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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Evidência

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Fausto e Cecília ainda recuperavam do grande choque que fora a morte súbita do seu amigo, colega de trabalho e mentor Francisco Azevedo. Estavam a elaborar uma sequência de entrevistas de recrutamento, que fora uma das últimas atividades programadas que o amigo deixara.

Há cerca de dez anos que ambos haviam sido recrutados pelo amigo comum para integrarem um enorme e secreto projeto científico financiado pelo estado. A empatia que existiu entre eles desde o primeiro momento, logo desde a entrevista de recrutamento, criou laços inquebráveis e que tornavam agora a ausência ainda mais difícil.

O projeto tinha como objetivo, nada mais nada menos, que a possibilidade de viajar no tempo. Francisco já chefiava uma equipa de cerca de sete cientistas quando contratou os dois. Era impossível desanimar com os retrocessos, porque as conquistas, por ínfimas que fossem, eram festejadas e elogiadas como se se tivesse descoberto o segredo da vida eterna. Assegurava aos companheiros que tinha absoluta certeza de que havia por aí muitas provas vivas das viagens no tempo, só que nós não as reconhecíamos. Muitas vezes, feliz com ele próprio e como ele só, dizia em altas vozes: “Nasci em Montalegre, a terra mais bonita do país, formei-me no Porto, a cidade mais bonita de Portugal e trabalho naquilo que gosto, rodeado dos melhores cientistas do mundo!” Quem poderia resistir a dar tudo por aquele homem?

Ele tinha a certeza de que o objetivo era possível e prometia-lhes que estaria lá com eles para ver o resultado, mas era óbvia para todos a degradação de saúde rápida que o afligia, apesar de ter apenas cinquenta e oito anos. Ausentava-se vários dias para exames médicos e tratamentos no IPO de onde regressava mais macilento e cansado.

Na noite anterior à sua partida, resolveram relaxar um pouco e foram os três para um bar onde Francisco os fez prometer que nunca desistiriam do projeto, acontecesse o que acontecesse. Ele tinha a certeza de que os dois amigos eram cruciais para atingirem o objetivo, que estava muito próximo. Conseguira novo financiamento e iam admitir mais três cientistas para a investigação. Naquela altura, ninguém imaginava que iriam perder aquele homem extraordinário tão depressa e ninguém queria acreditar quando souberam que a empregada doméstica o encontrara sem vida no escritório de sua casa na manhã seguinte.

Organizado e previdente como era, Francisco deixara todo um conjunto de determinações e planos que lhes permitiu facilmente continuar a investigação. Indicou Cecília como investigadora sénior, logo seguida de Fausto, para tomarem o rumo e gerirem o projeto após a sua morte. Não podia evitar, porém, que o desânimo se instalasse e o ritmo de trabalho decrescesse, falho do ânimo e orientação do falecido.

E foi assim que chegaram ao momento atual, os dois cientistas a executar uma das últimas atividades completamente organizada pelo saudoso amigo: as entrevistas para a contratação dos novos investigadores entre os recém-formados das universidades. As candidaturas a entrevistar já estavam escolhidas e tudo. Francisco fizera-os prometer que seriam eles nesta atividade, acontecesse o que acontecesse e que a não confiariam a ninguém.

Fausto estava aborrecido, depois de entrevistarem mais de uma dezena de jovens que variaram entre o petulante e o inseguro, mas todos, claro, sem experiência no campo pretendido. Foi Cecília quem demonstrou mais paciência e confortou o colega, fazendo-o aguentar até ao fim, alegando que tinham uma promessa a cumprir. Até poderiam não escolher nenhum dos candidatos e abrir novo concurso, se necessário, não havia indicações de quem deveriam escolher, nem se deveria ser alguém daquele concurso especificamente.

Chegaram finalmente ao último candidato, não havia mais pastas com processos, mas sabiam que havia mais um jovem na sala de espera. Nesse momento entrou uma das secretárias da empresa que acompanhava o processo e entregou-lhes um envelope A4, fechado, onde estava escrito o nome deles. A funcionária explicou, antes de sair novamente, que foram dadas instruções para que só lhes fosse dada essa pasta quando fosse a última entrevista.

Abriram o envelope, que continha uma capa de processo igual às dos outros entrevistados, mas, ao abri-la, ambos ficaram um pouco confundidos ao ver uma foto do falecido amigo, muito jovem à cabeça do processo.

Simultaneamente, a porta do gabinete abriu-se e um autêntico clone do cientista desaparecido, embora mais novo uns bons anos, apresentou-se:

— Chamo-me Francisco Azevedo, tenho vinte e sete anos, natural de Montalegre e sou formado em Física pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

 

 

Manuel Amaro Mendonça

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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Os três tecelões-de-cabeça-preta

 

Entre duas laranjeiras do quintal, à roda do idoso de longas pernas ossudas, a criançada agitada e saltitante, aos poucos, sossega, para escutar a história que ele vai contar.

«Era uma vez três passarinhos tecelões — uns que têm a cabeça preta, mas o corpo todo amarelo — que ainda viviam no ninho dos pais. Já voavam e já se alimentavam sozinhos, mas ainda vinham todos os dias dormir ao ninho. Ao fim de uns meses, o tempo começou a ficar mais frio e a comida foi ficando mais difícil de encontrar, de maneira que os pais dos pequenos tecelões aconselharam-nos a migrar. Abraçaram-nos, com tristeza, e recomendaram-lhes que, lá na terra para onde fossem, cada um construísse uma casa muito bem feita, que fosse confortável e resistisse ao mau tempo e aos inimigos que quisessem comê-los.

Os passarinhos voaram, voaram e, quando chegaram ao distante país para onde tinham migrado, primeiro alimentaram-se e descansaram um pouco, mas depois deram muitas voltas a voar, para ficarem a saber onde havia mais comida e de que materiais de construção dispunham. Antes de começarem a construir, cada um disse como ia fazer:

Vou fazer a minha casa com hastes de palha na ponta de um ramo frágil — declarou Crispim, o mais jovem.»

A miudagem soltou uma gargalhada. Como parecia tonto o Crispim!

«— Vou construir a minha casa com galhos sobre os ramos grossos de uma árvore — declarou Zé Manel, o irmão do meio.»

Nova risada se fez ouvir. Parecia que a história não era estranha à pequenada.

«— Vou construir a minha casa no buraco de um muro de pedra, largo e forte — declarou Adriano, o mais velho.»

Um rumor de satisfação atravessou a assistência. Adriano, sim, sabia como construir uma casa para resistir aos sopros de um lobo que quisesse comê-los, como na história dos três porquinhos!

«Assim disseram, assim fizeram. Adriano não precisou de trabalhar muito; limitou-se a procurar uma cavidade de bom tamanho num muro grosso, deu-lhe uma limpeza e estava pronta. Do seu buraco soltou um chilreio de satisfação. Zé Manel também se limitou a procurar uma árvore forte, com um espaço aconchegado na ligação de dois ramos, trouxe uma boa quantidade de pauzinhos e galhos para atapetar o chão e deitou-se a assobiar, desfrutando o espaço.»

A pequenada parecia estar a preparar-se para desfrutar do insucesso deste construtor de uma casa de madeira.

«Crispim demorou muito tempo a acabar a sua casa. Fez inúmeras viagens ao chão para apanhar palhas e ervas que entrelaçou na ponta de um galho, de maneira a formar um espécie de bola de feno, com uma única entrada. Por fim, assobiou a anunciar a conclusão da obra. Os irmãos vieram ter com ele, mas não ficaram muito contentes com a casa do irmão:

Isto é muito frágil, Crispim! Se vem uma rajada de vento desfaz-te a casa e leva-a pelos ares.

Foram ver a casa de Zé Manel.

Tem uma bela vista, tem uma base sólida, mas não tem telhado. Pede às nuvens de chuva que não passem por aqui! — brincaram.

A última casa era a de Adriano.

A-ah! Nesta casa não chove, nem há vento que a leve — aplaudiam os irmãos. — Muito bem!

Apesar das imperfeições, cada um já dormiu em sua casa, nessa noite. Mas, de madrugada, Adriano, no seu ninho de pedra, ouviu uns ruídos arrastados. Cheio de medo, foi espreitar à abertura. Quase gelou de terror: uma cobra castanha, com duas riscas pretas a todo o comprimento, trepava pacientemente pelas pedras, dirigindo-se para a toca do nosso amiguinho Adriano. Fugiu dali a sete asas para casa de Zé Manel.

Zé Manel, dá-me guarida, porque uma cobra atacou a minha casa — pediu ele ao irmão.»

O que é guarida, senhor avô? — perguntou um dos pequenos ouvintes.

É abrigo, proteção; um local onde seja possível viver sem perigo — esclareceu ele.

A cobra não podia atacar a casa do Zé Manel? — perguntou outro.

Não sabemos, mas, a árvore era muito grossa e de tronco liso, e talvez a cobra não conseguisse subir.

«De manhã, já esquecidos do susto da noite anterior, puseram-se a brincar naquela casa tão arejada e confortável. A brincadeira atraiu um falcão que passava por ali e desceu velozmente sobre os manos, para os apanhar. Novamente em fuga, só se lembraram de se esconder na casinha de palha de Crispim.

Mano, socorre-nos, porque a casa de pedra de Adriano foi atacada por uma cobra das pedras e a minha foi atacada por um falcão — pediu Zé Manel.

Mas vocês não a acham muito frágil? — disse Crispim com uma ponta de ironia.»

O que é uma ponta de ironia? — quis saber um dos jovens ouvintes.

É uma espécie de troça — tentou explicar o velho.

«Os irmãos, depois dos sustos que tinham apanhado, acharam que a casa do irmão até tinha coisas boas, que ainda não tinham pensado:

À tua casa não chegam cobras, porque o ramo onde ela está presa é muito fino e elas cairiam, se cá viessem — calculou Adriano.

E o ramo não aguentaria o peso dos falcões, se eles cá pousassem, nem conseguiriam entrar na casa — raciocinou Zé Manel.

Crispim mandou entrar os manos e eles ficaram admirados e encantados com a casa, por ser tão confortável. Nessa tarde veio uma grande tempestade, mas a chuva não entrava na casinha de palha muito bem entrançada, e o vento fazia-a abanar e rodopiar, mas ela mantinha-se bem presa ao raminho e aguentou a tempestade.

Nunca pensámos que a tua casa fosse a mais bem construída das três. Pusemos-lhe defeitos, mas é a melhor das que construímos. Desculpa o que dissemos! — disse Adriano. — Vou construir uma como a tua.

Eu também vou construir uma igual — disse Zé Manel. — É mesmo boa.

Na primavera seguinte, foram visitar os pais e contaram as aventuras de como tinham descoberto a casa que era melhor para eles.

Muito bem, filhos! Pode não se acertar à primeira, mas, vocês tentaram e conseguiram inventar uma casa que vos protege dos perigos do lugar, só com materiais da zona. E confortável, o que é fundamental. Parabéns!

Depois destas palavras, os jovens tecelões e os pais cantaram e dançaram felizes. E a partir de então, todos os tecelões-de-cabeça-preta daquela terra distante passaram a construir as casas como a do Crispim.»

E pronto, acabou a história — concluiu o ancião. — Agora, vamos subir, que são horas de almoço.

Não é assim! A história não é assim; é com três porquinhos; e a melhor casa é a de pedra — contestou uma das crianças. — E falta o lobo — lembrou outra.

Esta história não é a dos três porquinhos — explicou, cheio de paciência, o velho, na função de educador de infância da família —; é a dos três tecelões-de-cabeça-preta. Cada animal tem a sua história, e uma casa de pedra pode ser boa para um porquinho, mas não ser para um passarinho tecelão. E uma casa de galhos pode ser boa para uma cegonha, porque as cegonhas são grandes e não são atacadas pelos pequenos falcões. O Crispim teve sucesso porque puxou pela cabeça e percebeu que uma casinha leve pendurada num raminho era a mais adequada para evitar predadores e aguentar tempestades. Vá, todos para casa! Hoje há mosca.

Yeh! — gritaram os pequenos aranhiços, subindo rapidamente para a teia principal, mas dois não pareciam satisfeitos e ficaram para trás:

O que é adequada?

E predadores?

Joaquim Bispo

*

Imagem: Ilustração de tecelões e respetivo ninho. Da net.

* * *





domingo, 23 de janeiro de 2022

BELARMINO DO DEPÓSITO

 

 



 

− Pode dar meia-volta, Belarmino, hoje você não trabalha. Vai descansar a carcaça por um bom tempo. Pode até ficar mais bonito, sabia?

Só de ouvir a voz enfadonha do gerente, Belarmino sente um arrepio. É uma aversão que se avoluma a cada encontro. De repente, vem aquela vontade danada de perder a paciência, mas, talvez por intercessão de todos os santos, desvia o corpo e entra na loja. Se o infeliz imaginasse a angústia que o subalterno enfrenta a cada minuto da vida, se ele vestisse a pele do outro por um dia apenas, não seria tão impiedoso. O sorriso mangador, afetado, há muito tempo está entalado na garganta de Belarmino. Uma hora, isso não vai dar certo.

Empurra a porta do escritório:

− Licença, patrão...

− Entra, Belarmino, senta.

− O senhor vai me dispensar?

− Que é isso, homem? Ficou louco? É o seguinte: recebi orientação de que, a partir de hoje, o empregado que tem mais de sessenta anos deve ficar em casa. É exigência trabalhista, essa pandemia traz muito risco. Vamos obedecer, não é, meu velho amigo?

− O senhor que sabe.

− Pode ficar tranquilo, você vai receber o pagamento e a cesta básica na sua casa. Não precisa sair. Nada de correr riscos. Vai acompanhando as notícias, não demora muito e tudo isso passa. Confia em mim?

− Claro que confio, patrão! O senhor é cópia do seu pai, que Deus o tenha... Direito que nem ele.

Segurando a sacola com a marmita ainda morna, e estranhando inverter o percurso àquela hora da manhã, o empregado obedece. Se bem que sente um alívio gigante de saber que poderá ficar em casa, enfurnado. Sem horário, sem compromisso. E, o melhor de tudo, sem exposição.

Bota fé no patrão, ele tem os mesmos olhos mansos do pai. E o velho Deodato lhe traz saudade. Entrou na vida de Belarmino quando este ainda era moço, num tempo em que ele mais a mãe vendiam ovos com a carrocinha de mão. O velho era cliente. E, quando Belarmino ficou só, já madurão, Deodato ofereceu o trabalho na loja. Na loja, não. No depósito, ao lado. Logo o empregado compreendeu a razão de ser colocado lá. Realmente, não era uma figura agradável de ser vista. Isso não foi falado, foi entendido. Sabia que era extremamente feio. Não só feio, era estranho. Desengonçado, excessivamente alto e magro. As pernas compridas se encontravam apenas nos joelhos voltados para dentro, o que lhe conferia um andar arrastado. Não lento, apenas arrastado. E os olhos eram apavorantes, horrendos. Grandes, desmedidos e saltados das órbitas. Mas Belarmino não era mau, nunca foi. Apenas ressabiado, arisco. Resmungão.

Caminhando em direção de casa, sentia novo ânimo. Teria dias e dias para trabalhar com seus carrinhos de brinquedo. Para estimular a sua intenção, avista ripas de madeira descartadas na lixeira da floricultura, do outro lado da rua. Não pestaneja, cruza o asfalto e junta a quantidade que cabe nos imensos braços. Com isso, o estoque de matéria prima estaria reforçado.

O percurso é relativamente curto, menos de hora. Mérito do velho Deodato. Assim que empregou Belarmino, mediou a venda do terreno deixado pela mãe do empregado e que ficava muito distante, com uma casa de fundos, bem mais centralizada, de quatro cômodos amplos e um quintal acolhedor, sombreado por generosa pitangueira. Esse era o reino de Belarmino, sua guarida.

No quarteirão seguinte, avista um camburão da polícia quase atravessado na rua, o que traz desassossego a Belarmino. É um mal-estar que o acomete sempre que vê alguém fardado. Jamais foi abordado, mas a fala corretiva da mãe ressoa na cabeça: “se não fizer a coisa certa, a polícia prende!”. Um verdadeiro pavor. Ainda mais desengonçado e sem querer saber a razão do cerco, Belarmino procura sair de cena pela esquina mais próxima.

Quando abre o portão e caminha pelo corredor, é tomado pelo sentimento de libertação. Como se grilhões dos pés fossem rompidos.  Até pouco tempo, saía de casa ainda escuro, e só retornava quando o sol desaparecia por completo. Era o último a deixar o depósito. Preferia andar na sombra, a escuridão não exigia acanhamento, livrava-o dos olhares de repulsa ou de piedade. Ultimamente, como por milagre, essa preocupação ficou arrefecida. A idade passou a exigir mais tempo de cama, acordava mais tarde, o sono ficara mais esticado. O mudar de calçada ou o horror estampado nos olhos das pessoas que o avistavam não trazia mais o desconforto de antes. Aquele tormento que abalava as ideias sempre que precisava amortecer no peito um gesto de repúdio, a necessidade de assimilar a abominação, tudo isso passou a ser detalhe de somenos importância. Não deixou de machucar, mas a ferida secava instantaneamente. 

Em casa, retira o uniforme, macacão marrom com emblema da loja de material de construção apenas no bolso. Tem vários, três novos e outros bem usados. Cuida deles no final de semana, lavados e passados com desvelo. Agora, ficarão esquecidos por um tempo. Terá início a era do calção. E da montagem de carrinhos de brinquedo. Sua fábrica terá produção acelerada.

Belarmino trabalha bem com artesanato em madeira. Faz caminhões, carriolas, automóveis, tudo com perfeição. Desde sempre, quando buscava ovos para revenda, no mercadão, recolhia ripas para a sua obra. E, repetidamente, ressoava a voz de reprovação da mãe: “isso é coisa de moleque, não é coisa de homem”. De começo, usava apenas canivete, lixa e tachinhas. Mas, com o fazer constante, especializou-se: faz carrinhos tão caprichados que até as rodinhas giram. Também fazia pandorgas, mas parou. Para que fiquem perfeitas, é necessário usar bambu verde. Bambu seco não dá o mesmo envergamento, o voo não fica apurado. Belarmino já não tem a mesma disposição de buscar bambu pelas beiras das estradas, caminhada que, ida e volta, leva meio dia. Então, deixou de lado.

É morador silencioso, não tem bichos de criação. Coloca o rádio sempre em volume baixo, e a televisão é só para os jogos de futebol.

Quando se mudou para a nova casa, percebeu que os muros laterais, instantaneamente, foram erguidos. As janelas ganharam grades, a vizinhança reforçou a segurança. Aborrecia-se quando ouvia, em sussurros, opiniões sobre ele. Pela figura, todos o viam como louco, perigoso. Protegiam-se uns aos outros, as crianças o olhavam de esguelha, amedrontadas. Mas acostumou-se. Isso já não importava mais.

Enquanto transforma os paus em brinquedos, pensa em qual árvore irá colocar o próximo carrinho. Sempre assim. Terminado um trabalho, ajeita-o num saco plástico, desses de supermercado, e dependura em árvores perto de escola, creche, parque. Alguém encontra o brinquedo e uma criança ganha o presente. Claro que tem vontade de entregar nas mãos de um garoto, mas teme assustá-lo. Além de constrangedor, a criança poderia recusar o brinquedo. Nem pensar.

E, então, vem a lembrança dos colegas do depósito. São cinco. Alegres, fortes, dispostos. Não fossem as piadas grosseiras, Belarmino até poderia ser mais chegado. Se bem que, há alguns anos, ele trabalha na parte de distribuição e controle de estoque. Os oito anos de estudo serviram para que tivesse bom entendimento da escrita, e aprendesse rápido todo o processo de entrada e saída do material da loja. O serviço pesado, de carregar e descarregar mercadoria, já não lhe cabia. Apenas comandava. Mas, por mais que evitasse ficar aborrecido com as brincadeiras cruéis dos companheiros, brotava aquele incômodo recorrente quando, das conversas cruzadas, escapava o som de palavras como: mal-acabado, zé bonitinho, belzebu, belafera, zumbi... 

Um dia, quis saber da mãe a razão de ser tão estranho. Perguntou: “mãe, por que eu sou tão feio?”. A mãe, sem buscar o olhar dele, respondeu: “você não é feio, só é muito parecido comigo”. Esta resposta selou tudo. Nunca mais questionou, nunca mais perdeu tempo com essa indagação. Se era parecido com a mãe, seria amado. Ele a amava, outras pessoas a amavam. A mãe também não era bonita. Tinha o mesmo rosto comprido, traços estranhos, braços exageradamente compridos, mas os olhos em nada se igualavam aos dele. Os olhos da mãe eram pacíficos, um tanto vazios, mas serenos. As mãos eram imensas. Belarmino, quando criança, ficava assustado quando via a mãe carregando oito ovos na mão. E pensava que aquela mão poderia dar conta de cobrir, por inteiro, a sua cabeça num afago. Mas nunca soube, não conseguiu medir, não havia afagos. Mesmo com toda estranheza e secura no trato, a mãe era retidão, amparo. Ele também seria.

E Belarmino amava com serenidade, um amar que o tranquilizava. Amava o velho Deodato, e também amava o patrão. Amava a primeira professora, única pessoa, além da mãe, que lhe segurou a mão. Isso quando o ensinou a desenhar as letras. Professora Izabel foi o anjo que procurou minimizar o terror que brotava no peito dos coleguinhas quando estes olhavam para Belarmino. Eles temiam aqueles olhos esbugalhados querendo saltar do rosto, entendiam como olhos de louco. Além do que viam, era o que ouviam: o filho da “oveira” é doido, cuidado com ele! Mas não era. E provar isso foi a luta de toda uma vida.

O pior acontecia quando, na época de calor inclemente, Belarmino não escapava dos surtos de piolho que se alastravam pelas cabeças da molecada da escola. No sol, as lêndeas prateavam a vasta cabeleira encaracolada do menino. E para a mãe, sem saída, só sobrava o raspar da cabeça. E doía. No couro todo ferido com as constantes picadas dos parasitas, a lâmina discorria feito lixa, deixando a pele quase em carne viva. E, como se fosse possível, Belarmino ficava ainda mais assustador. A cabeça estreita e comprida, totalmente disforme, ficava totalmente exposta, perdia o disfarce da cabeleira.

O último domingo de maio amanhece muito mais bonito que de costume. Belarmino completa sessenta e dois anos, acorda disposto. O dia merece um passeio, o sol não está forte.  Olhando no espelho, percebe que o cabelo carece, urgentemente, do cuidado do Lazinho da barbearia. Aliás, em março, quando seria o combinado, declinou do compromisso. Depois disso, a quarentena chegou e a cabeleira só se agigantou. A barba, propositadamente, deixou de aparar desde que não precisou mais ir ao depósito; cuidado desnecessário, não tem compromisso que justifique o sacrifício.  

Ajeita a casa, prepara o arroz e quando ele está ainda secando, desliga o fogo, embala a panela em duas folhas de jornal e guarda no forninho. Aprendeu com a mãe. Fazendo isso, o arroz ficará aquecido e totalmente cozido. Corta os tomates e a cebola, deixa a salada na geladeira. Retira a vasilha de feijão do freezer e coloca sobre a pia. Quando voltar, o almoço será finalizado num instante.

Escolhe a bermuda mais nova, a camiseta tricolor, calça chinelos, ajeita a carteira no bolso com documentos e dinheiro suficiente para, na volta, comprar um frango assado. Se encontrar... Mais uma vez, não era uma figura bonita de se olhar, ainda mais com a profusão de pelos da barba e do cabelo. Sim, era estranho, um quê de assustador.

Antes de sair, o mais importante: coloca cuidadosamente um carrinho de madeira na sacola plástica, mas não sem antes admirar a beleza do brinquedo. Perfeito!

Confere o fogão desligado, janelas fechadas, passa a chave na porta.

Hoje quer andar. Caminha em direção contrária daquela que sempre segue. E tem tanta coisa para olhar. Lugares diferentes, casas diferentes, pessoas diferentes. 

Sente-se tão satisfeito, tão absolutamente em paz, que nem percebe o rosto das pessoas com as quais cruza. Se percebe, não revela. Mas nada mudou. O trocar de calçada, os olhares piedosos, os arroubos de aversão, a apreensão no desviar de corpo, o temor por um ataque. Tudo tão visível até para os menos avisados. Mas Belarmino releva. Hoje não vê. Ou não quer ver.

Depois de mais de hora caminhando, chega numa praça enorme, arborizada, entre o colégio e a igreja.

Com a sacola plástica na mão, senta-se num banco mais isolado. Há muita gente na praça, contrariando as orientações das autoridades. As gangorras não sobem e descem, não há o vaivém dos balanços. A área dos brinquedos está toda abraçada por fitas pretas e amarelas, acesso proibido. Apenas os triciclos das crianças se esbarram. Um amontoado de vozes, gargalhadas e gritos alegres das crianças. Nada de pipoca, sorvete, balões coloridos.

Apenas um menino, infringindo a regra, está na areia. Só ele. Belarmino aperta nas mãos a sacola com o brinquedo. Sente vontade enorme de, pela primeira vez, entregar um brinquedo assim, olhando para a criança. Mas teme que o menino fique assustado, que chore.

Procura um banco mais próximo dele. Precisa de tempo para tomar coragem.

Em nenhum momento percebe o olhar enviesado dos adultos. Nem se preocupa com isso. Está maravilhado. Finalmente irá entregar nas mãos de uma criança um brinquedo feito por ele. Deseja ver o sorriso, sem susto.

Sem que perceba, os adultos começam a se juntar em conversas paralelas. Ele não vê. Aos poucos, as crianças vão sendo levadas pelos pais, pelos avós...  E houve quem acionasse o guarda da praça e, então, uma viatura policial chega.  

Belarmino só percebe algo estranho quando a mãe, bruscamente, retira a criança da areia.

E então vê, na sua frente, o policial com uma arma apontada para o seu peito.

− Você é louco, homem? Como se atreve a chegar perto da criança? O que quer com ela?

− Não, eu não sou louco...

− Largue a sacola no chão e ergue os braços, vamos!

Desesperado, Belarmino obedece. Solta a sacola no chão e começa a erguer os braços. O pavor sem medida quase o paralisa, os braços pesam. Sente a cabeça rodar, pensa na mãe, no velho Deodato, no patrão... Quer ajuda, precisa de ajuda. Mas, ali, não tem ninguém. Atormentado, num repente, gira o corpo e tenta correr. Só escuta um tiro.

 


          Regina Ruth Rincon Caires

 

 

 

 





quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Bichinho

 


Ah, se eu pudesse voltar atrás. Dizem que não se pode chorar pelo leite derramado. Mas o leite, a nossa seiva, entornou pelo fogo quente, abrasador, entre mim e ela. A verdade é que inventei esse diário, com cara de confessionário, para delatar os meus tormentos atuais, já que meus amigos não suportam mais me ouvir. No dia seis de fevereiro, Jussara aprontou a boa: comprou um apetrecho absurdo, incomum, e o apelidou de “o meu bichinho”. Ela falou, com a autoridade de uma pervertida, que o bibelô seria “para conter ou aplacar a sua carência”. Aí eu perdi o tino. “Como assim, para ‘a sua carência’?!”. Ela levava-o para passear pela casa, feito um lindo mascote. Não foram poucas as vezes que o vi no móvel da sala, no armário da cozinha – e, o pior, na mesa de jantar. Como poderia uma senhora casada desfilar com um objeto horroroso, em flagrante crime contra a moral e os bons costumes?! Bem, Jussara Rebouças, a digníssima, não estava nem aí para as minhas impressões. Extrapolava os limites de minha bondade; abusava, essa é a constatação. De fato, eu teria motivos para questionar e mesmo brigar pelo respeito e a honra do nosso lar. Senti-me completamente afrontado, como sendo um santo de gesso, imobilizado, sem vida. O objeto roliço, envergado e comprido, ficava nas vistas de quem tivesse a ousadia de enfrentar a balbúrdia – ou sodomia – que era o nosso quarto; este, nos últimos tempos, servia somente às demandas de Jussara – eu, por leal à minha consciência, dormia na sala, quase sempre. Ela sequer tinha apreço à decrépita de sua mãe, a senhora Augustina, que, quando viu aquele troço, perguntou, a coitada, se era um desses enfeites modernos, e a filha, com a maior cara de pau, confirmou que sim. Não para por aí: a nossa diarista, uma mulher de princípios, idosa e crente, era obrigada a topar, também, com aquela indecência. O que eu fazia, para amenizar o choque, era jogar alguma roupa ou um artefato maior, para que o cobrisse. Mas não havia muita escapatória; dona Leonina catava tudo que estava fora de lugar e colocava onde lhe conviesse – ainda bem que não enfiou o maldito objeto num canto inapropriado. Vergonha mesmo passei quando minha irmã, a Laura, veio nos visitar – numa das duas ou três que o faz por ano. Eu estava atulhado de serviço e me concentrei o dia todo para dar cabo do trabalho. Não discernia coisa alguma, de tão cansado. Aliás, achava a visita de minha irmã algo despropositado e fora de hora; mas, infelizmente, não tive como mudar o fado. Às 16h30min, como combinado, o interfone tocou. O porteiro, seu Desasis, pediu autorização para que deixasse a minha irmã subir – por um segundo pensei se seria conveniente. Laura apareceu toda espalhafatosa, nos mesmíssimos modos de sempre. Trazia uma musse de limão e um bolo Luís Felipe – os doces de que mais gosto. Ela sabe me agradar. Para a cunhada, arreganhou um sorriso antes de entregar-lhe uma “joia”; “uma lembrancinha de Portugal”. Ah, como a Jussara ficou feliz. Não sabia onde colocar a cunhadinha. Logo foi experimentar os brincos e a gargantilha, e brotou na sala, demandando a minha aprovação: “Estou linda, amor?!”. Respondi logicamente que sim, com um certo enfado por ter de participar e presenciar aquela situação toda. Enquanto elas conversavam, eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse me despachar do entulho que atravancava o meu dia – como disse, terrível e custoso. Num momento de distração, Laura se levantou e disse que não precisávamos nos preocupar, que era de casa e que iria se servir. Logicamente concordei. Mas, quando se encaminhava para a cozinha, avistei o objeto do tinhoso em cima da pia. Corri feito um guepardo, ou mais rápido, e bati no troço para que caísse na lateral, entre o fogão e a parede. Não deu muito certo, porque ficou entalado, percebível para olhos curiosos – o caso de minha irmã. Ela disse: “Acho que você derrubou alguma coisa, Lúcio, deixe eu pegar”. “Não, não. É somente uma porcaria que irá para o lixo. Não precisa se preocupar”. “Ah, não, faço questão!”. Sim, ela me afastou com bastante força, meteu a mão no buraco do tatu, sentiu e viu o que não devia. Foi o maior alvoroço; Laura é mais puritana que eu. Ela gritou, apavorada: “O que é isso, Lúcio!? Que pouca vergonha! Eu pensei que andava em casa de gente direta. Assim não dá. Eu me recuso a ficar aqui, nem mais um segundo! Não adianta se explicar!”. Pronto, o estrago estava feito: a bendita espalharia – como de fato sucedeu – para os confins de nossa família moralista, a mais nobre estirpe alencarina. Foi um deus nos acuda. Não sabia onde enfiar a minha cara. E, para completar, a senhora Jussara ria alto e, pelo visto, se deliciava com a situação. Eu tenho para mim que toda essa confusão foi proposital, criada para contrariar e agredir a moral do meu clã. Jussara já havia me confessado que não estava nem aí para o que pensariam; que faria o que bem entendesse, porque teria passado da idade de “dúvidas e frescuras”. Quando a poeira baixou, falei, vomitando toda a ira guardada, que Jussara era canalha, cretina e imbecil; que merecia ser execrada, e que, por mim, deveria se ferrar. Magoada, Jussara pegou a sua malinha, enfiou o maldito objeto e mais uns outros, que nem ao menos sabia de suas existências, e partiu rumo ao infinito incógnito. Hoje vejo que talvez tenha exagerado na repreensão. Ela só queria ser feliz com o seu “bichinho”. Claro, eu não nutria a mínima afeição ao tal utensílio, mas seria capaz de aturá-lo para ter de volta o meu amor. Quem sabe, ela nem precise mais de mim. Pode ser que eu tenha perdido para a minha inabilidade e para a dormência dos instintos. Fracassar para um troço vagabundo de plástico é a minha maior dor. Antes tivesse feito uma dessas cirurgias moderninhas, já que está na moda, e colocado uma prótese no lugar, se era isso que a satisfazia. Ah, excelente ideia, farei esse sacrifício para a glória do meu casamento, como um presente e um pedido de desculpas. Ela vai adorar.





segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Quando as nuvens fazem sexo - poema de Piera Schnaider









                                Quando

                                as nuvens

                                fazem

                                sexo

                                deus até

                                sai

                                de perto

                                um relâmpago

                                basta

                                e começa

                                o universo







Do livro Água Viva, Padê Editorial





                                  





quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O Jovem e a sua Morte

 

O jovem e a sua Morte

 Um vírus, uma bactéria ou alguma coisa desconhecida atirou Fernando Jorge para o hospital e a seguir para o leito de morte.

O infortúnio atingiu o jovem e promissor modelo. Em cheio, e de um dia para o outro. Foi de repente. Vendia saúde dizia-se à boca cheia. Ainda na véspera, antes de cair à cama, passeou a sua esbelta figura pela passerelle e pelas vistas de um número cada vez maior de admiradoras e de invejosos. Encarnava a figura mítica de um Deus do Olimpo, um Apolo. Ainda muito novo e já o seu porte atlético chamava a atenção, não deixando ninguém indiferente.

Muitas vozes auguravam-lhe um bom futuro, quer na área do cinema ou na passagem de modelos. Estes ou outros futuros desmoronaram-se naquele repente. Agora, ali deitado, aguardava sem saber se a maldita andava por perto ou se ainda estava longe. A única certeza que tinha é que ela já vinha a caminho.

Abandonado pela sorte enfrentava sozinho a inevitabilidade do destino. Para matar o tempo ia desfiando as memória e também as ainda não memórias que, apesar de ainda não terem acontecido, há muito que ele as ia projectando na sua vivência. Sempre fora um sonhador e mesmo com a sinistra espada a pairar sobre a sua cabeça continuava a sonhar, sabendo embora que eram fugidios sonhos. Já nem os tentava agarrar com sempre fizera, porque também eles se tornavam cada vez mais escorregadios. Deixava-os correr à desfilada.

Naquele fatídico 2 de Novembro ouviu a portar ranger e sentiu uma sombria sombra a vir na sua direcção estava ele no começo de um sonho. Parou de sonhar e viu que a intrusa se tinha quedado a sete palmos da sua cabeceira. Conheceu-a de imediato.

− Já me vens buscar? – perguntou-lhe.

− Já. Sei que estás preparado para a longa viagem. – respondeu-lhe Ela

− Como é que tu sabes se não falaste nunca comigo.

− E preciso de te falar? Conheço-te tão bem quanto me conheço a mim. Vivo contigo desde o dia em que nasceste e fui sempre a tua companheira de todos os momentos.

− Como assim?

− Como assim? Eu sou a tua Morte, nasci contigo.

− Então estás bem enganada eu nunca estive totalmente preparado. Há um quê em mim que nunca aceitou a tua maldição. Acho que vens cedo demais. Ainda não te aguardava hoje. Estava à espera de um pouco mais de tempo.

− Que te serve teres um pouco mais de tempo? Já não o vais aproveitar.

− Tenho um sonho entre mãos. Será talvez a minha última tarefa.

− Talvez. – pensas tu.

Um pesado silêncio abateu-se sobre o quarto.

− Porque me escolheste para fazer essa longa viagem? Podias ter escolhido outro mais velho. Esse teria já os seus sonhos cumpridos. Eu ainda tenho muito para dar à vida.

− Não posso escolher outro qualquer, esse direito está-me vedado. Só te posso escolher a ti. Como já te disse… eu sou a tua Morte.

− A minha morte? Então tu não és a mesma para todos? Toda agente morre.

− É verdade, mas cada um tem a sua própria companheira a levá-lo.

− E o que é que te acontece quando eu partir? Ficas sem a tua essência e passas a andar por aí sem qualquer sentido?

− Boa pergunta. Sei que és um jovem inteligente, porque já te acompanho desde que nasceste. Partirmos juntos para fazermos o mesmo caminho. Tu e eu fomos únicos durante a vida e seremos únicos depois de ela acabar.

− Então desapareces comigo. Dito de outra maneira: finas-te ao mesmo tempo que eu.

− É verdade.

− Há várias coisas que eu não percebo. Se desapareces quando eu morrer, porque é que me levas tão cedo. Estás farta da vida ou melhor, estás farta de ser a Morte? Afinal quem decide a hora da de morrer? Porque morrem uns tão cedo e outros vão-se tão tarde?

− Cada uma decide conforme as suas conveniências, o seu gosto de estar mais ou menos tempo, de um mau humor repentino, em suma, depende.

− Queres tu dizer que deixamos este mundo ao acaso de um capricho?

Ouviu-se um silêncio de morte.

− Uma Morte feliz e bem-disposta deixa o seu o mortal viver por muito tempo. Pelo visto eu tive azar e calhou-me na rifa um mau prémio. − continuou o jovem

O silêncio voltou a instalar-se definitivamente no quarto.

− E sabes ao menos para onde vamos? – perguntou o jovem.

− Não. É a primeira vez que vou morrer contigo.

− Então, o melhor é ampararmos um ao outro.