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domingo, 28 de agosto de 2016

SOBRE CANSAÇO E ESTESIA

Esses dias, disseram duas coisas interessantes a meu respeito. A primeira sentença foi: “Você só defende a causa de outras minorias, que não a sua, porque gosta de chamar atenção”. Quase uma semana depois, coroaram-me com outra definição sobre a maneira com a qual me afirmo diante do mundo, tão emblemática quanto a primeira: “Seu ativismo pela causa gay já está ficando cansativo” (Leia-se “gay” como todas as outras orientações que fogem do modelo heteronormativo, cissexual).

É bom deixar claro que essa necessidade patológica de chamar atenção não é algo que surgiu com meu engajamento político pela causa das minorias. Isso vem de muito tempo, lá da minha infância. Como eu era um garoto extremamente afeminado, uma bichinha fechadora, parecia importante para o bem-estar geral que eu me tornasse invisível. Leonino, fabuloso e artista nato, acabei frustrando as expectativas daqueles que me queriam, desde cedo, socialmente lobotomizado. Eu adorava aparecer! Brincava de aulinha e casinha, fazia desfiles, criava números musicais e teatrinhos onde eu brilhava vestido como doméstica ou como rainha. Claro que eu também brincava de polícia e ladrão, jogava bila, soltava raia, fazia papéis masculinos nas peças que apresentávamos em minha rua, mas todos só falavam de minhas indiscrições femininas, de meu gosto por tudo aquilo que pertencia a um gênero que não me era próprio. Sou muito orgulhoso da criança que fui. Pois, apesar de ter escutado muita coisa ruim, recebido apelidos humilhantes e apanhado no colégio e em casa, nem por um instante pensei em abrir mão da bichinha louca e maravilhosa que eu era. Que ainda sou. Talvez com menos brilho e graça que em minha infância, mas ainda há muito daquela criança atrevida e desinibida em minha mise-en-scène.

Hoje, gosto de aparecer por outras razões. Apareço porque minha ausência seria uma omissão, uma covardia.

Namoro há quase cinco anos com um cara que se tornou o melhor amigo de meus pais. Sua família, hoje, também têm uma relação maravilhosa comigo. Acredito que meus irmãos e amigos aprovem nossa deliciosa pouca vergonha. Os vizinhos, até mesmo os religiosos e mais conservadores, também não parecem muito incomodados por sermos um casal e vivermos na mesma rua que seus filhos e netos. Enfim, pareço ter uma vida tranquila.

O problema é que nem de longe eu quero ter uma vida tranquila. Não enquanto essa tranquilidade da qual gozo não for direito de todos. Hoje, se chamo a atenção, se milito não só em causa própria, mas também pelo empoderamento de todas as minorias marginalizadas neste país, é porque a empatia e a estesia que movem minha alma de homem, amante, sonhador, artista, gay, livre pensador e escritor, não permitem que eu me atreva a agir como se o mundo em que vivemos fosse semelhante ao da canção de Benito Di Paula, onde “tudo está em seu lugar, graças a Deus”. Nada está em seu lugar, senhor Di Paula, quando o que nos faz ficar em nossos quadrados é a opressão e a negação: duas forças complementares que qualquer vítima de intolerância conhece muito bem. Não posso me dar ao luxo de silenciar por opção enquanto outros silenciam por proibição, alienação ou inibição. Seria, no mínimo um gesto de deslealdade com minha própria humanidade.

Lésbicas, negros, gays, pobres, bissexuais, feministas, travestis, menores marginalizados, transexuais, ateus, transgêneros, umbandistas — e todos os que não se ajustam à cultura de opressão enraizada e institucionalizada em nossa sociedade — são vítimas de perseguição histórica, não têm folga nem sequer por um instante, e nós é que somos cansativos?! Somos espancados, assassinados, excluídos, escutamos insultos há séculos e tem gente que já se cansou das vozes que se levantaram, aos milhões, apenas neste século?! Ah, não! Não se canse agora! Ainda há muito a ser dito. Ainda há muito a ser reparado. Ainda chamaremos muita atenção, até que possamos nos olhar uns aos outros e, em nossa multiplicidade e diversidade, nos identificar como iguais.

Daí, então, quem sabe, eu fique quietinho na minha e você possa descansar do peso que deve ser jamais ter lutado por nada.

Emerson Braga





sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Foz

Era um menino tão nada
Aquele

Pezinho de barro
Descalço no aterro
Erro de pai e mãe
Reza de vô e vó

Fiapo de gente
Palpava a estrada
Vozinha esgarçada
Rogando desculpa
Os braços gravetos
Cingindo o sustento

Mas um quê de sublime havia
Nele

Algo que não se ensina
De alguma forma o movia

Ele acreditava
No estudo
Na lida
Na arte
Leitura da vida

Iluminava o caminho de esforço
E ia

Qualquer desdita perpasse
Nada corrói sua graça

Orgulho de pai e mãe
Grato ao menino que foi

Qual foz
Qual deus

Um homem bem tudo
Tornou-se


Maria Amélia Elói





quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Para além do confessável



Quando o padre Vicente entrou na barbearia, temeu por um momento que não fosse conseguir cortar o cabelo antes da missa das seis: na cadeira do “tio” Matias estava o presidente da Junta, e à espera estava o secretário, mas depressa percebeu que este não vinha para cortar o cabelo; simplesmente acompanhava o chefe para todo o lado.
Boa tarde, meus senhores! — cumprimentou.
Boa tarde, senhor padre! — responderam os três em coro.
Sentou-se num dos bancos forrados a napa que se alinhavam voltados para a majestosa cadeira onde os homens se vinham libertar de sumptuosas melenas, quando se tornavam demasiado rebeldes para aceitar o pente. No rádio acabara de cantar Artur Garcia e anunciava-se Suzy Paula.
Então, senhor padre, já está ambientado cá à terra? — perguntou o presidente.
O padre Vicente tinha sido colocado em Leirosa do Côa havia pouco mais de um mês e quase só conhecia o pequeno grupo que ia à missa. Ainda não tinha atingido os trinta anos, era alto e rosado, e não vestia batina.
Sim, já conheço bastantes paroquianos, alguns até em confissão. Já se confessaram este ano? — inquiriu, com um prazer pouco católico.
Lá havemos de ir, senhor padre! — respondeu o presidente, prazenteiro. Era um homem na casa dos sessenta, um pouco anafado, de cabelo ralo e nariz abatatado. — Todos os anos, pela Páscoa, me confesso. Eu e aqui o meu secretário, não é verdade, Simão?
O visado acenou que sim, subserviente. Teria quarenta e poucos anos, usava o cabelo liso com brilhantina e trazia um fato às riscas.
Mas isto é uma terra sem pecados — carregou o presidente, enquanto o barbeiro se esmerava no recorte da orelha direita. — Aqui é tudo boa gente, sem cobiça, sem luxúria. Olhe, aquela que ali vai, a dona Clotilde, não deve ter mais de cinquenta anos; ficou viúva há uns quatro anos e nunca mais se lhe conheceu homem, ou sequer interesse por eles. Passa a vida na igreja. Às vezes, até gostava que houvesse mais movimento, para a gente ter de que falar, sem ser só de caça. A propósito, o senhor padre não caça? — rematou, com muita malícia na entoação. — Há por aí umas coelhas…
O secretário e o barbeiro riram-se, mas com pouco à-vontade, devido à inconveniência do presidente da Junta. O padre também riu, e sem cinismo.
Há muito tempo que a minha alma e o meu corpo pertencem à Igreja. Sou homem, reparo quando uma mulher é bonita, mas estou comprometido com algo maior e só aos seus encantos me dedico — acentuou, numa meia verdade. Fazia parte do saber viver do relacionamento social.
Ah, senhor padre, contam-se muitas histórias de padres e saias. E não são batinas. Ali na aldeia de Trevez correram com o de lá, há uns cinco anos, porque andava metido com a governanta, o desavergonhado. Levou uma sova!
Há sempre ovelhas ronhosas em todos os rebanhos. Por mim, espero ficar aqui por muitos anos, com o respeito de todos, que já vi que estou entre gente honrada.

Sentada numa das filas da frente da igreja, dona Clotilde observava o Cristo crucificado de tamanho natural, que estava em fundo, sobranceiro ao altar-mor. Os seus olhos percorriam os músculos das pernas, magras como as do seu Albano, que Deus tinha. Custava-lhe muito a viuvez. Nenhum homem se tinha aproximado, a não ser o untuoso do presidente da Junta, com umas insinuações porcas. Ela própria também não se mostrava acessível. Tinha muitas saudades, mas do seu homem. Recordava-o, ao olhar este Cristo: o mesmo corpo ossudo, a barba, uma certa expressão de abandono. Ficava horas esquecidas a percorrer-lhe o corpo com o olhar. Em momentos de maior desvario, imaginava que o abraçava, indefeso, e lhe arrancava o pano que a separava de algo tão indefinível que só se reconhece quando se volta a experimentá-lo. Louca! O mais perto que conseguia chegar desse algo indefinível acontecia quando, antes de adormecer, se persignava interminavelmente com o crucifixo, em que um Cristo em tudo igual, só que mais pequeno, abria os braços de impotência perante tal carência. Elevava-o ao rosto, aos lábios, beijava-o: “Em nome do Pai”; baixava-o até ao ventre, a rojar sempre um pouco mais abaixo, a cada descida: “do Filho”; roçava com ele os peitos, por cima da camisa de dormir: “do Espírito… Santo”.

Pouco depois, de cabelo cortado e pescoço escanhoado, o presidente abandonou a barbearia do “tio” Matias, seguido pelo secretário. O padre Vicente sentou-se, pediu só uma aparadela, e daí a pouco estava na igreja.
Dona Irene, a esposa do presidente da Junta, veio pedir-lhe para se confessar. Era uma paroquiana muito bem arranjada, de uns cinquenta anos. Como ainda faltava quase meia hora para a missa, o padre acedeu. Pôs a estola e sentou-se no confessionário. Do outro lado da grelha, a senhora, em vozinha sussurrante, pediu perdão dos pecados e começou a estender um rol dos atos que vinha a praticar com o seu homem e que ela temia que fossem pecados da carne. Pormenorizava o que ele fazia, como fazia, com que vagares. O padre Vicente, envolvido pelo perfume floral de dona Irene, ia ouvindo a confissão num fluxo morno ciciado junto ao seu ouvido, tentando avaliar se a paroquiana era culpada de luxúria ou tudo se devia ao cio do marido. Foi a voz suave de dona Irene que se encarregou de o elucidar: queria confessar tudo, porque se sentia culpada de ter gostado e de ter colaborado com entusiasmo. “Perdoai-me padre, que eu pequei”, pedia. O sacerdote observava o rubor do rosto da pecadora, os lábios cheios, o suave arquejo do peito generoso. Concluiu pela condenação: vinte pai-nossos.

Dona Irene sentou-se na sua cadeirinha almofadada da primeira fila e esperou pela missa, enquanto cumpria a penitência. Sentia-se mais aliviada. Tinha confessado tudo. Ou quase. Tinha descrito as partes mais escabrosas, mas dissimulara com quem praticara os atos confessados. Não tivera coragem de contar que, todas as quintas-feiras, enquanto o marido ia à reunião com o presidente da Câmara, na cidade, ela se encontrava com o secretário Simão, num anexo da Junta. Por outro lado, cedera ao prazer mórbido de se alongar em pormenores, para ver a reação do jovem padre. Pressentira a sua perturbação, o que, inexplicavelmente, lhe agradara.

O padre Vicente disse a missa um pouco inquieto. Não que duvidasse da sua vocação, mas aquela vozinha insinuante reavivara-lhe algumas memórias gratas de adolescente. Quando chegou o momento da comunhão, dona Irene encabeçou a pequena fila de comungantes. Ajoelhou à frente do padre, entreabriu a boca, pôs a língua ligeiramente de fora, estendeu um pouco o rosto para a frente e fechou os olhos. O padre, sugestionado, pensou reconhecer nesta visão uma das peripécias lúbricas ouvidas há pouco em confissão, mas mal hesitou: pegou na hóstia branca e, com calma forçada, depositou-a na língua húmida e rosada da cativante paroquiana. Logo a língua se recolheu com a sua preciosa carga, como se recolheu dona Irene à sua cadeira, de cabeça humildemente baixa, tentando não morder o que era para manter na boca até se liquefazer.

Acabada a missa, o padre Vicente refugiou-se no seu pequeno reservado da sacristia. Depois de, em gestos rápidos, retirar os paramentos, sentou-se na cadeira da escrivaninha e abriu a sua Bíblia, de onde retirou um “santinho”. Era uma reprodução de uma “virgem do leite” do pintor Frei Carlos, que ele procurava em momentos de maior perturbação, desde os longos tempos de desamparo do seminário. Reviu o rosto adolescente da imagem, o olhar inocente, a boca onde parecia aflorar um sorriso compreensivo. Demorou-se a contemplar o seio da Virgem, que esta apertava, e do qual jorrava um fino esguicho de leite em direção à boca do menino, da qual escorria em veios brancos pelo queixo. A estampa, talvez pela assumida carnalidade, desencadeava sempre um movimento da sua alma, desta vez potenciado pela visão da boca recetiva de dona Irene e dos seus dois dedos a introduzirem nela o corpo de Cristo, com a mesma delicadeza com que agora seguravam o seu corpo e, mentalmente, repetiam o mesmo gesto. A comunhão de corpo e alma com o divino não tardou. Em arrebatamento. Em ausência de si. Em transcendência. Deus atingia-se de muitos modos.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Peter Paul Rubens, Crucificação, 1610–11.

(Este conto integra a coletânea resultante do concurso literário do site “Ora, vejamos…”, de 2009, com o título “Algo indefinível”.)

* * *





quarta-feira, 24 de agosto de 2016

TROVA PREMIADA EM SANTOS (SP)






sábado, 20 de agosto de 2016

O QUE O CORAÇÃO MESTRE MANDAR

Acorda, se apruma, se banha, se apronta, deixa a vaidade pra lá.
Veste a melhor roupinha, engraxa o sapato, dá um jeito no cabelo e vai.
Faz o que seu coração mestre mandar. Estufa o peito, olha a vida de frente,
não espia de lado, ninguém vai notar. Não esconde a dor, escancara o destemor,
empina esse amor e sai como entrou. A vida é um jornal do dia seguinte.

Arivaldo Rolim Bustamante, professor doutor em pediatria,
esgarçou o mais que pode seu desejo atormentado de transgredir, mas enfim,
rendeu-se à sedução do Hot Night. Já passava das 20 horas,
quando o pianista Rui Suave dedilhou as primeiras notas de um samba-canção,
sem antes acender um recorrente Caporal Amarelinho, que dava ao ambiente um ar esfumaçado,
sem crime iminente, sem detetives vestidos de capa e chapéu de Humphrey Bogart.
O Dr. Arivaldo por precaução entrou vestido assim, mesmo sem chuva lá fora.
Mais parecia egresso das telas dos cinemas da moda, na tentativa de não ser
reconhecido por um ou outro aluno da Escola de Medicina, jovens bem-nascidos de
testosterona em riste, noivos durante o dia e fornicadores à noite,
como ditavam as boas maneiras vigentes. Dr. Bustamante permaneceu pouco tempo
incógnito e misterioso no Hot Night, despertando atenção de moçoilas e do garçom discreto.

- Uísque, senhor?
- Copo longo com muito gelo, por favor.

E mais não disse. Ficou enrolando dedo no copo, bebericando vez ou outra,
renovando as doses e esquivando-se das oferecidas que ameaçavam sentar à sua mesa solitária.
Algumas mais assanhadas faziam menção de se esfregar à sua coxa vestida de linho escuro
e enrolar os braços na sua capa Burberry, para sentir no toque a qualidade do freguês.

- Por favor, minha filha, agora não.

Dr. Bustamante, apesar do semblante carrancudo por fora, exultava por dentro.
Nunca imaginou que tivesse tomado coragem para conhecer o bas fond,
desejo enrustido de anos e anos de austeridade e respeito à família:
a senhora Dirce e suas três filhas adolescentes, que naquela noite estranharam o
adiantado da hora e a cadeira vazia na mesa do jantar.  A mãe balançou um sininho
e ordenou à copeira Benedita que servisse a sopa, mesmo com a ausência do patriarca.

- Seu pai deve ter tido emergências no hospital - comentou com as filhas silenciosas.

À chegada do pote de ambrosia à mesa, ouviu-se um rude abrir de porta.
Dr. Bustamante surgiu à sala cambaleante e desgrenhado, capa na mão e chapéu torto,
escorando-se no espaldar da cadeira. E passou o recado com a língua pastosa
e um sorriso jamais visto.

- Já jantei. Boa noite.

A mulher e as donzelas se entreolharam. A senhora Dirce fez um comentário,
que de tão sincero, saiu em voz alta.

- Nunca vi o pai de vocês assim.
- Nem eu! 

Tal grito sarcástico veio do alto da escada, quando o Dr. Bustamante já estaria
alcançando seus aposentos. Todas se levantaram da mesa e entregaram-se aos seus afazeres
– leitura, bordado, piano ou ouvidos na Rádio Nacional, preferindo ignorar a circunstância.
Benedita recolheu o prato vazio do patrão e, de rabo de olho, observou a expressão de
contida contrariedade da Senhora Dirce. Não fossem os roncos inusitados do professor doutor,
a noite teria transcorrido como outra qualquer e quando o dia amanheceu a
rotina da casa se restabeleceu.

- Bom dia, queridas. Não posso me demorar no desjejum.  O risco de uma epidemia está alvoroçando o hospital e à tarde meu consultório estará cheio de criança tossindo. 
Com licença.

A sua segunda entrada no Hot Night, com o mesmo disfarce de Bogart, aconteceu
mais cedo que o dia anterior. Estava ansioso em voltar àquele lugar,
que lhe teria devolvido a alegria de viver. Dessa vez algumas doses de uísque
extras lhe encorajavam a uma experiência mais audaz.

- Pode sentar, minha filha. E me dê a honra de aceitar um drink.

Contrariando sua cartilha, a moça que se ofereceu era uma mulata franzina,
mãos longas e dedos finos, que terminavam em unhas de esmalte da cor do batom dos lábios carnudos.
Havia algo que descia da cabeça, cujo efeito do uísque sugeria madeixas louras, contrastando com
o achocolatado da sua pele. Dr. Bustamante agradou-se.

- Diga o seu nome, minha filha.
- Matilda, sim senhor.
- Por favor, sem o senhor. Me chame de Ari.
- Ari? De Ari Barroso?
- Exato, Matilda. Ari de Ari Barroso, minha mulata isoneira.

Matilda abriu um sorriso largo, de dentes alvos como chantilly num café forte.
A cada dose de uísque esquentava o encontro. Se Dr. Bustamante se revelava um galanteador aventureiro,
Matilda se surpreendia com um homem de meia idade encantador, algo raro naquele fim de mundo esfumaçado.
Os passos seguintes, já tronchos pelo descontrole dos pés, os levaram de taxi a um hotel de baixa tarifa:
jogaram-se na cama como não houvesse passado ou futuro, só a eternidade daquele momento regia o movimento
dos corpos, descobrindo-se a si próprios, banhando-se em afeto, prazer e sinceridade, e deixando-se
limpar das impurezas das regras e dos preconceitos.  Claro que naquela noite Dr. Bustamante extrapolou.

- Estamos debelando o risco de uma epidemia muito severa, Dirce. 
Por isso passei a noite no hospital. Hoje prometo me dedicar à família.

A senhora Dirce engoliu a desculpa, mas como boa esposa, mandou Benedita providenciar
galinha assada com arroz de forno para que o marido esquecesse as agruras do ofício.
Os momentos foram simpáticos. As filhas recitaram poemas em francês, a mais velha arriscou
Villa Lobos ao piano e a mulher serviu o chá das 5 com biscoitos, como se celebrassem o
raro encontro familiar em pleno dia útil. Após a sopa da noite, o casal se dirigiu aos aposentos.
Dirce vestiu camisola de seda, perfumou-se para o amor, mas deparou-se com o marido na cama,
dormindo de boca aberta, de robe, pantufas e uma expressão exausta de noite anterior mal dormida.
Como sempre, suspirou fundo e conformou-se. Descalçou o marido, apagou o abajur e tentou dormir.
Os tempos foram passando, o risco de epidemia se extinguiu, mas a cada semana as desculpas
do Dr. Bustamante renasciam. Apendicite supurada. Congresso de tuberculose infantil em Barbacena.
Incidência crescente de sarampo. Surto de catapora no consultório. Acompanhamento de pesquisa na Fiocruz. Paraninfo de Formatura. Seminário de poliomielite em São Paulo.
Pelo menos, um entardecer semanal no Hot Night era segredo sagrado. Já não era um estranho.

- Mr. Bogart, seu uísque de sempre. Matilda deve estar chegando.

E depois de algumas doses, o taxi já estava esperando religiosamente na porta em
direção ao ninho religiosamente profano.
Uma tarde quase noite, Arivaldo surpreendeu: chegou mais cedo no casarão da Tijuca.

- Não estou me sentindo bem. Vou me recolher. Me chame na hora da sopa, minha filha.

A senhora Dirce estranhou e deixou de lado a esperança de vestir a camisola de seda.
Quando a mesa do jantar estava posta, as meninas em seus lugares ouviram um grito
comprido que ecoou da escada para a toda a casa, reverberando na vizinhança e arredores.
Subiram as três emboladas e na porta do banheiro, viram a mãe sentada no chão,
com a cabeça do pai no colo, alternando tapinhas nas bochechas, afagos pela a testa
e cobrindo o rosto inerte do marido com beijos e lágrimas torrenciais.

- Nada pude fazer. Foi fulminante.

A senhora Dirce repetia o mantra a todos que acorreram ao velório no Salão Nobre
da Escola de Medicina. As pompas fúnebres foram concorridas.  Amigos, vizinhos,
colegas, alunos, pais e mães de clientes, parentada próxima e longínqua, todos surpreendidos
por um anúncio fúnebre no jornal.  A viúva e as três meninas não arredaram pé das bordas da urna.
Revezam-se entre acariciar a testa do defunto e espantar drosophilas que rodeavam as narinas tampadas,
quando mal perceberam entrar um mulato isoneiro, franzino, mãos longas, dedos finos e carapinha
lustrosa de tanto esticada, lábios carnudos mordidos de emoção por dentes alvos como chantilly
num café forte. Vestia terno escuro - sua melhor roupinha -, gravata preta e fita de luto na lapela,
sapato bicolor que, de certo, ganhara graxa especial para a ocasião. Deixara pela dor a barba por escanhoar,
tinha olhos vermelhos cansados de tanto chorar.  Postou-se no pé do caixão.  Segurava três cravos,
que após um humilde sinal da cruz, foram colocados sobre as mãos do falecido.
Ninguém disse nada.  Foi o forasteiro examinado por todos, da cabeça aos pés, com estranheza e a
raiva de ter um negrinho no velório do Professor Doutor.  Também não se dirigiu a ninguém o desconhecido.
Nem um abraço à viúva, nem um afago nas meninas inconsoláveis. Assim como chegou, saiu.
Só que de costas, afastando-se sem tirar os olhos do rosto céreo de Ari, como se prolongasse
a despedida daquele que tinha lhe acariciado o coração e iluminado a vida nos últimos bons tempos.
Deu meia volta e seguiu. Fez o que seu coração mestre mandou.                                





quinta-feira, 18 de agosto de 2016

SEM

"Le Château Noir" (1904)
Paul Cézanne


Sem fronteiras, sigo gestos e devoro teu perfil, dividindo-o ao meio numa divisão escancarada do meu ser que te beija e se volta para tecidos e telhas e rezadeiras, água-benta que cai neste salão e põe todo mundo a dançar.

Sem fronteiras, vou pouco a pouco de um gesto a outro e decifro tua cara, teu palmo e teu passo. Vou pra lua e volto pro espelho no mato, acocorado e acovardado perante o escuro, o sossego e a mata fechada. O mapa da viagem no atlas, o desenhar a régua, sem compasso.

Percorro as fotos com as mãos. Matéria viva, minha, elas vão pro varal ou pro mural de cortiça do quarto. Comigo, no fusca vermelho, a estrada de terra batida rumo ao Norte – ou a algum país da América Central.

Os países nunca vistos, vou sentindo-os terra a terra. As gentes de cara na janela, o palhaço tirando a maquiagem, a menina. O sarau, a noite, o piano tocando e as luzes na construção colonial. A casa tem um pátio foi pintada de salmão. Olhei tudo e vi. É aqui, é assim, ao lado do mar.

Sem fronteiras, sigo sem saber o que é o bem e o mal. O que se faz e pra que ou como serve, pra onde vou se não consigo nem levar o dia a dia. Não pago as contas nem o aluguel, cotidiano que desaba no colo, chumbo que exige resposta. E as fronteiras, sonhos inventados pra assustar. 





terça-feira, 16 de agosto de 2016

Como se tudo pudesse passar



Na vingança e no amor, a mulher 
é mais cruel que o homem.
               (Friedrich Nietzsche, em Além do Bem e do Mal)


Logo mais, ela contemplará o corpo estendido sobre a cama de madeira escura. E vai rir de si mesma. Justo ela, cometer assim uma morte tão desordenada. Ela, que não aceita dobras nos lençóis, que guarda tudo nos armários sem ajuda das empregadas, que inspeciona a cozinha no fim do dia, que manda recolher as migalhas de pão da mesa num pote de vidro com tampa, que usa uma blusa apenas uma vez, que passa o fio dental toda hora. E quando estiver ajeitando os travesseiros sob o corpo ensanguentado vai pensar no quanto é bonita aquela puta. Por que os homens sempre escolhem as mais jovens? Bonita demais, a desgraçada. Nem ela mesma tinha sido assim quando era jovem. Jovem. Que besteira! Não é por aí, não é por aí, repetirá mentalmente enquanto estiver caminhando pelo corredor comprido, cheirando à comida de hora do almoço. Logo mais. Quando ela se surpreenderá com o prédio meia-boca no qual mora a cadela. Velho, barato, familiar. Sem um porteiro na entrada para se lembrar dela mais tarde. E os olhos se encherão de um choro de raiva pela certeza de que aquela mulher devia valer alguma coisa. Senão ele teria dado a ela uma casa de luxo; um cala a boca para depois que a abandonasse pela próxima. Não há próxima. Faz dois anos que ele não se cansa da piranha. Não cansa, não cansa. Quem cansou foi ela. De esticar as rugas, de só comer salada, de fingir que não sabe e não vê, de manter o cabelo longo, apesar de as amigas acharem o comprimento inadequado para uma senhora. Senhora. Que merda! Senhora é a ladeira abaixo da existência. Do sexo gostoso, do riso alto, dos porres de tropeçar nas pernas. Senhoras não podem. Quase nada. É feio ser senhora e querer, e fazer, e imaginar.
Mais tarde, quando chegar ao apartamento da vadia, vai ficar um tempo sem tocar a campainha, olhando para o número na porta: 305, 305, 305, 305... O coração cumprindo performance padrão: apertado no peito, acelerado. As mãos com as luvas de látex, calçadas nas escadas pouco antes, estarão escondidas nos bolsos do casaco. E, apesar do calor, ninguém vai mesmo reparar no absurdo daquela senhora de casaco preto, porque ninguém repara nas senhoras, ou repara pouco. Em frente à porta, nos instantes em que ela vai parar para saborear o que está por vir — e sobre os quais uma possível testemunha dramática dirá que foram segundos de arrependimento e dúvida —, apertará o cabo da pistola no bolso fundo do casaco, masturbando a morte. E terá orgulho de si mesma por ter pensado num silenciador. E se sentirá feliz porque as senhoras não são consideradas suspeitas. Não as que cumprimentam os vizinhos e jogam baralho com as amigas todas as quintas-feiras e são caridosas e vão à missa de domingo e têm netos crescidos e aceitam a ajuda de braços e mãos para se levantar das cadeiras ou para atravessar as ruas. 
O rosto atrás da porta. Primeiro, indiferente. Depois, compadecido. E ela sentirá subir à boca, junto com o vômito, todo o ódio dos anos cheios de outras, toda a fúria disfarçada pela educação recebida nos melhores colégios para moças. Com a arma apontada, vai obrigar a desgraçada a se deitar. Tão vadia, tão piranha. E tão menina. Esplêndida, naquela cama onde o cheiro do macho dividido por elas comprovará a comunhão perversa. Haverá, sempre haverá, um momento de dúvida. Não por pena ou medo ou covardia. Mas porque ela se lembrará da extensão do que precisa fazer. E isso vai doer. Como vai doer naquela puta o tiro no peito. Que não vai matá-la imediatamente, que a deixará sofrendo para que ela sinta na cara, no corpo os socos seguidos, coléricos, guardados por tempo demais. Pena não poder usar as unhas para rasgar a carne inconsequente da vagabunda. Mas o último tiro vai arrancar a beleza e o pecado daquele rosto desenhado a cinzel. 
Após ficar exausta, ela ajeitará o corpo deformado sobre a cama e colocará sob a cabeça da morta os travesseiros com fronhas de algodão egípcio, lamentando que um tecido tão lindo seja manchado pelo sangue escorrendo. Em seguida, penteará os cabelos compridos da menina. E se sentará ao lado dela para esperar por ele.
Quando atirar na têmpora do marido, ela também vai morrer. Em parte. A parte do amor que não bastou. A parte que a faz se sentir culpada por ser pouco mulher, pouco amante, pouco capaz de impedir tanta traição. A parte imunda, cancerosa que mora dentro dela faz anos. Mas a outra parte, a que pede vingança, se imporá. E ela colocará na mão dele a pistola recém-disparada. Na mão certa. Porque não poderá haver erros. Nunca mais. Então, limpará todos os seus rastros no apartamento e sairá para o corredor comprido depois de se certificar de que ninguém está lá para vê-la. Vai levar consigo apenas a fúria. Trancada para sempre dentro dela. 





segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Clap! The Multidimensional Clown, de Leon Leoks









leonleoksartes@gmail.com






descalço

Terá andado aqueles anos todos sem sapatos.
Descalço como tantos andavam naquele tempo.
Ele contava que um dia a mãe lhe comprou umas botas.
Teria seis anos. Tinha, de certeza, menos do que nove.
Eram umas botas de cabedal com brochas ou, se não as tinham pela sola inteira, teriam, na biqueira e no calcanhar, pequenos reforços metálicos para que a sola durasse. Botas com atacadores enfiados em ilhós bem pregadas no cabedal. Uma meia dúzia delas de cada lado e os cordões enfiados com preceito.
Terá sido pela altura da feira de Novembro. Ou terá sido num mercado por altura de ter feito anos que era no início de Agosto.
Ficavam-lhe grandes.
Calcando na biqueira, adivinhava-se o dedo deslocado do rebordo da frente. Que seriam para durar, assim terá a mãe pensado e deu-lhe uma palmadinha na barriga das pernas a incitá-lo a andar: que as experimentasse; que fizesse o pé à rijeza do cabedal. E ele correu em volta. Soltou-se pó do chão da rua que ficava em frente do poial da casa onde tinham estado sentados, mãe e filho a fruir aquele momento de calçar as botas.
Ao dia seguinte ele já as calçou sozinho, mas pediu ajuda porque um dos cordões, o da bota do pé esquerdo, se tinha desenfiado das ilhós. A mãe, vagarosa e sábia, enfiou com preceito o cordão sob o seu olhar atento e curioso. Ter-se-á repetido um dia e outro, que a mãe tinha gosto que ele as usasse, que andasse com os pés calçados, que criasse o hábito dos sapatos para que, grande, alistado na tropa para ser soldado, não criasse feridas, borrefas imensas e bolhas. Queria o filho calçado e, para isso, juntara o que era preciso, moeda em cima de moeda numa caixa de folha que tinha trazido de casa duma patroa num Natal antigo cheia de figos secos e miolo de amêndoa. Nunca mais tinha tido uma patroa como aquela e guardara a caixinha para lhe servir de mealheiro.
Na segunda semana de ter estreado as botas, ou terá sido um pouquinho mais tarde, desceu a rua. Era uma rua inclinada e larga e ele gostava de ir pontapeando pedrinhas se sabia que a mãe não o via. Ela chamou-o: não demores lá por baixo, gritou-lhe, ainda ele não fizera o gosto de sentir o reforço metálico da biqueira a desenterrar uma pedra mais teimosa e depois a pontapeá-la com força. Mal percebeu que a mãe se recolhera, iniciou aquele jogo que era um modo de ir brincando, ele que não teria sequer sete anos e, a ter mais, nunca seriam mais do que nove, idade em que a mãe o mandaria à farmácia e, na volta, o remédio aviado se espalharia pelo chão, um líquido escuro e espesso escorrendo do frasco partido por escorregar da mão da mãe. Era assim que ele contava de como tinha sido. A mãe morta, ainda nem tinha chegado o mês em que faria nove anos.
Naquele dia, desceu a rua como era seu costume que, lá em baixo, a ribeira espraiava-se mas, na maré vaza, ficava um largo e era lá que ele jogava à bola com outros rapazes.
Trazes botas, terá gritado um dos mais velhos a vê-lo chegar.
Descalça-as, ou não jogas, intimou um outro, e ele terá receado e, pequenino que era naquele grupo de rapazes, ter-se-á sentado a descalçar as botas que, uma de cada lado, fizeram os limites da baliza.
Contava ele que jogou afogueado, ligeiro, bem colocado ao centro ou saltando quando necessário para que a bola nunca entrasse, e nessa tarde nem uma só bola passou além do limite delineado pelas botas novas que tinha descalçado.
Muito gosta este menino de jogar à bola, dizia a mãe a sonhar-lhe futuros, nem ela sabia que ele jogava quase sempre a guarda-redes.
E a tarde foi-se descaindo em luco-fusco e terminaram o jogo, e foram andando rua acima que a ribeira subira uns bons metros e num instante cobriria o campo em que tinham jogado.
Sentada no poial a mãe preparava umas couves para o caldo.
Ele contava que a mãe nem disse: e as botas? que nem terá tido voz para indagar, e que foram os dois correndo ladeira abaixo num desconforto, ele a sentir, desusado, os bicos das pedrinhas nos pés descalços.
No lusco-fusco que era já quase escuro, a ribeira rebrilhava aos últimos raios do dia acentuando o ir e vir daquele lençol de água que nem tinha um palmo de profundidade. Lá ao fundo, as botas deslizavam para longe e eles correram e eles ficaram molhados e eles gritaram vocábulos que até aí desconheciam a dizer cada um de seu diferente desespero, um desespero que calaram em silêncio de lágrimas e de rezas, quando a água devolveu, separadas de tantos metros quanto tinha a largura duma baliza, as botas que nem pareciam as mesmas por estarem ensopadas.
Ele contava que a mãe ficou zangada, mas que ao outro dia, com as botas já secas, voltou a descer a rua para jogar à baliza.
Voltou a descer a rua para jogar mas, desde aquele dia, as botas ficaram apenas botas de ir à escola.
Daquele dia em diante, ia jogar, sim, mas as botas ficavam em casa.





quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A Saia de Maria Rita

Henry Alfred Bugalho

Na mesa de Jürgen havia uma foto dele em Porto de Galinhas. Mais novo. Só dezoito aninhos então e um porção de sonhos naquela mochila que carregou por todo o país.
Ficou fascinado, aprendeu a arranhar o violão e prometeu: um dia volto e abro uma pousada.
O que não aconteceu, evidentemente. Acabou a faculdade, foi contratado pela Siemens e a memória do Brasil ficou resguardada apenas nas fotografias e nas melodias que tirava no violão.
Isto até um colega o convidar para uma festa num galpão escondido em Kreuzberg.
Vai estar cheio de mulatas. Ele havia dito.
Como você sabe? Jürgen perguntou.
Mas é evidente. Uma festa de brasileiros.

Fato: tinha algumas mulatas, a maioria já casada com alemães. Haviam se conhecido no Brasil e eles as trouxeram para cá. Algumas deviam ser putas, sem sombra de dúvida. Não que Jürgen tivesse algum problema com isto. Havia se divertido pra caralho com os amigos da última vez que estiveram em Amsterdã. Havia conhecido algumas putas brasileiras lá também.
Os branquelos dançavam, sempre desengonçados, com as mulatas. Samba. Pagode. Funk. Cerveja alemã e caipirinha.
No meio da roda, dançava Maria Rita, girando como um pião, segurando com uma das mãos a barra da sua saia comprida.
Era a alma da festa. Solteira, nenhum alemão a tiracolo. Não tinha cara de puta. Pelo contrário, era trabalhadeira, acordando às cinco da manhã todos os dias. Camareira num hotel bacana. Para a grã-finada da Europa. De primeiros-ministros a presidentes.
Viste, era o Hollande? Uma colega portuguesa a cutucou enquanto passavam o aspirador no carpete daquele corredor interminável.
Quem? Maria Rita apertou a vista. Era meio míope, mas bem pouco.
O presidente da França!
Ah. Não conhecia.
Queria ter visto o Lula ou a Dilma, os que tiraram da miséria milhões de pessoas. Que lhe importava o presidente da França, que não lhe havia feito nada? Aliás, detestava franceses, com aquela sovaqueira da porra.

O olhar de Jürgen, quarenta anos e engenheiro da Siemens, se encontrou com o de Maria Rita, vinte e dois anos e camareira.
Ela procurava um alemão pamonha para chamar de seu (problemas de imigração, sabe como é?), e ele por uma mulata brasileira para chamar de sua (as alemãs são todas umas frígidas).
Se você acreditar em destino, dirá que foi isto. Prefiro pensar que foi um encontro de interesses.
Não transaram na primeira noite, pois Maria Rita era uma mulher que se dava o respeito, mas também porque Jürgen era meio lentão; talvez optasse por se chamar de um "homem respeitador".
Ela se mudou para a casa dele algumas semanas depois. Não havia sido convidada, simplesmente veio, mas Jürgen não se opôs. Mulher ordeira e carinhosa. Estavam felizes.
Queria que conhecesse meus pais. Maria Rita jogou a ideia uma noite, antes de irem dormir.
Jürgen varou a madrugada se revirando na cama. Ansiedade. Era um pedido sério, de compromisso, mas também tinha a empolgação de voltar para aquele lugar maravilhoso, uma explosão de vida e cores. O paraíso na terra.

Saíram da escuridão e da neve berlinense para o tórrido verão carioca.
Você se lembrou de passar filtro solar? Maria Rita perguntou a Jürgen.
É claro. Ele resmungou, mas mentia. Havia se esquecido e, no final do dia, já estava ardido e vermelho como um pimentão.
A família de Maria Rita o saudou como a um filho, beijando e abraçando, com seus corpos suados e grudentos. Feijoada, churrasco e futebol na TV.
E assim se passaram os primeiros dias.
Então, Maria Rita ficou calada e pensativa, sem aquela energia vital e contagiante tão característica dela.
O que foi? Alguma coisa errada? Jürgen perguntou.
Nada. Só bateu uma tristeza.
E ele entendia bem esta melancolia dela, também sentiria falta desta terra maravilhosa quando houvessem de partir de novo para a pátria fria e opaca onde nascera.
Mas não era isto que afligia Maria Rita. Antes fosse.

Numa noite, quando Jürgen e Maria Rita subiam o morro de braços dados após um lindo passeio por Copacabana, um grupo de rapazes os cercou numa quebrada, todos moleques de quinze ou dezesseis anos, alguns armados com pistolas e outros com fuzis.
Então apareceu o Zoião e agarrou Maria Rita pelos cabelos, enquanto os demais meteram uns chutes no cu do branquelo.
Voltou é, vagabunda? Que coragem, heim!
Deixa a gente em paz. Ela disse, chorando.
Nada disso, mulé. Cê tá pensando o quê? Aqui quem manda sou eu, porra, aqui eu sou a lei.
Maria Rita e Zoião haviam sido namorados alguns anos antes, mas quebravam demais o pau. Ele batia nela, e tudo o mais. Maria Rita fugiu (ou foi afugentada) para a Alemanha, enquanto Zoião cresceu e apareceu e se tornou o dono do morro. E ela torcendo para que ele já estivesse há muito morto, fuzilado pelo BOPE em alguma viela ou por alguma facção rival.
Este encontro só podia dar merda.
Jürgen nãn entendia palavra, mas não precisava ser nenhum gênio para compreender que sua vida estava por um fio. Maria Rita e Zoião gritavam. O cano do revólver em sua testa.
Vou morrer. Jürgen se recordou de sua viagem quase vinte anos antes, e de como tudo lhe pareceu incrível e deslumbrante, até mesmo as contradições e violências do país. Mas, agora, com as calças mijadas e todo trêmulo, só queria voltar para sua terra opaca.


Retirou a foto da sua escrivaninha e não tocava mais violão. De vez em quando, chorava sozinho no chuveiro sem nem saber bem por quê. Talvez fosse o medo, a proximidade da morte, a constatação de quão frágil era a sua existência, mas bem podia ser a recordação da mulata que deixou no Brasil nas mãos de um bandido assassino, que havia apostado o futuro e a felicidade dela para que ele pudesse estar ali, vivo, chorando no chuveiro. Era o sacrifício de Maria Rita que doía mais.
Era isto.





quinta-feira, 4 de agosto de 2016

And the Nobel goes to...

Uma eterna discussão envolve as adaptações de grandes romances às telas. Alguns autores são considerados "inadaptáveis" ao cinema mas, na minha modesta opinião, há alguns que são apenas azarados mesmo.

Philip Roth e Machado de Assis, por exemplo.

2016 assistirá a duas adaptações: Pastoral Americana, que marca a estreia de Ewan McGregor na direção, e Indignação, de James Schamus - este último, aliás, já vem sendo considerado o melhor transplante cinematográfico de um romance de Roth, que podemos colocar no rol dos maiores azarados nesta área.

No Brasil, desperdiçamos inúmeros grandes livros, mas o que acontece com Machado de Assis é notável: qual o grande filme já feito por aqui? Que eu me lembre, o melhor é o Memórias Póstumas com o Reginaldo Faria no papel de Brás Cubas (direção de André Klotzel), mas ainda assim é pouco. 

Há, claro, filmes de alta qualidade, compatíveis com suas fontes - Lavoura Arcaica, por exemplo. E outros com grande alcance de público. No passado, Graciliano Ramos foi muito bem tratado também. Mas hoje a maioria das adaptações mais se parece com produções para a televisão - o que não é necessariamente uma crítica.

Ian McEwan é, sem dúvida, dos mais afortunados. Desejo e Reparação, título em português com desnecessário acréscimo, leva às telas um dos melhores romances deste século. A direção é de Joe Wright. E é um tremendo filme. Há ainda um outro, menos badalado, The Innocent, de John Schlesinger. Mas é estrelado pelo Anthony Hopkins e pela Isabella Rosselini, o que, convenhamos, facilita um bocado, além do fato de o próprio McEwan ter se encarregado do roteiro.

Talvez seja esse o ponto. Orson Welles, por exemplo, é o Terceiro Homem, que todos falam ser uma grande adaptação do romance de Graham Greene nas mãos de Carol Reed. Na verdade, porém, a coisa não foi exatamente assim: Greene escreveu - com Welles e Reed - o roteiro do filme, e somente depois resolveu transformá-lo em romance. 

E, hoje, os melhores roteiros estão na televisão...







terça-feira, 2 de agosto de 2016

REDEMOINHOS DE MIM


 


Não sei se foi Deus ou o Diabo,
Não sei qual será o meu fim.
Adentro sertões e riachos,
Enfrento um mergulho em mim.

Num disfarce-cangaceiro,
Minhas trilhas são assim:
Mulher-dama ou donzela,
A guerreira Diadorim.

Desprezo laços e rendas
Com aroma de alecrim.
Por entre rochedos e fendas,
Escondo a mulher que há em mim.

Busco trilhar várias sendas,
Qual bacante num festim.
Ao sabor de vários ventos:
Redemoinhos de mim.