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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O Conselho de Barinak

 

 
Na Madrugada dos Tempos – Parte 17
 
 

Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição

venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence.

Agostinho Silva

Filósofo, poeta, ensaísta, professor e filólogo português

(1906-1994)

Depois do choque inicial e da alegria dos hati, que se encontravam a acompanhar o ferido Tibaro, pela chegada dos seus conterrâneos, foi a altura de tratar dos assuntos mais práticos. Zia e as suas noras, Damla e Nadire, organizaram junto do povo a libertação temporária de algumas casas, para hospedar os estrangeiros. Os visitantes, no entanto, não mostraram grande simpatia pela ideia de serem separados. Os burros que acompanhavam a comitiva traziam o material para erguer as tendas com capacidade para os alojar a todos e aceitariam apenas que lhes indicassem o local para as montar.

Apesar da alegria de ver o seu filho vivo e a recuperar, o aspeto de Barinak, de que tanto ouvira falar, deixara-o tremendamente desiludido. Não passava de inúmeros casebres, onde as pessoas viviam como se fossem selvagens, sem roupas adequadas… e sem se lavar, conforme o seu nariz que não cessava de o informar. O próprio déms pótis vivia numa palhota daquelas, em vez de ter uma verdadeira casa com várias divisões, onde residir com toda a família. Como eram pobres e desengraçadas aquelas casas redondas comparadas com as belas e alvas casas de Hatiweik.

Erem levou Mirsulo e Savírio a ver o santuário, do qual os dois estrangeiros ouviram falar lá na sua terra, mas eles não pareceram muito impressionados. O curandeiro caminhou por entre as pedras, afagando com mais atenção aquelas que haviam sido diligentemente esculpidas por Asil. O chefe estrangeiro olhou pensativamente para o círculo inacabado e decidiu, contra a vontade do companheiro, que deveriam orar a Tarunte naquele local, como agradecimento pela salvação de Tibaro.

Mais tarde, os estrangeiros reuniram-se aos seus homens para serem iniciadas as montagens dos alojamentos onde passariam a noite.

Erem e Zia observaram o afã dos estrangeiros a erguer as tendas onde pernoitariam e logo ali comentaram a fantástica tenda central, maior que quatro das casas de Barinak juntas. Parecia impossível como podiam ter tanto tecido para tantas tendas, tão grandes e como montavam as estruturas tão rápido, prendendo-as ao chão com estacas e cordas. As roupagens deles, as armas, por ali se via possuírem conhecimentos muito superiores. Podiam ser um amigo poderoso, ou um inimigo muito perigoso.

Mirsulo e Savírio recolheram-se à tenda principal e mandaram chamar os homens que haviam ficado na aldeia com Tibaro. Era óbvio que queriam saber de tudo sem serem ouvidos e sem interferências. Erem, por sua vez, foi para a casa da reunião e mandou chamar Alim, Tailan e Lemi. Este último chegou apoiado num pau e com aspeto bastante débil; já estava febril há vários dias e as mezinhas de Nehir não pareciam nutrir qualquer efeito.

Erem queria saber o que achavam os seus amigos/conselheiros, dos visitantes e como deveriam agir para com eles. Todos concordavam que deveriam agir com cautela. Alim já conhecia Hatiweik, o seu povo e o déms pótis anterior, Taramor, que deveria ser o pai de Mirsulo; não achava que fossem perigosos, a menos que houvesse algo que eles quisessem muito e fosse-lhes recusado. Eram uma povoação com muita gente e aqueles homens que faziam parte da comitiva era uma pequena amostra de quantos podiam ser reunidos para a guerra. Negociara várias vezes com pessoas de lá e, embora tivesse de deixar algumas das coisas que trocara, como pagamento por comerciar, nunca teve problemas com eles.

— Não entendo. — O chefe franziu o sobrolho. — Deixar coisas? Então ias trocar coisas com o povo e tinhas de deixá-las?

— Não todas. — Esclareceu Alim. — Como era de fora de Hatiweik, tinha de pagar o que eles chamam taxa de comércio. Deixava uma cabra, às vezes três galinhas.

— A quem? — Erem insistiu.

— Ao déms pótis. — O antigo comerciante sorriu.

— O chefe? — Também Lemi estava confuso. — Ele andava pelas casas a pedir as coisas aos comerciantes?

— Não! — Alim soltou uma gargalhada. — Toda a povoação é cercada por muros altos e só se consegue entrar por dois ou três passagens onde estão homens do déms pótis a guardá-las. Se estás a sair da povoação com coisas que estás a comerciar, ou não és de lá e estiveste a fazer negócio, ou és de lá e vais negociar para outro lado. De ambas as formas tens de pagar a taxa ao déms pótis. Os homens e mulheres que vivem lá dentro também têm de pagar pelas coisas que fazem e trocam, também aqueles que trabalham os campos fora dos muros, ou os pastores e caçadores.

— Assim ele tem tudo sem fazer nada… — Concluiu Tailan. — Já vi essa povoação há muito tempo, mas nunca estive lá dentro.

— A verdade, — acrescentou Alim —, é que ele assegura a defesa da povoação com homens armados e esses homens recebem bens pelo seu trabalho. Claro que ele tem de tudo para si e para a sua família sem precisar de ir pescar, caçar ou trabalhar a terra. Mas todos pagam com a satisfação sabendo que não vão ser atacados por ninguém porque terão quem os defenda. Se alguém roubar alguma coisa a outro é castigado com chicotadas ou podem até cortar-lhe uma mão, os homens do déms pótis encarregar-se-ão disso.

Os outros três exibiram expressões de espanto e horror.

— Nós também cuidamos uns dos outros e se alguém achar que outro lhe tirou algo que lhe pertence vêm até mim e aceitam a minha decisão. — Observou Erem. — Se nos atacarem, vamos defender-nos. Todos caçamos, trabalhamos as terras e temos porções de comida iguais, eu encarrego-me de que assim seja… ninguém tem de me dar nada por isso.

— Se tivesses muita gente para todo o trabalho, não terias de o fazer. — Explicou Alim com simplicidade. — Só precisarias de dar as ordens.

O chefe calou-se por momentos, meditando nas explicações do conselheiro.

— Então achas que Mirsulo tem muitos homens e mulheres prontos a servi-lo, dentro da sua povoação? — Lemi mostrou-se preocupado. — E, portanto, uma grande força para lutar?

— Não tenho dúvidas. — Retorquiu o visado como o acenar de confirmação de Tailan. — Se, apenas para ir buscar o corpo do filho, traz consigo tantos homens como conseguiríamos juntar para uma luta, terá muitos mais, para defender a sua povoação e para manter a alimentação de todos.

— Devemos temê-lo, portanto. — Concluiu Erem com os olhos fixos no vazio.

— No mínimo, respeitá-lo e agradá-lo. — Alim acenou afirmativamente com a cabeça.

— … sem mostrar medo ou fraqueza. — Acrescentou Lemi, por entre o seu respirar difícil. — Devemos ser hospitaleiros, mas apresentarmo-nos como iguais.

— Agora que já tem o filho dele, e vivo, ao contrário do que esperava, que acham que fará agora? — O chefe enfrentou os seus conselheiros.

— Como o acho um chefe bom e justo, — começou Alim —, acho que quererá regressar à sua terra rapidamente para mostrar a todos que o seu herdeiro está vivo.

— Também pode voltar mais tarde com ainda mais homens e levar todos os alimentos que temos. — O tio do chefe continuava a temer a força do hóspede. — Viram que estamos preparados para nos defendermos, mas que somos poucos, comparados com eles.

— Não me parece que seja esse o modo de agir deste povo. — Interveio Tailan. — Como nós, estão fixos numa localização. Não são como os nómadas que podem destruir tudo numa região e depois simplesmente mudar-se. Eles devem preferir manter a amizade com os vizinhos, aumentando as possibilidades de comércio e mais vantagens para ele e sua família.

— Também concordo. — Afirmou Alim.

Lemi sentia-se um pouco perdido nesta nova teia de relações. Antigamente, as tribos seminómadas festejavam quando se encontravam e apenas se deviam temer nos períodos de fome.

— Então, — concluiu Erem —, devemos temê-los, mas mostrarmo-nos iguais. Respeita-los, mas não demonstrar fraqueza. — O chefe sorriu. — O meu filho Naci concordaria com essa última parte. O resto, duvido muito.

Tailan e Lemi acenaram afirmativamente.

— Naci tem-se dado muito bem com os estrangeiros. — Ressentiu-se Alim com uma expressão triste. — Mais com esses estrangeiros, do que com todos nós que vivemos aqui e partilhamos estas terras com ele. Pode ser que a sua atitude em relação a nós mude daqui para a frente.

— Pois chamemos então os nossos hóspedes. — O chefe ergueu-se decidido. — Partilharemos aqui a última refeição do dia com eles. Chamem as vossas mulheres e filhos. Vou escolher os nossos melhores para dançarem em volta da fogueira… dançarão a vitória sobre os homens-macaco e como caçamos e matamos os nómadas que nos roubavam. Perceberão que desafiar-nos tem consequências.

Os outros homens levantaram-se de seguida imitando o chefe. Tailan, com uma expressão divertida, curvou respeitosamente a cabeça e respondeu:

— Será como dizes déms pótis.

Manuel Amaro Mendonça

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16 - A embaixada

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Na Madrugada dos Tempos-Projeto

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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Definição

 


 





domingo, 17 de dezembro de 2023

Antigo instrumento

 




Então, ela foi reformada. Um velho instrumento que me foi dado quando eu tinha treze anos. Em função de alguns fatos, ela acabou não sendo descartada e por fim retornou a mim. Assim que tive dinheiro e vontade, decidi ressignificá-la totalmente. Foi preciso trocar de braço para que seu principal problema fosse corrigido. Porém, ele não foi jogado fora, pendurei-o na minha parede, símbolo de mim, como aquela escultura que representa eu e meus irmãos, antes de nascermos. Uma espécie de sinal de via-férrea, que, ao invés de avisar que aqui passa um trem, existe aqui um olhar terno e conciliador manifestado através dos power-chords que aprendo com meu sobrinho nas aulas de guitarra.










domingo, 10 de dezembro de 2023

Meu primeiro Natal sem Papai Noel

 


Cedo, acordei meu pai. Era o dia combinado para a montagem da Árvore de Natal. Sentei-me ao lado dele na mesa do café da manhã para garantir que começássemos logo. Finalmente chegou a nossa vez de montar a árvore, escolher os enfeites, as cores. Minha mãe também enfeitava a árvore, porém temos o gosto um pouco diferente uma da outra. Pelo meu tamanho, não consigo fazer tudo sozinha e meu pai aceita mais as minhas ideias para a decoração.
Subimos ao sótão e descemos o material. Peguei várias caixas de papelão com as bolas e enfeites de Natal. Minha árvore seria colorida. Também teria muitas luzes de tom azul.
Meu pai armou a árvore com a maior paciência e arrumou cada um dos galhos com muito cuidado. É inacreditável como algo daquele tamanho cabia numa caixa tão pequena. À medida que a árvore crescia, ele explicava que cada um dos enfeites tinha uma simbologia, um número certo de bolas, de sinos, de anjos e até me disse o que representavam as bengalas.
– Não são doces, papai?
– As bengalas representam os cajados dos pastores e do Pastor maior, Jesus Cristo, que conduz o seu rebanho rumo à salvação – disse papai.
– Muito legal tudo isso pai, mas eu quero muito mais na minha árvore, preciso enchê-la de enfeites. Colocamos as doze bolas e os três sinos na parte da frente, mas quero colocar muito mais nas outras partes dela.
– Claro querida, ela é sua!
Depois de tudo montado, restou colocar a Estrela-Guia no topo da árvore. Meu pai segurou bem firme a escada e eu, esticando o braço o máximo que pude, coloquei-a. Foi como se eu exibisse o meu troféu.
Olhei com atenção para o pinheirinho e achei que estava faltando alguma coisa.
– Pai, onde está o Presépio? – perguntei.
Para minha surpresa ele apanhou uma caixa nova, abriu com todo cuidado e começou a desenrolar cada uma das personagens que representavam a Natividade. Era um Presépio bem maior que o que tínhamos.
Me detive aos Três Reis Magos, questionei:
– Por que eles entregam presentes ao Menino Jesus?
– Era costume, quando se visitava um rei, presenteá-lo. Eles haviam seguido a Estrela que, segundo as profecias, os levaria ao Rei dos Judeus. Nem imaginavam que encontrariam um Menino humilde, um Pai dedicado e uma Jovem Mãe que adorava o filho. Mas reconheceram sua realeza, reafirmada pelos anjos que os orientaram.
– É por isso que ganhamos presentes no Natal?
– Alguns dizem que sim e que mais tarde o Papai Noel assumiu o papel de distribuir presentes para as crianças, como uma forma de se lembrar do Espírito do Natal.
– Como na história do Nicolau, naquele filme que assistimos?
– Sim, querida.
Chegou a hora certa. Eu faria a pergunta que não saia da minha cabeça desde o começo do ano, mais precisamente desde o início das aulas, quando eu entrei no sexto ano. Eu perguntei para minhas amigas o que elas haviam ganhado do Papai Noel e elas riram de mim, me chamaram de criancinha ingênua e me disseram que o Papai Noel não existe, que são nossos pais que compram os presentes e os colocam debaixo da árvore no dia de Natal.
– Pai, Papai Noel existe mesmo?
– O que você acha? – respondeu-me ele com uma pergunta.
– Eu sempre acreditei na existência dele, mas estou com dúvidas. Na escola eu sou a única que acredita. Acredito porque você sempre me contou histórias dele e garantiu que ele existe.

– É bom ou não que ele exista?
– Pai, não fuja da minha pergunta. Por favor, ele existe ou não existe?
– Para mim, sempre existiu. – Afirmou papai.
– Então me diz uma coisa. Por que no Natal do Ano passado você me fez aquela pergunta quando estávamos no shopping?
– Que pergunta?
– Você queria saber o que eu havia pedido ao Papai Noel em minha cartinha. Insistiu para que eu dissesse, melhor, insistiu que eu mostrasse na loja de brinquedos o que era. Depois você saiu, enquanto eu e a mamãe fomos até uma outra loja e, depois, encontramos o senhor voltando do estacionamento.
– Só fui levar algumas das sacolas e pegar o cartão do estacionamento que eu havia esquecido dentro do carro.
– É! Coincidentemente, o presente veio embrulhado com o papel da loja onde eu lhe mostrei o brinquedo!
– Entenda, o Papai Noel fez de tudo para lhe agradar, por ser uma menina boa. Até o papel da loja ele foi buscar!
O olho direito do meu pai começou a tremer e ele não consegui olhar diretamente nos meus olhos. Será que poderei continuar confiando nele? Se o Papai Noel não existe, será que meus pais contam outras mentiras para mim? – Fiquei pensando.
O Menino Jesus já estava na manjedoura. Pronto! A árvore estava concluída. Eu saía para dar a notícia para a minha mãe quando meu pai me chamou:
– Filha, ainda não arrumamos a lareira. Precisamos pendurar as botas!
– Acho que não será preciso.
– Não quer nada neste Natal?
– Querer, eu quero.
– Então, se não pendurar as botas, onde colocará a cartinha para o Papai Noel?
– Papai Noel existe?
– Para mim, sempre existiu. – Reafirmou meu pai.
– Pai, não sei se acredito em você.
Senti a tristeza no olhar de meu pai e vi uma pequena lágrima escorrendo em sua face.
– Filha, algumas coisas em nossa vida são mágicas e precisam de fé. Fé é acreditar em algo que não se viu, que não se sentiu no momento em que aconteceu, mas que existem sinais e testemunhos de que são reais. Temos elas como verdade e que nos faz bem acreditar.
– Assim como o nascimento do Menino Jesus?
– Sim, como o nascimento Dele ou como nos ensinamentos Dele.
– Mas com o Papai Noel é diferente. Eu estou vivendo isso, sentindo isso, não é preciso que alguém me conte sobre isso, pai.
– É, você já está mocinha, pode fazer as suas escolhas. Sempre pôde escolher no que acreditar. O que eu posso ainda lhe dizer é que eu continuo acreditando na magia do Natal, na vinda do Salvador e isto me faz bem.
– Pai, vou continuar acreditando em você. Vou fazer a cartinha.
– Que bom!
Ele me deu um abraço bem forte.
– Pronto, as botas já estão penduradas. Quando quiserem, você e seus irmãos já podem colocar as cartinhas.
– Certo, a minha carta vou lacrar e a minha bota fechar com cola quente.





sábado, 9 de dezembro de 2023

Drama


Ansiosa, vê-o deslocar-se pela divisão soturna, misto de sala e cozinha, com a segurança de quem memorizou há muito os percursos mais curtos e eficientes. A cadeira de madeira é incómoda, mas nem se atreve a mexer-se receosa de que se der nas vistas a expulse apesar da tempestade. Sente-se uma intrusa na casa onde nasceu e de onde foi levada aos três anos, logo após a morte da mãe. Poucas ali viveu depois disso, mas do pouco que recorda a sala está diferente, mais austera, sem nada de supérfluo exceto uma pequena moldura barata com a foto da mãe.

Fora uma péssima ideia ter feito a longa viagem até à aldeia, mas não tinha dinheiro nem para onde ir e um pai sempre é um pai. Mas fora um tremendo erro ter gasto assim os últimos tostões. A expressão que lhe vira quando lhe tinha aberto a porta provara-o. Se não tivesse começado a chover fortemente naquele momento exato e ela com a filha nos braços nem a teria deixado entrar. Assim, de mau modo, indicara-lhe um pequeno sofá desbotado a um canto onde a deitara, tapando-a o melhor que podia com o seu próprio casaco, apesar de ter apanhado alguma chuva.

Via-o agora a caminhar de um lado para o outro, ignorando-as totalmente, a preparar uma refeição que só esperava poder partilhar. Nada comera todo o dia, poupara o pouco que lhe restava para a camioneta e para o táxi até ali.

Nem podia sentir-se ofendida, o pai, afinal, não era seu pai, como lhe revelara a tia antes de morrer. Nascera fruto da violação da mãe por um antigo namorado, que nunca lhe perdoara ter escolhido outro. A mãe nunca recuperara totalmente, tendo definhado até morrer. E ela fora logo recambiada para casa da tia, com o pretexto de que um homem sozinho não saberia criar uma criança. Mas a razão era outra, muito loura e de olhos claros, tinha herdado os traços do pai.

Apesar de imóvel, a sua mente trabalhava a cem à hora, tentando encontrar argumentos para o convencer a deixá-las ficar, pelo menos até descobrir um modo de refazer a vida. Não tinha culpa do que acontecera à mãe nem de ter perdido a tia, ficando sozinha aos dezasseis anos, tendo então sido recambiada para a aldeia de um pai que mal conhecia e que claramente não a queria ali. O namorado, bom, esse era culpa sua, mas fora apenas uma tentativa de escapar do tédio sem futuro daquele povoado perdido nos montes e que tivera más consequências quando as promessas de diversão e amor se converteram em pequena criminalidade, traições sem fim e finalmente o abandono quando a presença de uma bebé se tornara demasiado incómoda para a vida de farra que pretendia ter.

E aqui estava ela, sem estudos, sem nada saber fazer, sem dinheiro ou casa e com uma filha nos braços. Esta era a sua última esperança. Se não a aceitasse de volta, não fazia a menor ideia do que poderia fazer, passara os últimos meses em pensões cada vez mais manhosas, as únicas que um outro trabalhito lhe permitiam pagar, mas esses escasseavam cada vez mais, havia muitos desempregados, porque empregariam alguém sem aptidões?

Foi com alívio que viu que, de má vontade ou não, tencionava dar-lhes de comer. Pelo menos encheria a barriga por uma vez e mal seria que não as deixasse passar ali a noite, era tarde e lá fora a tempestade aumentava de tom. Bem comida e com uma noite bem dormida, as coisas talvez parecessem menos trágicas de manhã.

De repente, reteve o fôlego. A filha virara-se, claramente pouco confortável no velho e estreito sofá, ficando agora deitada de costas. E numa das suas idas ao armário que lhe servia obviamente de louceiro e despensa, o pai parara de chofre, ficando a observá-la. Depois, da última prateleira do armário, tirou uma manta que mesmo de longe parecia bem fofa e quentinha. E, com todas as cautelas, aconchegou-a em torno da neta de dois anos que nunca vira e que tanto se parecia com a mulher que adorara e cuja morte o transformara numa espécie de zombie, sem vontade ou emoções.

Luísa Lopes





domingo, 3 de dezembro de 2023

NA LÁPIDE

 

 

                                             (Lápide de Augusto dos Anjos)

Por Milton Rezende


Poeta, venho visitar

o teu túmulo de ossos

(o que restou de ti

nessa existência às avessas).

Mas os teus versos,

inscritos na vida

como numa pedra tumular

do tempo eterno,

subsistiram aos vermes

que agora me espreitam

e até mesmo a essa imensa

capacidade de esquecimento

que adquirimos como herança.

E é por isso que estou aqui,

e não para prestar homenagem

a uma pequena porção de terra

onde te esconderam na ilusão

de privar-nos de tua sábia

e triste companhia que amamos.

E através deles (os teus versos)

tu nos comunicaste o sentido do efêmero

e a maneira mais artística e correta

de desconsiderá-lo.