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sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Brincando de faz de conta - Giselle Sato



Pique-bandeira , amarelinha , queimada...
Esconde-esconde, bolinha-de-gude e bafo bafo
Peteca, boneca, bicicleta e patinete
Quem é quem? Vai e vem, correria na calçada
Pipas, papagaios, pião, campeonato de botão
Escorrega, balanço e gangorra na pracinha.

O Parque de diversões promete fortes emoções,
montanha-russa, trem-fantasma e roda-gigante
Barca viking e carrinho de bate-bate
Picolé, algodão doce, pipoca e carrossel
Cachorro quente, churros, amendoim torrado...

Oba! O circo já chegou!
Trouxe palhaços, equilibristas, bailarinas e muitos mágicos
Banda de música e pulgas amestradas
Piratas e marujos, princesas e fadas
Balões coloridos e muitas gargalhadas


Jardim Zoológico é sempre interessante,
zebras, jacarés , girafas e elefantes...
Macacos engraçados e todo tipo de aves
Hipopótamos submersos e ursos sonolentos
Cobras perigosas e tigres selvagens


Um momento, que tal visitar o museu?
Tem carruagem Imperial, espadas, escudos, lanças.
Esqueletos e fósseis, ossos de dinossauro e armaduras
Pinturas e estátuas, grande animais empalhados.
Mil tesouros espalhados em grandes salões espelhados.

A aventura não tem fim,
seja na praia
no shopping ou jardim.

Qualquer lugar é perfeito
no mundo do faz de conta
Não é preciso muito
para ter um dia feliz

E será sempre uma doce lembrança
Apenas atenção,
cuidado e carinho
Partilhar...
E voltar a ser criança.....





quinta-feira, 21 de agosto de 2008

to be and not to be

Marcia Szajnbok

Sou
Mas não sou muito
Não sou sempre
Nem sou bem isso
Sou ao meio
O que penso que seria
E o resto
Que não sou
Não sendo
Me acomete
E desmascara
Ou subverte
O que dentro da luva havia
Sem que a mão lá supusesse
Ter sido recheio um dia.





Folha

Marcia Szajnbok

O vento conduz a folha
Ou é a folha que se abandona ao vento?

Sopro leve de vento quente
Vai alta a folha, alegremente.

Sopro forte de ar gelado
Despenca a folha no chão molhado.

Quando o vento acalma, sonolento,
Ao ar ou à folha é que falta movimento?

Mas se o vento volta, prazenteiro,
Aos rodopios vai a folha, percorre o mundo inteiro...

Sou folha...
Que venha o vento!
Que não me deixe sem sopro,
No esquecimento.





quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O Giralua

Alian Moroz


Helianthus annuus, ou Girassol, é uma planta da família das compostas, originária do Peru. Caracteriza-se por um porte avantajado, chegando algumas a medir até cinco metros de altura.
O Girassol recebeu esse nome porque suas flores giram, seguindo o movimento do Sol, num heliotropismo positivo. O maior produtor de Girassóis é a Rússia ao qual extrai de suas sementes um salutar óleo comestível e também viscoso, usado de várias maneiras em máquinas e ferramentas. Por ser uma planta anual é necessário destruir, ceifar as flores todos os anos. Assim, no equinócio de inverno todos os girassóis são mortos tendo suas “cabeças decepadas, pois o sol não mais estará por perto”.
Os ceifadores da Sérvia cantam uma canção triste quando da colheita à imponente flor adoradora do sol.
“Canta....canta, tua última canção. pois o Sol está distante e não podes mais mover sua fronte para adorá-lo. De suas sementes faremos o óleo para saldar o senhor dos céus que fará sua viagem à terra dos mortos mas voltará na primavera para receber a adoração de seus brotos filhos... Ó Girassol... Ó Girassol...”
Quando do movimento solar em direção ao hemisfério Sul dizem, os mais antigos, que entre os campos de girassóis mortos caminha uma entidade chamada Giralua, a qual acompanha os movimentos do satélite em questão.
Caminha entre os campos lamentando a morte do sol e de seus irmãos. Diz a lenda que ao se encontrar um Giralua em noites claras de luar, o vivente é levado por ele. Eu venho contar esta história porque tive um amor.levado pelo Giralua.
Natasha desapareceu em uma noite enluarada.
Hoje o Sol voltou para a alegria dos Girassóis, só Natasha não veio...





sábado, 16 de agosto de 2008

A Natureza do Escorpião ou Narrativa Literário-futebolística em Quinhentas Palavras

“Zagueiro bonzinho acaba como babá do filho do atacante”. Pensava assim o beque Roberval até o dia em que vitimara Zeca com avassalador carrinho. O artilheiro flamenguista e ídolo da seleção brasileira ficou quase um ano no estaleiro com tíbia e perônio fraturados. Em conseqüência, Zeca, perdeu a Copa do Mundo e Roberval a paz de espírito corroída pelo remorso.
Viveu assim tempos difíceis o Roberval, beque conhecido pelo estilo viril aliado a certa malvadeza para com os adversários. Fora criticado por toda a imprensa futebolística, virando um bandido perante a opinião pública que antes o endeusava por sua demonstração de raça em campo. O zagueirão só não capitulara porque Jesus entrou de sola em sua vida quando Bernardo, meio-campo e Atleta de Cristo, o presenteou com uma Bíblia mandando que ele a lesse. Em semanas Roberval largou as noitadas, carros importados, marias-chuteiras e tomou ojeriza pela violência nos gramados. Virou um zagueiro clássico, daqueles de tirar a bola dos adversários como se houvessem pinças em seus pés. Nas entrevistas após as partidas, parafraseava Jesus ao justificar o sumiço de suas botinadas: “Não faça com os outros o que não quiser que façam com você”.
Brasil, celeiro de craques, viu nesta época surgir nas Minas Gerais Dentinho, para os especialistas da crônica esportiva, o novo Pelé. Dentinho humilhava os marcadores com sua técnica apurada e talento de malabarista com a bola nos pés. Zagueiros renomados perdiam o sono na véspera dos jogos contra o Cruzeiro, temendo a vergonha de serem entortados pela jovem revelação mineira.
Quis o destino que Cruzeiro e Botafogo decidissem o Campeonato Brasileiro em jogo único no Maracanã. Rádios, jornais e a televisão vomitaram durante toda a semana o duelo entre o malvado arrebanhado por Jesus e o novo deus da bola tupiniquim. Roberval passou a noite em claro. Cristão antes de ser zagueiro, tinha a obrigação moral de não machucar aquele menino prodígio.
Maracanã cheio, um clima de euforia intoxicando o ar. Antes do jogo, Roberval fez questão de presentear Dentinho com uma Bíblia.
A partida transcorreu nervosa como uma digna final de campeonato. Aos 35 minutos do primeiro tempo, o Botafogo fizera o seu gol e segurava a vantagem no marcador com um desempenho sólido de Roberval que, apesar de tomar alguns dribles de Dentinho, não deixava o atacante levar perigo à meta botafoguense.
Acontece que, a natureza do escorpião revelou-se e ele picou a sua vítima.
Eram 44 minutos do segundo tempo. Em um contra-ataque, a bola foi esticada para Dentinho que ganhou na corrida de um zagueiro e rumou em direção ao gol. Roberval partiu para a cobertura e, temendo o empate cruzeirense, atingiu barbaramente o joelho direito de Dentinho.Um palmo fora da área. O atacante saiu de maca direto para a mesa de cirurgia, Roberval foi expulso e o Botafogo sagrou-se campeão.
Enquanto a festa alvinegra tomava a cidade, Roberval isolou-se em um templo evangélico. Chorando, Bíblia remorsamente segura na mão direita, o zagueiro rogou a Deus para que perdoasse seus pecados.





Entrevista com Laura Bacellar



Laura Bacellar trabalha em editoras desde 1983. Começou na Editora Paz e Terra como estagiária e já ocupou todas as funções editoriais – de produtora na Hemus a editora chefe na Brasiliense. Fundou e dirigiu o primeiro selo editorial inteiramente dedicado às minorias sexuais, Edições GLS. Já foi editora em casas pequenas, como a Mercuryo, e enormes, como a Scipione. Sua especialidade é não-ficção, mas edita também paradidáticos, literatura adulta, literatura infantil e interesse geral. Escreveu três livros como ghostwriter e um com seu próprio nome, Escreva seu livro – guia prático de edição e publicação, pela Editora Mercuryo. Adaptou cinco clássicos do inglês, Robinson Crusoé, Drácula, Sherlock Holmes, Frankenstein e Rei Artur, para a editora Scipione e escreveu uma outra obra infantil, Mini Larousse da educação no trânsito, para a Larousse do Brasil em 2005. É co-autora, com o índio cariri Tkainã, do juvenil Mãe d'água pela Scipione. Dá cursos regularmente para autores e editores em instituições como a Universidade do Livro, ligada à Unesp. Mantém o site www.escrevaseulivro.com.br, que é bastante utilizado por editores para instruir autores que os procuram. Atualmente trabalha como free-lancer para várias grandes editoras e é responsável pela Editora Malagueta, a primeira editora dirigida a lésbicas do Brasil.


SAMIZDAT: Laura, como você percebe a relação das editoras com a literatura que tem surgido na internet? Os editores têm prestado atenção no que ocorre no mundo virtual ou ainda preferem os métodos tradicionais para selecionarem autores inéditos?

Laura Bacellar: Claro que só posso falar sobre os editores que conheço, certo? Mas entre esses profissionais meus colegas, a internet é vista como algo sem muitos critérios de qualidade, sem seleção prévia. Assim, ficar lendo textos na rede chega a ser pior do que ler os originais que chegam sem ser solicitados às editoras, porque pelo menos para enviar um texto para análise o autor tem um trabalho mínimo, enquanto que para colocar alguma coisa na internet parece muitas vezes não haver nenhum esforço ou custo.

Pessoalmente, as poucas vezes em que naveguei em sites de textos de ficção, fiquei um tanto escandalizada com a falta de respeito pela língua portuguesa e pelas convenções mais básicas sobre como contar uma história. Há uma quantidade imensa de textos ruins online, ainda que misturada a muita coisa boa, o que desanima quem queira fazer uma seleção.

Por outro lado, há os blogs de pessoas inteligentes, há sites bem escritos, há revistas interessantes que permitem aos editores localizar especialistas articulados em determinadas áreas, há discussões em fóruns e toda uma gama de atividades intelectuais que podem servir de vitrine para escritores.

Assim, para responder à sua pergunta, eu diria que editores ainda preferem escolher autores de ficção que existam fora da rede, mas usam a internet para verificar a abrangência de opiniões daquela pessoa, o que existe sobre ela, se ela tem contos ou artigos já publicados em algum lugar, se já fez parceria com alguém e todo tipo de informação que é útil ter sobre um autor.

Diante de um país como o Brasil, onde a leitura está longe de ser algo que realmente faça parte da cultura cotidiana, como fica o interesse das editoras em lançar novos escritores?

L.B.: Olhe, é impossível generalizar a atitude das editoras, porque elas são muitas. Há desde editoras que caçam apenas um possível sucesso comercial até aquelas que são projetos de vida, dedicadas a publicar talentos raros. E no meio também tem de tudo, passando pelas que publicam os amigos, as que são cooperativas de autores para se auto-publicar, as que arriscam algo diferente de vez em quando, as que só publicam clássicos, as que só olham para os estrangeiros premiados fora do país, etc, etc.

Publicar é um negócio de risco, e um escritor desconhecido de ficção é o maior risco que existe. Dali pode brotar um sucesso sensacional ou uma reputação prestigiosa, mas também pode não acontecer absolutamente nada. Há autores que não vendem nem dez exemplares por ano!

Os editores usam tudo o que sabem – experiência, prêmios, tendências no exterior, gosto pessoal, conversas com o público, atenção da mídia – para apostar nos autores que lhes pareçam mais interessantes.

E o quanto investem em possíveis novos talentos depende das editoras em que trabalham, da margem que têm para puro risco, do perfil de aventura ou tradição cultivado pela casa.

Nos EUA e Europa, os agentes literários representam um papel importante no mercado, servindo de ponte entre autores e editoras. Este modelo poderia ser reproduzido eficazmente no Brasil? Quais seriam as vantagens desta intermediação para um autor inédito?

L.B.: Sim, esse modelo ajudaria bastante nosso mercado. O problema principal das editoras é justamente triar o que tem certa qualidade e depois trabalhar com o autor de forma a chegar num texto publicável, já que a grande maioria dos autores não sabe como produzir um texto acabado. Os agentes fazem isso lá fora, mas a um custo. E eles existem num mercado que têm muito mais intermediários do que aqui. Qualquer universidade merreca lá tem cursos e mais cursos de escrita criativa, de fantasia, de roteiro, de criação de personagens. O escritor americano e canadense e europeu tem muito mais oportunidades de aprender e refinar sua escrita de maneira calma, num ambiente profissional, do que o brasileiro.

Aqui os cursos são poucos e conheço apenas uma agente que trabalha com autores iniciantes.

Assim, nossos escritores iniciantes são realmente iniciantes, não entendem nada do processo editorial, em geral não conseguem separar uma crítica ao texto de uma crítica pessoal, não têm noção de público e adequação de estilo, são super inseguros, de modo geral super ansiosos e difíceis de lidar.

Se houvesse uma batelada de agentes explicando para essas pessoas o que é o quê, sem dúvida cumpririam a missão de funcionar como interface entre eles e os editores. Facilitaria bem o trâmite e é provável que aos poucos venha a acontecer, já que os editores têm cada vez menos tempo para essa educação do autor, mas o mercado está super ativo.

O que você pensa das editoras que trabalham sob demanda? Qual a importância delas no mercado literário?

L.B.: Acho que elas cumprem a função de atender ao autor que quer ser publicado por razões pessoais, que não envolvem necessariamente uma interação com um público que não o conheça previamente. Mas para lançar autores no mercado, pelo que tenho visto esses prestadores de serviço não funcionam.

Estão criando um ambiente perigoso, aliás, de contar lindas histórias, prometer várias coisas bem vagas e extrair quantias respeitáveis dos autores.

Eu não vou me estender aqui sobre isso porque é um assunto enorme, mas vou dar uma dica: se a editora pede que o autor “contribua”, “arque com os custos de produção”, “invista na divulgação” ou qualquer outra frase bonita que subentenda colocar a mão no bolso e pagar alguma coisa, não se trata de uma editora, mas de um prestador de serviço. Se é um prestador de serviço, então o autor deve com todo o cuidado avaliar a relação custo-benefício. Quais são os serviços que serão prestados exatamente? Qual a garantia? Que exemplos de serviços já prestados a outros autores a empresa pode dar?

E, como com todo serviço, é bom olhar em volta e comparar preços.

A chamada “literatura espírita” é um segmento que tem parte considerável do mercado literário. A maioria das obras é publicada por editoras especializadas e têm o lucro revertido para o movimento ou entidades relacionadas - as chamadas obras básicas, por exemplo, são editadas pela própria Federação Espírita. Outros autores, bem menos proselitistas, seguem a mesma linha, estando, em geral, entre os mais vendidos.

Um escritor que iniciou a carreira vendendo obras quase como "manuais de prática mágica" é Paulo Coelho. Seus livros sempre foram grandes sucessos e, até hoje, ainda vendem muito.

Qual sua opinião sobre esse fenômeno? Como você o explicaria?

L.B.: Ora, as pessoas gostam de ler obras que expliquem os mistérios do mundo. Se o autor é convincente e passa credibilidade, encontra leitores.

Qual é "o segredo" da Rhonda Byrne?

O Jornal O Povo, em sua versão online de 31/07/07, publicou a notícia “O Segredo é novo fenômeno editorial”, onde se encontra o seguinte trecho:

Versão impressa do documentário homônimo filmado em 2006, a publicação criou uma espécie de "segredomania'' nacional, dando origem a outros lançamentos na mesma linha. Recheada de frases e histórias que demonstram que o pensamento é o responsável por tudo o que ocorre de bom ou ruim na vida das pessoas, a publicação mostra como a força do pensamento pode modificar a vida de todos.

Essa estratégia de pegar a mesma onda dos títulos que estão fazendo muito sucesso não é novidade. Com sua experiência, acha que funciona?

L.B.: Em parte, sim. Tem muita gente que ouve falar de alguma coisa mas não sabe bem o que é. Assim, ao entrar numa livraria, compra o primeiro título que lembra aquilo que está sendo tão comentado, sem se dar conta que sequer é a obra original. O Quem mexeu no meu queijo gerou uma série de cópias semelhantes e várias delas tiveram vendas bem razoáveis. Mas claro que isso só pode ser praticado por uma grande editora, que tenha um bom relacionamento com as redes de livraria. Uma cópia por uma editora pequena sem expressividade de distribuição não sai do depósito.

Mas O segredo está mais para Paulo Coelho do que para cópia...

No site "Escreva seu livro", você reproduz algumas dicas de Jean Bryant sobre o que o aspirante a escritor não deve fazer. Entre elas, estão "faça muita pesquisa antes", "espere até estar inspirado" e "deixe para depois" - ou seja, algumas das desculpas comumente utilizadas para postergar a escrita. Você acha que esse é um mal do escritor iniciante, o fato de encarar a escrita como uma arte que depende apenas da inspiração, esquecendo-se do fato de que é preciso também transpiração, ou seja, trabalho metódico e disciplinado?

L.B.: Há vários tipos de personalidade, o que leva a vários tipos de problemas com a escrita. Os muito autocríticos tendem a querer se certificar demais de que está tudo certo e aí empacam no mesmo texto para sempre. Os muito autoconfiantes acham que qualquer coisa que produzam está ótima e nem precisa de releitura. Os muito sonhadores ficam imaginando tudo que receberão de prestígio e dinheiro antes mesmo de tocar um dedo numa tecla. Os preguiçosos só falam sobre suas histórias. E por aí vai. A autora que cito deu muitos daqueles cursos de escrita tão numerosos lá nos EUA e portanto tem experiência com uma série de bloqueios comuns de escrita, mas não são os únicos.

Eu não diria que ser metódico e disciplinado é o único caminho para a escrita, mas que sem dúvida a pessoa precisa dar uma olhada para seus próprios hábitos e localizar o bloqueio caso deseje escrever e não esteja conseguindo.

Há quem diga que, para se tornar um escritor profissional, é preciso suportar, pelo menos, 15 anos de rejeição. Tomando isso como verdade, como esse tempo poderia ser diminuído?

L.B.: Virginia Woolf dizia que ninguém devia ser publicado antes dos trinta anos de idade, hehehe.

Eu não acho que ninguém deva se preparar para a rejeição, mas acho muito útil abrir os olhos. Se você der uma olhada nos comentários postados no meu site, vai encontrar uma reclamação repetida por vários: eu sou dura, furo o balão dos sonhos, jogo baldes de água fria.

Eu sempre abro as mãos e olho para cima em perplexidade quando leio algum desses comentários. Então a pessoa prefere sonhos sem base na realidade? Prefere embarcar em lindas histórias de prestadores de serviço que lhe arrancarão o preço de um carro novo? Prefere achar que vai ganhar o prêmio Nobel de Literatura do ano que vem?

O quanto antes o escritor novato se livrar desses delírios, tanto melhor para sua carreira. O quanto antes se livrar da noção de que a literatura é produzida num vácuo, que não depende em nada do mundo ao redor, tanto melhor.

A escrita, como qualquer carreira, depende de uma conjunção de vários fatores, incluindo talento, dedicação e sorte. Todos podem ser cultivados (quem sabe lendo O segredo você muda sua sorte, hehehe), mas não há dúvida de que a dedicação rende bons frutos. E não quero dizer a dedicação de escrever feito um maníaco, apesar de este ter sido o caminho de escritores ótimos como Jack London, mas sim a dedicação de entender o que está acontecendo em volta.

Porque as pessoas gostam de tal obra? O que esse escritor está dizendo que atrai os leitores? Por que as editoras publicam esse tipo de autor? O que essa autora diz que tanto seduz seu público?

Já vi várias ocasiões em que o autor finalmente teve um momento aha! e adaptou a sua obra, sendo publicado em seguida.

Ou seja, entender o lado de trabalho, o lado de construção das obras, o lado não romântico da escrita. Não há nada de errado com a inspiração, mas sem os pés na realidade a carreira a meu ver não decola.

Qual sua opinião sobre concursos literários? Acredita na eficácia e valor deles no incentivo à produção literária?

L.B.: Sim quando são sérios. Eles incentivam as pessoas a escrever e entregar num determinado prazo, dentro de condições específicas e oferecem a possibilidade de um prêmio – muitas vezes nada simbólico – como incentivo. Mais ainda, dão a certeza de que a obra será lida por pareceristas atentos.

Nenhuma escolha é isenta de vieses, claro, mas sei de vários casos em que os prêmios de fato abriram caminho para que escritores até então inéditos fossem publicados e recebidos com simpatia pelo mercado.

Claro que nada disso vale quando o prêmio é um jogo dentro de uma panelinha...

Ainda no site “Escreva seu livro”, há várias dicas de como um escritor pode facilitar a publicação de seu livro e como a utilização realista e fundamentada das políticas editoriais contribui para o possível sucesso dele. Diante disso, o que você pode nos falar de sua obra “Escreva seu Livro – guia prática de edição e publicação”? Ela foi planejada segundo as próprias dicas dadas? Esta abordagem funcionou?

L.B.: Sim, eu escrevi o livro com base nas necessidades que sentia nos autores, com base em minha experiência de vários anos como editora. Note que deixei de lado reminiscências, causos e outros assuntos que poderiam ser divertidos para mim mas não iriam auxiliar em nada meu público potencial, além de poderem tornar a obra grande e cara.

De certa forma errei ao publicá-lo em uma editora genérica como a Mercuryo e não em uma especializada em comunicação. Meu raciocínio foi o de que toda editora, afinal, trata com autores, este é um assunto básico para qualquer casa editorial, mas não fui esperta. Meu assunto era comunicação e eu deveria ter tido a paciência de encontrar uma editora focada. Qualquer hora corrijo isso publicando outra obra sobre editoras...

A equipe editorial da SAMIZDAT agradece muito sua participação e deseja todo sucesso em seu trabalho!


Coordenador da entrevista:
Carlos Alberto Barros

Perguntas feitas por:
Carlos Alberto Barros
Henry Alfred Bugalho
Maristela Deves
Naldo Gomes
Volmar Camargo Junior


Site da entrevistada: www.escrevaseulivro.com.br





quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Contos mínimos - Série "Idiotas"

Confusão

- Olha, o gajo está a rir.
- Corre, idiota. Não vês que isso que vem atrás de nós é um T-Rex...


Interpretação

O urso chegou e comeu o esquimó. Ficou sobrando a mulher. Seria gay?


Eclipse

Quando soube, congratulou-se. Iria finalmente poder ver o Sol sem o auxilio de óculos escuros.


Troca

Faziam sempre amor no guarda-fato. Um dia, o marido dela chegou mais cedo. Aníbal correu a esconder-se na cama.


Difícil

.princípio o para fim do textos os Escrevia. ler de difícil autor um Era





Mensário de Histórias Curtíssimas Sem Pé Nem Cabeça

I

Então ele me perguntou: “Vai doer?”.


II

Depois de ter presenciado aquela cena, Ronald tomou sua decisão.


III

— Eu juro que só fiz isso para o seu bem.


IV

O cachorrinho voltou e quis de volta o que era seu.


V

Aguarde um momento que ela já vai atendê-los.


VI

— Tá, e daí?





Contos mínimos: Série Cupido

Má pontaria
E então ele acertou em Narciso. Duas vezes.


Paradoxo
Inexplicável para ele, o amor era em maior quantidade que as setas...


Alvo
Naquele dia, iria treinar com "D.Juan", o seu alvo preferido...


Miopia
Aconteciam as coisas mais extraordinárias desde que tinha ficado míope...


Par
E quando o professor pediu para definirem número par, o aluno respondeu: A quantidade de setas...





Microcontos

Coisas de Mulher (cont.)

Marcia Szajnbok

VII.
Dor, emoção, expectativa. Luz. Frio. A voz do médico:
- Vamos lá, agora uma força comprida, só mais uma!
Respirou. Empurrou. Um choro encheu a sala e esvaziou a barriga.
Compreendeu, naquele instante, porque nem a deus é possível fazer não acontecer o que já aconteceu. Estava comprovada a irreversibilidade do tempo.





quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Poetrix

Companhia
Acompanhas-me para todo o lado,
suave constante ausência

Desencontro

Tudo passa
Nada fica
Desencontro...

Por do Sol

Poente em Sol menor
Inconsistente a voz
Constante distância de nós

Trabalho

Fez-se enfim, a tarde
Labor, mais um...
Dia comprado

Casa

Á porta, ficou por ali a Berta,
já nela fechada e de morada no olhar frio,
em só de si, o esquecimento ou vazio!

In finito

Chegado ao infinito,
perguntou:
E agora, onde vou?

Definição

Definir-te
Partir só
Viagem sem regresso

Ardor

Língua de fogo
não sabe a nada.
Mais arde a pimenta

Ordem

Dividam-se os ensejos
Cumpram-se enfim, desejos
De vida mente empacotados

Expressão

Entre dois movimentos
e o depois de tudo
Mundo em vez de mudo

Planeta

Plano planeta
É choro de proveta
Global em pobre cimento

Relatividade

Espaço de mim
Distância
Relativo tempo de ti





O alvo simbiótico

O meu nome é Zork e sou batedor-explorador, guarda avançado de primeira categoria, especializado em observação de espécies com potencial. Minha função é de extrema utilidade para a nossa raça pois há muito tempo que desistimos de suportar sozinhos a nossa própria subsistência e confortos e caprichos.

Aprendemos que é bem mais simples e eficaz identificar outros com o potencial simbiótico adequado e transformá-los (gradualmente) em nossos servos. De início, a vítima, tecnologicamente menos evoluída, não compreende o jogo latente que está a decorrer. Depois... bem, depois é tarde demais. Como mosca espantada e aturdida, enredada na teia, quando percebe o que se passa, já nada pode fazer. Na verdade não existe aqui qualquer simbiose ou relação simbiótica. Apenas parasitismo. Isso mesmo, digo-o sem qualquer pudor. Somos parasitas!

Naquela tarde preparava-me para desempenhar o trabalho - as tarefas para as quais me treinaram. Ia ser fácil. O ponto de observação no piso de cima ficava mesmo junto ao enorme balaústre e era muito bom. A visão era soberba, perfeita, abrangia praticamente cento e oitenta graus. Além disso era um recanto acolhedor e agradável de modo que certamente permitiria iniciar o relatório com todo o conforto e descontracção.

Observei-os e vi como tratavam os "pequenos" com amor e carinho nunca os deixando sós e desprotegidos em momento algum. Vi como falavam a toda a hora, constantemente, frequentemente, com eles. E quanto falavam… que entusiasmo, aquilo quase parecia um vício! E forneciam-lhes com solicitude, sem reclamar, toda a energia necessária. E na presença da mais pequena sujidade, logo acorriam e limpavam com extremo cuidado. Vi como são preocupados. A certa altura um "pequeno" caiu e o seu servo levou prontamente as mãos à cabeça proferindo expressões para as quais não possuímos ainda tradução - Ai meu Deus! E agora? – disse ele. Depois, curvou-se e tomou rapidamente o "paciente" em suas mãos inspeccionando-o com cuidado para verificar se estaria de boa saúde ou necessitaria de algum tratamento. Noutra destas observações constatei que além de preocupados também sabem ser leais e obedientes. O "pequeno" estava aos gritos com sua voz fina irritada. E o gigante só dizia - Sim senhor, querida, desculpa querida, eu sei amor. Tudo isto vi com o meu sistema de sensores. E tudo isto me bastou.

Os "pequenos" eram sem dúvida os seres mais afortunados de todo o universo. Mas não por muito tempo! Tudo o que necessitávamos era de um bom plano. Um plano para os substituir gradualmente por elementos da nossa espécie no domínio daqueles servos gigantes prestáveis, solícitos. Aí a minha atenção, objectivos e prioridades mudaram e obtive dados mais detalhados. E foi então que surgiu um contratempo inesperado e todas as dificuldades inerentes. Afinal não iria ser assim tão fácil. Porque os "pequenos" eram compostos por várias subespécies, todas elas incompatíveis entre si.

Resignado, coligi os nomes delas e coloquei-os no meu relatório

NOKIA

SIEMENS

MOTOROLLA

SONY-ERIKSSON

SANSUNG

...


Agora, a minha próxima tarefa vai ser analisar em detalhe cada uma dessas vertentes raciais a fim de explorarmos todas as suas vulnerabilidades.





terça-feira, 12 de agosto de 2008

Noite Estrelada

Guilherme Augusto Rodrigues

Todas as noites, abria a janela do quarto e ficava por horas contemplando o céu estrelado. Tinha certeza de que lá do outro lado havia uma pessoa a observá-lo também.

Acreditava que as estrelas eram pequenos animaizinhos místicos: responsáveis pelos sonhos, diziam a verdade, contavam o futuro e realizavam desejos. Se sonhar com aquilo que desejou, o pedido se realizará. Escolhia a estrela mais brilhante e desejava. E a Lua, a grande mãe de todas essas criaturinhas.

Saiu voando pela cidade e uma sensação incrível lhe enchia os pulmões. O ar fresco da noite. Sorria. Viu toda a cidade iluminada, linda. E chegou a pensar que as estrelas fossem uma grande cidade... Não.. Eram mesmo animaizinhos místicos... Foi até a casa da garota que amava e ficou ali da janela olhando-a dormir, uma rosa adormecida.

Algumas vezes, conseguia formar figuras ligando as estrelas. Uma rosa, um gato, um beija-flor... Certo dia, viu nas estrelas a garota que amava, e ela piscou para ele. Sorriu, todo feliz, deitou em sua cama e dormiu quentinho debaixo da coberta. Sonhou...





Guilherme Augusto Rodrigues

Eu sou flor que flora à tua presença,
alegre, contente, muito feliz.
Sou a flor que definha à tua ausência,
triste, implora por água, Flor-de-Lis.

Sou a flor, não ouço o que você diz.
Ficar ao teu lado, o que sempre quis.
Beija-Flor – com você quero ficar,
Porque – agora – só quero te amar.

Às tardes – vinha você me beijar,
Nós – abraçadinhos – em paciência...
Ande p´lo jardim reencontre a flor

bela, que tem um cheiroso sabor
e que não liga pro que você pensa.
Volte a me reencontrar, meu amor!





Melodrama

Guilherme Augusto Rodrigues

Tarde alegre. Linda. Ensolarada. Passarinhos a cantar. Sentados abraçados no banco da praça. Quero dormir aos seus braços. Alguns beijos, uns apertões. Mais beijos. Eu te amo. Também te amo, linda. É para sempre.
...
Acabou!
Fim de tarde triste, melancólico...
A visão se torna embaçada, meus olhos se enchem de água e ela, cada vez mais distante, vai embora.
A lágrima que escorre pelo meu rosto é o grito de dor, o desabafo do aperto que me sufoca. Um soluço, desprendimento da angústia que se encontra em meu peito.
Ela passa do meu lado tão disforme pelo encharque que meus olhos se encontram. Nem a me olhar. Um toque com a ponta dos dedos, eu estremeço e ela se vai, perdida na névoa obscura, desaparece.
Tudo escurece, os pensamentos se esvaíram, vertigem, vozes distantes......
Querido, acorde. Acorde.
Ahn... que... que aconteceu?
Você desmaiou.
Ah... te amo.
Também te amo.
Me abraça.





A Face

Guilherme Augusto Rodrigues

Teus olhos profundos, negros,
Tua face fatigada
Mostra rugas de tristeza,
Nem sorris pra não florar
Teus dentes apodrecidos,
Teu hálito cadavérico.

Deite-se no teu caixão,
Pois você já está morta.
Darei um buquê de rosas.
Uma vez lacrado o túmulo,
E tua agressividade
Emudecerá pra sempre!





segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Pequena Poética do Miniconto

Marcelo Spalding


Você certamente já leu um miniconto e possivelmente já escreveu um. Miniconto é um tipo de conto muito pequeno, digamos que com no máximo uma página, ou um parágrafo. Alguns dizem que ele é o primo mais novo do poema em prosa, outros apontam as fábulas chinesas como origem, de certo é que desde meados do século XX o conto tem experimentado – com sucesso – formas extremamente breves a partir de textos de gente como Cortázar, Borges, Kafka, Arreola, Monterroso e Trevisan.

Nos últimos anos este tipo de ficção ganhou muito espaço na literatura de diversos países. Nos Estados Unidos, antologias sucessivas foram lançadas com textos cada vez menores culminando na chamada “microfiction”, cuja antologia inaugural reúne textos de até 300 palavras. A literatura latino-americana, responsável pela difusão inicial do gênero, tem não apenas apresentado antologias como também estudos acadêmicos acerca do que eles chamam de “microrelato”. É de um hispano-americano, o guatemalteco Augusto Monterroso, o micro mais famoso:


Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.


E de outro latino-americano, o mexicano Juan José Arreola, o meu preferido:


Conto de horror

A mulher que amei se transformou em fantasma. Eu sou o lugar das aparições.


No Brasil, há uma grande quantidade de autores publicando livros com ou exclusivamente de minicontos: o pioneiro Ah, é?, de Dalton Trevisan (1994), Contos Contidos, de Maria Lúcia Simões (1996), O filantropo, de Rodrigo Naves (1998), Pérolas no decote, de Pólita Gonçalves (1998), Passaporte, de Fernando Bonassi (2001), Coração aos pulos, de Carlos Herculano Lopes (2001), Eles eram muitos cavalos, de Luiz Rufatto (2001), Mínimos Múltiplos Comuns, de João Gilberto Noll (2003), Os cem menores contos brasileiros do século, organizado por Marcelino Freire (2004), Ao homem que não me quis, de Ivana Arruda Leite (2005), Tentando entender Monterroso, de Luiz Arraes (2005), A milésima segunda noite, de Fausto Wolff (2005), Contos de Bolso e Contos de Bolsa, da Casa Verde (2005 e 2006), Curta-Metragem e Expresso 600, de Edson Rossatto (2006), Entre Duas Mortes, organizado por Frederico Alberti (2006), entre tantos outros. Há inclusive um livro de minicontos juvenis, do competente e criativo gaúcho Leonardo Brasiliense, Adeus conto de fadas (2006), que ao testar esta estética com outro público comprovou a flexibilidade do miniconto e a possibilidade de o tratarmos como um gênero (da mesma forma que os poetas tratam como gênero o haicai).

Devido ao seu formato enxuto e de rápida leitura, o miniconto se tornou um gênero cultivado não apenas pelos leitores como também pelos escritores das novas gerações, seduzidos pela (aparente) facilidade de se escrever um bom miniconto. Só aparente. Aqui nesta pretensiosa poética pretendo demonstrar como algumas regras são, se não fundamentais, bastante indicadas para que um miniconto funcione.


Concisão

A velha insônia tossiu três da manhã.

Dalton Trevisan (Ah, É?, 1994)


Ser breve e ser conciso são coisas diferentes. O miniconto precisa ser conciso, mais do que breve. Nesse sentido não deveríamos falar de um limite de número de letras, palavras ou páginas para o miniconto, e sim num limite conceitual. A história que ele conta precisa caber exatamente naquele pequeno tamanho, não mais, não menos. Não pode-se atrofiar uma narrativa, tampouco espichá-la. Por isso nem todos os temas e enfoques podem ser transformados em miniconto. Na verdade, raros o podem. Uma tosse às três da manhã pode ser a superfície de um miniconto; a insônia, não.


Narratividade

Caiu da escada e foi para o andar de cima.

Adrienne Myrtes (Os cem menores..., 2004)


Se a brevidade originada pela concisão diferencia o mini do conto tradicional, é a narratividade que primeiro diferencia o miniconto do haicai ou do poema em prosa (que não necessariamente são narrativos, ainda que possam sê-lo). Ser narrativo significa, por óbvio, narrar algo, contar a passagem de uma personagem de um estado a outro, implicitamente (como no mini do Trevisan) ou explicitamente (como neste exemplo da Adrienne). Sem essa narratividade, corre-se sempre o risco de fazer uma simples descrição de cena ao invés de um miniconto.


Efeito

TV NO QUARTO

E os pais na sala, assistindo a um documentário sobre os dramas da adolescência.

Leonardo Brasiliense (Adeus conto de fadas, 2006)


O grande mestre do conto moderno, Edgar Allan Poe, talvez tenha sido quem primeiro colocou o efeito pretendido no topo dos objetivos do escritor. Ainda hoje é considerado um bom conto aquele que consegue provocar algo no leitor, seja medo, compaixão ou reflexão. Quando temos uma simples descrição, não chega a ocorrer no leitor este efeito, por menor que seja, enquanto em uma narrativa como a do Leonardo Brasiliense o leitor não tem como não pensar na sua adolescência ou na sua atitude com os próprios filhos.


Abertura

Um vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.

Cíntia Moscovich (Os cem menores..., 2004)


Como pode um texto tão pequeno provocar efeito em quem lê? A resposta está no próprio agente da questão: o leitor. À Cíntia coube contar a história de uma pessoa que morreu assassinada numa representação contundente da banalização da vida. Mas se a vítima é um homem, uma mulher, gorda, magra, nova, velha, se mora na cidade, no campo, noutro país, se era bandido ou mocinho, amante ou amado, casto ou tarado, nada disso está dito, cabe ao leitor preencher as lacunas a partir de seus conceitos e experiências. Muito possivelmente um leitor urbano como nós verá aí uma ironia com a insegurança que ceifa a vida de tantos jovens. Mas talvez um trabalhador suburbano veja a covardia de quem mata pelas costas, e não o futuro perdido por quem morre. Essa abertura é uma das riquezas do conto potencializada no miniconto.


Exatidão

AVENTURA


Nasceu.

Luís Dill (Contos de Bolso, 2005)


Tudo bem que a abertura do texto para o leitor seja aspecto fundamental do miniconto, mas é importante que o autor seja suficientemente claro para criar o efeito desejado no leitor, e não seu oposto, sob o risco de não ser compreendido. Para tanto a escolha de cada palavra em cada posição é fundamental, quase como em um poema, pois disso depende o sucesso ou não da narrativa. Se Cíntia Moscovich escrevesse “Teria sido um ótimo escritor, mas o tiro veio por trás” o texto perderia seu recurso estético causado pela oposição frente/trás, vida/morte, comprometendo até o efeito semântico. Mesma coisa, e mais ainda, no texto “Aventura”, do Dill. Não sei se existem outras duas palavras que se casem tão bem para formar uma narrativa instigante, aberta e ao mesmo tempo repleta de significados como esta. São apenas duas palavras, quinze caracteres tão bem dispostos que é difícil não sentirmos seu efeito. E percebermos ali o cerne do conto e da literatura.





Seleção Brasileira

Marcelo Spalding


1
Kléber, o goleiro. Defende-se como pode das investidas do Argentino. Desde que pediu a grana pra pagar o pó – pediu o pó porque não conseguia pagar uma grana –, vive a se defender. Fugindo, fingindo, roubando. Não pode abandonar morro e família, por isso acaba voltando e apanhando e pagando um pouco. Dessa vez era um ultimato. Kléber, o goleiro, tinha que pagar. El Argentino invadiu a casa, quatro homens armados ao redor dele. Não tenho um pila, hermano, pode revirar tudo pra ver. O Argentino olhou, olhou a casa sem mobília, as paredes sujas e a mulher grávida, grávida mais uma vez. Procurou um revólver que fosse, um maço de cigarros. Tu es un mierda, grita, e o outro tremendo no canto da parede, barbudo, fedido. Eu disse que não tinha nada, hermano. Atirou sem dó. Kléber, reflexo rápido, ainda tentou se defender. Morreu com um buraco na mão.


2
Juarez, ou melhor, Doutor Juarez Fonseca, o lateral direito, aquele que defende pela direita e sempre pela direita. Nasceu em 1964, aprendeu a ler em sessenta e nove e muito cedo decidiu-se pelo quartel. Ordens, horários, compromisso. Doutor virou e causas nobres defende. Com a veemência dos justos. Defende proprietários de terras, jornais, bancos, mercados, lojas, governos, ilhas, mansões, BMWs. Agora está em dúvida o Doutor Juarez: foi mucha plata o que el Argentino ofereceu.


3
Gente como o João não devia andar armada. Homenzarrão, alto e forte como só um zagueiro central pode ser. Um dia chegou em casa e a mulher estava sobre uma poça. Poça vermelha de sangue. Nunca mais foi o mesmo, sabia que naquele morro só morria quem el Argentino deixava. Pegou a arma – eu avisei que gente assim não devia andar armada –, e subiu bufando até la casilla rosada. Os olhos turvos de raiva, a cabeça devagar de raiva, o corpo explodindo de raiva. Chutou a porta e esvaziou o cartucho, oito tiros. Matou abuela e tía.


4
Carlos é o quarto zagueiro, o que dá cobertura para o zagueiro central. Levou a sério demais essa história de cobertura. Apaixonou-se por João e ao mesmo tempo, por óbvio, odiou a loira dele. Conhecia bem o João, seus um e noventa de puro músculo, sua pele negra de um negro chocolate. Sabia também que o negão mataria ele se soubesse dos olhares, dos suspiros no vestiário. Mas Carlos é zagueiro de cobertura, não desiste nunca. Yo puedo ajudarte, ofereceu el Argentino em troca duns trocados. Foi mais fácil pagar do que sujar as mãos de sangue.


5
Émerson, por orientações táticas, jogava exatamente entre a defesa esquerda e a direita, protegendo ambas dos avanços dos adversários. Homem correto, íntegro, religioso, funcionário modelo na fábrica, pai de um menino e uma menina. Amava sua esposa, nunca traiu, nunca desconfiou dela, nunca forçou uma transa. Seria um legítimo representante da classe média não morasse no morro. E não fosse ele vizinho de la casilla rosada del Argentino. E não fosse sua casa confundida com la casilla rosada del Argentino. Morreu de bala de polícia sem ter tempo de pagar a última prestação da televisão.


6
Jerônimo, codinome Fonseca, irmão caçula do Juarez, nascido no dia exato do AI-5. É o lateral esquerdo e, pelo óbvio, defende sempre pela esquerda. Não pôde ser advogado nem administrador nem contador e ganhar muito dinheiro, como sonhava a mãe e insistia o irmão. Preferiu o jornalismo. E ali travou batalhas primeiro contra os professores, depois contra os chefes de redação e mais tarde contra as mulheres e os amigos e os políticos. Espremia-se à esquerda do mundo. Odiava carros, estrangeirismos, lanchonetes fastifud, internéti, roliúde, televisão, detestava todo lixo produzido pela tal indústria cultural, livros, filmes, gibis, bostas, tudo bosta. Largou também os Sem Terra e a União dos Estudantes. Procura causas novas, talvez uma guerrilha armada em pleno centro urbano. Já pensava à sério na proposta del Argentino.


7
Caio é pequeno e veloz, um legítimo segundo atacante, ou atacante de velocidade. Ponteiro, para os saudosistas. Investe na área adversária surpreendendo os zagueiros, servindo o centroavante e às vezes ele mesmo fazendo uns golzinhos. Caio ganhou muito dinheiro com isso. E investe tudo em ações, veloz é para comprar e vender, aposta nas opções, lança mão de debêntures, tanto arrisca no curto prazo que já dobrara seu capital. Mas precisava mais, e um dia Caio perdeu. Perdeu dinheiros e razão e mulher. Perdeu opções e poder e BMW. Não ouviu o Kléber, esse dizia para não se meter com o submundo, ainda mais con el hombre. Mas com rapidez se infiltrou na área inimiga, e com rapidez perdeu tudo. Sua última aposta foi um suicídio sem surpresas.


8
Patrício é o segundo volante, sempre à serviço do craque do time, para quem deve entregar a bola depois de desarmar. Trabalha na MR Comunicações desde os catorze, quando o pai sumiu e a mãe enlouqueceu. Cresceu na empresa, funcionário modelo por dois anos seguidos, jornada de catorze horas na maioria dos dias da semana e seis horas no Sábado. Nunca ficou doente. Nunca reclamou. Dez anos de casa. Teria um sido um coitado feliz. Mas um dia descobriu no que tinha se tornado su padre e foi morar en la casilla rosada.


9
Wilson Holmer é o centroavante, atacante mais enfiado, homem de finalização, famoso por todos e desejado por todas. Quando acerta. Estava num dia ruim. Chegou na televisão vinte minutos depois, pediu café, trouxeram com adoçante, atirou no chão café, bandeja, script, paciência. Voltaram com um café fresco, e ele lá escolhendo as notícias para aquela noite. Vibrava com cada ponto na audiência como se fosse o miléssimo gol. E de dia já estava lendo impressos do mundo todo, envolto por um palacete bem decorado. Mas aquele era um dia ruim. O jornal abria com notícia sobre um acidente: policial mata desempregado por engano. O apresentador assiste de sua bancada conversando com a colega. Faltam quinze segundos. O áudio do estúdio voltaria quando faltassem cinco. Erro do operador, erro grave: voltou faltando oito. E o país todo ouviu Holmer dizer: tem mais é que matar esses vagabundos.


10
Marcelo Reis é um craque, grande armador, responsável por lucros estupendos tanto da agência onde trabalha quanto dos clientes que nele confiam. Formado num colégio de padres e sem interesse algum em qualquer faculdade, abriu o negócio confiando em seu talento nato: MR Comunicações. Hoje atende proprietários de terras, jornais, bancos, mercados, lojas, governos, ilhas, mansões, BMWs. Mas nunca tinha aparecido um cliente como esse: a Polícia Civil. Precisamos melhorar nossa imagem nos morros, dizia o comandante. A população não acredita mais em nós e, quer saber, nem eu, mas disseram que você faz milagre. E fez. Marcelo Reis, craque, armador, descobriu el Argentino y su carisma, el Argentino y su gana, el Argentino e o temor que causava em toda cidade e diagnosticou pra polícia: matem esse cara numa batalha difícil, ao vivo. Se possível sacrifiquem dois ou três homens seus no tiroteio. Mas façam barulho.


11
Ricardo é o elo entre o ataque e o resto. Por vezes um pouco à frente do dez, mas na maioria das vezes ao seu lado e mesmo atrás. Homem versátil no campo e na vida. Na vida é policial civil por profissão, segurança de boate para ganhar dinheiro. Fatura bem numa noite indicando el Argentino. Mas um dia levou calote. Logo ele, o que fazia a ligação entre o submundo do adversário das leis e a própria lei, logo ele levou calote. Tinha que mostrar quem manda. Aproveitou que naquele dia estaria fardado. Convenceu o colega e foram de viatura. Subiram o morro sem alarde. Chegando em la casilla, pediram pra falar com el Argentino. Mudou-se para a casa ao lado, avisou uma mulher. Pulou a cerca, arma destravada, pronta. A intenção era dar um tiro na perna do caloteiro filho da puta. Tocou uma, duas vezes. Émerson, cansado do jogo, se levantou devagar para abrir. Ricardo não gosta de esperar. Grita que é a polícia, conta mais três, quatro, cinco. No dia seguinte, os jornais estampam: policial mata desempregado por engano.





domingo, 10 de agosto de 2008

A Ordem do Mundo


Henry Alfred Bugalho

“O mundo não tem ordem”, o monge que movimentava os sessenta e quatro discos de bronze refletiu.
O ritual era simples: no início dos tempos, quando o mundo havia sido criado, todos os discos foram colocados na primeira de três hastes, os maiores na base, os menores no topo, uma torre cônica; sempre existiu um monge com a tarefa única de movimentar os discos, o objetivo era transportar todos eles para a terceira haste, porém nunca, mas nunca mesmo, um disco menor poderia ficar abaixo dum disco maior.
Por mais simples que isto pudesse parecer, jamais alguém havia conseguido perfazer a tarefa. Segundo as profecias, no dia em que todos os sessenta e quatro discos fossem alocados na terceira haste, o mundo acabaria.
Estes mesmos monges estudaram as relações entre vogais breves e longas nos versos e estabeleceram uma seqüência métrica para composição, conhecida como mātrāmeru.
Tanto o ritual quanto a métrica almejavam a perfeição, o supremo ideal, para os monges.
Certa manhã, Vidyacharan, após sonhos inquietos, chegou àquela conclusão: “o mundo não tem ordem”.
Não raro ele tinha pesadelos com os discos brônzeos e com o ato automático de movê-los rumo à completude. Nestes sonhos, Vidyacharan vislumbrava o fim dos tempos, mas também tudo que ocorreria antes disto.
Num destes sonhos, ele havia sido um sábio grego obcecado com o conceito de máxima generalidade, “o ser enquanto ser”; noutro, um matemático italiano, autor duma obra intitulada Liber Abaci, ou “Livro de Cálculo”, na qual ele apresentava ao mundo ocidental a importância de se adotar o sistema numérico arábico, incluindo o algarismo zero, e também a seqüência numérica inspirada nas descobertas métricas dos monges. Em outra noite, Vidyacharan era um pintor de afrescos, devastado pelo fracasso e pela busca da máxima perfeição e da mais precisa harmonia. Em outra ainda, um matemático francês que resgatava algumas descobertas do “Livro de Cálculo” e que implementava suas próprias conclusões e uma nova seqüência, através da qual obtinha, manualmente, o maior número primo conhecido.
Nas noites mais recentes, o monge havia sido um enxadrista cubano, à procura pelo adversário ideal para a realização da partida perfeita; numa bodega, conhece um marinheiro genovês que o desafia; após apenas poucos movimentos de abertura, o enxadrista se levanta, estende a mão e propõe empate. Aquele poderia ser o jogo perfeito, porém, um único deslize, uma única distração por parte dos jogadores o arruinaria. Para o enxadrista, melhor era viver a possibilidade do jogo perfeito, do que a ruína desta possibilidade.
Ele também havia sido um músico húngaro e, o mais inusitado, um autor português, que compunha livros como se fossem fórmulas matemáticas, e escrevia frases como se fossem linhas melódicas duma sinfonia, mas atormentando pelos enredos irrealizáveis que ele mesmo se propunha.
E, na noite anterior, Vidyacharan havia sido um físico americano que tentava compreender o caos e buscar ordem no aleatório. Foi então que a revelação — “o mundo não tem ordem” — o assolou.
Ele se sentou diante dos discos de bronze e, com mãos trêmulas, movimentou um deles. Toda sua formação o havia preparado para aquela tarefa, mas as visões noturnas minavam sua crença. “Seriam vislumbres de vidas futuras?”, ele se indagava.
Aterrorizado com quais sonhos as noites vindouras trariam, Vidyacharan deixou a esteira na qual tentava adormecer, adentrou o templo e acariciou os discos. Depois atou-os a seu corpo e mergulhou no rio sagrado, para sonhar o último sonho no colo de Brahma.
“O mundo não tem ordem”, pensou o monge, fundeando nas águas turvas do rio. Fechou os olhos. E constatou, para seu desespero, que estava errado, havia sim algum tipo de ordem, não compreensível, não mensurável, imprevisível, mas que unia todas as pontas dispersas, todas as perguntas sem respostas, todos os atos sem sentidos, todos os futuros não realizados, e presente nos astros, nos Vedas, nas paixões humanas e, até mesmo, nos discos brônzeos que afogavam Vidyacharan.





sábado, 9 de agosto de 2008

Enchendo Lingüistica: Writing for dummies

Dizem que só se aprende a escrever escrevendo, do mesmo jeito que só se aprende qualquer coisa tendo bastante prática. Às vezes eu me pergunto se é só isso, e se existe isso que chamam talento. O Henry já falou sobre isso, como eu tambéjm já falei, como muito se falou em todos os grupos de escritores sobre "inspiração e suação". É muito provável que não haja um manual.

De qualquer forma, encontrei uma lista bastante interessante para quem gosta de escrever. Se você tem vergonha de dizer que não é um gênio literário, e que escreve somente sob intensa inspiração dos deuses, de sua musa, da arte que o habita... leia e não conte a ninguém.

Além destes, recomendo também, vez por outra, estudar o idioma em que escreve.


Segue a listinha

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Bibliografia

Criação literária
CRESSOT, Marcel. O estilo e as suas técnicas. Edições 70, 1980.
FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. Ática, 1999.
COSTA, Lígia Maura da, e REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia - Estrutura e história. Ática, 1988.
CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. Caderno de análise literária. Ática.
MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. Ática.
BRAIT, Beth. A personagem. Ática, 1998.
GOLDBERG, Natalie. Mente selvagem. Como se tornar um escritor. Gryphus, 1994.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Martins Fontes, 1993.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Vozes, 1987.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Cultrix.
PERISSÉ, Gabriel. Ler, pensar e escrever. Arte & Ciência, 1998.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. Ática, 1999.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Ática, 1995.
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. Martins Fontes, 1991.
MARTINS, Nilce Sant'Anna. Introdução à estilística. T. A. Queiroz, Editor, 1997.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. Prosa I. Cultrix, 1997.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. Prosa II. Cultrix, 1994.
GARDNER, John. A arte da ficção - orientação para futuros escritores. Civilização Brasileira, 1997.
Ensaios de quatro autores. A personagem de ficção. Perspectiva, 1998.
MOISÉS, Massaud. A análise literária. Cultrix, 1996.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Perspectiva, 1992.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. Ática, 1988.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Perspectiva, 1993.

Conto
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Me alugo para sonhar. Casa Jorge Editorial, 1997.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. Ática.
MORICONI, Italo. Os cem melhores contos brasileiros do século. Objetiva, 2000.
MARIA, Luzia de. O que é conto. Brasiliense, 1992.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Como contar um conto. Casa Jorge Editorial, 1997.
GIARDINELLI, Mempo. Assim se escreve um conto. Mercardo Aberto, 1994. Cultura

Romance
DOURADO, Autran. Uma poética de romance. Matéria de Carpintaria. Rocco, 2000.
VIEIRA, Yara Frateschi. Níveis de significação no Romance. Ática.
NARCEJAC, Boileau. O romance policial. Ática.
RAY, Robert J. O escritor de fim de semana. Como escrever um romance com criatividade em 52 fins de semana. Ática, 1998.
FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Globo, 1998.
ZUCKERMAN, Albert. Como escrever um romance de sucesso. Mandarim, 1996.

Poesia
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. Cultrix, 1997.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. Poesia. Cultrix, 1989.

Roteiro
COMPARATO, Doc. Da criação do roteiro. Rocco, 2000.
FIELD, Syd. Manual do Roteiro. Objetiva, 1982.
FIELD, Syd. Quatro roteiros. Objetiva, 1994.
FIELD, Syd. Os exercícios do roteirista. Editora Objetiva, 1996.
CHION, Michel. O roteiro de cinema. Martins Fontes.
MEADOWS, Eliane. Roteiro para TV cinema e vídeo. Quartet, 1997.
REY, Marcos. O roteirista profissional. Ática, 1997.
HOWARD, David. Teoria e prática do roteiro. Globo, 1996.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Ampersand, 1997.

Dramaturgia
PALLOTTINI, Renata. Introdução à dramaturgia. Ática, 1988.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia. A construção do personagem. Ática, 1989.

Diversos
SANT'ANNA, Affonso Romano de. A sedução da palavra. Letraviva, 2000.
ANDRADE, Mario de, e SABINO, Fernando. Cartas a um jovem escritor. Editora Record, 1993.
SENNA, Homero. República das letras. Entrevista com 20 grandes escritores brasileiros. Civilização Brasileira, 1996.
MOREIRA, Luiza Franco. As mulheres de branco. Edusp.
PAIXÃO, Floriceno. Entrevistas do Le Monde. Ática, 1990.
BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. UNB, 1979.
PREGO, Omar. O fascínio das palavras. Entrevistas com Julio Cortázar. José Olympio, 1991.
JUNG, Carl G. e outros. O homem e seus símbolos. Nova Fronteira.
GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em prosa moderna. FGV, 1997.
BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Record.


Sugestões de Hermelindo de Oliveira, Josué do Prado Filho e Humberto dos Santos.


Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/criacaoliteraria





sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Poesia Concreta: Soneto


Muito de tudo


É tarde para decidir sobre essas coisas,
Essas que ficam em nós impregnadas,
As sobras do mundo nas estradas,
A poeira acumulada nos sapatos.

É inútil a incerteza dos destinos —
As coisas estariam explicadas
Haveria menos de nada
E tudo seria limitado.

Há muito de tudo,
Há, às toneladas
E é tão pesado.

Por outro lado,
Nessa vida
O que há

É pó.






O imenso e o infinito

Sete de abril de 19.....

É impressionante, Gilda. Como eu gostaria que você pudesse ver isso tudo. O telegrafista disse-me que a operação do instrumento que ele usa é muito simples. Mesmo assim, preferi apenas ditar a ele a mensagem para transmitir a você. Como não tenho muito tempo, e outras pessoas também desejam comunicar-se com o continente, despeço-me dizendo que estou muito bem. Seu. Sérgio
.”


— Meu Deus, Gilda.
— Sim. – Gilda enxugou as lágrimas – Encontrei isso hoje na minha caixa de correio.
— Isso não pode ser sério. Ou poderia?
— Não sei, Gessi! Não Sei! Não acredito nessas coisas... Mas é uma carta, e é muito parecida com o jeito que o Sérgio escrevia. Esse “despeço-me dizendo que” é muito a cara dele.
— E como você sabe que isso não é falso? Sei lá, pode ser alguém brincando, alguma ex-namorada dele.
— Não faço a menor idéia. Olha... deixa isso aí. Quer um café?
— Aceito.


Dez de abril de 19....

Minha doce Gilda. Não pude me comunicar nos últimos dias porque aportamos em uma ilha. Você não vai acreditar ao saber quem embarcou. Lembra-se do Peter, aquele moço canadense que ficou alguns meses na casa da Doutora Nélia? Ele mesmo. Eu o vi, até o cumprimentei, mas creio que ele não me reconheceu. Aliás, é uma coisa que tenho notado nas pessoas neste navio. Logo que sobem a bordo, parecem perdidos, apáticos, e isso dura por vários dias. De todo modo, estou aproveitando bastante. O mar está calmo e tenho-me ocupado em desvendar as alas desse gigante dos mares. Para minha satisfação, encontrei algo que você iria adorar se estivesse aqui: uma biblioteca. Assim que possível, volto a escrever-lhe.




Gilda entregou o papel à irmã. Os caracteres eram impressos como em um mimeógrafo à graxa, e não havia remetente no envelope.
— Você devia levar isso para a polícia. Alguém se passando por seu marido está mandando “mensagens telegrafadas”. Se o Sérgio tivesse morrido, vá lá, que centros espíritas há aos montes por aí recebendo chamadas do além. Mas ele está em coma! Você não acredita nisso tudo, acredita?
— Quer saber? Não sei em que acreditar. Mas isso do Peter me deixou intrigada.

— Consultório médico, boa tarde.
— Alô. Boa tarde. É do consultório da Doutora Nélia?
— Sim. Deseja marcar uma consulta?
— Na verdade, não. Aqui é a Gilda Menezes, fui vizinha da doutora. Eu poderia falar com ela? É um assunto de família...
— Um momento, por favor.
[ ...ouve-se Pour Elise... ]
— Alô, Gilda?
— Oi, Doutura.
— Minha secretária disse que era um assunto de família. Aconteceu alguma coisa com o Seu Clóvis?
— Não, doutora, O papai está ótimo. Obrigada por perguntar. O caso é outro. A senhora se lembra
daquele rapaz canadense que se hospedou em sua casa?
— Sim, o coitado. Foi tão triste... como soube?
— Como soube de quê?
— Peter sofreu um acidente de carro. Permaneceu em coma por meses, mas acabou falecendo. Eu lembro até a data. Foi no dia dez de abril.


Dezoito de abril de 19....

Estive uns dias sem comunicar-me porque o telegrafista do navio se ausentou. Não sei como, mas acredito que a tripulação deva ter seu próprio equipamento, já que é um instrumento importante em alto-mar. Mesmo assim, com a paciente ajuda de Peter, imagine só, aprendi a escrever em código Morse. Esta mensagem fui eu mesmo que redigi. E sabe que é bem fácil? Ontem enfrentamos nossa primeira situação realmente tensa a bordo. O Capitão, um homem inacessível cuja única imagem que tenho é uma silhueta negra que alguém disse “aquele é o capitão do navio”, esse Capitão anunciou estarmos retornando ao continente. O tempo piorou consideravelmente depois disso. Sinto muito sua falta. Espero que esteja bem.



— Estou começando a ficar com medo dessas cartas, Gilda.
— E eu, então. Sabe essa cena do capitão?
— Sim. O que tem?
— Há muitos anos, a primeira vez que saímos juntos, Sérgio me levou ao cinema, para vermos “Era uma vez na América”. Eu vi pela janelinha da sala de projeção a silhueta de um homem, e perguntei quem era. O Sérgio disse exatamente isso: “aquele é o capitão do navio”. Isso é assustador. Mas sabe... não é isso o que me assusta mais.
— Não? O que pode ser mais aterrorizante que isso?
— O quadro de saúde dele. O médico disse que o Sérgio está piorando. O organismo não reage mais ao tratamento, e as chances de óbito... Deus do céu... não gosto nem de pensar nisso. Ele estava se recuperando tão bem.


Gilda voltava do trabalho de ônibus. Em um sinal vermelho, cinco meninos atravessaram na faixa de pedestres. O menorzinho, que andava mais à frente, fez uma graça como um passo de dança. Abateu-se sobre Gilda um daqueles dejá vu, do pior tipo deles: os que dão certeza absoluta de “já vivido”, mas nenhuma lembrança de “tempo” nem “lugar”. Quando se aproximava de casa, um homenzinho exótico aguardava defronte ao seu portão. Vestia-se com uma formalidade um tanto cômica, de terno cor-de-canela e sapatos pretos.

— Tenho uma mensagem para a senhora. – disse o homemzinho entregando-lhe um envelope.
— Então é você que tem deixado essas cartas na minha casa! O que pensa que está fazendo? Eu vou denunciá-lo!
— Por favor, senhora. Não me interprete mal. Esse é o meu trabalho.
— Trabalho? É o seu trabalho importunar a família de pessoas doentes?
— Não, de forma alguma. Eu sou apenas um telegrafista.

Tendo dito isso, o homem virou de costas e desceu a rua sem olhar para trás. Gilda abriu o envelope ali mesmo.


Vinte de junho de 19.....

Finalmente estamos retornando à terra firme. É curioso quando se está há algum tempo em alto mar, sobre um oceano tão estável e que inesperadamente está-se num turbilhão e uma tempestade de tão grandes proporções que mesmo eu, que sempre apreciei tanto o mar, quis muito voltar ao continente. Sei que essa será apenas uma breve parada de emergência. Por isso mesmo, gostaria muito de revê-la. Venha até o cais do porto, para que possamos nos despedir como devem ser as despedidas. Sempre seu. Sérgio.



Gilda nem entrou em casa. Correu até a avenida e tomou um táxi.
— Hospital São Vicente. Rápido.

O trânsito, que era caótico àquele horário, ficou ainda pior. Uma passeata interrompeu as ruas do centro por três horas. Um mar de gente vestida de branco, com bandeiras e cartazes brancos, pedia “Paz”. A turba vinha na direção contrária à de Gilda, que desceu do táxi para percorrer o restante do trajeto a pé. Quanto mais tentava avançar, mais os caminhantes a empurravam de volta.

Muitos quarteirões à frente, um fumante despreocupado lançou o toco de cigarro ainda aceso na direção de um edifício antigo. A chama percorreu no ar o espaço da rua, do muro, do pátio, da pequeníssima janela do porão da fábrica abandonada de pães e biscoitos, onde uma nuvem de farinha e poeira levantou-se pela vibração de tantos milhares de pessoas em marcha. E poucos são os que sabem que uma nuvem de farinha, em tal ambiente como aquele porão, pode tornar-se uma bomba se uma chama, tal como aquela do cigarro, cair no meio dela. E foi o que aconteceu. O prédio todo explodiu, voando pelos ares. O mar de gente que caminhava tornou-se num instante em um mar furioso de gente que corria. E os prédios vizinhos à velha padaria explodiram junto, assim como muitos carros na rua, e até a motocicleta que entrega botijões de gás. E Gilda não pôde com as ondas de gente que se sobrepunham umas às outras.

Então ela tropeçou.

As ondas vieram sobre ela. E a arrastaram, e tornaram a submergi-la. E todo o peso do mar de gente caiu sobre Gilda. E todo o mundo, e o porto aonde ela queria chegar, que era apenas o hospital a trezentos metros de onde estava, tudo foi ficando distante, e mais distante, e mais, até sumir de vez.



Gilda.



Gilda.




Gilda abriu os olhos. Diante dela, o rosto tranqüilo de seu esposo, emoldurado por um céu tão limpo e tão azul como os que só viu no cinema. Sérgio sorriu.

— Ouve, meu amor. É o mar. O navio partiu, mas nós a resgatamos a tempo.

E era mesmo o mar. O mar imenso refletindo o céu infinito, esses que só parecem azuis e que na verdade não são. Finalmente, e juntos, Gilda e Sérgio estavam fazendo o tão adiado cruzeiro sem destino certo, mas que só muito raramente retorna ao porto de origem.





Laboratório Poético

poetrix


O fim do mar

Há tanto tempo no mar
Que mar não haverá mais
Quando o tempo, enfim, acabar.


“Canção” de quê?

"Minha terra tem palmeiras...
onde canta o..."
Como era o nome mesmo?


O eco dos homens

Grande é a imundície que há; e há, e como há.
Imunda é a gente má; e há, e como é má.
Gentis, já vi, há. Aqui? Não. Nem lá.


Das profundezas

Fiz, bem no fundo, no chão, um furo.
Lá, bem no fundo, onde é tudo preto.
E fui, bem no fundo, feliz por um tempo.


Previdência

Guarda essa vida, depressa.
Que outra assim, igual a essa
Só se vê depois que passa.






quinta-feira, 7 de agosto de 2008

histórias

Maria de Fátima Santos


Foi-se despindo, peça a peça. O fato e o camiseiro de algodão atirou-os para cima da cama. Depois espalhou pelo chão cada uma das meias, o soutiã e as calcinhas de renda. Ficou nua. Escurecia. Sobrava um amarelo ténue do que fora o dia que ela passara dando formação na empresa. Fizera um calor intenso na sala sob o foco do projector de acetatos e ela aguardando este momento. Deixou-se ficar nua por uns instantes. Os raios de sol espraiavam sombras de si pelo soalho. Sentiu-se bela ao olhar o espelho.
Com lentidão, numa expressão que, vendo, era de quem reza, retirou um pequeno estojo de cima de uma cómoda. Pegou uma tesoura. Dessas tesouras de tratar as unhas, pequenina. Abriu-a toda e pegou-a pelo meio. Colocou a ponta mais fina sobre a pele do braço esquerdo. Pressionou com o dedo indicador onde lhe brilhava um verniz rosado. Formou-se uma pequena reentrância no local preciso de onde retirara, há nada, duas pulseiras de osso e um relógio caro. Pressionou um nadinha. Persistiu na intenção de perfurar apenas a pele na superfície. Um toque muito certo, e ela movimentando os lábios como se pedindo, como dizendo prece. Vagarosa e mole, escorreu uma gota. Um pingo de sangue. Um só pingo. Reconheceu a dor igual às outras vezes – intensa e subtil, doce. Puxou a ponta de pele como se fora adesivo. Repetiu em zonas variadas. Numas puxava a pele devagar, noutras dava impulsos descolando-a numa vasta área.
Nua, de pé, no quarto mal iluminado pela lua que nascia gorda, nem escorria sangue mais que aquela gotinha e depois mais outra em cada incisão da tesoura. O ritual ansiado.
Observou-se um instante. Pulsante de vida, a beleza remanescente do seu corpo descuidado da protecção da pele. Sorriu-se.

Hoje, decidira: ficaria inteira, aplicaria a técnica laboriosa que sua mãe lhe ensinara para despir a parte posterior do corpo. Uma arte que ela praticava apenas uma vez por ano. Hoje queria sentir-se total. Sentir, depois, o prazer de ser, ainda assim, reconhecida. Reconhecida pelas mãos, pelo cabelo, pela singularidade da sua zona púbica, pelo torneado dos pés. Reconhecidos, dela, o riso, o timbre da voz, a gargalhada, as lágrimas. O olhar.
Desfez o cabelo muito negro e prendeu-o no alto da cabeça. Enfeitou-o com dois alfinetes de safiras. Foi compondo pelo corpo tiras estreitinhas de gaze que tingira de um tom de verde alface. Colocou nos pés chinelinhas de seda preta bordada a prateado. Cada uma das mãos calçou-a com luvas de renda muito branca. Na direita, colocou, sobre a luva, um vistoso anel. Uma gema enorme.
Volteou-se mais uma vez em frente do espelho.
Já a noite se desenrolara, já a lua galgara altura no céu, quando saiu.

Eram dezenas dançando.

..........

dizem que voltava cada um ao seu trabalho ainda recuperando a pele por debaixo dos fatos.
dizem que são apenas histórias...contados…





quarta-feira, 6 de agosto de 2008

A alma paulistana de Paulo Bomfim


Paulo Bomfim nasceu em São Paulo no dia 30 de setembro de 1926.Iniciou suas atividades jornalísticas em 1945, no Correio Paulistano, indo a seguir para o Diário de São Paulo. Foi diretor de Relações Públicas da "Fundação Cásper Líbero". Na TV, produziu "Universidade na TV" no Canal 2, "Crônica da Cidade" e "Mappin Movietone" no canal 4. Apresentou no Rádio Gazeta, "Hora do Livro" e "Gazeta é Notícia".
Seu livro de estréia foi "Antônio Triste", publicado em 1947 com prefácio de Guilherme de Almeida e ilustrações de Tarsila do Amaral, premiado em 1948 pela Academia Brasileira de Letras com o "Prêmio Olavo Bilac".

Outras obras: "Transfiguração" (1951), "Relógio de Sol" (1952), "Armorial" (1954), "Sonetos"(1959), "Colecionador de Minutos", "Ramo de Rumos" (1961), "Sonetos da Vida e da Morte" (1963). "Tempo Reverso" (1964), "Canções" (1966), "Calendário" (1963), "Praia de Sonetos" (1981),"Sonetos do Caminho" (1983), "Súdito da Noite" (1992). Suas obras foram traduzidas para o alemão, o francês, o inglês, o italiano e o castelhano. Conquistou o "Troféu Juca Pato" em 1981. É hoje o decano da Academia Paulista de Letras.



Antônio Triste


Esguio como um poste da Avenida

Cheio de fios e de pensamentos,

Antônio era triste como as árvores

Despidas pelo inverno,

Alegre, às vezes, como a passarada

Nos fins da madrugada.


Sozinho, como os bancos de uma praça

Em noites de neblina,

Antônio, protegido de retalhos

Com seu cigarro aceso,

Lembrava-me um balão que, multicor,

Se vê no firmamento:

Não se sabe donde veio

Não se sabe aonde vai.


Não era velho

Nem era moço,

Não tinha idade

Antônio Triste.


Quando as luzes cansadas se apagavam

E as trevas devoravam a cidade,

Antônio Triste chorava e cantava:

À luz de um cigarro, bailava e rodava

Pelas ruas desertas e molhadas.


Mas, certa noite um varredor de rua,

Viu muito lixo no chão:

Tanto trapo amontoado,

Quase um balão de São João!

Um resto de cigarro num canto da boca,

A mecha se apagara.

Antônio, o triste balão de retalhos,

Findara!


Soneto I


Venho de longe, trago o pensamento

Banhado em velhos sais e maresias;

Arrasto velas rotas pelo vento

E mastros carregados de agonia.


Provenho desses mares esquecidos

Nos roteiros de há muito abandonados

E trago na retina diluídos

Os misteriosos portos não tocados.


Retenho dentro da alma, preso à quilha

Todo um mar de sargaços e de vozes,

E ainda procuro no horizonte a ilha


Onde sonham morrer os albatrozes...

Venho de longe a contornar a esmo,

O cabo das tormentas de mim mesmo.



A Água


Despe, na solidão da tarde,

Tua roupagem manchada de quotidiano,

E deixa que a chuva molhe teus cabelos

E vista teu corpo de escamas de prata.

Pousa, em teus ombros, o manto dos lagos

E colhe no cântaro de tuas mãos

A música dos dias que adormeceram

No fundo de teu ser.

Mármores líquidos moldarão teu corpo.

Nuvem,

Penetrarás a carne da manhã.


fonte do resumo biográfico: http://www.academiapaulistadeletras.org.br/cur_35.htm





terça-feira, 5 de agosto de 2008

Saudades da Minha Terra

Joaquim Bispo

Sou camionista de longo curso. Passo os dias pelas estradas da Europa, rodeado de carros, mas sozinho, a ver desfilar cidades para lá das estradas e serras para lá das cidades, a trabalhar demasiadas horas por dia, a dormir mal e pouco, a levantar cedo. Este ano que passou foi particularmente cansativo. Parecia que o mês de Julho nunca mais acabava. Ansiava por voltar para a Minha Terra, tão bela e tão mal amada. Ah, quando chegasse, ia pôr o sono em dia e, depois, ia passar o mês inteiro de férias a visitá-la, a conhecê-la, a amá-la.

Assim que cheguei, fechei-me em casa, cerrei as persianas e ferrei-me a dormir, como se já não dormisse há semanas, o que não era completamente mentira. Queria recuperar o vigor, nem que para tanto gastasse dois ou três dias de férias. Durante horas incontáveis, dormi profundamente, pressentindo o meu corpo a relaxar, a distender-se, a ganhar as formas que a Natureza lhe quis dar. A certa altura, senti-me leve, solto, fluido. Acordei aéreo e atmosférico. Achei-me um pouco estranho mas, longe de me inquietar, aceitei-me e foi sob essa feição que parti finalmente a conhecer a Minha Terra.

Iniciei a viagem muito lentamente, como leve aragem, percorrendo a sua superfície. Subi o Alentejo langorosamente, acariciando a planície, a contra-pêlo. A Minha Terra parecia agradada. Mostrava-me, de vez em quando, o branco dos seus casarios. Avancei silencioso e morno. Balancei-me, delicadamente, no sobe e desce das pequenas elevações e das suaves baixas. Insinuei-me nos vales dos maciços centrais, explorando cada dobra, evaporando a geada de uma várzea aqui, ondulando o pasto de uma encosta acolá. Subi as serras atapetadas pelo mato, monte a monte, envolvi os cumes em névoa. Sussurrei segredos às fragas. Do alto dos talefes, alarguei a atenção, a escolher outras explorações. Entusiasmado, desci os declives, mais apressado que na subida, fiz ondular a cabeleira das florestas, deambulei por entre os troncos majestosos. Soprei sobre as gargantas, os riachos e os açudes. Desci às grutas. Brinquei com a água das fontes e das lagoas, deixei-me arrastar pelos caudais dos rios. Humedeci, liquefiz-me.

Agora eu era mar. As minhas ondas batiam nas arribas, lambiam as rochas de baixo para cima e estas ficavam a escorrer, lascivas. As vagas do meu corpo recuavam e logo voltavam, altas e empenhadas. No Algarve, brincavam por entre as rochas esburacadas, a fazer cócegas à Minha Terra. E ela a provocar, a abrir enseadas, a elevar promontórios, a estender cabos, atiçando o meu corpo líquido. As suas areias a arder, a chamar pelo meu afago refrescante. E eu fluía e refluía sobre as areias da Minha Terra, uma e outra vez, afagando-as numa dolência de amantes. No Minho a arrepiá-las com as minhas carícias geladas. E a entrar atrevido no estuário de Viana. A surpreender a Minha Terra com uma incursão inesperada na foz do Douro. E depois, grosso e seguro, a encher a Ria de Aveiro. E a retirar-me maroto e sabido. E a deixar um gosto salgado e sensual. Ao mesmo tempo, o meu corpo longo e ondeado roçava-se nos extensos areais do Sul, toque aqui, toque ali. A costa alentejana, cheia de refegos, a resistir mal. E eu a rebolar-me nos areais da Comporta e de Tróia, guloso e lúbrico. A experimentar, obsceno, o estuário do Sado, crescendo demorado em vagares maliciosos: Maré-cheia, maré-vazia. Iludindo. Insinuando Setúbal e apontando a Lisboa. Fluo e refluo. Engrosso. Em maré viva, franqueio a barra do Tejo, transponho a Ponte 25 de Abril e espraio-me em plenitude pelo Mar da Palha. E refluo, e volto com mais vivacidade. Uma e outra vez. Venço a resistência da Ponte Vasco da Gama, encho esteiros e valados e alcanço Vila Franca. E, fecundador, inundo a lezíria. Avassalador, imenso, cósmico.

Durante muito tempo, o meu espírito anda disperso pelo éter. Flutuo num limbo, sem energia nem densidade. Onde estou, por onde andei? Lentamente, tomo consciência de mim. Estou alagado em suores, humores, fluidos. Parece-me que a viagem demorou um mês inteiro, mas não durou mais que umas horas. Foram o suficiente para que o meu corpo e o meu espírito se unissem profundamente à Minha Terra. Dissolveram-se e voltaram a condensar-se. Inteiros. Refeitos. Apaziguados.

Nunca pensei que as minhas saudades dela fossem tão grandes!





domingo, 3 de agosto de 2008

Sugestão de Leitura





















40 Novelas de Luigi Pirandello




por Marcia Szajnbok


Em 2006, por conta dos 150 anos do nascimento de Sigmund Freud, várias instituições promoveram eventos para comemorar a data. Uma delas, a Oficina de Psicanálise Lacaniana, realizou um ciclo de debates que giravam em torno do tema “Psicanálise e Literatura”, do qual tive o privilégio de participar. O convite muito me alegrou, já que tenho interesse nos dois campos. A alegria, entretanto, cedeu logo a uma forte apreensão. Deveria falar sobre possíveis relações entre Freud e Pirandello, e o meu companheiro debatedor seria um professor da FFCLH-USP, especialista no autor. Socorro! pensei comigo. Meu conhecimento sobre Pirandello se resumia, então, à leitura de um ou dois contos e à vaga memória de uma montagem de “Seis Personagens a Procura de um Autor” da década de 70, por algum grupo amador... Tres meses depois, lá estava eu, na Casa das Rosas, em São Paulo, com um pouco mais de leituras e um texto preparado. Me perguntava que tipo de observações iria ouvir do tal professor, que supunha ser um senhor idoso, carrancudo e muito formal, que se dirigiria a mim e à platéia com um sotaque pedante e empolado.
Foi preciso um evento psicanalítico para que eu comprovasse, mais uma vez, a genial sacada de Freud: entre a realidade objetiva e a realidade psíquica, abre-se muitas vezes um abismo! O professor Maurício Santana Dias era um jovem, trajando calças jeans e mangas de camisa, muito simpático e informal que nos deu, a mim e ao público, uma aula magistral e apaixonada sobre a obra de Pirandello. Desse modo, aquele convite me serviu de acesso à obra de um autor que conhecia pouco, mas que, desde então, não parei de ler e reler.
Foi por esse caminho que cheguei às “40 Novelas de Luigi Pirandello” que a Companhia das Letras lançou há alguns meses, com textos traduzidos e organizados justamente por Maurício Santana Dias. Neste volume, encontra-se uma antologia de narrativas curtas, muitas delas publicadas esparsamente em jornais e revistas italianos, e organizadas por Pirandello a partir de 1920 sob o título de “Novelas para um Ano”. Elas constituem a matriz de tramas que reaparecem em romances e peças teatrais posteriores. Esta edição está organizada de tal modo, que é possível seguir os contos sucessivamente, segundo a ordem cronológica em que estão dispostos ou, no que constitui um aspecto muito interessante do livro, percorrer a gênese de um determinado texto teatral a partir de um núcleo de textos, ou de uma só narrativa.
Este volume nos oferece uma deliciosa síntese da obra de Pirandello. Para quem já é fã do autor, a oportunidade de ler uma tradução primorosa. Para os que o conhecem pouco, um convite para mergulhar neste desfile de personagens e situações que nos confrontam, a cada página, com sua acurada apreensão da vida e da natureza humana traduzida em farsa trágica.







40 Novelas de Luigi Pirandello

Tradução: Maurício Santana Dias

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 9788535911862

Ano: 2008






Imagem: Luigi Pirandello, pintado por seu filho Fausto Pirandello


Fonte da Imagem: polyphrenia.blogspot.com





sábado, 2 de agosto de 2008

Miopia

por Carlos Alberto Barros


Até quando, olhos,
Fingirão estar fechados?
Até quando chorará
O coração imaculado?

Até quando, olhos,
Usarão lentes escuras?
Até quando a ignorância
Passará longe das ruas?

Até quando, olhos,
Só terão visões do alto?
Até quando a cegueira
Continuará em seus assaltos?

Até quando, olhos,
Brilharão com falsidade?
Até quando lágrimas
Cairão na insanidade?

Eis que vos deixo um recado,
Ao menos isto vai engolir:
O que os olhos fingem não ver,
O coração finge não sentir...