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quinta-feira, 29 de junho de 2023

O Povo de Barinak

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 11

Ninguém reprovará o seu irmão por ele ser o que é; mas com paciência e persistência,

com inteligência e com amor, procurará levá-lo ao nível mais alto.

Agostinho Silva

    Filósofo, poeta, ensaísta, professor e filólogo português

    (1906-1994)

 

Apesar de vitoriosos, o entusiasmo com que foram recebidos esmoreceu rapidamente assim que viúvas e órfãos aperceberam-se de que os corpos dos seus entes queridos nunca regressariam, reduzidos a cinzas algures nas montanhas inóspitas. Se a maioria os felicitava pela vitória total e maravilhava-se com os colares e artefactos vários saqueados no ataque, as famílias dos falecidos resmungavam revoltadas pelo ultraje.

Erem tentou acalmá-los o melhor que soube e explicou virem todos esgotados e feridos, sem forças para arrastar os mortos. Foi Zia quem acabou por vir no seu auxílio, prometendo que fariam uma cerimónia especial pelos caídos e enterrariam no santuário os seus objetos pessoais em sua honra. Seria um agradecimento a Tharun por tão retumbante vitória, a Swol por permitir que sobrevivam aos inimigos e aos que fizeram o sacrifício último pelos seus vizinhos.

A promessa agradou à maioria e pareceu transmitir algum contentamento a parte dos ofendidos, mas havia uma coisa de que ninguém falava, como se não tivessem reparado, mas que era uma grande questão que começava a incomodar; onde estava o resto dos alimentos roubados?

Fora grande a quantidade de víveres furtada dos armazéns, era de esperar poderem recuperar uma boa parte deles na gruta dos infames homens-macaco, mas a verdade era que não encontraram peças de carne seca nem cereais dignos de nota. Não era possível que tivessem comido tudo no espaço de tempo entre o roubo e o ataque, apesar de serem muitos. Lemi sugeriu que teriam provavelmente escondido noutro local, mas Alim aventou que seriam poucos para transportar a totalidade do haviam roubado e que a maioria poderia estar enterrada algures a meio caminho para ser resgatada mais tarde… se assim era, o segredo estava morto como os seus donos. Fosse qual fosse a razão, o clã estava despojado dos seus recursos para o inverno e a sua sobrevivência estava ameaçada.

A neve já não caía com a intensidade de há uns meses, tinha períodos mais ou menos longos, mas já não durava sequer um dia inteiro. A chuva que normalmente a seguia lavava a pouca que se agarrava nos locais expostos à luz do sol tímido que se filtrava pelas nuvens, restando apenas aquela em sítios sombrios ou mais húmidos, já transformada em gelo. Era este alívio das condições atmosféricas que permitia que os grupos de caça estendessem a sua ação, mesmo assim com pouco sucesso. O comércio com as outras povoações já não era tão frutífero; também elas racionavam os alimentos. Só o degelo dos rios permitia alguma pesca. Mais alguns migrantes engrossaram o número de tendas fora dos limites da aldeia, mas estes, ao contrário dos anteriores, eram miseráveis empurrados pela necessidade. Foram obrigados a ter grupos de dois homens a guardar a armazenagem dos víveres noite e dia, devido a pequenos roubos que aconteciam. O espectro da fome pairava sobre a aldeia e a primavera ainda estava longe. Medidas como a que Erem instituíra anos atrás, de entregar uma parte das caçadas para as viúvas e órfãos que não tinham meios de obter o seu alimento, começavam a ser contestadas. Para agravar tudo, nas noites menos nubladas, conseguia ver-se uma estrela gigante que parecia arrastar as outras atrás de si.

Depois de algumas queixas, Erem mandou chamar Alim e recebeu-o na recém-terminada Casa da Reunião, usando a pele cerimonial com a cabeça de leão, sentado num banco feito com troncos cortados grosseiramente, mas cobertos com alvas peles. À sua esquerda, em pé, estavam Zia e Lemi e à direita, com a lança e o machado de caça, Naci e Fikri.

Alim, que se fazia acompanhar do seu filho Beki, surpreendeu-se com a presença de Tailan e outro homem que mal conhecia e que aguardavam em pé à entrada. Sentiu a frieza e a majestade da receção, muito diferente da informalidade habitual entre eles. Não havia nada para se sentarem e a fogueira que costumava aquecer o espaço era apenas uma braseira que deformava o ar em ondas de calor. Como que combinados, os quatro homens avançaram para lá da fogueira, ficando a uns poucos metros de distância do chefe e da sua comitiva.

— Chamaste-me, Erem? — Interrogou o homem mais velho, que não era pessoa de andar à volta dos problemas nem de evitar conflitos. Entretanto, deitou um olhar interrogativo aos outros dois que, com ele, pareciam estar a ser julgados.

— Sim, meu amigo. — Começou o chefe sem se levantar. — Tenho assuntos desagradáveis para falar contigo e com Tailan, como representantes dos estrangeiros que aqui vivem.

— Espanta-me que me chames amigo e logo a seguir digas que sou um estrangeiro. — O rosto de Alim pareceu ficar cinzento, enquanto o de Erem corou. — Eu e a minha família fomos os primeiros a juntar-nos a esta aldeia e damos um grande contributo para o bem de todos.

— Também eu e todos os outros, estrangeiros como nos chamas, contribuímos com o nosso esforço em tudo o que se construiu e a partilha da caça e da pesca! — Tailan também estava corado, mas de indignação. — Não entendo esta… receção, nesta casa onde tantos “dos meus” trabalharam ao lado “dos teus”. De que nos acusas?

As vozes na casa atraíam a atenção e já vários curiosos se amontoavam timidamente junto da parede da entrada.

— Estrangeiros, sim! — Atirou Naci inesperadamente. — Antes de vocês chegarem, todos se respeitavam e cuidavam uns dos outros. Tudo podia estar à vista de todos, que ninguém mexia no que não lhes pertencia. — Ele apontava a lança acusadoramente. — Agora há queixas de desaparecimento de vasilhas, comida ou mesmo peles!

— Espera Naci. — Interveio Erem.

— Todas as noites alguém é visto a rondar os armazéns e, da última vez que perseguimos um desses intrusos, fomos parados à chegada às vossas tendas por homens com lanças. — Continuou Naci ignorando a interrupção do pai.

— Cala-te! — Ordenou o chefe fazendo valer o seu estatuto. — Por causa disto que está aqui a acontecer é que não chamei mais ninguém, além daqueles que reconheço como representantes. Para nos entendermos e não para gritar. — Fez-se um silêncio sepulcral por uns segundos antes dele tornar a falar: — Tailan, ouviste as palavras do meu filho. Não gostei de saber que os homens que deixamos a guardar a aldeia não puderam perseguir um ladrão porque vocês não deixaram. Apareceram com lanças a fazer frente aos guardas, como se de inimigos se tratassem.

— Erem. — Começou o representante dos estrangeiros, erguendo orgulhosamente a cabeça. — Reconheço-te como amigo e como chefe deste povoado que se desenvolve a olhos vistos. As tuas decisões são, na sua grande maioria, sábias e tomadas para o bem de todos, mas não podes esperar que um povo separado se comporte como um só. — Como não o interromperam, ele compôs a pele de lobo grisalha que lhe cobria os ombros e continuou: — Aceitas o nosso trabalho no santuário e as nossas vidas em combate, mas não permites que vivamos entre os teus, nem que construamos casas de pedra… nem os nossos mortos podem repousar ao lado deles. Quando definiste as guardas, fizeste-o na aldeia e deixaste de fora o acampamento onde estão aqueles que partilham contigo o fel, mas não o mel. Quando os homens-macaco atacaram da última vez, morreu um dos vossos, mas também dois dos nossos! Também temos de nos proteger e defender, que achas que pensaram os nossos guardas quando viram três ou quatro homens a correr para as tendas deles, armados de lanças e machados, a meio da noite?

Lemi sussurrou próximo do ouvido do chefe, mas de forma que a restante “corte” escutasse. Naci, atirou um braço ao ar num gesto de desprezo.

— Erem. — Interveio Alim. — O que vejo aqui é um mal-entendido causado pela desconfiança que deixas que habite entre os teus. Além disso, este problema podia ser resolvido com uma conversa entre vocês e não com esta exibição de poder e humilhação com que nos ofendes. Aqui estamos nós, apenas o povo de Barinak[1], mas dividido em dois; os aldeões e os estrangeiros.

— Não somos um só povo! — Gritou Naci incapaz de se conter. — Nós, somos filhos do Clã do Rio Brilhante, das grandes planícies do lago salgado! Vocês são montanheses sem-terra, deserdados dos deuses e que procuram agradar-lhes ajudando na homenagem que lhes fazemos. — Erem estendeu a mão para o silenciar, mas ele continuou: — Como se não bastasse, trazer a má-sorte até nós, agora também roubam a nossa comida.

— Acalma-te, filho do chefe! — Tailan evitou propositadamente o nome do jovem. — Não acrescentes acusações falsas à ofensa que já é esta cerimónia.

— Mas que tens a dizer sobre a verdade de que há roubos de comida? — Foi a vez de Lemi, que todos respeitavam como mais velho, intervir. — Já explicaste a razão para impedir o avanço dos guardas, que tens a dizer sobre os roubos, já que impediste a captura dos ladrões?

O tio de Erem ultimamente caminhava cada vez mais curvado e apoiado num cajado de que nunca se separava, mas ali, deu um passo em frente sem apoio e cheio de majestade, apoiou a mão sobre o braço do sobrinho. A figura esquelética impunha autoridade com a grande calva, o cabelo que lhe restava e as barbas intrincados de brancas, repousando sobre uma túnica negra de pele de urso que lhe descia quase até aos pés calçados com as sandálias de madeira.

— Não têm muito valor estas acusações, para além da ofensa de nos serem dirigidas… — Tailan olhou para o chão com uma expressão de tristeza. — … os roubos são feitos por gente de fora, que se esgueiram na floresta antes que os possamos apanhar. Na noite passada tentamos segui-los, mas perdemos-lhes o rasto. Talvez sejam das cascatas lá para Ner[2], mas não temos a certeza. Vimos que usam facas de cobre, um dos nossos aproximou-se demais tendo sido ferido. Não está nada bem…

— Chamaram Nehir? — Perguntou Erem.

— Vocês não nos querem por perto, por que iriam deixar ir a vossa curandeira? — Rosnou o acompanhante de Tailan que se mantivera calado até aí.

— Nunca vos foi recusada ajuda! — Atirou Zia rompendo também o silêncio. — Vou dizer-lhe que procure o ferido para o tratar.

— Como veem, — começou Alim —, o grande problema aqui é de não falarmos. Esses ladrões, já podiam ter sido apanhados, se falássemos entre nós, em vez de lutar.

— Que te faz pensar que sejam das cascatas? — Interrogou Erem.

— Consta que têm lá um artífice a trabalhar o cobre e a fazer armas. — Esclareceu o companheiro de Tailan.

— O que tem sido roubado não chega para uma aldeia inteira… — estranhou o chefe —… nada parecido com o que levaram os homens-macaco.

— Se calhar porque não conseguiram ainda entrar na casa onde guardamos tudo depois do roubo deles. — Naci esclareceu. — Agora temos guardas e já não há alimentos espalhados por várias casas.

— Podíamos ir lá exigir-lhes que parem com os roubos. — Aventou Lemi. — O chefe da aldeia pode nem saber do que se passa.

— Rir-se-ão de nós. — Sentenciou Naci com uma careta. — Vão achar que somos uns fracos!

— Então? — Tailan estava mais colaborante. — Vamos com um grupo de homens para lhes mostrar que estamos prontos para a guerra?

— Isso seria ameaçá-los. Ficarão ofendidos e zangados. — Disse Erem pensativamente. — Vamos lá acusá-los e nem temos a certeza de que sejam eles.

— Porque não fazemos uma armadilha? — Sugeriu Alim. — Se apanharmos os ladrões e os fizermos dizer de onde são… — Sim! — O rosto de Erem iluminou-se, enquanto se erguia e aproximava dos outros. — Essa é a melhor solução! Vamos reduzir os guardas, ter apenas dois na casa dos alimentos que se afastam por vezes. Mas mais dois lá dentro, que nunca saem. Se alguém os vir antes não pode dar o alarme, apenas corre a avisar os outros em silêncio. Temos de os apanhar vivos.

— Isto, sim, é agir como somos: como irmãos, povo, o povo de Barinak! — Tailan estava obviamente satisfeito e deu um abraço a Erem.

— Esta nossa conversa fez-me ver coisas que não estavam bem. — Concluiu o chefe com um sorriso. — E quando um homem acha que não está a agir bem, deve corrigir as suas maneiras; este plano para apanhar os ladrões deve ficar apenas entre nós, mas a partir de hoje, todos saberão que não há proibições para construir casas de pedra.


[1] Do turco, santuário ou abrigo.

[2] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal Norte) por oposição ao sol do meio-dia

Manuel Amaro Mendonça

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Na Madrugada dos TemposIntrodução – Na Madrugada dos tempos  

 

 

 

 

 

 

         





terça-feira, 27 de junho de 2023

Veredas

 






domingo, 25 de junho de 2023

A água

 

São três imperiais, duas águas das Pedras e uma coca-cola, se faz favor — pediu Diogo, ao balcão, sem ter a certeza de ser a sua vez. O pedido não merecia qualquer comentário, mas há pessoas que não perdem uma oportunidade de exibir conhecimento, ou o que com ele se parece, a propósito seja do que for.

A água é, comprovadamente, um dos produtos de excreção da atividade metabólica dos seres vivos — lançou Bernardo, seguro do impacto que ia causar na assembleia de circunstância: o grupo de amigos que deixara as toalhas a marcar lugares na areia e viera matar a sede na esplanada do apoio de praia. — Só assim se explica a enorme quantidade de água que temos, em contraste com os outros planetas conhecidos.

Eh lá! Ainda bem que pedi cerveja. — brincou Afonso, que já conhecia a “peça”.

Há também a teoria do choque da Terra com um planeta oceânico, em tempos primordiais, mas essa parece-me uma explicação milagrosa, que cheira a criacionismo — continuou Bernardo, ignorando ostensivamente o comentário. — É certo que a Terra já conteria água primordial, aquando do aparecimento das estruturas que deram origem aos primeiros seres vivos. Como conteria oxigénio e centenas de outros elementos e compostos químicos, gerados nas fornalhas nucleares das estrelas, que, ao explodirem, deram origem às poeiras e gases que vieram a juntar-se e formaram os planetas que compõem atualmente o sistema solar. Mas seria água e oxigénio não muito mais frequentes do que a mica ou o sódio. Como Carl Sagan explicou muito bem, o oxigénio foi produzido pelas algas azuis, antes do aparecimento dos organismos que hoje dependem dele para viver. É lógico especular que pode também ter sido o metabolismo de milhões de minúsculos seres vivos, a excretar quantidades ínfimas de água durante milhares de milhões de anos que deu origem a esta avassaladora massa líquida que quase submerge todo o planeta — o gesto largo abarcava a imensidão do oceano que continuava a calote visível dali.

Ih, que nojo! — fez Carolina, que já estava a visualizar gosmas e escorrimentos em criaturas moles e viscosas. — E nós andamos aqui a banhar-nos nesse muco todo?

Não seria menos límpida do que esta — garantiu o orador. — A água ainda hoje é um subproduto do metabolismo de muitos organismos, incluindo plantas e animais. Por exemplo, durante a respiração celular, o oxigénio é usado para quebrar moléculas orgânicas, libertando energia e produzindo dióxido de carbono e água como subprodutos.

Vamos todos contar uma história que meta água, salvo seja — chilreou Mariana, a mais nova do grupo, tentando salvar a tarde. — E que se tenha passado connosco. Começo eu. Quando tinha uns 14 anos, o agrupamento de escuteiros de que fazia parte, fez um acampamento na zona de Oleiros. Numa das manhãs, estava prevista uma caminhada por aqueles montes secos e cheios de pinheiros. A certa altura, e contrariando as regras aprendidas, afastei-me do grupo e da trilha, para fazer xixi e quando voltei já não vi ninguém. Chamei, gritei, mas nem um som me respondeu. Ao fim de um bocado de espera inútil, resolvi voltar para trás, pela trilha que trazíamos.

Neste ponto da narrativa, a atenção dos amigos já estava assegurada.

Andei, andei, mas não havia maneira de encontrar o acampamento. Nem reconhecia nada em volta. Claramente, estava perdida. Era verão, o calor apertava mais do que aqui, e já tinha esgotado o cantil. Comecei a sentir medo. A meio da tarde, permiti-me chorar um bocadinho. Aquelas lágrimas foram as únicas gotas que ingeri, desde o fim da manhã. Então, reparei que as andorinhas pareciam voar mais baixo, perto do alto do caminho antigo em que estava. Por aí fui, na esperança de que isso significasse mais humidade. Porque as andorinhas comem mosquitos em voo, e estes não conseguem voar alto onde há humidade.

Teresa mudava de posição, para não perder pitada.

Então, a duas centenas de metros do alto, uma fonte. Ou o que restava dela. Um pequeno muro apresentava, a meia altura, uma pedra saliente, com uma estreita cânula escavada. Dela iam pingando não mais que gotas de água. A ela colei a boca. Lentamente, aquelas gotas esparsas, mas frescas, foram-me hidratando. Ao fim de uma meia hora, tinha recobrado a esperança e permiti-me descansar um bocadinho. Nessa altura senti muito intimamente o flagelo da falta de água potável que atinge grandes fatias da população mundial. E lembrei-me das histórias de meninas africanas que palmilham muitos quilómetros para irem buscar água para a família a algum poço remoto. Não sei quanto tempo passou, mas, de repente, chegou ao pé de mim uma patrulha de escuteiros, das várias que foram lançadas à minha procura. Depois vim a saber que aquela era a rota dos moleiros de antigamente. Daí a fonte. Vivam os moleiros e outras profissões antigas que, por necessidade própria, deixaram muitas fontes por esses caminhos!

«Muito bem!», «Gira!», «Que susto!» — foram alguns dos comentários que saudaram a prestação de Mariana.

Pronto; a minha já está. Agora, outra — desafiou.

Por momentos, ninguém parecia disposto a dar continuidade à versão Decameron à portuguesa lançada pela amiga. Por fim, Afonso, o engenhocas do grupo, decidiu-se:

Eu não sei se a minha história vale. Não tem perigos de vida, mas tem água. Água, líquida, insidiosa e intrusiva, a entrar-me pelo parapeito de uma janela sem eu conseguir descortinar como entrava, nem como impedi-la de entrar. Vedei a caixilharia de alumínio com silicone, mas continuava a pingar dentro de casa e ameaçava encharcar-me o soalho e levantar-me os tacos. Percebi rapidamente que ela se infiltrava por uma fissura da pedra do parapeito, mas estava fora de questão gastar um balúrdio a substituir uma pedra enorme de mármore, mesmo depois de várias tentativas infrutíferas de vedar a frincha. Resolvi, em vez disso, construir uma “armadilha para água”, como eu lhe chamo.

Neste ponto, Afonso conseguia também atenção unânime da plateia.

Não é nada de especial; só um mecanismo simples que usa a caraterística da capilaridade, própria da água, para a obrigar a seguir o caminho que eu quero. Aliás, a água tem 70 características especiais, diferentes das dos outros líquidos. É mesmo um líquido “do outro mundo”. Como sabem, a água agarra-se às paredes dos objetos que toca. Se essas paredes forem as de um tubo muito fino, a água sobe até um certo nível. Em vez de tubos finos, usei fio de algodão, como o usado nas velas. Primeiro, capto a humidade com um pano absorvente à saída da racha e se acumula numa pequena caixa; ao interior dessa caixa liga-se o fio de algodão. A água trepa pelo fio, ultrapassa o bordo da caixa e vai-se expandido fio afora. Aí, o peso é o empurrão extra que leva a água a chegar ao fundo do fio e a pingar para um recipiente com alguma capacidade e equipado com um sifão. Quando o nível da água ultrapassa o ponto de implantação do estreito sifão, é arrastada sem piedade e vai à vida dela, através de um tubinho na parede. Nem quero imaginar o que faria ela aos meus queridos tacos.

Claramente, o grupo esperava mais. Os rostos apresentavam algum espanto, mas pelos motivos errados.

Ó Afonso, essa máquina é um bocado artesanal, não? — ironizou Bernardo. — Só tem a vantagem de não gastar eletricidade.

Agora é a minha vez — avisou Carolina, talvez encorajada pela aparente sensaboria da história de Afonso. — Havia uma miúda que vivia numa quinta e os pais incumbiam-na de várias tarefas, apesar da idade. Era frequente ir com o irmão numa mula buscar os ovos a outra propriedade agrícola. Ou levar a merenda a algum rancho de trabalhadores. Ou outra tarefa qualquer, que por esses princípios da década de 50 os adultos incumbiam as crianças. Até tinham um ditado: “O trabalho do menino é pouco, mas quem o despreza é louco”. Dessa vez, tinha chovido muito e a ribeira tinha subido. O caminho de regresso a casa passava necessariamente por aquela ribeira. E ponte era coisa que não havia. A travessia era sempre feita a vau, tanto por mulas, burros, cavalos, como por carroças e carros de bois. Não mais que uns dez metros de extensão, numa ribeira que, exceto no inverno, tinha sempre pequeno caudal e chegava a secar.

Também Carolina conseguia obter a atenção do grupo.

O rapazito, no comando das rédeas, incitou a mula a avançar ribeira adentro, como habitualmente. A água só lhe dava pelo meio da barriga, mas a força da corrente já era grande e a própria mula não conseguiu manter o rumo reto. Aos poucos, foi sendo arrastada alguns metros, para grande aflição dos miúdos, até que ficou empancada numas rochas que ocupavam parte do leito. Felizmente!

Uau! — fez Diogo. — Que história mais macaca! Não havia pontes, os miúdos andavam sozinhos em mulas… Isso foi em que planeta?

Acredito perfeitamente! — firmou-se Carolina. — Já vi fotografias daqueles tempos… eram inacreditáveis. As condições eram miseráveis, mas parece que toda a gente vivia assim. Imaginem dois miúdos de uns 10, 12 anos, rodeados de água, em cima de uma mula presa no meio de uma ribeira, que devia levar força e volume. E os pais, numa quinta a uns 2 ou 3 quilómetros, sem saber de nada. No meio da aflição, o miúdo, habituado ao campo e a safar-se dos seus apertos, conseguiu passar por cima do pescoço da mula, para o muro da borda, talvez com a ajuda de alguma rocha intermédia. Então deitou a correr para buscar auxílio.

Fez uma pausa, como que a abarcar o dramatismo da situação, perante o silêncio atento dos amigos.

Esta parte é a que me faz mais impressão. Posso pensar na aflição do miúdo, na corrida desesperada que deve ter feito para avisar os pais, mas, imaginem a miúda! O irmão foi-se embora e ela ficou ali sozinha no maior perigo, com o coração em papa, em risco de ser levada pela corrente. O que deve ter pensado, o que deve ter chorado! Quando o miúdo chegou finalmente ao pé do pai e, quase sem fôlego, lhe contou o que tinha acontecido, este saltou para uma égua em pelo e lançou-se num galope insano, numa aflição que não podemos imaginar. Aqueles minutos de galope só podem ter sido terríveis. Felizmente, chegou a tempo. Com a desenvoltura dos adultos, conseguiu retirar a miúda e abraçou-a, de olhos alagados. Iria agradecer tanto à Senhora das Necessidades! Depois desencaixou a mula dos rochedos e tudo acabou em bem, felizmente. Agora é só uma história que os miúdos, agora idosos e meus tios-avós, contam, quando se lembram dos tempos antigos.

Pessoal, já chega de histórias macabras — interrompeu Teresa, até ali calada e sem uma história de jeito para contar. — Vamos outra vez à água? O último é um charco de água suja.

Bora! — responderam todos. E desataram a correr para o mergulho refrescante.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Camponês tirando água com picota para rega. Papiro. Reconstrução de um afresco da tumba de Ipi em Dayr al-Madinah, XIX Dinastia.

Instituto do Papiro, Cairo.

* * *





segunda-feira, 19 de junho de 2023

Silêncio

 


Ô mulher atentada minha mãe! Saí de casa fumaçando, para os lados da vó Altina. Esperei um tempo, de modo a não assustar a pobre velha, e entrei de fininho, procurando um canto para me aboletar na cozinha. Vó pensou que era assombração: “Menino, pelo amor de Deus, quase tu me mata do coração! Avia, visage! Que tu quer?”. “Nada não, vó, só queria comer uma coisinha”. “E que coisinha é essa? Tem nada não, ainda vou fazer o armoço”. O dia não estava auspicioso para ninguém. Vó devia estar vexada com algum problema. Pedi desculpa e vazei, mais uma vez, à procura de destino. Não tinha o que fazer – estava de férias do colégio –, então fui à igrejinha. Comecei a rezar, pedindo a Deus que me acudisse, porque eu não merecia a mãe que Ele mesmo me deu – o cúmplice –; que ela era muito grossa, pior que papelderolarprego; não podia me ver parado que arrumava coisa para eu fazer. Sem paciência com a reza, avistei o padre Felismino entrar na sala paroquial. Ele carregava uma ruma de papel debaixo do braço. Limpava a testa, estando, pelo que parecia, muito cansado. Tinha certeza de que eu estava invisível, com o meu corpinho de avoante magro. Cheguei mais perto e fiquei, ao lado do altar, espiando por uma brecha na porta. O homem começou a mexer, impaciente, nos papéis e tirou de dentro uma caixinha. Demorou uns dez minutos para abri-la. Estava fechada com um cadeado pequeno, que o padre arrebentou. Vez ou outra ele olhava para os lados, para não ser surpreendido por algum intruso. Matutei que era coisa importante, porque, também, ele se bulia para se esconder. Baixou-se um instante por detrás das cadeiras da mesa; logo me aperreei, porque a vista não alcançava. Por sorte, o objeto caiu no chão. Vi que era uma joia conhecida. O padre teria afanado? Sempre suspeitei do olhar cismado do padre, como se sempre devesse algo. Ele arrumou o pequeno embrulho e colocou num livro furado, depois, na prateleira mais alta – sim, havia um corte no meio do livro, com um buraco, que encaixava certinho com o objeto. E, então, o padre estava pronto para sair. Dei a volta no altar e fingi que vinha do outro lado. “Que é isso, menino?! Como entrou aqui?!”. “Seu padre, é que a porta estava meio aberta… entrei pra rezar. O senhor pode me confessar?”. “Agora não… de jeito nenhum”. “Seu padre, é que tenho um pecado horrível e, se o senhor não me confessar, se eu morrer na próxima esquina – ninguém sabe – eu posso ir direitinho pro inferno”. “Pois venha, menino maligno… Cinco minutinhos… Diga logo, porque eu tenho o que fazer”. O padre nem se alembrou que eu não tinha feito a primeira comunhão. “É o seguinte: dona Geruza, a mulher do delegado, faleceu na semana atrasada, como o senhor sabe. Ela tinha uns querer comigo, me deu umas roupas e um bocado de presente. Mas eu não fui um bom menino: roubei uma joia que ela tinha lá escondida. Levei pra casa da minha vó e deixei guardadinha. Hoje, quando fui bulir lá, o bicho tinha desaparecido. Será que Deus me perdoa? Se desapareceu, não tem mais pecado, né?”. Será que ele acreditava que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão? “Olha, menino, isso é muto gra-ve – gaguejava e engolia as letras –. Mas Deus perdoa tudo, não é verdade? – como se me perguntasse, esperando confirmação e livramento –. Vá… Dois padre-nossos e dez ave-marias”. No fim, o padre parecia inofensivo, mais aperreado que o normal. Decerto, viu a minha safadeza e quis tirar proveito. Foi tomar um cafezinho com vó e, quando ela deu as costas, bufo: pegou a joia. Fizemos um trato com os olhos: ele daria tudo para manter o meu silêncio. Não foi tão ruim assim. Agora é barriga forrada e tostão na mão. O delegado não ia gostar nadinha disso.

 

 






sábado, 17 de junho de 2023

Eu, professor

 



                                    As aulas começaram há pouco tempo, na mesma escola, nas mesmas manhãs. A direção me indicou novas turmas, alunos novos, outros olhares no espaço e no tempo. Suas presenças cada vez mais são familiares, suas vozes já reconheço quando entram, ruidosamente, na sala de aula. Levanto, abro o livro didático e sou acompanhado por poucos olhares, como se só fizesse diferença para algumas pessoas. Um desses alunos presta atenção naquilo que transmito e fico imaginando o que passa em sua cabeça. É uma grata surpresa. Seu silêncio fala mais alto que todos ali, mas ele não está só. Há outros silêncios que convergem em minha direção, em sincera formação, que prestam atenção naquilo que ensina o suscetível professor...



Nikolay Bogdanov-Belsky - Children in a Class – 1918 – óleo sobre tela





sábado, 10 de junho de 2023

Trincheira

 



Depois de dois dias de calmaria, os ruídos lá de fora me trazem de volta a realidade. Os estrondos das bombas e granadas, o som estridente das metralhadoras e os tiros surdos dos canhões e dos fuzis nos enlouquecem. O frio de muitos graus abaixo de zero e a lama formada pela neve e chuva tornam a trincheira um imenso lamaçal. Não sinto os meus pés, os dedos das mãos mal conseguem acionar o gatilho.

Não lembro quando foi o meu último banho. Quando o fiz foi com a água apanhada no capacete. A sujeira já não faz diferença. Nesse buraco os cheiros das fezes e dos cadáveres em decomposição se misturam e transformam a atmosfera em algo irrespirável. Ratos e outros animais se proliferam ao redor e disputam espaço conosco. Em muito somos semelhantes a eles: rastejando, cavando o miserável espaço para que não sejamos soterrados.

Próximo de mim um soldado sussurra uma canção. Ela me fez lembrar os momentos que antecederam a minha chegada à frente de batalha. No cinema os filmes mostravam os feitos dos soldados em batalhas, as condecorações recebidas, o retorno festivo para casa. Esquadrilhas de aviões perfeitamente alinhados faziam voos rasantes e nuvens de paraquedistas saltavam de aviões de transporte e pousavam suavemente sobre os campos. Soldados felizes empunhavam metralhadoras sobre tanques de guerra. Outros fumavam e jogavam cartas em seus alojamentos, tendo ao fundo os pôsteres com as pin girls, as garotas penduradas na parede, com aquelas incríveis curvas.

Eu sabia que a guerra seria dura. Porém, eu esperava por momentos compensadores. Troquei a vida no campo pela promessa de um futuro melhor em troca da defesa da Pátria. Aqui não há nada de heroico. Muitos nem sabem ao certo por que lutam. Não queriam matar, mas se não matarem são mortos. Medalhas não podem compensar as centenas de corpos enterrados em valas improvisadas neste solo que não é o nosso.

Esperamos pela morte. Talvez ela chegue hoje. Faremos uma última investida contra o inimigo. Eles parecem melhor preparados.

Um garoto enlouquecido sai aos berros, correndo para fora da trincheira. Será morto! Consegui derrubá-lo, segurando-o pelos pés. Prendo-o com força. Ele se acalma e chora como uma criança, apoiado em meu ombro. Lembra-me o meu irmão mais novo. Sempre que algo o assustava ele corria para os meus braços. Sentia-se protegido. Gostaria de poder abraçá-lo agora.

O comandante recebe uma mensagem pelo rádio. Chegou a hora. Alguns aviões aliados iniciam o bombardeio sobre o inimigo. A artilharia abre fogo também. Lá vamos nós. Só nos resta seguir em frente. Eu mal consigo perceber o que acontece a vinha volta. Apenas corro e atiro em direção as sombras, na direção da origem dos tiros do inimigo. O ar está repleto de fumaça. Ouço o zumbido das balas passando muito perto.

Corpos voam após as explosões. O inimigo está próximo. Preciso colocar em ação a minha baioneta. Corpos são atingidos na minha frente. Meu Deus, por favor, permita que não tenham sido as balas da minha arma.

O pipocar dos tiros apresenta intervalos maiores. A fumaça vai baixando lentamente. Em volta só destruição. Corpos imóveis, gemidos de dor. Alguns se arrastam clamando por ajuda. Olho com mais atenção. Somos maioria. Os inimigos se rendem.

Um dos nossos maltrata um dos prisioneiros. Tento impedi-lo e convencê-lo de que são como nós, eles já não representam perigo. O soldado inimigo não sabe a minha língua, mas, parece entender o meu gesto. Ajoelha-se, implora pela vida. Faço sinal que se levante. Ele busca algo no bolso. Fico alerta, mas ele apenas tira uma fotografia. Na imagem uma jovem esposa e duas lindas menininhas com não mais de cinco anos. Eles são desarmados e trancafiados em uma grande sala, escombros de uma escola. Socorremos os sobreviventes, enterramos nossos mortos. Os prisioneiros enterram os seus.

Exaustos preparamos algo para comer. Estava quase esquecendo como é boa a sensação de ficar em pé. Conseguimos até rir um pouco, comemorando a vitória.

Dormi pouco menos de duas horas, chegou o meu turno de guarda. Há ruídos nos escombros à minha frente. Chamo a atenção do outro guarda e seguimos em direção às ruinas de uma casa feita de pedras. Uma granada é lançada em nossa direção. Percebo a luz da detonação e um som surdo impacta meus ouvidos. Só resta a escuridão.

− Comandante! Comandante! Parece que a anestesia local lhe trouxe um pouco de sono também.

− É, peguei no sono mesmo. Conseguiram retirar o estilhaço?

− Sim. Agora só resta mais um. Dê uma olhada em sua radiografia. Mas ele ainda está numa região de difícil acesso. Mais alguns anos e o seu corpo o expulsa.

− É incrível! Passaram-se mais de sessenta anos e eu ainda guardo as minhas relíquias de guerra, os estilhaços daquela granada. Por falar nisso, durante o seu trabalho eu tive o mesmo sonho com as visões daquele dia fatídico. Durante muito tempo essas lembranças me perseguiram mais fortemente. Já fazia algum tempo que isto não acontecia.

− O senhor teve muita sorte comandante. Este estilhaço, antes alojado perto do coração, poderia ter sido fatal.

− Meu companheiro de guarda não teve a mesma sorte.

− Até a próxima comandante!

− Até! Vou esperar o meu neto lá fora, aproveitar um pouquinho da luz do sol.

Neste meu resto de vida tento acreditar que os homens tenham aprendido com os horrores das guerras passadas. O noticiário insiste em me dizer o contrário. Meu neto está atrasado. Acho que vou até a banca de jornal.

− Parado aí, velhinho!

− O que vocês querem?

− Vacilou! Passa a carteira.

− Vocês não têm mais o que fazer?

− Olha aí a carteira do coroa, soldadinho, herói de guerra.

− Você não sabe do que está falando.

− Por que bateu no velho?

− Ele levantou a bengala.

− Tá morto.

− Vaza, vaza! Velhote miserável, só tinha dez paus.





sexta-feira, 9 de junho de 2023

Capuchinho Vermelho Urbano


 

Vera vivia num dos muitos bairros sociais de uma grande cidade. Não era um dos melhores, mas também não era dos piores, os prédios eram relativamente recentes, os moradores eram na sua maioria pessoas trabalhadoras e honestas e os poucos elementos menos “próprios”, digamos, tinham tendência a manterem-se em manada, sem incomodarem os vizinhos.

A mãe de Vera trabalhava, como muitas outras mães do bairro, por isso a menina estava habituada a tomar conta de si, apesar de ter apenas 9 anos. Bom, tomar conta de si é relativo, a escola que frequentava era bem pertinho do bairro, dava para ir e voltar a pé, quase sempre na companhia de colegas ou vizinhas.

Uma vez por semana Vera ia com a mãe visitar a avó materna, que residia num bairro central e antigo, num prédio de três andares e seis apartamentos em que já só três estavam habitados. Depois aproveitavam para fazerem as compras semanais. Era a sua distração semanal.

Ora uma semana a mãe de Vera sentiu-se adoentada e cancelou a saída. Na semana seguinte foi a mesma coisa. E sem que soubessem bem como, passaram-se cinco semanas sem que a fossem visitar.

Vera não conseguia deixar de pensar na pobre da avó, sem ter quem a visitasse ou lhe levasse uns miminhos. E na sexta semana lá conseguiu convencer a mãe a deixá-la ir sozinha. O seu argumento principal é que já era uma menina crescida, não era um bebezinho de seis anos ou até de oito! E conhecia bem o caminho e os transportes que tinha de apanhar.

Conseguida a autorização da mãe, foi a correr comprar uns bolinhos à pastelaria da esquina que meteu, juntamente com um pacotinho de chá e um frasco de compota na mochila Frozen acabada de comprar. Enfiou o casaco novo que a mãe lhe fizera num belo tecido vermelho escuro e que ainda não estreara porque o tempo tinha estado demasiado quente, enfiou o gorro do mesmo tom e as botas de chuva de borracha também vermelhas – era adepta ferrenha do Benfica – e pôs-se a caminho.

É claro que a mãe lhe fez as mil recomendações do costume, não fales com estranhos, não mostres o teu dinheiro (dez euros para as emergências), limita-te a apanhar o metro e o autocarro do costume e sobretudo, não te desvies do caminho: vai direta a casa da avó e volta do mesmo modo.

Ansiosa por sair, Vera disse que sim a tudo, jurou e prometeu e foi de alma alegre e passinhos apressados que saiu porta fora.

A parte inicial até correu bem, havia uma estação de metro perto da escola, era pois um trajeto a que estava muito habituada. E como só recebia um comboio, não havia margem para enganos.

Os problemas começaram quando quis apanhar o autocarro. A rua onde estava a paragem que costumava usar com a mãe estava em obras e não conseguia ver nenhuma indicação sobre o seu novo local ou até se haveria um. Depois de andar um pouco à nora decidiu quebrar uma das regras e perguntar a alguém pelo seu autocarro. As três primeiras pessoas de nada sabiam mas a quarta, uma senhora idosa e carregada de sacos e saquinhos, disse-lhe que também o ia apanhar e que podiam ir juntas, se ela quisesse.

Vera ainda hesitou, mas era uma velhota, que perigo poderia haver? Foram pois lado a lado em amena conversa, ou antes, com a menina a responder às perguntas cada vez mais específicas daquela boa samaritana.

Após umas voltas e reviravoltas lá chegaram à paragem mas aí, com grande espanto de Vera, a até então tão prestável boa alma mudou de atitude e exigiu-lhe “alguma coisinha” por a ter levado ao sítio certo. Felizmente o autocarro chegou naquele momento e a menina conseguiu entrar rapidamente e ir para o fundo, escondendo-se atrás de alguns passageiros.

Foi com enorme alívio que viu, por entre corpos, a saída de quem achara tão prestável umas duas paragens antes da sua.

A sua paragem ficava a uns bons 800 metros da casa da avó, mas não a direito, tinha de seguir por várias ruazinhas estreitas e que subiam bastante. E os presentes para a avó já começavam a pesar-lhe nas costas.

Foi pois um alívio quando um senhor muito bem posto e que seguia na mesma direção parou e lhe perguntou se precisava de ajuda. Esquecendo por completo as recomendações da mãe, disse que sim e passou-lhe a mochila. Mais leve agora, recuperou a energia e foi tagarelando sem cessar durante um bom pedaço, falando sobre a avó, o prédio onde esta vivia e os mimos que lhe levava.

O senhor despediu-se no topo da maior subida, tinha coisas a fazer, disse. Vera agradeceu-lhe e seguiu também ela o seu caminho. Mas como ia sozinha não resistiu à tentação de ir explorar um pequeno jardim público que existia a um dos lados e que a mãe, sempre apressada, nunca a deixara visitar.

Era realmente muito interessante, pequeno mas com duas ou três estátuas bem giras, árvores, muitos arbustos, algumas flores e uma vista magnífica. Encantada, andou por ali a correr e a divertir-se, tendo pousado a mochila sob um banco. Como não havia mais ninguém, achou que não tinha mal nenhum.

O tempo foi passando e Vera até já tinha quase esquecido o motivo de estar ali quando viu, pelo canto do olho, uma sombra em movimento. Virou-se e era um miúdo talvez um pouco mais velho que ela que se dobrara para chegar à mochila. Sobressaltada, desatou aos gritos e por sorte conseguiu afugentá-lo.

Mal refeita do susto, reparou que já era tarde e pôs-se a caminho da avó com o seu passo mais acelerado para cobrir o mais depressa possível a curta distância que faltava.

Chegou finalmente ao prédio, tocou à campainha e como sempre teve de esperar que a avó tocasse no botão de abrir a porta. Esbaforida como estava, deu graças aos céus por o apartamento ser no primeiro andar, uma vez que não havia elevado. A porta estava entreaberta, como de costume, e Vera entrou depois de anunciar a sua presença.

E teve logo uma tremenda surpresa. O senhor gentil que a ajudara com a mochila estava sentado no sofá ao lado da avó, com um ar de quem estava em casa. E segundo parece, estava mesmo! É que a avó apresentou-o como sendo o seu grande amigo, Filipe Alves.

Vera estranhou nunca ter ouvido falar dele, mas como era bem educada cumprimentou-o e deu à avó os bolinhos e outras coisas boas que lhe trouxera.

Mas enquanto a avó estava na cozinha a preparar o chá do costume, Filipe convidou Vera a sentar-se mesmo ao seu lado e toda a sua atitude mudou, tornou-se insinuante, com pequenos toques e insinuações de que passariam a ver-se muitas vezes, que ela era bem crescidinha e muito bonita, enfim, tudo coisas que a fizeram sentir-se desconfortável.

Felizmente a campainha tocou e como a avó estava ocupada, Vera foi prontamente atendê-la. E nunca se sentira tão contente por ver a mãe!

É que esta começara a pensar que a filha viria já de noite e mesmo adoentada fizera um esforço e saíra para a ir buscar. E ainda bem que o fizera.

A cena que se seguiu foi incompreensível para Vera pelo menos até ser mais velha. Mas basicamente, o tal Filipe Alves não passava de um burlão que fazia amizade com idosas solitárias, ficando-lhes depois com a maior parte das poupanças e não só. Pior ainda, havia suspeitas de comportamentos indevidos com menores, apesar de nunca ter havido provas concretas de nada.

Apesar de nada poderem fazer em relação a ele, ficou decidido que a avó de Vera iria passar uns tempinhos com a filha e a neta, para esquecer “o amigo” e que quando voltasse a casa, para além da visita semanal de ambas, iria também ela ao bairro de Vera a meio da semana para estar umas horas com a neta.

Luísa Lopes

Imagem feita com Quick Write





sábado, 3 de junho de 2023

ENTERRO, FINADOS E CHUVA



            “Soluços, lágrimas, casa arrumada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões de água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e trespassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um...”(Machado de Assis, 1839-1908).

         Um a um todos foram ao cemitério naquele dia. Levavam flores e sentimentos diversos. Acordei cedo, olhos ardendo e fui me postar ao lado de um túmulo deserto. Estava terrível e eu fui ficar ali, clandestino, a observar. Não houve enterros, embora tivesse mortos para o dia seguinte. Eu seria um deles, havia deliberado já. No bolso esquerdo a lista de débitos e no outro as fotografias de família. No fim da tarde começou a chuva e o barro e as flores e aquelas pessoas indo embora deixou em mim uma sensação de vazio. Voltei pra casa dizendo até logo àqueles que nada perceberam do seu dia e eram de todo indiferentes à minha presença prevista para amanhã, ou depois...(Milton Rezende, 1962- ?).