outra coisa, é assim mesmo que quero ser chamada: BE-RE-NI-CE. Vou explicar. O povo da minha terra tem mania de cortar os nomes. Na hora de registrar a criança, escolhe aqueles nomes mais compridos, coloca um monte de letra que não conhece, junta um pedaço de nome estrangeiro, deixa tudo tão complicado que nem mesmo o homem do cartório é capaz de anotar no livro. Leva tempo pra entender. Depois, vem o apelido com o nome cortado. Não é por preguiça, não! O povo encurta o nome pra sobrar mais tempo pra falar de outras coisas, cearense adora uma conversa. Repara, presta atenção: lá em casa, Bartolomeu virou Bartolo, Marinete é Nete, Salustiana é Salú, Silvandira é Dira, Sandrilene é Dri. Nem vou falar no que deu o meu nome. Gosto dele inteirinho, ele tem melodia: Be-re-ni-ce. O senhor não acha?

         Falou isso num fôlego só. Bonifácio, atordoado, apenas assentiu com a cabeça.

− E quando é que eu posso conversar com a sua esposa? Preciso saber como é o serviço, o que ela quer que eu faça, essas coisas que só mulher entende...

− Não tenho esposa.

− Não? Ela morreu? Tem filho?

− Não, Berenice. Não tenho esposa, nem tenho filho.

− Ah!

− Questão de opção. Não nasci pra casar e nem pra ter filhos. E você, é casada?

− Deus me livre! Não vou casar, nunquinha! E não quero filho. Já chega a confusão lá de casa; um monte de gente separada, carregada de moleque pra criar. Filho é encrenca pra vida toda. Mas não precisa me estranhar! Sou chegada numa saliência, não fico sem os amassos, mas só ali, naquela horinha. Depois, é cada um pro seu canto. Nada de cadeira cativa, o senhor me entende?

         Naquele momento, Bonifácio sentiu que a vida passaria a ser tumultuada. A convivência com Berenice mudaria a rotina. Monotonia nunca mais.

         No primeiro dia de trabalho, ele ficou em casa. Seria prudente que ajudasse Berenice na ambientação, afinal, ela precisaria de um norte. E, durante todo o dia, notou que ela carregava, de lá pra cá, um pequeno rádio portátil, ligado em som quase inaudível.

         Antes que terminasse o dia de trabalho, perguntou a ela sobre isso.

         − Berenice, você gosta muito de música, não é?

         − Gosto. Ah! O patrão tá falando do rádio?

         − Sim. Percebi que você não se separa dele.

         − Senta aqui, patrão, vou explicar pro senhor. Eu sempre fui muito avoada, meu pensamento é desmandado. Sabe aquela pessoa que pensa o dia inteiro? Sou eu. E pensar muito faz a gente esquecer a obrigação, a hora, o compromisso. O rádio é, pra mim, a linha da pipa. Ele me prende no mundo; se o juízo voa muito alto, o rádio me traz de volta. Ele é vivo, patrão, tem música, conta o que tá acontecendo em todo lugar, fala a hora, e até me faz rezar. Tendo um rádio, a solidão acaba, a gente sonha com o pé no chão. É meu parceiro, só desligo o bichinho quando vou comer. Na hora da comida, quero silêncio pra repensar e agradecer.

         Naquela noite, Bonifácio custou a dormir. A conversa de Berenice aprontou um rebuliço nos seus sentimentos. Generoso, cuidou de providenciar uma surpresa para a ajudante. No final daquela mesma semana, conseguiu um rádio potente e o colocou num suporte na parede da cozinha.

         Quando Berenice chegou, na segunda-feira, o rádio estava ligado e o patrão a olhava para ganhar um sorriso. Ela, presepeira e toda emocionada, falou:

         − Patrão, que coisa mais linda, nem sei o que dizer! Só não te dou um abraço e um beijo porque nós dois somos travados, e, se eu fizer isso, não vai dar certo. Mas vou te dar um presente: trouxe um pedaço de bolo pro senhor.

         − Berenice, por favor, não me faça agrado, não gosto disso.

         − Não é agrado, não, patrão! O senhor sabe: aniversário de família é um derrame, e o meu povo é destemperado. Lá, fartura é exagero, o bolo é do tamanho da mesa! Quando acaba a festa, cada um leva um pedaço, e ainda sobra um monte. O bolo nem cabia na geladeira, então, como ia estragar, trouxe um pedaço pro senhor. Eu também não sou de agradar ninguém.

         E, assim, a vida de Bonifácio nunca mais foi a mesma. Não houve segunda-feira, por décadas, que não tivesse “sobra” de bolo de aniversário, de torta de frango, de pamonha, de cocada, de queijadinha...

         Com o avançar dos dias, Berenice, cansada das conjunturas que se formavam no pensamento, e, querendo um esclarecimento, perguntou:

− Patrão, e seu pai? E sua mãe? Sua família?

         − Não tenho, Berenice, sou só.

         E ficou nisso. Não esclareceu totalmente, mas esse assunto jamais foi retomado.

         Mas, nem por isso, ela se isentou de arrumar uma companhia para Bonifácio.

         − Patrão, o senhor poderia arrumar um cachorro. É uma companhia tão boa, só vendo! Ou um gato! O bichinho é carinhoso.

         − Nem pensar, Berenice. Eu sou mortal e eles também, isso traria sofrimento para qualquer dos lados. E eu poderia me esquecer de dar comida, de dar água. De jeito nenhum!

− E um peixinho no aquário? Um peixinho só!

− Berenice!

− Tá certo, patrão! Não se fala mais nisso...

A casa era do patrão, mas ela se sentia tão integrada naquele ambiente, compreendia que aquilo ali era parte da sua vida, e atinava que Bonifácio precisava ser cuidado. Acreditava que a vida não era feita de acasos; não foi só o patrão quem leu aquele seu pedido de emprego, carregou aquela propaganda, escancarada no peito, por dias e dias. E apenas Bonifácio se interessou. Ninguém mais.

− Berenice, que negócio é esse de plantas em casa? Lá fora, há vasos dependurados pra todo lado! Eu não quero ter flores para cuidar, se não colocar água elas podem morrer. Não quero ter esse compromisso.

− Que nada, patrão! É tudo planta resistente. Samambaia é planta forte! Vou contar pro senhor, lá em casa tem tanta planta, mas tanta planta, que não cabe mais nenhuma. O povo vai socando muda na minha varanda, e, pra não colocar no lixo, trago pra cá. É só por isso.

− E aquelas duas mudas plantadas no quintal? O que é aquilo?

− Pé de pitomba! O patrão, daqui um bom tempo, vai ter sombra, fruta e lugar pra amarrar a rede.  Depois o senhor me conta!

Berenice era tão boa de lábia, que dobrava todas as certezas do patrão. E ele imaginava que ela não notava as plantas regadas aos finais de semana! A mulher era ardilosa, engabelava direitinho. No pergolado do jardim de inverno, havia tanta planta que mais parecia uma floresta. E Berenice, tinhosa feito uma gata e sem medo de tomar outro pega, emendou:

− Patrão, olhe que canto bom pra criar uma calopsita! A bichinha canta tão bonito!

− Berenice!

− Tá certo, nada de calopsita! Não tá mais aqui quem falou! Entendi...

Reservadamente, ele explodia em gargalhada sempre que ela tentava prendê-lo a qualquer coisa. No íntimo, esse propósito de Berenice o agradava, e muito! Gostava de sentir que alguém se preocupava com ele. Desde o primeiro momento, a afeição brotou. E, a cada ano, ela se multiplicava. Sem que ela notasse, passava tempo observando a figura de Berenice. Sempre mais encorpada, se bem que lutava veementemente para caber em manequins menores, vivia com roupas sempre a ranger nas costuras. Mas, depois, cedeu, reconheceu que essa batalha seria em vão. Estava mais madura, também mais lenta. Mas, cabelos grisalhos nunca! Dava a impressão de ser cobaia de produtores de colorantes para os fios. Era sempre a surpresa da segunda-feira, uma paleta de cores ambulante! Ia do dourado ao pink, do azul ao laranja, do lilás ao amarelo, do vermelho ao roxo. Numa certa passagem, pintou metade do cabelo de verde e a outra metade de amarelo! 

Desde que começara a trabalhar, ainda adolescente, Bonifácio gostava de observar os artistas de rua. Era a distração no horário do almoço, lá, no centro da cidade. Havia certo fascínio. Malabaristas, músicos, estátua viva. Admirava a coragem de exposição que eles mostravam, a arte exigia isso.

Bem mais tarde, muitos anos depois, contratou um palhaço para animar a loja no dia das crianças. A alegria foi tão grande, que isso se repetiu em muitas outras datas. E tornou-se próximo do artista. Um dia foi convidado a acompanhá-lo, em finais de semana, nas visitas a asilos, orfanatos, hospitais. Trabalho voluntário.

Bonifácio começou visitando asilos, e declinou dos orfanatos. Mas apaixonou-se verdadeiramente pelas visitas a hospitais, e, em particular, pelas alas de crianças.  Em pouco tempo, assumiu a missão: vestiu-se de palhaço. Abraçou a causa com enorme prazer, a maquiagem o liberava. Bastava pintar o rosto, enfiar a roupa, firmar a peruca no cucuruto e pronto, transmudava-se.

E, com Berenice, aprendeu a exercitar o desapego. Mais que isso, compreendeu o sentido mais amplo do desprendimento. Tudo começou quando ela, preparando os presentes de Natal, pediu ao patrão para guardá-los num quarto, lá no sobrado.

− Patrão, o senhor sabe que a minha casa é um disparate de movimento, um entra-e-sai de gente o dia inteiro, é a verdadeira casa da mãe Joana, então, eu não teria como esconder os presentes de Natal das crianças. Vou comprar os brinquedos aos poucos, e se não incomodar o senhor, gostaria de guardar no quarto desocupado.

Bonifácio não só permitiu como também, no ano seguinte, encantado com a iniciativa de Berenice, entrou na brincadeira e ajudou na compra. A partir daí, a lista encompridava a cada novo ano, criança brotava feito repolho.

− Patrão, o senhor sabe que no meu quarteirão, das quatro bandas, é tudo casa de parente. A gente tem costume de fazer puxadinho de três pisos, então, o senhor imagina a quantidade de gente, se em cada casa cabem três famílias! Ali, aquele que não for do mesmo sangue, é enroscado com um que é. Vou explicar pro patrão entender: todas as casas dão num único terreiro. No fundo dos terrenos, não tem muro, é um quintal só. Uma misturada! Até as roupas no varal causam confusão. No dia de pagar as contas de água e de luz, é um quebra-pau! Eles vão puxando luz de uma casa pra outra, puxam cano de água de uma construção pra outra, e o relógio das três famílias é um só! Na hora de rachar a conta, valha-me, Deus! Se uma pessoa, de fora, presenciar uma dessas brigas, vai achar que aquilo só vai ser resolvido na peixeira! Mas não é, patrão. Tudo se ajeita. Eu já falei, é tudo gente que gosta de barulho, que adora um falatório.

− Por isso, eu achei certo o senhor nunca aceitar se juntar a nós nas festas de fim de ano, o senhor tem outro jeito. Lá, em dia de festa, a manguaça começa cedo. Quando vai anoitecendo, o povo já está falando bobiça, tudo muito diferente daquilo que o senhor conhece, mas vou te dizer uma coisa: quando o relógio dá meia-noite, a primeira pessoa que vem no meu pensamento é o senhor. Eu fecho os olhos e peço: “que Deus te proteja, patrão!”. E eu peço com tanto amor, que chego a arrepiar, o senhor acredita? Naquele dia em que o senhor me entregou o seu cartão, eu senti que era o meu dia de Cinderela, foi mágica da fada-madrinha. Com uma única diferença: a mágica não se desfez. Desde aquele dia, patrão, eu nunca mais tive insegurança. E não falo isso pelo dinheiro do salário que o senhor me paga! Não! Falo isso pelo valor que o senhor me dá, pelo respeito que recebo. Mas vamos mudar de assunto. Eu já falei o que queria falar, só peço pro senhor acreditar, patrão, só isso.

E como não iria acreditar? Com ele aconteceu o mesmo.   

Em meio a tantas lembranças, Bonifácio notou que já estava na Baixada. A vista do mar era encantadora. Chegando ao hospital, ocupou a ala da enfermagem para se paramentar. Naquele dia, estava animado com a nova fantasia. Berenice era especialista em comprar novos modelos. Combinava, como ninguém, as cores dos tecidos com as perucas, conhecia todas as lojas da 25 de Março e do Brás! Ela sempre falava que, um dia, iria acompanhar o patrão em uma dessas visitas, queria assistir ao espetáculo. Ambos sabiam que ela jamais iria.   

Arrastando os sacos com brinquedos, como se estivessem pesadíssimos, entrou na enfermaria. Quando soltou a voz: “como vai, como vai, como vai, vai ,vai?”, a sala virou uma risada só.    

Bonifácio, na primeira passada pelo corredor, além das palhaçadas, fazia o papel de olheiro. Observava os semblantes dos pequenos pacientes; os mais participativos não o preocupavam na mesma intensidade que aqueles de feição mais acabrunhada. Crianças prostradas e solitárias o afligiam. E, antes de terminar o espetáculo e de modo especial, fazia tudo para provocar um sorriso. Quanto aos brinquedos, todos de pano, separados em sacos diferentes, eram do gosto da criança. Ao lado de cada cama, perguntava: “boneca ou bicho?”. De acordo com a escolha, o pequeno paciente pegava o brinquedo. 

Havia um menino de olhos vendados por ataduras, que não se animou nem mesmo com as piadas de Bonifácio. Aquela inércia incomodava, e, ao fim do trajeto pela enfermaria, o palhaço puxou uma cadeira e colocou-se ao lado da criança. Retirou as luvas e pegou a mão livre do menino. A outra estava ligada ao soro. Ele não se assustou e apertou a mão de Bonifácio. Diante dessa receptividade, o palhaço começou uma conversa:

− Está com dor?

− Não, eles não me deixam sentir dor. A enfermeira disse que acabou de colocar um remedinho e que vai dar sono! E o médico disse que logo vou pra casa; sinto saudade dos meninos.

− Você tem muitos irmãos?

− Muitos! Mais de trinta!

− Nossa!

− Irmãos de coração, moramos na Casa da Criança.

Bonifácio engoliu seco. Calou-se. Ficou lá, segurando a mão do menino, sentindo uma vontade imensa de chorar e, mesmo tentando disfarçar, chorou mansinho. Quando percebeu que o menino relaxou a mão, havia adormecido, ajeitou o brinquedo bem perto do travesseiro, jogou um beijo no ar e foi para o alojamento dos enfermeiros.

Enquanto retirava a fantasia, chorou. Durante o banho, soluçou. Não queria reviver aquilo, evitava raspar as feridas. As dores pareciam distantes, pareciam pertencer a uma outra vida, mas agora latejavam. E as cenas brotavam, involuntariamente. Aquele mesmo horror dos dias de visita no orfanato. Aquela sensação de carne exposta na vitrine, esperando a escolha de uma família caridosa. A frustração após a visita, a insônia das noites intermináveis.  Lembrava-se da tristeza de quando Guto, o melhor amigo, foi adotado. Da dor de ambos, na despedida. De Guto, porque deixava a irmã Tininha para trás, e, dele, por ficar ainda mais só. Tininha havia completado cinco anos, apenas cinco anos, e Bonifácio prometeu ao amigo que cuidaria dela. E a última dor insuportável foi quando a família adotiva de Guto, meses depois, voltou para buscar Tininha. Naquele tempo, Bonifácio chorou a noite toda, a semana, o mês, anos e anos a fio. Nunca visitaria orfanato, não cutucaria a ferida daqueles abandonados. Se as pessoas soubessem a ebulição que causam na alma de cada criança que lá vive, repensariam as visitas. Elas são feito alpistes jogados aos pássaros. Atenuam a fome momentaneamente.                       

Desligou o chuveiro, refez-se. Planejara almoçar num restaurante, lá mesmo na Baixada. Parou na orla, na Ponta da Praia. Ficou tempo observando o movimento dos navios, o azul das águas, a alegria das famílias de turistas, as gargalhadas, as conversas cheias de gritaria. Só observava, não pensava.

E, de repente, sentiu uma vontade enorme de pegar a estrada de volta, de chegar em casa, de descongelar a lasanha carinhosamente preparada por Berenice, de aguar as plantas, e, depois, de deitar na rede amarrada nos pés de pitomba.

Entrou no carro, ligou o rádio, riu...

Ainda bem que o dia seguinte seria segunda-feira! E, com certeza, haveria a matrona Berenice. Haveria uma “sobra” de bolo de aniversário... 

 

                    Regina Ruth Rincon Caires

 

 

 

 

 

 





sábado, 19 de fevereiro de 2022

Mãe de dois

 


Falam de desejos e dores, enquanto eu tenho menos de cinco minutos para resolver a minha vida. De que lado vou ficar, da morte ou da ressurreição? Não possuo a graça da dúvida ou da premonição. As situações estão postas e devo engoli-las sem mastigar. Está tudo muito confuso, não é? Nem o tempo para formar estas palavras me socorre. A minha verdadeira vontade é de abandonar tudo, mas não posso. Sou mãe de dois filhos pequenos ainda; sem pai e sem paz. Eles demandam todo o meu sangue – que já é insignificante para mim. Preciso supri-los da minha seiva, que é amarga e gasta. Eles lamentam pelos cantos; sofrem contidos, nem forças para espernear têm. São dois pobres coitados que vieram ao mundo pela insanidade dos pais. Vamos ao começo, então: conheci Augusto no ano de 2017, na Praia de Iracema. Ali, Augusto era aclamado como o “Mago da cannabis”. Ele fornecia suprimento para quase toda a região. Fiquei fascinada com o seu jeito livre, absoluto, articulado, e, como senti depois, carinhoso. Não havia discordâncias; falávamos como deuses. Eu morava na Barra do Ceará, do outro lado da cidade, e, para mim, era uma compulsão estar com o Mago. É tanto que endoidou a minha cabeça em questão de dias, chamando-me para morar com ele num vão mixuruca, na divisa da Rua Historiador Raimundo Girão com a Avenida da Abolição. Havia um ingrediente importante: ele era italiano, galante, sedutor. Tinha a elegância de dosar a voz, com o veludo correto para cada estação. O que ele me pedia que eu não fosse capaz de fazer, para mim era um tremendo sofrimento. Apenas com duas semanas juntos, ele se mandou e passou três dias fora. Foi o primeiro baque. O Mago evaporou. Fiquei maluca, perguntando a um e a outro. Uma senhora muito viva, nativa da praia, disse que o dito cujo tinha mania de sumir quando as coisas apertavam. Entendi, depois, que o aperto tinha a ver com aflição de abstinência da cocaína e com cheiro de polícia. Mago apareceu de repente, sinuoso, como se não houvesse nada, me tratando com o maior amor do mundo. Safo e inteligente, me fez esquecer o absurdo em um minuto. Eu já era outra mulher, dobrada pelos instintos. O sexo era transcendental; dançávamos segundo o uivo dos ventos. Gemíamos, como gatos, facilmente uma noite inteira, varando o dia. Aprendi a me pertencer com o Mago. Numa altura, grávida do primeiro filho, me sentindo dona de mim, decidi que mandaria no meu corpo e, por isso, fumaria um beck atrás do outro; não me importava o que acontecesse. E pensava que aquilo seria bom para neutralizar as aflições – minhas e do bebê, que devia estar estressado com o aperto do meu corpo mínimo envolvido no seu –; Mago também me convencia disso. Fui ao hospital com queda de pressão e dores na região abdominal. A médica perguntou se eu fazia uso de drogas e não menti. Ela disse que, se eu continuasse assim, ou perderia meu filho, ou ele nasceria com sequelas. “Mesmo a maconha?”. “Sim, mesmo a maconha é proibida. Não é porque veneno de cobra é natural que não vai fazer mal”. Não confiei muito no alerta da médica alvoroçada; fumava quando me convinha, pouco. Mago contou que a “barra tava pesada”. Disse que deveríamos morar numa praia, por um tempo, até as coisas esfriarem. Fomos a um recanto isolado, praia de Moitas, lugar ainda intocado, na base da perfeição. Quando Cícero nasceu, o pai ficou besta e domado, parecia outro. Vivíamos para o menino. Até que um dia, sem mais nem menos, Augusto escapuliu de novo. Voltou com uma semana. Já não havia comida para mim e, por consequência, para o pequeno. Falou que precisava tratar de negócios com o Fuego, um tipo argentino que encontrei de passagem em Fortaleza. Fuego era empresário do ramo da trambicagem. Fazia negócio com tudo; até com a mãe, se duvidar. De fato, Mago voltou com uns trocados que nos abasteceram por meses. Descobri que estava grávida. O chão se abriu e fui tragada. Não era possível dar conta de um, quanto mais dois. Felizmente, Mago arranjou um emprego em um restaurante. Com a lábia solta, encantava os clientes e, por isso, foi ficando. Francisco nasceu antes do tempo. O hospital mais próximo era de Icaraizinho, e dava para ver que não tinha estrutura e equipe. A sorte foi que Francisco estava na posição e veio num parto natural – depois de seis a sete horas de trabalho. A terceira fuga do Mago se deu quando o menor tinha dois meses. Antes de ir, Mago deixou a casa repleta de comida, e dessa vez avisou que voltaria em dois ou três dias. Demorou uma semana, duas, e nada. Saí com os dois pelas redondezas. Perguntei sobre o paradeiro no restaurante em que ele trabalhou. “Se a senhora não sabe, imagine a gente!”, respondeu o gerente aborrecido, dizendo que o avisasse, quando o encontrasse, que o “bonito” estava demitido. Eu sentia uma gastura e um aperto no coração. Fui a Fortaleza na boleia do caminhão de um conhecido de um conhecido. Tive ainda de pagar sessenta reais de gasolina – fiquei com trinta para as necessidades. Abandonei tudo em Moitas; não esperava voltar tão cedo. Quando entrei na cidade grande, o medo me paralisou. As crianças choravam porque sabiam do meu sofrimento. Dormimos nas ruas por seis dias, até topar com um maluco que era amigo do Mago e que trabalhava no mesmo ramo. Ele não teve pena: “Mago morreu, senhora… Não vi o corpo, mas dizem que ele devia muito e o acerto com os bichões foi com a vida dele. Tá todo mundo com medo aqui. É melhor a senhora se mandar”. Não me mandei. Estou mendigando uma oportunidade e só recebo porta na cara – quando não me vêm com: “Vai trabalhar, vagabunda!”. A maior dor é ver a fome de meus filhos. Sobre o Mago, não quero mais saber. Não sei se a história que ouvi é verdadeira, ou se ele sumiu, ou se voltou para a sua terra. De um jeito ou de outro, pagará no inferno. A minha sentença é essa aqui.






quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

teu sorriso, rendeira


 


          teu sorriso, 

                               rendeira, 

                                   é o sorriso

     da amendoeira

















domingo, 13 de fevereiro de 2022

A Ponte

 

A Ponte

A ponte que ligava as duas margens do rio era uma obra de engenharia deveras extravagante e esquisita. O autor do projecto, um excêntrico arquitecto, conseguiu convencer os representantes do poder local da excelência e da bondade da obra.

 Na memória descritiva podia-se ler que a modernidade do traçado venceria as leis do tempo. Iria ser totalmente coberta e não daria a sensação de se estar num túmulo, como os seus detractores faziam crer. O projecto estabelecia que de 50 em 50 metros o betão da abóbada daria lugar a uma estrutura em vidro com vistas para o céu na sua parte superior e com vistas para o rio e para a paisagem circundante nas zonas laterais.

Por questões financeiras, foram intencionalmente mal calculados os espaços envidraçados entre as estruturas em cimento e as vistas ribeirinhas foram diminuindo à medida que a obra crescia.

Apesar das críticas a todos estes erros de metragem, a ponte construiu-se, foi inaugurada e, durante largas dezenas de anos, deu passagem a todos aqueles que necessitavam de atravessar o rio e para os muitos turistas que se deslocavam de propósito ao sítio para admirar edificado tão raro.

Anos mais tarde, com o assoreamento do rio foi construída uma outra ponte mais pequena e que conseguia dar uma resposta de travessia mais rápida.

A obra futurista ficou assim condenada e tornou-se passado, contando-se pelos dedos de uma mão as pessoas que por lá vão passando.

Filipe Morais, um habitante da terra, que sofria de claustrofobia, nem queria ouvir falar de semelhante caixão. Raramente rumava para aquelas bandas, mas quando os seus passos errantes o levavam àquele destino o seu cérebro arranjava uma estratégia contra aquela fobia. A entrada da ponte aparecia, ilusoriamente, aos seus olhos completamente emparedada.

Num dia em que, por mero acaso, passou por lá aconteceu um fenómeno para normal. Um neurónio anticlaustrofóbico rebelou-se contra aquela fobia e fez valer a sua força.  O cérebro fez-lhe a vontade e não construiu a devida ilusão de emparedamento e a entrada da ponte apareceu-lhe naturalmente aberta.

Ao reparar naquela abertura, Filipe sentiu uma vontade obsessiva de entrar e atravessar a ponte. Libertos da claustrofobia, os milhares de milhões neurónios incentivaram a entrada no túnel.

─ Um milagre! ─ exclamou, quando não sentiu aquela fobia que se apoderava dele no momento de enfrentar espaços fechados.

Aquele medonho medo que invadia todo o seu ser e que o deixava completamente paralisado e incapaz de dar um passo tinha desaparecido. Já não era preciso fazer um esforço ciclópico para arrastar aqueles pés que pesavam toneladas e que o obrigavam a desistir de andar ao fim de três ou quatro penosos passos. Aquele suor que lhe caía em bica, criando-lhe uma névoa nos olhos que o impedia de ver, mesmo a uma curta distância que fosse, não apareceu. Já não teria de desistir de tudo e não iria ficar prostrado por terra à espera de uma providencial ajuda.

Desta feita estava convencido de que iria atravessar o túnel e chegaria ao fim. Nem um pingo de suor e as pernas estavam tão leves que lhe lembravam os seus tempos áureos de corredor de velocidade. Mesmo aquelas sombras que se projectavam nas paredes não lhe criavam ponta de ansiedade, eram só sombras. Sentia-se curado.

O tabuleiro era uma autêntica estrada, com pista para piões, automóveis e velocípedes. O estado do pavimento estava em razoáveis condições. A entrada foi ficando para trás e graças à curva que a ponte fazia para a esquerda nem sequer se via uma réstia de claridade. Constatou esse facto, porque conseguiu facilmente olhar para trás, o que era caso inédito no seu comportamento quando estava em espaços fechados. Um simples olhar para trás seria, à época, impossível. O seu corpo tornava-se então tão rígido que qualquer tentativa para rodá-lo virava uma luta infrutífera. Agora ali, naquele momento, nada daquilo acontecia. Estava prestes a chegar à zona envidraçada, mas para ele não fazia qualquer monta se o túnel fosse todo ladeado por paredes de cimento. Filipe não cabia em si de contente. Andava dentro daquela espécie de tubo fechado como se estivesse numa pradaria.

Olhou em frente para a luz de saída que brilhava ao longe e não sentiu qualquer angústia da distância e, por isso, não teve nenhuma vontade em apressar o passo para sair daquele invólucro de cimento e vidro. Estava com vontade de saborear cada recanto e de tirar o máximo de prazer daquela caminhada.

De repente o ponto de luz ao fundo escureceu.

Um vulto de uma criatura assomou à boca do túnel e naquela estrada deserta avançou na sua direcção. Logo a seguir parou.

Acidentalmente o travão soltou-se e a normalidade biológica dos neurónios de Filipe alterou-se e cada um deles passou a agir fora das regras e em roda livre e tudo se descontrolou. As ordens e as contra ordens tomaram conta de todo o cérebro e as pernas passaram a pesar toneladas, os pés recusaram-se a transportar esses milhares de quilos, o suor jorrou por todo o corpo e os olhos embaciados deixaram de ver com nitidez. A situação de pânico tomou conta dele. A frequência cardíaca disparou e o coração começou a querer sair do peito. As até então pacíficas sombras cresceram ameaçadoras sobre ele, puxando-o para trás, passando-lhe rasteiras até ele se desequilibrar e cair com estrondo no chão. Cheio de pavor e incapaz de esboçar qualquer reacção olhou para o sinistro vulto que dominava toda a área por onde ele teria de passar. Uma saída por esse lado tornava-se impossível. Voltar atrás e sair por onde tinha entrado seria outra solução. Mas não conseguia sequer olhar para trás. Olhou mais uma vez mais o vulto que continuava no mesmo sítio. Não se tinha mexido. O remédio seria ficar por ali deitado no chão esperando que o intruso desistisse de entrar e se fosse embora.

O vulto já ali estava há muito tempo e nem entrava nem saía. Se sofrer também de claustrofobia vão ter de ficar os dois eternamente à espera.

A angústia da espera é devastadora, mas a angústia da incerteza despedaça as entranhas de qualquer um.

Filipe Morais foi apanhado por essas duas angústias.