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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Lançamento da Antologia FCdoB - Ficção Científica Brasileira


Uma experiência mal sucedida liberta uma criatura do futuro. Seria possível viajar para o Além e voltar de lá? Uma nanopraga pode transformar toda a humanidade? Qual seria o impacto sobre nossas vidas se o Sol repentinamente esfriasse? Transferência de memórias versus invasores extraterrestres numa atmosfera surrealista. Seria a realidade apenas um sofisticado software? A engenharia cibernética determinará nosso destino? Como seria conviver com seres de outra dimensão? Sagas distópicas amazônicas, guerras genéticas em guetos radioativos, viajantes do tempo-espaço, traficantes de implantes, vermes telepatas gigantes, hecatombes nucleares, clonagem, simbiontes, criaturas bíblicas congeladas, alegorias sobre a extinção final e o paraíso virtual, quando a ciência das supercordas esbarra com o divino…

O FC do B oferece estas e outras inquietações na forma de 26 contos selecionados através de seu concurso literário. Uma amostra da melhor FC Brasileira da atualidade.

______________________________________

A Literatura de Ficção Científica Brasileira levou muitos anos para se formar, adquirir estilo próprio e deixar a marginalidade dos gêneros. Hoje ela reúne publicações de grandes mestres da literatura nacional, escritores que entendem que para que a literatura acrescente algo a quem nela mergulha, é necessário mais do que a própria história: estilo, estudo, linguagem, forma e, acima de tudo, um trabalho árduo, que faz com que o momento de lazer proporcionado pela leitura, se torne uma experiência rica e inesquecível para o presente, o futuro, e – porque não? – para o nosso passado. Seja bem-vindo ao nosso futuro, hoje!

Dados Técnicos:

Autoria: Vários Autores
ISBN: 978-85-61541-21-7
Edição: 1ª edição
Páginas: 208
Formato: 14×21cm
Ano: 2009

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http://www.tarjalivros.com.br/detalheprod.asp?produto=45





quarta-feira, 25 de novembro de 2009

68, o ano que nem começou (Big Bang - Capítulo 2)

Em Nova York, um formigueiro humano fervilha por dezenas de quarteirões da estação de metrô Queensboro Place até as margens do rio East River. As águas são escuras, o ar é pesado, malcheiroso e quente. Os galpões industriais foram transformados em acampamento. Milhares de pessoas afunilam-se na ponte Queensboro, ocupando-a completamente. Outra multidão, bem menor, bloqueia o acesso à ilha de Manhattan. Todos os túneis e demais pontes foram igualmente bloqueados, tanto os da Grande Ilha quanto os do continente. O cerco à Manhattan já dura meses.



Aproximo-me até discernir construções, veículos e rostos. As pessoas compartilham grandes cilindros azuis de oxigênio, revezando as mascaras constantemente. Encostada no alambrado amarelo da ponte, embaixo das grandes armações de aço, reconheço a face de uma mulher idosa com uma familiar meia lua no centro da testa. Quantas décadas sem reencontrá-la? Helenice, no meio da ponte W, olha para a esquerda, entre as duas velhas chaminés da Marupi e um painel holográfico na margem do rio onde a defasada frase “Happy 2068 New Year” tremula falhando. Seus olhos vão além do extremo sul da ilha Roosevelt Island sob a ponte. Desejam o mesmo alvo de todos ao seu redor: a sede da ONU.

Muitos carregam faixas e cartazes, mas Helenice, tal qual alguns, carrega um disco preto nas mãos. O que eles querem é apenas consumar um ato simbólico, já efetuado em quase todas as partes do mundo: depositar um disco holográfico em cada assento que tenha sido ocupado por um poderoso.

Por todos os lugares do mundo, de um lado, sessenta famílias controlando toda a riqueza do planeta enquanto seus aparatos de poder reagem violentamente ao que chamam de desordem das massas. Do outro, milhões de pessoas invadem no mesmo instante os gabinetes corporativos e governamentais. São os braços de três bilhões de sobreviventes que se organizam mundialmente através da Grande Rede e deliberam regras para regular a desordem esgotadora de pessoas e natureza que perdurou por mais de cinco séculos.



http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/





terça-feira, 24 de novembro de 2009

Só a semente

(Maristela Scheuer Deves)

A vida é feita de sonhos,
que vêm e vão
Vêm com esperança, vão com desilusão.

Mas a semente fica, embora o sonho morreu;
Mas a semente fica, esperando a chuva
que de algum lugar virá
Que de algum lugar virá, antes que seja tarde
Antes que a semente
morra também.





domingo, 22 de novembro de 2009

Alô, Waldirene?

por Barbara Duffles

1: Seu problema é autoboicotismo crônico, senhor.

2: E o que seria isso?

1: Simples. O senhor sabota sua vida. Coloca empecilhos para justificar sua depressão – que eu inclusive acho que o senhor saboreia.

2: Eu saboreio minha depressão??

1: Sim. No fundo, o senhor gosta de ser um loser. Chorar suas pitangas para os amigos, dizer-se impróprio para a vida.

2: Mas eu sou mesmo. Minha vida não caminha. Vejo os outros correndo por fora. Eu não luto e nem tenho forças para tal.

1: Loser, senhor.

2: Pare de me chamar de loser!

1: Não grite comigo, senhor.

2: Eu quero morrer. E vou fazê-lo esta noite.

1: Isso é egoísmo, senhor. Pense no sofrimento dos que vão ficar.

2: Então vou para um mosteiro. Vou me enclausurar.

1: É uma maneira covarde de fugir da vida, não acha?

2: Ah, me ajude, então, o que eu devo fazer?

1: Para começar, pare de ligar para mim. Eu não posso lhe ajudar.

2: Mas a sua voz me acalma.

1: O senhor não tem amigos? Precisa importunar uma operadora de telemarketing todos os dias?
2: Você é minha única amiga, Waldirene.

1: Eu nem sei seu nome, senhor. Com licença, preciso atender outra ligação.

2: Alô??? Waldireneeee!





Crepúsculo- Resenha por Giselle Sato


Crepúsculo
(Twilight -2008)



O filme começa com um clima normal, uma adolescente como qualquer outra, Isabella Swan (Kristen Stewart) se muda para Forks, uma cidade pequena, nublada e chuvosa, perto do estado de Washington. A razão da mudança, é o novo casamento da mãe, com um jogador de baseball da segunda linha. E a vontade da mesma, de viajar com o marido, o que não poderia fazer, morando com Bella. A reaproximação com o pai, a escola onde é o centro da atenções e o reencontro com o amigo índio, dão um enfoque inicial bem tranqüilo.

O que Bella não contava, era com o fascínio que uma estranha família, causa em seu mundo tímido e triste. Os Cullen, são um grupo de jovens pálidos, lindos e arredios. Razão por si só, motivo de muita curiosidade. Em especial, o mais jovem dos irmãos, Edward Cullen (Robert Pattinson), um garoto de uma beleza e magnetismo, atordoantes e irresistíveis. Depois ela descobre que ele é um vampiro, e se desenrola um romance, o grande mote da historia.

Eis a sinopse do filme, com pitadas de situações onde a jovem é salva pelo amado e todas as informações aprendidas nos antigos filmes sobre vampiros. Quem assistiu Entrevista com o Vampiro, Harry Potter, Van Hensing e outros, sabe muito bem do que estou falando. Sobreviver com sangue humano ou animal? Resistir à sede e lutar contra os maus da espécie ou dar vazão a todo poder e ferocidade? Um bom fã de vampiros, conhece de cor e salteado. Então, o que tornou uma série, escrita em 2005 por uma escritora novata, um fenômeno? Vamos entrar neste universo sobrenatural...

Se tratando de um primeiro episódio de uma série, esse é um filme mais completo, com um início, meio e fim. A história, para muitas adolescentes, é linda, maravilhosa e romântica.
Romeu e Julieta do século 21, cenários lindos e a realização dos sonhos de qualquer mortal: viver a emoção de um imortal, escalando arvores altíssimas, vendo o mundo sob um ângulo completamente diferente. E é claro, não podemos esquecer: a dor do amor frustrado, proibido, entre uma humana e um vampiro.

Ele representa o perigo, ela é uma garota diferente, que não teme o desconhecido. Estão tão envolvidos, que precisam lutar contra as inquietações desconcertantes, tão comum aos jovens e aprender a controlar seus impulsos.

Bella, aos dezessete anos, é a mistura perfeita de pureza e libido.
Edward tem sede, não de sexo, mas do sangue da amada. Querem situação mais erótica e provocante? Muitas cenas, insinuam um beijo que nunca acontece... E envolvem o publico em uma torcida apaixonada.

Enquanto isso, sensualidade, paisagens belíssimas, efeitos especiais, romance e fantasia interagem. Não foi à toa que o filme virou febre e conquistou altíssimas bilheterias. Devo admitir que o filme é delicioso e por alguns minutos, senti vontade de ter todos aqueles poderes. Quem não sentiria? Impossível resistir...

E é claro, encontrar um vampiro tão encantador quanto Edward, personagem que Stephenie Meyer, a autora, construiu em uma trama de extraordinário suspense e que marcou sua estréia literária.

Vale citar que seus livros já venderam mais de 25 milhões de copias e foram traduzidos em 37 idiomas. A saga é contada em quatro livros, e o segundo volume, Lua Nova, já estreou nos cinemas. Posso adiantar que neste filme, Jacob Black , o amigo índio de Bella e que já deixou indícios, de ser um lobisomem, tem grande destaque na trama.

Crepúsculo vale a pena ser assistido, por todas as razões acima citadas e principalmente porque foi feito para entreter.
Por alguns minutos, deixe a realidade lá fora, e no escurinho do cinema, liberte o jovem dentro de si e deixe-se levar pela magia.




"Quando a vida lhe oferece um sonho muito além de todas as suas expectativas, é irracional se lamentar quando isso chega ao fim"


(trecho do livro)

Diretor: Catherine Hardwicke
Roteiro: Melissa Rosenberg

Com: Kristen Stewart, Robert Pattinson, Billy Burke, Ashley Greene, Nikki Reed, Kellan Lutz e Taylor Lautner.





Autora: Stephenie Meyer formou-se em literatura inglesa na Brigham Young University. Sobre este romance (Crepúsculo), ela diz: "Sempre admirei a capacidade de alguns escritores de criar situações de fantasia impossíveis e depois acrescentar personagens que são tão profundamente humanos que suas perspectivas tornam a situação real. Espero que Crepúsculo proporcione a mesma experiência a seus leitores". A escritora mora com o marido e três filhos em Glendale, no Arizona.




Descrição da Saga:
Crepúsculo: O início da saga de Isabella Swan desde sua chegada a cidadela de Forks e a descoberta de sua paixão pelo vampiro Edward Cullen no best-seller mais cultuado da atualidade. - 416 páginas


Lua Nova: Para Bella Swan, há uma coisa mais importante do que a própria vida: Edward Cullen. Mas estar apaixonada por um vampiro é ainda mais perigoso do que ela poderia ter imaginado. Edward já resgatara Bella das garras de um mostro cruel, mas agora, quando o relacionamento ousado do casal ameaça tudo o que lhes é próximo e querido, eles percebem que seus problemas podem estar apenas começando... Em Lua Nova, Stephenie Meyer nos dá outra combinação irresistível de romance e suspense com um toque sobrenatural. - 480 páginas



Eclipse: Enquanto Seattle é assolada por uma sequência de assassinatos misteriosos e uma vampira maligna continua em sua busca por vingança, Bella está cercada de outros perigos. Em meio a isso, ela é forçada a escolher entre seu amor por Edward e sua amizade com Jacob - uma opção que tem o potencial para reacender o conflito perene entre vampiros e lobisomens. Com a proximidade da formatura, Bella vive mais um dilema: vida ou morte. Mas o que representará cada uma dessas escolhas?
-464 páginas


Amanhecer: Na aguardada conclusão da saga Crepúsculo Bella se vê a frente da difícil decisão da escolha fatal entre fazer parte do obscuro, mas sedutor, mundo dos imortais ou seguir uma vida totalmente humana. Escolha essa, que poderá significar a transformação do destino dos dois clãs: vampiros e lobisomens. Assombroso e de tirar o fôlego, Amanhecer esclarece os mistérios e os segredos desse fascinante épico romântico que tem arrebatado milhões de leitores. - 576 páginas





sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Lascívias viáveis

Léo Borges



Alguns desejos são traídos pela lógica,
outros, conquistados pela inocência.
Todos atraídos pela vontade de ontem.


Em cômodos, estes pecados se travestem,
incômodos trazidos por meias promessas.
Tolos pactos impregnados de noite.


Por fim, alças caem dentro de trapaças.


E orgasmos surgem no auge da mentira.





Invasão nas ondas médias

Léo Borges



– Doces ou travessuras?


– Como “doces ou travessuras”? Como seus pais deixam vocês soltos numa noite como esta? Não estão ouvindo as notícias?


O tenente Mark Budd não entendia como algumas crianças mantinham as inocentes brincadeiras do Dia das Bruxas mesmo com a tensão que pairava sobre aquele 30 de outubro. Capetas e vampiros desavisados ainda perambulavam pelas ruas, ignorando a batalha incipiente, fidedignamente transmitida pela Rádio CBS.


O militar estava transtornado. Participara da guerra de 1914 no apoio dos Estados Unidos à Tríplice Entente como soldado raso, onde sofrera ferimentos de todo o tipo (além do psicológico abalado pela morte dos colegas de farda) e agora se via novamente frente à outra, talvez ainda mais devastadora.


– Mulher, você não vai acreditar! Notícias e mais notícias sobre a assombrosa invasão marciana e idiotas vestidos de diabos e bruxas aí fora desfilando!


Rose Budd, assustada desde que sintonizaram o drama nas ondas médias, via sua aflição aumentar gradativamente com o pânico disseminado pelo professor Pierson, codinome do produtor radiofônico Orson Welles. Este narrava o estranho episódio de OVNIs que invadiam o espaço aéreo americano e, vez por outra, abria espaço para que gritos histéricos de repórteres e de pessoas sendo caçadas por insuspeitos seres esverdeados fossem levados a toda a nação. Muito longe de ser uma tragédia comum, aquilo era uma impensável ocorrência extraterrestre. Alienígenas estavam atacando o mundo e a tecnologia dos novos aparelhos de radiofreqüência servia apenas para que o medo se espalhasse mais rápido.


– Meu Deus, Mark! Estamos nos curvando para esses seres de Marte!


O tenente Budd, procurando ripas no sótão, não ouviu o comentário. Estava mais preocupado em encontrar objetos que pudessem ajudá-lo a lacrar as possíveis entradas, dificultando, assim, o acesso dos inimigos verdes à sua casa. Ainda incrédula, Rose mudou de estação para ouvir o que outras rádios poderiam estar falando sobre o terrível acontecimento. Captou uma estação com notícias internacionais:


A poetisa Gertrude Stein continua defendendo a entrega do Nobel da Paz de 1938 ao líder alemão Adolf Hitler. Este posicionamento é compartilhado por Chamberlain, que acredita nas promessas deste novo ícone mundial. Robert Kolgest, analista geopolítico presente aqui em nossos estúdios, crê que, através destas conexões políticas, a paz vigorará inexoravelmente neste planeta no início da nova década...


– Ora, Rose – interrompeu Mark –, estamos vivendo uma guerra dos mundos e você muda o dial para alguém falando em “paz na nova década”?! Não sabemos nem se vamos estar vivos em 1939! Quem quer saber sobre Nobel da Paz neste momento? Volte para a CBS!


A história da guerra interplanetária ganhava força no boca a boca e as ruas, aos poucos, se esvaziavam, com os foliões, em fuga, abandonando suas fantasias. Welles era enfático ao informar que muitos já haviam sucumbido ante os raios de esquisitas armas e os que ludibriavam a morte eram, de qualquer modo, cooptados e tinham a consciência subtraída; o Halloween, de mera ficção, ganhava personagens reais. Rose, subitamente, lembrou-se dos pais, idosos, moradores do quarteirão vizinho.


– Vou ver meus pais – disse e saiu por uma janela que ainda não fora vedada.


– Está louca?! Quer ser abduzida? Eles estão bem! Meu sogro não saiu de casa nem para saudar Roosevelt em seu comício! Não é agora, no meio dessa calamidade, que o velho vai botar a cara na rua.


– Você é das Forças Armadas! Devia estar fazendo alguma coisa além de se acovardar escorando madeiras nas portas e janelas! – berrou a mulher, nervosa com o marido.


Rose saiu sem olhar para trás. O dever de cuidado com seus pais era maior do que o temor por encontrar bizarros ETs pela frente. Corria aos tropeções sob os olhares atônitos de pessoas escondidas em suas casas, agora transformadas em verdadeiras fortalezas.


No meio do caminho, chorou. Com tanta tecnologia bélica o homem ainda era incapaz de fabricar armas que evitassem um problema de tal magnitude. Mas, esperar o quê de seres que constroem um opulento e, afirmado pelas autoridades navais, extremamente seguro navio para, logo em sua primeira viagem, afundar? Isso sem falar na bestialidade da sangrenta guerra – esta puramente humana – de vinte e quatro anos atrás. O mundo estava mesmo perdido. Talvez a invasão dos marcianos não fosse de toda ruim. Iriam destruir essa medíocre e ignóbil civilização e criariam uma nova, mais inteligente e justa.


Num átimo, Rose se enxergou ao lado de um dos dominadores esmeraldinos, quem sabe o mais robusto e poderoso, alguém que fosse o mentor de toda a invasão. Um giro rápido e confuso de recordações entrecortadas fez deste pensamento um paralelo com seu casamento e de como o condicionara à ascensão de Mark no meio militar. A convicção de que somente amor não mantém relacionamentos (muito embora não admitisse ser taxada como uma pessoa materialista) sempre a acompanhou e, por isso, acreditava que estar perto dos vencedores era um meio legítimo de proteção e, por conseguinte, de sobrevivência.


Mas o desvario, revestido por uma grotesca carga libidinosa, a fez corar de vergonha e entender que aquilo era pecado não apenas macabro como também digno de severo castigo. O remorso obrigou-a, então, a correr ainda mais rápido, como se, agora, lutasse para escapar dos insidiosos flashes que açoitavam sua mente. Enquanto corria, viu restos de capas, máscaras mortuárias e cruzes de madeira esquecidas nas calçadas. Ninguém nas ruas além dela e de sua sombra criada pelos antigos postes de ferro do subúrbio de Nova Jersey. Durante a sôfrega correria, a mulher passou perto de uma casa que também ouvia, em alto som, o noticiário que vinha tirando sua paz:


Pierson, eles estão chegando à Manhattan. São muitos e são hostis. Nossa correspondente em Detroit foi atacada e virou um zumbi. Vou suspender a transmissão. Nick Rogers diretamente de Nova York. Que Deus nos proteja...


– Como? Como é que isso pode estar acontecendo? Não é possível! – balbuciou Rose para si mesma. – Aquele alemão que está concorrendo ao Nobel da Paz deveria se pronunciar. Vir a público para dar alguma esperança às pessoas. Falar sobre algum projeto para eliminar essa praga sideral que assolou o mundo...


Desanimada e sem fôlego, Rose caiu ajoelhada, olhando para o firmamento e clamando por Deus; o céu estava limpo, mas a luz das estrelas parecia ocultar o brilho dos discos voadores. Em sua frente, repousando no asfalto, apenas uma sarcástica e oca abóbora, vazada com seu indefectível sorriso demoníaco. Os invasores esperaram o Halloween para poder concretizar o plano. Nada mais perfeito: bruxas e marcianos. Era isso! Eram seres realmente evoluídos. Estudaram o comportamento e as tradições dos humanos por anos! Uma noite como aquela, onde todos festejavam o Mal, era perfeita para a conquista da Terra.


Rose, já sem esperanças em uma vitória da Humanidade, chorava copiosamente quando um soturno homem de terno surgiu em sua frente, oferecendo o braço para ajudá-la a se levantar.


– Q-quem é você?


– Pegue esse pão embebido em groselha. Um doce aliviará seu pânico pela travessura.


Mesmo estranhando aquela aparição, Rose aceitou a ajuda e, lentamente, ergueu-se.


– Doce? Travessura? Meu senhor, ainda brincas de Halloween? Que calma é essa?


– Desconfie do que ouve e tenha cuidado com os verdadeiros invasores – disse, com paciência, o misterioso sujeito, afastando-se, logo após, num calmo vagar. Antes, porém, deixou um livro sobre a abóbora com os dizeres: A Guerra dos Mundos – H. G. Wells.


A simples presença daquele exemplar iluminou a mente de Rose de tal modo que a escuridão de desconfianças dissipou-se de imediato, permitindo que o silêncio noturno rapidamente invadisse seus ouvidos. Não havia nenhum ruído de armas estelares ou de monitoramento do espaço terrestre; não havia naves; não havia marcianos; não havia invasão. Mas ainda assim a mulher sentiu as pernas tremerem, pois a calmaria, de tão mórbida, gerou-lhe um súbito e intenso calafrio. Quem era aquela pessoa?


– Qual o seu nome, cidadão? ­– indagou com algum receio.


De longe, sem se virar, o homem respondeu:


– Kane.





quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Física como matéria-prima para o suspense

(Maristela Scheuer Deves)

Seja sincero: alguma vez, durante uma aula de física, você pensou que aquele conteúdo que o professor explicava lá na frente e que por vezes parecia impossível de entender poderia servir de base para um romance de suspense? A resposta, muito provavelmente, é não.

Eu, tampouco, cheguei a cogitar tal coisa. Assim, quando vi a capa do livro A última teoria de Einstein numa banca da Feira do Livro de Caxias do Sul, onde moro, ele não atraiu minha atenção. O título e as fórmulas matemáticas na capa deram-me a impressão de que se tratava de um livro teórico.

Mas quando o livreiro, meu conhecido, indicou-me sua leitura, resolvi dar à obra o ônus da dúvida e folheá-lo. Foi o bastante para mudar minha opinião: o livro valia a pena ser comprado e lido. Essa nova impressão se confirmou durante os dias de leitura, pois a obra é um thriller de muito suspense, mesclado com o mundo dos pesquisadores e do terrorismo (e uma pitada de romance).

A trama de A última teoria de Einstein, do escritor Mark Alpert (editado no Brasil pela editora Agir, 388 páginas, preço aproximado de R$ 40), gira em torno da Einheitliche Feldtheorie, ou teoria do tudo, um conjunto de equações explicando todas as forças da natureza que Albert Einstein teria descoberto - mas não teria revelado por medo de que ela fosse usada para criar armas ainda mais poderosas do que a bomba atômica.

Apenas três cientistas que trabalharam com Einstein sabem dessa teoria, e agora eles estão sendo mortos, um a um. O último, antes de morrer, revela a existência da teoria a seu ex-pupilo David Swift, um professor universitário que, a partir de então, passa a ser perseguido pelo FBI e por um matador implacável.

Com estilo semelhante a O Código Da Vinci, A última teoria de Einstein é de certa forma mais convincente, talvez pela mescla com o mundo da física e da matemática.

Uma leitura que prende do início ao fim - mesmo enquanto os personagem discorrem sobre física.





A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA




Confesso nunca ter dado muito crédito à obra de Jorge Amado. Não por qualquer motivo mais relevante, mas, simplesmente, por puro preconceito de alguém que não conseguia enxergar nenhum ponto atrativo em títulos como “Tieta do Agreste” ou “Gabriela, Cravo e Canela”.

E o que maturidade não faz conosco? Hoje, com meus quase 30 anos de idade (nem tão maduro assim), resolvi superar meu antigo preconceito juvenil da maneira mais óbvia possível: lendo o que Jorge Amado escreveu.

Eis que me surge “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”, escrito em 1959. E, já no prefácio, encontro palavras intimistas de Vinícius de Moraes, dizendo que a novela em questão trata-se da melhor na literatura brasileira. Opiniões à parte, o que se deve levar em conta é a franqueza até mesmo comprometedora da afirmação, que deixa para trás obras de outros grandes novelistas. Mas, sendo Vinícius de Moraes um dos mais respeitados nomes da cultura artística de nosso país, há que se dar mínimo crédito ao que escreveu e, sem dúvida, chega-se à conclusão de que a novela de Jorge Amado é, ao menos, digna de ser lida.

Tendo um ou outro deslize na técnica (quase imperceptíveis), a escrita de Amado se mostra aconchegante, acalentadora, transparecendo algo que remete a certa inocência de tempos idos do Brasil. Ao leitor, fica a agradável experiência de ler uma história que flui sem rebuscamentos, com diálogos divertidos e personagens de uma conquistadora malandragem inocente.

O enredo trata das circunstâncias envolvidas na morte de Joaquim Soares da Cunha, também chamado Quincas Berro Dágua. Através de dois blocos de personagens principais, são confrontadas distintas versões para a morte do defunto-protagonista. Há o grupo da família sanguínea, o qual insiste na morte tranquila e formal de Joaquim Soares. Enquanto que o grupo da “família mundana”, representado por tipos caricatos dos subúrbios baianos, defende a tese de que Quincas morreu entregue às águas do mar, num cenário de lua e mistério.

Com pitadas de humor irônico – lembrando Tolstoi em seu “A Morte de Ivan Ilitch” – e representando uma deliciosa alma baiana que talvez nem mais exista – remetendo a “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo –, Jorge Amado, sem dúvida, criou uma obra magnífica que, como poucas, une prazer na leitura com qualidade literária.

Assim como na morte de Quincas, há quem concorde ou discorde da opinião de Vinicius de Moraes. A mim, a certeza que fica é que Jorge Amado foi um dos grandes escritores da literatura brasileira. E, se ainda ficar dúvidas no leitor sobre “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”, cabe uma última reflexão sobre a frase derradeira de Quincas, segundo Quitéria que estava ao seu lado: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”.





quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Eu também quero meu Septilhão!






Dia desses, um certo cidadão americano chamado Dalton Chiscolm entrou com uma ação na justiça, pedindo uma indenização ao banco onde é correntista, o Bank of America, alegando que foi mal atendido. O valor pedido por ele por conta da cara feia (e, talvez, por causa das dezenas de tarifas cobradas pelo banco, ou porque o cafezinho tinha gosto de meia suja) é o número mais absurdo que já se ouviu falar




US$ 1.784.000.000.000.000.000.000.000,00 (ou, um septilhão e pouco de dólares)(¹)




Quem pode com um troço desses?


É óbvio que não existe dinheiro o suficiente no mundo pra pagar o cara. Ainda que algum juiz fosse levar o cara a sério (é só uma suposição, ok?), como seria possível indenizá-lo? Eu tenho aqui minhas sugestões:


1º - entregar a ele uma escritura pública do planeta Saturno, incluindo o anel recém-descoberto, já que dizem que ele poderia circundar bilhões de planetas iguais à Terra;


2° - entregar uma escritura pública do ex-planeta Plutão, já que agora ele caiu para a segunda divisão do sistema solar, estaria livre de pagar o IPTU. Mas seria preciso fazer isso antes que o MST tomasse conta do planetóide, alegando que se trata de propriedade improdutiva.


3º - pagá-lo com relíquias católicas medievais. Dizem que com a quantidade de ossos de Jesus Cristo surgidos nas igrejas da idade média - que cobravam "uma pequena quantia" para que os peregrinos os vissem, tocassem ou mesmo, levassem uma lasquinha para casa - dava para dar uma volta inteira ao redor de Roma.


4º - entregar a ele o baú do mago Paulo Coelho, de onde saíram todas as verdades e provas de seus contatos extraplanares e extraterrestres.


5º - pagá-lo com a hipoteca das usinas de beneficiamento de urânio e as indústrias de armamento de destruição em massa que os americanos encontraram no Iraque.




Com uma dessas alternativas, seria bem provável que o cara ficasse bem satisfeito. Só não ia conseguir que os bancos melhorassem o atentimento. Afinal, o que lhes interessa são números. Grandes números.














Um vestido rosa, tabu e um fenômeno de intolerância coletiva


Todos os anos, em janeiro, no auge do inverno nova-iorquino, centenas de pessoas se reunem para uma estranha brincadeira: entrar no metrô sem calças. Na parte de cima, homens e mulheres vestem o que habitualmente usam, paletó, blusa, casaco, ou moletom, no entanto, na parte de baixo, somente cuecas e calcinhas, com pernas à mostra.

Da primeira vez que vi isto ocorrer, causou um certo estranhamento, mas, no metrô lotado, eu era o único que parecia estar notando algo de errado. Todos os demais nova-iorquinos ignoravam, ou fingiam ignorar, a ausência das calças em alguns passageiros. Era como se fosse um dia corriqueiro, como qualquer outro.

(Louco [?] no East Village)

Semana passada, no East Village, um homem, vestido de mulher, corria em círculos com uma rena de pelúcia em mãos. A maioria das pessoas simplesmente passava por ele, fingindo não vê-lo, apenas um ou outro dava uma risadinha, ou parava para tirar uma foto
Se era um louco, pouco importa, o extraordinário era a reação das pessoas, a indiferença delas.

O mote dos EUA, arrotado aos quatro ventos, é liberdade. Em vários aspectos, é uma lema puramente retórico, para justificar invasões ao Iraque ou Afeganistão, mas em outros, é de fato o ideal pelo qual os americanos vivem: liberdade acima de tudo.

Para um americano, pouco importa como você se veste, o que você faz, com quem você anda, o que você come. Cada um é responsável por seus próprios atos, livre para fazer suas próprias escolhas e ninguém tem nada a ver com isto. Ninguém.
Isto não significa que não haja preconceitos, mas externá-los chega a ser quase antiético.

Como os americanos reagiriam a uma universitária desfilando com um vestido rosa curtíssimo?
Difícil dar uma resposta categórica, mas talvez com a mesma indiferença com que tratam os passageiros sem calças no metrô, ou o louco trajado de mulher na Astor Place, com indiferença, com naturalidade.


E é neste momento em que revelamos toda nossa hipocrisia, nosso atraso, nossa moralidade retrógrada.
Estamos tão habituados à exposição do corpo, à reificação da mulher e do sexo, no baile funk, no carnaval, no fio dental na praia, no concurso "Menina da Laje", na protagonista da novela posando para a "Playboy", na imagem do corpo vendida e veiculada em todos os outdoors, nas revistas, na TV, nos jornais de quinta.
Consumimos a todo o momento o culto ao corpo, ao sexo, à beleza a qualquer custo e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, repudiamo-lo quando se apresenta fora dos meios onde ele é convencionalmente aceito.
Talvez sejam os tabus, estas normais sociais que regulam o permitido e proibido, que estejam no cerne desta questão, que expliquem porque aceitaríamos a Geyse e seu vestido rosa em certas circunstâncias, mas a repudiariamos em outras.
Mas nada é tão simples, e tabus não explicariam porque milhares de alunos, supostamente esclarecidos, posto que estão numa Universidade, se reuniriam para insultar uma colega, apenas por causa do que ela veste. Se tabu, ou machismo, pode estar na origem do ocorrido, as proporções do evento sugerem outro fator.

"Eu comecei a gritar, mas nem sabia o que estava acontecendo. Foi engraçado", disse um estudante da UniBan, numa das reportagens que assisti. O ser humano, como uma criatura social, tende a reproduzir os atos dos seus pares como estratégia de sobrevivência: se a maioria faz, então deve ser o melhor a ser feito. Enquanto que este comportamento se justifica em várias ocasiões e nos ajuda coletivamente, em muitas situações apenas reforça uma injustiça.

No livro "A Sabedoria das Multidões", há um exemplo esclarecedor - uma mulher que deseja se suicidar jogando-se de uma ponte causa um enorme congestionamento. Algumas pessoas, para se livrarem logo deste incômodo, começam a gritar, "Pula! Pula!". Em pouco tempo, centenas de motoristas nervosos reforçam o coro e a mulher se joga para a morte.
Duvido que qualquer uma daquelas pessoas, individualmente, desejasse a morte da mulher, mas coletivamente, de modo errôneo, os motoristas julgaram que, se ela se jogasse logo no rio, o tráfego seria normalizado.

Às vezes, precisamos nos esconder sob a máscara da coletividade para expormos nossa intolerância. Somente assim, sentimo-nos seguros para demonstrar a nossa profunda ignorância.





terça-feira, 17 de novembro de 2009

E faz de conta...

Miguel de Unamuno
trad.: Henry Alfred Bugalho

A Miguel, o herói de meu conto, um haviam lhe pedido. Herói? Herói, sim! E por quê?— perguntará o leitor. Pois, primeiro, porque quase todos os protagonistas dos contos e dos poemas devem ser heróis, e isto por definição. Por definição? Sim! E se não, vê-lo-emos.
P. — Que é um herói?
R. — Alguém sobre o qual se pode escrever um poema épico, um epinício, um epitáfio, um conto, um epigrama, ou mesmo uma manchete ou uma mera frase.
Aquiles é herói porque fê-lo Homero, ou quem quer que fosse, ao compor a Ilíada.
Somos, pois, os escritores — ó nobre sacerdócio! — quem para nosso uso e satisfação criamos os heróis, e não haveria heroísmo se não houvesse literatura. Isso de heróis ignorados é uma lengalenga para consolo dos simplórios. Ser herói é ser cantado!
E, ademais, era herói o Miguel de meu conto porque lhe haviam pedido um. Aquele a quem se lhe pede um conto é, pelo mesmo fato de sê-lo pedido, um herói, e aquele que o pede é outro herói. Heróis os dois. Era, pois, herói o meu Miguel, a quem Emilio lhe pediu um conto, e era herói o meu Emilio, que pediu o conto a Miguel. E assim vai avançando este que escrevo. Quer dizer,

Sem perceber, seguem os dois adiante.

E meu herói, diante das folhas brancas e amarelecidas, olhos fixos nelas, a cabeça entre as palmas das mãos e cotovelos sobre a escrivaninha de trabalho — e com esta descrição me parece que o leitor estará vendo-o muito melhor do que se o visse ilustrado —, dizia para si: “Bem, sobre o que escrevo agora o conto que me pedem?” Vixe, escrever um conto alguém que, como eu, não é contista de profissão! Porque há o romancista que escreve romances, um, dois, três ou mais ao ano, e o homem que os escreve quando eles brotam de si. E eu não sou um contista!...
E não, o Miguel de meu conto não era um contista. Quando, por acaso, fazia-os, sacava-os, ou de algo que, visto ou ouvido, havia ferido-lhe a imaginação, ou das mais profundas de suas entranhas. E isto de sacar contos do fundo das entranhas, isto de converter em literatura os mais íntimos tormentos do espírito, as mais espirituais dores da mente, ó, sobre isto!... Sobre isto, tanto já falaram os poetas líricos de todos os tempos e países, que nos resta já muito pouco por dizer.
E logo os contos de meu herói teriam para os leitores habituais de contos — os quais formam uma classe especial dentro do gênero dos leitores — um gravíssimo inconveniente, que é o de não haver argumento, o que se chama argumento. Dava muito mais importância às pérolas do que ao fio em que estão inseridas, e para o leitor de contos o importante é a ação, assim com “a”, e não ilação, com “il”, como nos esforçamos em escrever, os mais ou menos latinistas que pensamos ser, e ensinar que este vocábulo deriva de infero, fers, intuli, illatum. (Não se esqueçam que sou um catedrático, e por sê-lo meus filhos comem, mesmo que, vez ou outra, merendem de um conto perdido)

E estou na metade de outra página.

Para o herói do meu conto, o conto não é senão um pretexto para observações mais ou menos engenhosas, fragmentos de fantasia, paradoxos, etc., etc. E isto, francamente, é rebaixar a dignidade do conto, que tem um valor substantivo — creio que se diz assim — em si mesmo e por si mesmo. Miguel não cria que o importante era o interesse da narração e que o leitor fosse dizendo para si mesmo a cada momento: “E agora o que virá?”, ou: “E como isto acabará?" Sabia, ademais, que há quem começa um destes romances enormemente interessantes, vai ver nas últimas páginas o desfecho e já não o lê mais.
Por isto, acreditava que um bom romance não deve ter desfecho, como não tem, ordinariamente, a vida. Ou devia ter dois ou mais, expostos em duas ou mais colunas, e que o leitor escolha entre aquele que mais o agrade. O que é soberanamente arbitrário. E este Miguel meu era o mais arbitrário que dar-se possa.
Em um bom conto, o mais importante são as situações e as transições. Sobretudo, estas últimas. Ó, as transições! E a respeito daquelas, é o que dizia o famoso melodramaturgo d’Ennery: “Em um drama (e quem diz drama, diz conto), o importante são as situações; componha você uma situação patética e emocionante, e pouco importa o que nela digam os personagens, porque o público, quando chora, não ouve”. Que profunda observação esta de que o público, quando chora, não ouve! Um sujeito que havia sido apontador do grande ator Antonio Vico me dizia que, representando este uma vez A morte civil, quando entre dois assentos fazia que morria, e as senhoras o olhavam com binóculos para cobrir com eles as lágrimas e os cavalheiros fingiam que assoavam para enxugá-las, o grande Vico, entre soluços estertóricos e frases entrecortadas de agonia, estava dando a ele, ao apontador, umas tarefas para a contadoria. O que precisa é saber fazer chorar!
Sim; aquele que num conto, como num drama, sabe fazer chorar ou rir, pode nele dizer o que lhe apetecer. O público, quando chora ou quando ri, não se inteira. E o herói de meu conto tinha a perniciosa e petulante mania de que o público — seu público, é claro! — se inteirasse do que ele escrevia. Haja visto pretensão semelhante!
Permita-me o leitor que interrompa um momento o fio da narração de meu conto, faltando ao preceito literário da impessoalidade do contista (veja a Correspondance de Flaubert, em qualquer de seus cinco volumes Oeuvres completes, Paris, Louis Conard, libraire-éditeur, MDCCCXX), para contestar essa pretensão ridícula do herói de meu conto de que seu público se interesse pelo que ele escreve. É que não sabia que a maioria das pessoas lê para não se inteirar? Fartos estão cada um com suas próprias penas, seus próprios pesares e cavilações para que venham lhes enfiar outras! Quando eu, de manhã, à hora do chocolate, pego o jornal do dia, é para me distrair, para passar o tempo. E conhecido é o aforismo daquele sábio granadino: “A questão é passar o tempo”; ao que outro sábio, bilbaíno este, e que sou eu, acrescento: “Mas sem adquirir compromissos sérios”. E não há meio menos comprometedor de passar o tempo do que ler o jornal. E se apanho um romance ou um conto não é para que, por reação, suscite minhas profundas preocupações e minhas penas, senão para que me distraia delas. E, por isto, não me inteiro do que leio, e até leio para não me inteirar...
Mas o herói de meu conto era um petulante que queria escrever para que se inteirassem e, é natural, assim não pode ser, não lhe resultava do que escrevia senão paradoxos.
Que é isto um paradoxo? Ah!, eu não sei, mas tampouco sabem os que falam deles com certo desdém, mas ou menos fingido; mas nos entendemos, e basta. E precisamente o chiste do paradoxo, como o do humor, firma-se somente em haver quem fale deles e saibam o que são. A questão é passar o tempo, sim, mas sem adquirir compromissos sérios; e que compromisso sério se adquire acusando algo de paradoxo, sem saber o que ele seja, ou tachando-o de humorístico?
Eu, que como o herói do meu conto, sou também herói e catedrático de grego, sei o que etimologicamente quer dizer isto de paradoxo: Da preposição para, que indica lateralidade, o que vai ao lado ou se desvia, e doxa, opinião, e sei que entre paradoxo e heresia há apenas diferença; mas...
Mas o que tem tudo isto a ver com o conto? Voltemos, pois, a ele.
Havíamos deixado nosso herói — começando sendo-o meu e já é teu, leitor amigo, e meu; isto é, nosso — com os cotovelos sobre a mesa, com os olhos fixos nas folhas brancas, etc. (veja a descrição precedente) e dizendo para si: “Bem, sobre que escrevo eu agora?...”
Isto de pôr-se a escrever, não precisamente porque se tenha encontrado assunto, senão para encontrá-lo, é uma das necessidades mais terríveis a que se veem expostos os escritores fabricantes de heróis, e, por conseguinte, heróis eles mesmos. Por que qual é o heroísmo supremo, senão criar heróis, cantá-los? É o herói quem cria seu criador, opinião que mantenho muito brilhante e profundamente em minha Vida de Don Quixote e Sancho, segundo Miguel de Cervantes Saavedra, Madri, librería de Fernando Fe, 1905 — e isto sirva, de passagem, como propaganda —, obra na qual sustento que foi Dom Quixote aquele que criou Cervantes e não este a aquele. E a mim quem me criou, pois? Neste caso, não cabe dúvida que foi o herói do meu conto. Sim, eu não sou senão uma fantasia do herói de meu conto.
Prossigamos? Por mim, leitor amigo, até onde você quiser; mas temo que isto se converta no conto que nunca há de acabar. E assim é a vida... Ainda que não! Não! A vida se acaba.
Aqui seria uma boa ocasião, com este pretexto, para dissertar sobre a brevidade desta vida perecedora e a vanidade de seus êxitos, o que daria a este conto um certo caráter moralizador que o elevaria além do nível destes outros contos vulgares que só servem para divertir. Porque a arte deve ser edificante. Vou, portanto, acabar com uma

Moral da história. Tudo se acaba neste mundo miserável: Até os contos e a paciência dos leitores. Não vou, pois, abusar.

Fonte: http://www.scribd.com/doc/6808126/Unamuno-Miguel-de-Tres-Cuentos

***

Biografia
Miguel de Unamuno y Jugo (29 de Setembro de 1864 – 31 de Dezembro de 1936) foi um poeta e filósofo espanhol.

Nasceu em Ronda del Casco Viejo (Bilbau) e faleceu em Salamanca. Considerado a figura mais completa da Generación del 98, um grupo constituído por nomes como Antonio Machado, Azorín, Pío Baroja, Ramón del Valle-Inclán, Ramiro de Maetzu, Angel Ganivet, entre outros.

Estudou na universidade de Madrid onde tirou o curso de Filosofia e Letras e mais tarde obteve a cátedra de grego na Universidade de Salamanca. Dez anos depois foi nomeado reitor da universidade salmantina.

Foi conhecido também pelos sucessivos ataques à monarquia de Afonso XIII de Espanha. De 1926 a 1930 viveu no exílio, primeiro nas Ilhas Canárias e depois em França, de onde só voltou depois da queda do general Primo de Rivera. Mais tarde o General Francisco Franco afastou-o novamente da vida pública, devido a críticas duras feitas ao General Millán Astray, acabando por passar os seus últimos dias de vida numa casa em Salamanca.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_de_Unamuno





segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Noite de chuva


Ela andava por um beco escuro. Passos apressados, com medo. A capa de chuva cobria o collant e a calça suada que ela usara na academia. Acabara de voltar da aula de dança. Nada a fazia mais feliz do que aquela hora e meia de aula... E foi quando se lembrou da coreografia do dia que ela se deparou com um moreno forte e mal-encarado.
- Tá sorrindo pra mim é, lindona?
Ela tentou avançar, sem sucesso. Aqueles braços musculosos e sujos de graxa impediam seu caminho.
- Onde você pensa que vai, boneca?
- Você não tem nada a ver com isso. Dá licença, por favor?
- Hummm. Que educação. Olha aqui garota, saiba você que eu tenho tudo a ver com isso, porque você vai comigo agora praquele cantinho.
E dito isso ele já foi empurrando-a para o ambiente sujo, fétido e escuro.
- Não, por favor, me deixa ir embora. Eu te dou todo o meu dinheiro, toma. É seu.
- Quem disse que eu quero grana, princesa? Eu quero você.
- Por favor...
E nisso ele já tinha aberto a capa e já abaixava a alça do collant.
- Não, por favor...
- Hum, que peitinho gostoso. Vou mamar você todinha.
- Por favor...
- Ai, pede, pede mais que eu fico louco.
- Me deixa ir...
- Que barriguinha...
- Socorro!
Com violência, ele tapou sua boca e puxou seu cabelo.
- Olha aqui, gostosinha. Gemer pode, mas gritar não. Assim eu perco a paciência.
E isso parece que o deixou com mais tesão ainda, pois num minuto ele rasgou o collant e colocou o seu membro naquele buraco quentinho.
- Hum, sua safada. Tá molhadinha, hein? Tá gostando do papai aqui, tá?
- Me deixa ir embora - dizia ela cerrando os dentes e arranhando a lataria do carro onde estava deitada.
- Eu deixo, mas antes vou fazer a festa, sua cadela - disse o moreno dando um tabefe naquelas fuças.
- Ai, não precisa me bater. Eu fico quietinha.
- Ah vai ficar quietinha, é? Mas eu não quero não, sua piranha. Quero te ver gemendo, gritando. Quero te ver gozando, vai.
- Por favoooooor...
- Isso vai, assim que eu gosto. Já está até perdendo a voz.
- Me deixa ir embora...
- Sem acabar o serviço?
Dito isso, ele a virou de quatro e retomou os trabalhos cada vez com mais força.
Ela não sabia se chorava ou se gemia.
- Ai... por favor...
- Vamos parar com essa educação? Me manda meter, vai.
- Como assim?
- Manda logo, porra.
- Mete.
- Assim não, tá muito fraco. Quero ouvir alto.
- Meeeete.
- Mais forte.
- Mete!
- Ta melhorando. De novo.
- Mete, cacete.
- Isso! Assim que eu gosto.
- Mete logo essa porra!
- Hummm.
Era o que faltava pro garanhão gozar.
- Agora pode ir, cadela. E não esquece: você nunca me viu na vida, hein? Sei onde você mora e vou infernizar tua vida se tu der com a língua nos dentes.

Em casa, já no chuveiro, ela não conseguia esquecer o que tinha acabado de acontecer. E nunca contou pra ninguém, nem pra sua analista. Mas todo dia de noite sonhava com o tal moreno. E acordava com o lençol encharcado.

Para ler os textos anteriores da autora, clique aqui.





domingo, 15 de novembro de 2009

Entrevista com Danilo Corci sobre a Mojo Books

Danilo Corci
É jornalista e começou sua carreira no Jornal de Jundiaí, rumando depois para a Folha de S.Paulo. Criou a revista cultural Speculum ao lado de Renato Roschel. Também criou e dirigiu a redação do portal BrTurbo, da Brasil Telecom. Em 2007 fez sua primeira incursão literária com a novela Black celebration, publicada pela editora Mojo Books. Em março de 2008 lançou sua segunda aventura literária, agora um microconto, Sympathy for the devil, também lançado pela Mojo Books. Atualmente é redator da agência publicitária JWT. Um dos fundadores da Mojo Books, ao lado de Ricardo Giassetti.

Mojo Books
A MOJO é uma editora 100% digital. Sua proposta é simples: Se música fosse literatura, que história contaria?
www.mojobooks.com.br

Entrevista
SAMIZDAT - Comecemos pela pergunta que não pode deixar de ser feita: de onde surgiu a ideia de preparar livros inspirados em álbuns musicais?
Danilo Corci - A ideia vem de uma inspiração antiga. Na década de 90, eu e o Ricardo tínhamos uma banda que fazia justamente o contrário: pegava livros e musicava. O tempo passou, a banda acabou e nós conversávamos sobre montar uma editora. Como estávamos muito ligado ao mundo digital, a escolha de uma editora digital foi natural. E, entre tantas conversas, acabou surgindo a ideia de fazer uma coleção de livros inspirados em música e dai surgiu a MOJO.

SAMIZDAT - Imagino que vocês devam receber inúmeros textos de autores estreantes que gostariam de publicar com vocês. Como funciona o projeto de seleção de um mojobook? Qual é a exigência ao escolherem um texto para publicação?
DC - Recebemos muito material, alguns claramente fora da proposta e que o autor manda porque já tem um livro escrito e tenta encaixar, o que geralmente não dá certo. Basicamente, chegando um livro, ele passa por uma leitura crítica para ver se vale a publicação ou não. Valendo, vai para uma primeira edição onde algumas falhas são corrigidas. O material volta pro autor retrabalhar e assim vai até que tanto o autor como nós da MOJO estejamos satisfeitos. Dai o livro cai no fluxo normal de publicação, que passa por revisão, capa, etc... De verdade, é um processo editorial tradicional.

SAMIZDAT - Quais são as vantagens do e-book em comparação ao livro impresso? E as desvantagens? Como tem sido a recepção do leitor brasileiro?
DC - Vejo muito mais vantagens do que desvantagens. O custo é menor, bem menor, é possível arriscar mais por conta disso. A única desvantagem que vejo são os detratores do livro digital que ficam com aquele papo chato de 'cheirinho de papel', 'o toque', blablablá. E dá mesmo pra dizer que é blablablá porque a recepção do público é ótima, temos uma base de mais de 80 mil leitores, cada livro consegue mais de 10 mil downloads, em média, um volume bem grande perto do mercado editorial tradicional.

SAMIZDAT - Um dos desafios da Literatura no século XXI é descobrir como lucrar com algo tão facilmente "pirateável" quanto o livro digital.
Qual é o caminho, na opinião de vocês, que o autor que deseja se inserir no universo dos e-books deveria trilhar, caso queira sustentar sua carreira através deste formato?
DC - A pirataria não acaba com o modelo de negócios. Os valores serão revistos para baixo, autores poderão ganhar mais. Aqui no Brasil é um pouco mais complexo porque brasileiro tem mania de não querer pagar por bem cultural. Num primeiro momento, este mercado será bancado por publicidade, seja no livro, seja de uma maneira bem feita de merchandising (como o filme O Náufrago, por exemplo).

SAMIZDAT - Na listagem dos 5 mojobooks mais baixados (o Mojo Top 5) podemos encontrar Beatles, Amy Winehouse, Rolling Stones, My Chemical Romance e Bauhaus na parada.
A que vocês atribuem esta hierarquia? Ela reflete as predileções musicais dos leitores, ou indicam a popularidade dos autores dos mojobooks?
DC - Gostando ou não, a visibilidade do material ainda está apoiada na banda escolhida. Então este top 5 da MOJO reflete mesmo a preferência musical e não literária. Justamente por saber disso que criamos a coleção MOJO+, onde o foco de divulgação é sempre sobre o autor.

SAMIZDAT - Há algum projeto de publicar algum livro impresso com os mojobooks? Caso sim, como funcionaria?
DC - De verdade, não temos planos de ir para o impresso não. Obviamente somos uma editora tentando sobreviver no mercado, então se houver alguma oportunidade isso pode ser possível. Mas para a gente ir pro impresso só se for em um esquema bem feito de print on demand ou parceria com alguma outra editora.

SAMIZDAT - Em 2007, a banda Radiohead lançou o álbum "In Rainbows" primeiro na internet, sendo que os fãs poderiam pagar o quanto quisessem pelo download. Nos EUA, o autor Cory Doctorow publica tanto em meio digital quanto impresso, sendo que seus livros podem ser baixados gratuitamente na internet. Estes dois modelos, ligeiramente diferentes, poderiam ser reproduzidos no Brasil, seja na música ou na Literatura? O brasileiro pagaria por algo que pode ter de graça?
DC - O Brasil é bem um caso a parte neste universo. Não só pelo poder aquisitivo menor, mas pela cultura de não pagar. O modelo brasileiro pode comportar algo assim, mas as chances dos resultados serem pequenos é muito alto. Pelo que vejo e tenho aprendido em quase 3 anos de MOJO é que o modelo publicitário dende a trazer melhores resultados.

SAMIZDAT - O livro digital é um formato que veio para ficar? Podemos prever o fim do livro impresso?
DC - Que veio pra ficar é óbvio, custa menos, é possível lançar mais, etc. Se vai ser o fim do impresso? Não necessariamente. Hoje tem MP3, CD, mas o vinil ainda existe. A diferença é que as editoras provavelmente vão lançar impressos de 'luxo', coisa mais elaborada, edição de colecionador, mais cara, com lucro maior. E o jogo segue.

SAMIZDAT - Quais são os planos para a MOJO Books no futuro?
DC - Temos vários planos. Lançar livros inéditos que não tenham nada a ver com música, mais quadrinhos, terminar a migração para celular e começar a invadir outras mídias, como o audiovisual. Mas como temos um modelo de negócio novo, vamos com calma fazendo as coisas com a consistência que devem ter.

A equipe da Revista SAMIZDAT agradece ao Danilo Corci.





sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Deus me perdoe, era tudo o que eu queria

José Guilherme Vereza

O quarto tinha cheiro de comida velha. A fumaça da fritura vagabunda vinha do porão da espelunca, atravessava o basculante e impregnava tudo: as paredes, os lençóis grossos, os travesseiros toscos, a cortina pesada de veludo que vedava a janela. Ao lado da cama, sobre o criado-mudo, uma moringa, dois copos e um abajur empoeirado. No que se diz banheiro, o mínimo. Uma privada sem tampa, um cano no lugar de um chuveiro e uma pia amarelada e torta no canto, um espelho redondo e duas toalhas aparentemente limpas penduradas na maçaneta da porta. Ao longe, vestígios de um rádio ligado sujavam o silêncio. Deveria ser fim da tarde quando a porta se abriu e de lá surgiram Ademar e uma moça, como se fossem um corpo só, tal a sofreguidão dos beijos, apertos, passadas de mão e entrelaços de pernas, cambraias e linhos se rasgando, botões voando, gemidos, muitos gemidos ecoando, antes mesmo de a porta ser trancada pelas mãos hábeis da mulher. Não perderam tempo. Uma vez trancafiados, mergulharam um no outro sobre a cama, num balé animal, aflito e ruidoso, que não durou mais do que o suficiente para Ademar se dar por satisfeito.
- Como é mesmo o seu nome?
- Margareth.
- Você vem sempre nesse lugar?
- Umas quatro vezes por semana, tirando sábado e domingo.
- Você não trabalha sábado e domingo?
- É a minha folga.
Ademar esfregou a testa, coçou a cabeça, vasculhou o ambiente com os olhos. Estranhou tudo.
- Margareth... é Margareth, não é? Me diga, minha filha, como foi que chegamos aqui?
- De táxi, não lembra?
- Não lembro. A bebida me faz mal.
- Percebi. O senhor gozou rápido.

***
Ademar estava zonzo. Embora há tempos quisesse viver um encontro arriscado com sabe-Deus-quem, não entendeu se deu conta do que fazia naquele lugar. O uísque ordinário tinha um efeito devastador e, aos tropeços, tentou recolher as roupas que se espalharam pelo chão. Apertou os olhos, tentando enxergar o que acabara de cometer nos últimos instantes.
- Como é que conheci você?
- Na mesa do Calypso. O senhor foi logo sentando e perguntando quanto custava. Nem teve a elegância de me perguntar o nome.
- Elegância?
- É. A gente costuma fingir que está começando a viver uma romance.
- Romance?
- Por que não? Essa profissão me dá o direito de me iludir, iludir os clientes, iludir o tempo, até o momento em que o dinheiro voa, voa, voa e pousa na minha bolsa.
- Quanto foi que combinamos?
- Não acabei o serviço ainda. O senhor me falou na mesa que queria me namorar muito. Prometeu o céu, as estrelas, o universo. Prometeu me levar a um programa da Rádio Nacional.
- Não, minha filha. Não considere o que eu disse. Nem eu considero o que eu disse.
- Vem cá, senhor, relaxe. Não me deixe com saudade de ainda há pouco. Tenho muito trabalho gostoso pela frente.

***

- Dessa vez o senhor demorou mais a gozar… está se acostumando comigo?
- Não, minha filha… estou sendo empurrado por sei-lá-o-quê para dentro de você… sem comentários, nem perguntas. Por favor.
- Não se preocupe. Sou discreta e nada curiosa. Faz parte da natureza do meu negócio.
- Não fale em negócio! Estamos aqui para viver uma paixão, um romance.
- Bravo! Que bela surpresa! Admitindo o nosso romance, hein? Pelo que estou vendo o uísque ordinário está perdendo o efeito. Quer apostar que agora sua cabeça vai virar uma bigorna?
- Tem água nessa pocilga?
- Vira a moringa no copo e senta aqui no meu colinho. Vamos cuidar da ressaca que o tempo é uma criança.
- Criança… criança…. seu filho é menino ou menina?
- Mas que observador! Reparou minha cicatriz da cesariana!
- E também seus bicos dos seios escurecidos. Deve ter amamentado de três a quatro meses, quando as glândulas mamárias secaram. A partir daí, a repetição de uma massagem assim e assado, devolveu à dona esses dois manjares, que agora repousam sob minhas mãos.
- Então, já que o senhor descobriu que sou mãe… adivinhe se a criança é filho ou filha da puta…
- Que palavreado horrendo! Mas eu perdôo. Você é muito graciosa, mãezinha responsável. Com quem fica a criança quando você trabalha?
- Com minha tia. Tenho uma vida muito difícil. Perdi meus pais muito cedo. Minha mãe morreu tísica logo que nasci. Meu pai, no auge da mocidade, se meteu numa briga na Galeria Cruzeiro. Foi esfaqueado e não resistiu. Fui criada por uma tia, prostituta de luxo, que fazia vida num belo apartamento no Catete, mas perdeu tudo no Cassino da Urca. Por gratidão e vocação, entrei nessa vida para sustentar a tia e acabei arrumando uma criança para dar mais trabalho, adivinha a quem?
- A coitada da sua tia.
- A própria, pobrezinha. Na verdade, não tenho o que me queixar, mas pela infância que tive com a velha tia Aurita, que não poupou a melhor educação, os melhores hábitos, os melhores livros e as roupas mais finas à sobrinha órfãzinha, até que eu merecia um bar melhor que o Calypso. Merecia umas roupinhas mais chiques , merecia freqüentar um hotel no Lido, em Copacabana, no Flamengo, enfim, um lugar menos ordinário do que esse aqui na Mem de Sá.
- Não fale mal deste paraíso. É o nosso ninho de amor.
- Por favor, vamos devagar com as ilusões. Daqui a pouco o senhor me paga, vai para a casa e eu volto para o Calypso, para mais uma rodada no meu taxímetro.
- Mas enquanto daqui a pouco não chega, vamos aproveitar esse pouco que nos resta.

***

Algumas horas antes, a moça chegava ao Calypso, bem antes da fervura do local. O bar de encontros começava a ficar interessante a partir das seis e meia, quando senhores vetustos de jaquetão e relógios de bolso deixavam a fineza na calçada e se esborrachavam no uísque ordinário servido em pequenas mesas de tampo de mármore, quase sempre já preenchidas por duas – ou às vezes três – raparigas disponíveis. Ocupando uma boa mesa, bem perto da entrada, a moça queria logo ser vista e desejada pelo primeiro cavalheiro que da porta surgisse, desde que cumprisse seus caprichos e requisitos. Foi abordada pelo garçom, que estranhou sua presença ali, naquele momento tão adiantado. Mas como bom anfitrião, deixou-a completamente à vontade, além de lhe acender um cigarro e servir um drinque de boas-vindas.
No piano, um tipo quase imberbe, cabelo de glostora e colarinho troncho, mal dedilhava um bolero, enquanto fumava um mata-rato impertinente, tão denso, mas tão denso, que pouco se enxergava o balcão às suas costas, de onde a moça viu surgir um vulto cambaleante em sua direção, que, sem cerimônia – ou sem conhecimento dos estatutos do local –, sentou-se ao seu lado e foi logo colocando a mão direita na sua coxa. Sem dúvida, uma intimidade de provocar arrepios.
A conversa durou pouco. Mal se apresentaram, mal se enxergaram. Não chegaram a trocar nomes, mas acertaram uma saída urgente, já que um lugar mais aconchegante e discreto poderia ser mais apropriado para escoar toda a excitação. No táxi, beijaram-se com sofreguidão e só pararam quando o motorista estacionou na porta de um prédio chinfrim na Mem de Sá. Ao analisar o hotel do telhado ao meio-fio, o cavalheiro balbuciou para si, com bafo de uísque ordinário: “Deus me perdoe… era tudo o que eu queria.”

***
- Deus me perdoe… era tudo o que eu queria.
- Ouvi bem o que o senhor disse?
- O que eu disse, minha filha?
- Algo como “Deus me perdoe… era tudo o que eu queria”.
- Digamos que o que você ouviu foi apenas um golpe de ar que partiu involuntariamente do esôfago, passando pelas cordas vocais, e, no encontro do palato e da língua em ligeiro movimento, produziu um efeito assemelhado a um som indecifrável, que poderia sugerir algumas palavras. Nada que a consciência tenha comandado. Portanto, se disse, não disse o que você supõe que eu tenha dito…
- Para. O senhor, você, seja lá como quer ser chamado, me enrola. Diz que não diz o que diz. Diz que não diz o que pensa e o que sente. Mas não pode dizer o que sente senão estraga tudo. Até entendo. Estamos aqui num teatro, aqui está o palco, ali está a platéia naquele espelho, formada por nós mesmos. Aqui, o cenário: uma cama suficiente, onde você deposita seu carinho animal dentro de mim e eu o recebo com braços e pernas abertas, como se fossemos dois amantes em pleno gozo do amor, da paixão, do companheirismo, da cumplicidade, como manda o figurino dos grandes amores. E tem mais: duvido que você não duvide da minha sinceridade. “Será que ela goza? Sera que ela finge?” Quer apostar como isso não sai da sua cabeça?
- Mas você gozou, não gozou?
- Fique com a dúvida. Essa dúvida é que faz com que meus clientes voltem sempre. Essa dúvida me excita. Essa dúvida é o fio que separa a paixão da hipocrisia.
- Você fala de um jeito que não parece que é o que você é.
- Não subestime o que eu sou. Só porque sou uma mulher fácil e achada numa mesa do Calypso não posso pensar na minha condição? Não basta ser puta? Tem que ser puta e burra?
- Puta, não! Aqui dentro você não é puta! Está no nosso contrato viver um romance de duas ou três horas. Ainda faltam alguns minutos. E, por enquanto, nós somos dois amantes sem pudores, que se escondem da vida num quartinho de um hotel. E por isso se desejam, se lambuzam, se querem bem. Isso é o que vale. O aqui e o neste momento.
- Pára de falar…, - a moça afrouxou a voz. - Estou com vontade de fazer tudo de novo…
Ademar baixou a guarda.
- Diz “estou com vontade de fazer tudo de novo”, diz. É vontade mesmo ou é fingimento?
A moça põe, entre os dentes e a pontinha da língua, a orelha do parceiro. E diz, rouquíssima:
- Pois fique com a dúvida..., a-do-ro a dú-vi-da.

***

As duas horas combinadas passaram voando. Ademar excedeu o tempo e nem quis saber o quanto pagaria a mais. Os instantes tinham sido tão generosos, que, fosse o que fosse o que estivesse registrado no taxímetro da moça, seria um dinheiro bem despendido, um investimento no escuro com retorno farto de energia e auto-estima. Embora sentimentos de culpa e remorsos não tenham aparecido, Ademar já sentia o ímpeto de abrir a carteira, acertar o negócio e sair correndo atrás de um táxi, até chegar aos braços e abraços das suas filhas, que – adolescentes que eram – não costumavam dormir cedinho como bem recomendado às crianças.
- Minha filha, acho que está na hora…
- Não estou ouvindo mais o rádio.
- Me recuso terminantemente a entrar nesse chuveiro nojento.
- Vai sem banho. Chegue em casa com meu cheiro no corpo. Os suores e perfumes do sexo são divinos, abençoados e inocentes. Pior seria um batom na camisa, um chupão no pescoço. Quanto a isso, pode ficar tranqüilo: sou muito cuidadosa.
- Sábia, você é sábia...
- Você não me disse o seu nome.
- Meu nome?
- Também não quero saber. As colegas do Calypso vão me perguntar com quem fiz o programa e eu vou dizer com Ninguém. “Saí com Ninguém que deu uma bimbadinha e me largou num cafofo da Mém de Sá, com uns trocadinhos na bolsa. Fujam de Ninguém. Ele trepa mal e paga pior ainda.”
- Definitivamente você não saiu com Ninguém.
- De fato: saí com Alguém.
- Alguém, assim, tão indigente?
- Não. Alguém dos Santos. Um quarentão grisalho, feroz e carinhoso, um pouco abelhudo pro meu gosto. Investigou minhas cicatrizes, examinou meus mamilos, cheirou meus cheiros, escarafunchou meus recintos secretos. Mergulhou em mim como um cliente íntimo e freqüente, e que teve a coragem de sair daqui com meu perfume no seu corpo.
- Não. Eu não tive coragem é de entrar naquele chuveiro.
- E ainda por cima, bem dotado de senso de humor.
- Está aqui o que devo. Por favor, não conta agora não. Fico meio sem jeito, não estou acostumado com essas coisas. É mais do que você pediu. É menos que você merece.
- Já descobri o seu nome. Você é Alguém. Alguém com sobrenome bonito: Alguém dos Santos. Alguém com sobrenome comprido, como os nobres e incomuns. Assim: Alguém Muito Especial Cavalheiro dos Anjos e dos Santos. Muito prazer, Margareth.

***


Ademar deixou o hotel sozinho e flutuando nas nuvens. Nada que abalasse seu estado moral, mas entrou num táxi com as veias e artérias dilatadas, por onde fluíam sentimentos e sensações de um bem-estar inédito e encantador.
Precisava – e como precisava – ter vivido esse despudor pelo menos uma vez na vida. Não pensava em retornar ao Calypso, onde nunca tinha ido antes. O que mais queria naquele momento era chegar em casa, abraçar as filhas, beijar a mulher, que, dormindo, não perguntaria porque chegou quase à meia-noite. E assim o fez. Deitou na cama sem fazer barulho e custou a adormecer. Ainda com o cheiro da moça no corpo, caiu num sono profundo e restaurador, como nunca tinha dormido antes.

***


A moça deixou o hotel sozinha e flutuando nas nuvens. Nada que abalasse seu estado moral, mas entrou num táxi com as veias e artérias dilatadas, por onde fluíam sentimentos e sensações de bem-estar inédito e encantador. Precisava – e como precisava – ter vivido esse despudor pelo menos uma vez na vida. Não pensava em retornar ao Calypso, onde nunca tinha ido antes. O que mais queria agora era chegar em casa, abraçar os filhos e beijar o marido, que, meio dormindo, inevitavelmente perguntaria:
- Tudo bem, Maria Cristina? Tia Judith está melhor?
- A enfermeira custou a chegar. Por isso cheguei tão tarde.
E assim aconteceu. Maria Cristina deitou na cama sem fazer barulho, custou um pouco a adormecer. Ainda enfeitiçada por ter sido Margareth por algumas horas, caiu num sono profundo e restaurador. Como nunca tinha dormido antes.





quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Escuro

O bom de se apagar a luz
permanecer em total escuridão
-e nada se ver-
é que acende a luz da cabeça
brilham os olhos, como faróis,
aí posso voar para qualquer estrela
pois além da minha cabeça
só elas estão acesas, e o meu coração,
e voo cada vez mais alto
sou tragado pela leveza e calmaria do vento e oceano
e quando a luz torna a acender
apaga-se a luz da cabeça
e tudo volta ao normal
Assim, sem nada para ver.





terça-feira, 10 de novembro de 2009

O Incrível Joaquim Maria

Ontem morreu Joaquim Maria. Todos o conheciam, ele dispensa apresentações, homem público, outrora amado pelos nobres, idolatrado pelo populacho.

A vida de Joaquim Maria foi recheada de dificuldades, mas ele venceu-as todas e se tornou um símbolo para nossa nação, poucos indivíduos representaram tanto o espírito de seu povo e de sua época como Joaquim Maria.

E o que o tornou tão célebre foram suas idiossincrasias. Ainda menino elas começaram a se manifestar, primeiro, de maneira discreta, mas após a tutela com o místico e sábio Roberto Alberto Norberto, Joaquim Maria aprendeu a controlar seus comportamentos e imediatamente se tornou um notável.

Seus atributos eram maravilhosos, mas o principal deles era sua capacidade de dialogar com qualquer indivíduo do planeta, sobre qualquer assunto. Se se encontrava com uma criança, Joaquim Maria parecia retroceder em anos, falava, gesticulava e até brincava como se criança fosse; mas se o interlocutor fosse um homem de ciência, ou um matemático, ou um engenheiro naval, Joaquim Maria falava sobre tais assuntos com propriedade, como se possuísse o mesmo conhecimento, como se houvesse cursado todas as faculdades e lido todos os livros de tais matérias.

Se conversava com uma mulher, Joaquim Maria afinava a voz, quebrava o pulso e fofocava sobre a vizinhança; se fosse com um mendigo, em pouco tempo também começava a esmolar, se fosse um capitalista, logo recitava de cor as cotações das ações e quais eram os melhores investimentos.

Certa vez, ao debater com um astrônomo, Joaquim Maria descobriu um novo planeta; outra, discutindo com um filósofo, Joaquim Maria provou a existência de Deus; escreveu três livros após ter se encontrado com autores renomados, duas óperas ao se reunir com compositores e pintou, durante uma sessão particular com o artista da corte, um dos quadros mais visitados da Galeria Real.

Podia manusear qualquer arma de fogo se na presença de militares, dançava como um profissional se dançarinos o cercassem. O mais impressionante, contudo, era o incompreensível dom de falar os idiomas dos interlocutores: russo ao conversar com um russo, ou alemão com um alemão, ou polonês com um polaco, ou hebraico com um judeu.
Existiam boatos de que até o comportamento de animais Joaquim Maria era capaz de reproduzir e testemunhas garantem que ele já havia atacado um carteiro na companhia de cães e que, outra vez, durante a visita ao zoológico, a polícia teve grandes dificuldades para retirá-lo dos galhos duma árvore ao lado da jaula dos macacos.

Os sábios do reino então se propuseram uma missão: descobrir o verdadeiro Eu de Joaquim Maria. Isolaram-no completamente numa sala espelhada e o observaram por semanas. No entanto, Joaquim Maria não esboçava nenhum tipo de comportamento, apenas permanecia sentado, olhando seu próprio reflexo. Mas num dia, subitamente, ele pulou da cadeira e começou a abanar os braços e a correr, em ziguezague, pela sala. Foi quando constataram que uma mosca havia se infiltrado no cômodo.

Mas ninguém imaginou que um dom tão extraordinário seria a causa da própria desgraça de Joaquim Maria. Sem nenhuma explicação, inadvertidamente, Joaquim Maria se tornou uma pessoa normal, como outra qualquer.
Quer dizer, mais ou menos...

Durante todos os anos em que Joaquim Maria não passou dum replicante, de algum modo inexplicável, ele também havia tido acesso a todos os pensamentos mais secretos das pessoas com as quais havia conversado. Joaquim Maria sabia de tudo, desde os detalhes mais sórdidos até as conjeturas mais intrincadas.

Joaquim Maria decidiu que tanto conhecimento deveria ser compartilhado e, num intervalo de três meses, escreveu um livro expondo tudo isto. Mas Joaquim Maria, agora repersonificado, era um crítico inclemente da sociedade, talvez o mais satírico de todos os tempos, um comediógrafo arguto e cruel da vida real.

Em seu livro, ele difamava desde o Imperador até a prostituta, do general ao bobo da corte. Contava tudo, sem censura, sem dó, nem piedade.

É óbvio que Joaquim Maria criou inimigos poderosos e tudo que se falava à boca pequena era que o queriam morto.

Então, ontem à noite, encontraram-no enforcado em seu gabinete.

O comissário da polícia afirmou que não investigará o crime, pois Joaquim Maria havia contado no livro sobre o caso extraconjugal que ele mantinha com um estivador; o Imperador se recusou a comentar o crime; não havia testemunhas; ninguém, a não ser eu, velho amigo de Joaquim Maria, compareceu ao sepultamento deste gênio de nossa época.

Escrevo este relato para que a memória dele não se apague, e cito o primeiro parágrafo da obra que tornou Joaquim Maria o inimigo público número um, após ter sido o maior expoente do país:


Contar mentiras é perigoso,
Mas falar a verdade pode ser fatal.





domingo, 8 de novembro de 2009

Laboratório Poético: indrisos

[córrego por onde escorre o tempo]


córrego por onde escorre o tempo
sentença tornada gelo
lago vazio de perguntas

só um dique, ora seco, ora raso
ora transbordando
comportaria essas águas todas

essas correntes às vezes caudalosas

não raro somem sem razão nenhuma


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[um barco deixou aqui uma caixa]

um barco deixou aqui uma caixa
depois, deixou o barco o porto
deixou, pois, p'ra trás, o horizonte

choveu, e a chuva manchou a caixa
deixei os nomes e a tinta irem p'ra junto d'água
não vi para quem era, nem de que se tratava

ventou e o vento trouxe o barco de volta

deixei o chão, o porto, a caixa, a tinta, e fui embora




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A dança dos imortais

Volmar Camargo Junior





Um crime aconteceu numa cidade provinciana. Os policiais responsáveis pelo caso, Inspetor Magalhães e Inspetor Barbosa, estavam na delegacia, fazendo plantão como sempre. Tentavam deduzir algo a partir dos poucos fatos que tinham. Coçando a garganta, o policial Magalhães preparou-se para reler o primeiro boletim de ocorrência, lavrado por ele próprio na noite do crime.

— Recapitulando: “Orlando Nogueira, o Orlandinho assistia ao seu programa de televisão favorito quando ouviu à campainha soar das vezes – o segundo toque mais longo que o primeiro. Reconheceu o código, embora houvesse muitos dias que o autor, digo, a autora, não comparecia à sua casa. Assim que destrancou a porta, a amiga, Mighellina Fonseca de Alcântara e Silva, adentrou muito aflita no apartamento. Assim que entrou, disse estas exatas palavras: “Eles... querem... me... cal... argh!” Só então Orlando percebeu que Mighellina tinha as mãos, as costas da jaqueta de couro e o lado esquerdo do pescoço manchados de vermelho vivo. Sem aviso prévio, desfaleceu com os olhos vidrados. Estava morta.”
— Mas que bela porcaria, Magal! Precisava desse drama todo? A delegada vai te encher o saco. Bom, continua teu raciocínio.
— Obrigado. A moça não tinha inimigos, não era dada a hábitos escusos, “Um doce!”, disse o tal Orlando. Também não fazia nada de extraordinário. Era uma pobre moça rica, que gostava de romances de terror e que até se arriscava ela mesma a escrever alguns.
— Mas isso tem alguma importância? – perguntou o Barbosa.
— Ora, tem toda – respondeu o Magalhães - Essa moça apareceu moribunda no apartamento do amigo, e disse esta frase “Eles... querem... me... cal... argh!”. Alguém queria calá-la.
— E como concluiu que alguém queria calá-la? Ela só disse “cal...”. Talvez fosse dessas piadinhas em inglês... “They want to me telefonar”. Sabe aquela: What is um pontinho amarelo vendo a esposa transando com o amante? Um Corn-o-manso!
— Puxa, Barbosinha... Às vezes eu tenho vontade de anotar o que você diz.
— Agora está sendo cínico... Então ela era escritora. E daí?
— Sim. Escrevia muito bem, a propósito.
— Conseguiu algum livro dela?
— É lógico. Quer dizer, talvez não seja bem o que você está esperando.
— Por quê?
— Ela era defensora da publicação on-line. Tinha uma ONG e tudo, um lance muito esquisito: “Biblioterrorismo”. Os seus livros estão disponíveis na internet, de graça. O último tá aqui nesse site.
— Bah! Caso solucionado: quem mandou matá-la foi alguém grande do mercado editorial!
— Acho que não é tão simples assim, Barbosa. Dá uma lida nisso aqui. – disse, Magalhães, levantando-se de seu birô, apontando com a mão espalmada para o monitor do PC. – Enquanto isso, vou fazer um café. Tá a fim?
— Chá verde, para mim. Café tem me dado uma azia...
— Ok! Chá verde para o Inspetor Barbie, que está de dieta. Veadinho...
— “Barbie” é a @#$%¨&;* que te pariu!

Enquanto Magalhães foi até a cozinha da delegacia, Barbosa acessou o link. Havia uma lista de quase trinta romances de autoria da tal moça, o que o deixou embasbacado. Escolheu o mais recente, intitulado “A Dança dos Imortais”. Conhecido por suas técnicas de leitura dinâmica, quase sem piscar, Barbosa leu ininterruptamente três capítulos do romance. Tinha um estilo notável, muito claro e, ao mesmo tempo, dotado de uma impecável correção gramatical. O romance de trezentas e treze páginas digitalizadas tinha por enredo a vida de um vampiro carioca, ambientada no que hoje é o centro velho do Rio de Janeiro, em finais do século XIX. Foi então que, como diz o ditado balzaquiano, a ficha caiu para o policial. No teclado, pressionou simultaneamente as teclas CTRL+L, e no campo localizar escreveu

“Eles querem me calar”

— Magal – gritou o Barbosa ao colega quando este trazia as duas xícaras fumegantes – Você leu o último romance da dita cuja?
— Qual? O do índio guarani que seqüestrou, torturou, matou e esquartejou o José de Alencar?
— Não, esse é o penúltimo. Estou falando deste aqui, o do vampiro.
— Esse não estava aí. – disse Inspetor Magalhães, pulando curioso diante do monitor, com os olhos arregalados. — Eu tenho certeza, olhei a página na mesma noite do crime... Eu até dei uma lida, e me admirei: a guria sabia escrever.
— Ah, é? E como ela deixou passar isso aqui?

O policial Barbosa selecionou o seguinte trecho:

(...) então, como uma tempestade, os homens vestido de preto começaram a atirarem contra a criatura, que ficou encurralado. Erguendo o punho serrado em direção ao holofote forte que queimava seu rosto com a luz intensa, o ser monstruoso proferiu a plenos pulmões, com um tom de voz gutural, demoníaco:
— Eles querem me calar! Mas eu sobreviverei! Mesmo que eu seje silenciado como da vez passada, minha obra ainda deixará a marca dela! Minha obra revelará a verdade sobre os Imortais.
E tendo dito estas palavras, uma nova e longa saraivada de tiros de metralhadora abafaram a gargalhada horrenda da monstruosa criatura meia homem, meia morcego. (...)

— E então, o que você acha?
— Eu acho que esse trecho precisa ser reescrito com urgência... onde já se viu? “Vez passada”, “marca dela”! Nem eu escrevo tão mal!
— Você tem razão, mas não estou falando disso. Você não acha muita coincidência que a mulher tenha morrido como uma vítima de...
— De um vampiro? Tá doido? Que tipo de policial você é, Barbosa?
— Do tipo que entende alguma coisa de literatura.
— Pronto. Falou o especialista.
— Acompanha comigo: pelo que eu li desse romance, o personagem principal é um certo Joaquim Maria, mulato, filho ilegítimo de uma escrava negra e um comerciante carioca que conheceu uma cigana espanhola chamada Capitu. Essa cigana, na verdade, era uma vampira, que o seduziu usando seus encantos, transformando-o também num vampiro. No terceiro capítulo, o tal Joaquim Maria tornou-se um escritor famoso. Não pude resistir, e pulei direto para o último capítulo, onde encontrei a frase que a Mighellina falou: o Joaquim Maria criou uma sociedade de vampiros-escritores que, na verdade, governam toda a indústria cultural no Brasil: os Imortais. Ele, o fundador, é considerado o maior escritor de todos os tempos; e não é para menos: seu talento é devido a ele ser um vampiro, e os outros todos, para se tornarem “Imortais” da tal sociedade secreta, precisam ser transformados também. Não que todos tenham talento... No fim das contas, o Joaquim percebeu o quanto seus lacaios se tornaram escrotos, e se arrependeu. Por isso é que ele decide contar toda a verdade para o mundo, dando uma entrevista a uma jovem escritora que abomina as práticas mercadológicas dos Vampiros de Fardão. Mas, antes que ele concedesse tal entrevista, os paus-mandados dos sanguessugas o encontram, o perseguem e, por fim, acontece aquela cena que eu não terminei de ler porque tu chegou com o meu chá. Ufa!

— Barbosa... essa é a história mais ridícula que eu já ouvi. Eu achei que a tal Mighellina fosse uma baita escritora. Rapaz, até a minha filha de doze anos tem idéia melhor pras aventuras de RPG dela.
— Magal! Magal! Presta atenção, meu filho! Essa moça, a tal defunta, é um embuste! Ela é uma “laranja intelectual”. Você não viu o jeito que ela escreve? É um horror! Ela até tem as idéias, mas quem escreve os romances dela de verdade é outra pessoa.
— Mas quem?

Então, ouviu-se um barulho metálico, uma forte pancada vinda detrás da porta que levava à sala do Instituto Médico Legal, contíguo à delegacia. E de novo. E de novo. E na quarta vez, a porta de aço voou contra a parede oposta. Todas as luzes da delegacia apagaram-se. Um guincho medonho foi ouvido em todo o quarteirão onde ficava a delegacia.

No dia seguinte, a faxineira desmaiou diante da porta da sala onde trabalhavam os inspetores Magalhães e Barbosa. Havia apenas restos de corpos humanos, papéis em desordem, o monitor do PC esmigalhado e, por todas as paredes, forro, cortinas, birôs, arquivos, cadeiras, soalho. E sangue, muito sangue.

A gaveta onde, até o início da noite anterior, estava o cadáver etiquetado como sendo de Mighellina Fonseca de Alcântara e Silva, foi encontrada vazia. Ao seu redor, havia marcas de pegadas, como se fossem de um enorme animal bípede, que o rapaz da perícia, formado em biologia, alegou serem muito parecidas com as de um morcego.





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sábado, 7 de novembro de 2009

Poesia: Contra o Muro

por Ju Blasina*
Os muros são tantos
Obstáculos intransponíveis
A dividir a estrada
E nós — Tão poucos
Impedidos de proferir
Impelidos a prosseguir
A alta escalada
Apta a transcender
Esta plástica realidade

Ah, se nós fôssemos tantos
Quanto são os sonhos que ousamos ter (?)
Ah, se fôssemos tão fortes
Quanto é o medo que nos faz oprimir (?)
Que nos tenta abater
Ah, se fôssemos mais altos
Que os obstáculos
Que nos levam a cair

Não haveria muro
Capaz de suportar
Tamanha vontade

E a realidade (?)
Seria nova
Seria nossa (?)
Seria nada



*Nota da autora: poesia inspirada nos 20 anos da queda do muro de Berlim, completos em 09/11/09.





Morte & Espelhos

por Ju Blasina
 
Ilustração: Jairo Tx


Mais um feliz dia de trabalho para o Dr. Shoji. Ele chega pontualmente às 07h04min — nem um minuto a mais nem um minuto a menos — ao seu distinto consultório, num dentre os tantos arranhacéus no centro de Tóquio; 49º andar.

— Ohayou, Menial San!
— Ohayou, Dr. Shoji, como vai a família?
— Bem, muito bem, eu diria. Agradeço por perguntar.

Seu inglês era absurdamente perfeito para um japonês e ele se orgulhava disso. Teve a melhor educação que o dinheiro e a disciplina podem fornecer, viajou o mundo e ao abrir seu consultório em Tóquio, fez questão de uma secretária americana — e poliglota! — para que assim atendesse melhor a todo e qualquer paciente, afinal "a insanidade não escolhe descendência" já dizia um provérbio de sua própria autoria.

— A senhorita poderia, por obséquio, levar uma xícara de chá até a minha sala, dentro de 4 minutos?
— Pois não, doutor. Chá verde, sem açúcar e 4 biscoitos para acompanhar?
— Sim, minha jovem, seria de meu agrado.

Era assim, todo santo dia, nem mesmo uma vírgula mudara de lugar — muito menos o chá — ainda assim, conferir as preferências quanto ao chá e o número de biscoitos era algo imprescindível para o bom relacionamento profissional, que já durava 4 anos!


Não tão pontual foi a chegada do primeiro paciente, Hiroito Okashi — primeira consulta. Aliás, como todo e qualquer paciente do Dr. Shoji: uma única consulta era suficiente para curar qualquer perturbação, conforme garante sua propaganda — rodapé de 4X4 cm, publicada a cada 4 dias, em quatro idiomas, logo abaixo do obituário:

"Para que o seu nome não esteja aqui amanhã, o meu está hoje: DR. KAGAMI SHOJI"

Sua secretária tomara boas lições de marketing e, segundo ela, o obituário é sem dúvida o melhor lugar para angariar os D’s (deprimidos e/ou desesperados).


Sr. Okashi procurava cupons de desconto para guloseimas quando, por acidente recortara o rodapé do Dr. Shoji e por pura gula ali estava — atrasado e esbaforido. O elevador teimava em parar sempre no andar inferior, e subir um lance de escada não foi nada agradável para o homem de 130 Kg.

Sr. Okashi não só estava atrasado e esbaforido, como também ensopado de suor! Ele se apóia na parede e entrega o cupom suado e amassado à secretária, que sorri gentilmente e pelo telefone anuncia ao doutor a chegada do paciente, sem citar o nome — seu serviço preza pelo absoluto sigilo!

O homem, sem entender "que raios de lugar é esse" e torcendo para que ao menos o brinde valesse o sacrifício da escadaria é então conduzido ao divã. Confuso e atônito, ele apenas senta naquele "banquinho confortável", enquanto o doutor faz o seu trabalho.

Exatos 40 minutos depois o homem deixa o consultório — calmo e bem disposto. Na saída esvazia os bolsos na lixeira da secretária, que com o mesmo sorriso automático, olha e pensa "como pode caber praticamente uma confeitaria inteira no bolso de um homem?" (...minutos de neurônios em sacrifício...) e a resposta: "é claro: é um bolso grande!"


Cerca de 90 minutos depois chega o próximo paciente – homem carrancudo, cara de poucos amigos, ombros tensos, olhar ameaçador — "um americano típico", pensa a Srta. Menial e sem ousa dirigir-lhe a palavra, apenas sorri e mais do que rapidamente o conduz ao consultório principal, onde o doutor já o aguarda. Alguns berros, barulhos e minutos depois (40, lógico), o homem sai do consultório. Sorri e agradece, apresentando-se e beijando a mão da secretária que, perplexa, jura ter ouvido o, agora gentil cavalheiro, Sr. Hardman cantarolar alguma coisa enquanto seguia pelo corredor, escada abaixo.


Pontualmente, às 13 horas chega ela: mulher bonita, cabelos e olhos extremamente negros. Apesar do ar suave e sorridente, há algo muito assustador naquela mulher e não é apenas a grande borboleta tatuada em preto cobrindo-lhe o rosto. "Coisas assim são comuns por aqui. Deve ser maquiagem, só pode!", pensa a secretária, enquanto a paciente caminha serelepe e entra direto no consultório, sem bater à porta e nem mesmo esperar ser anunciada!

Consulta muito breve, menos de 15 minutos e ela sai, com a mesma graça assustadora com a qual entrou.


Dr. Shoji dá por encerrado o expediente. Algumas pessoas orgulham-se de ter um relógio biológico apurado – ele poderia se gabar por sua agenda de consultas mental; apesar de não trabalhar com hora marcada, inexplicavelmente sempre sabe quantos, quando e quais pacientes atenderá por dia. O que torna a secretária tão obsoleta quanto um porta guarda-chuvas no verão, porém, além de imprescindíveis em um consultório respeitável, ambos são belos objetos decorativos – sobretudo a Srta. Menial!

— Oh, como eu nunca havia reparado em tamanha formosura... a palavra gostosa lhe é bem apropriada! - São tantos os adjetivos que lhe vêm a mente, tantos os atrativos que lhe pulam aos olhos, hormônios circulando em abundância e respostas fisiológicas previsíveis, que o Doutor nem mesmo percebe a atitude gerada. Se vê surpreendido... Ainda mais surpresa fica a Srta. Menial:

Ela se assusta com a brutalidade com a qual ele a toma, grita conforme seu cabelo é puxado e geme quando seu corpo é jogado violentamente sobre a mesa. Teme, reage brevemente, mas não desgosta... e como boa e servil secretária, logo reconhece o ato como algo "imprescindível para o bom relacionamento profissional, que já durara... Quantos anos mesmo?"

Após esta pequena recreação, Dr. Shoji alinha o paletó, pega a valise, despede-se cordialmente da tão gentil secretária e segue, tranqüilo e sereno, até sua residência, onde é esperado para o almoço familiar. Entra na impecável casa, beija a impecável esposa — respeitosamente, na testa — e passa a mão na cabeça de seus dois impecáveis filhos, já sentados à mesa.

A refeição cheira muito bem e tem uma aparência espetacular, porém não lhe apetece; nada ali lhe apetece, e ao contrário da comida, o cheiro e a aparência de sua esposa lhe são repugnantes. E mais uma vez ele é tomado por um impulso febril, incontrolável e violentamente esmurra a esposa na cara. A força é tamanha que a arremessa ao chão.

Abatido o primeiro obstáculo, ele olha em volta, ansioso à procura da próxima vítima. O filho corre para o quarto enquanto a pequena esconde-se debaixo da mesa. O que lhe traz um grande alívio:

— Ah, nada como filhos bem treinados! Filhos e cachorros! Que maravilha! - E dizendo isto se levanta e vai até a geladeira em busca de uma refeição decente.

— Hm, sorvete! Querida, onde guardamos os biscoitos? Ah, sua estabanada, o que faz no chão? Vamos, deixe-me levantá-la, assim, pronto! Você está tão... Abatida, deveria retocar a maquiagem, como faz a Srta. Menial! E você menina, isso são horas pra brincadeiras? Saia já debaixo da mesa! Crianças...

Ele se senta confortavelmente em sua poltrona favorita e saboreia a agradável e deliciosa refeição de sorvetes, biscoitos e confeitos coloridos!

— Ah, que belo dia de trabalho! Quanta satisfação!

Ao terminar a refeição sente um enorme vazio — que certamente não vem do estômago. É o tipo de vazio que um artista sente quando percebe sua obra incompleta. Isto o inquieta.

Ele percorre os cômodos da casa, procurando por "sabe-se lá o que". Confere atentamente sua agenda mental e de repente percebe o que esquecera: "Obrigações profissionais, claro!"

Ele sorri e caminha até o banheiro; abre o armário e de lá tira uma caixa de madeira relativamente antiga que ele nem lembrava possuir, mas soube exatamente onde encontrar. Abre a caixa, confere o conteúdo e sorri novamente, satisfeito por estar intacto. Olha-se no espelho e diz para si mesmo:

— Só mais este trabalho e meu dia estará completo!
Recorda do que lhe dissera a última paciente (sigilo profissional). Olha-se ao espelho, sorri e...

...40 segundos depois... Pronto: missão cumprida!


O filho ouve o tiro, a filha encontra o corpo, a mulher limpa o sangue: Chão, parede, teto e espelho.

E a secretária cuida dos detalhes:

— Alô, é do jornal? Sim? Olá, aqui é a Srta. Menial, eu gostaria de modificar o anúncio do Dr. Shoji – não, não, a página está ótima! Isto, obituário mesmo, só precisamos de uma leve alteração no texto, assim:

"Para que o seu nome não esteja aqui amanhã, o meu está hoje
– DR. KAGAMI SHOJI - amado pai e esposo"

— Sim, é só isso. Arigatou gozaimasu.