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segunda-feira, 28 de agosto de 2023

O Cativo

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 13

O número dos nossos inimigos varia na proporção do crescimento da nossa importância. Acontece o mesmo com o número dos amigos.

Paul Valéry

Filósofo, escritor e poeta francês

(1871-1945)

 

 

Indecisos sobre o que fazer com o ladrão, amarraram-no a uma estaca no centro do povoado, mesmo em frente à casa de Erem. Na fúria vingativa, os aldeãos despojaram-no das roupas, encheram-no de pancadas e atiraram-lhe toda a espécie de objetos inomináveis. As tentativas para extrair algo de inteligível dele, porém, foram infrutíferas. Não conseguiam perceber a algaraviada do invasor, apesar de, por vezes, uma ou outra palavra parecer familiar. Chamaram vários dos estrangeiros residentes, mas nenhum conseguiu entabular uma comunicação. Por gestos, conseguiram perceber que ele provinha de algum lugar distante para lá das montanhas a norte e que eram um clã numeroso.

O pequeno e improvisado, “conselho” com Erem, Lemi e os recém-admitidos, Alim e Tailan, discutiu o pouco que sabia. Se por um lado sentiam-se mais descansados por saber que os ladrões estavam longe, por outro, o facto de chegarem até ali, significava que se movimentavam… talvez na direção da aldeia. Além disso, possuíam armas de cobre; facas, espadas curtas, as pontas das flechas e até os próprios arcos estavam decorados com finas folhas trabalhadas do metal. Estavam obviamente perante um povo bem armado e com conhecimentos para além dos deles.

Distribuíram as armas pelos melhores guerreiros, mas Erem, satisfeito com o punhal que lhe fora oferecido há algum tempo por Alim, abdicou da espada que lhe caberia e permitiu que fosse entregue a outro.

Como havia trabalhos a desempenhar, gradualmente, o grupo que circundava o cativo foi ficando menor, reduzindo-se apenas às crianças que começaram a divertir-se atirando-lhe pedras. O homem gritava na sua língua incompreensível e rosnava-lhes sem sucesso, para alegria dos petizes. Foi Zia quem interveio fazendo-os dispersar. Antes dela própria se ir embora, ainda deitou um olhar preocupado ao prisioneiro; que haveriam de fazer com ele? Deveriam simplesmente matá-lo como muitos sugeriam? Oferecê-lo a Swol no círculo de pedra? Seria ser uma honra para os deuses ou iriam conspurcar o lugar sagrado?

Já não chovia há uns dias e as planícies estavam forradas de erva tenra que veados e auroques pastavam livremente. Havia muito trabalho a caçar e a desmanchar as carcaças para secar as carnes. Além disso, também beneficiando dos dias que cresciam, a operação de construção do santuário recomeçou e as equipas para arrastar as pedras já saíam todos os dias para a sua atividade.

Ao anoitecer, todos regressavam e a fogueira no centro da aldeia já ardia, acendida pelas mulheres. Apesar da casa da reunião já ter sido terminada, desde que não nevasse ou chovesse, muitos preferiam continuar ali ao ar livre, em vez de fechados atrás de paredes.

Há medida que a luz desaparecia e o número de pessoas em volta da fogueira crescia, também os murmúrios acerca do prisioneiro se faziam ouvir. À semelhança das crianças, também os adultos atiravam pedras, ossos, ou mesmo brasas ao cativo.

A chegada de Erem e Zia impôs algum respeito e os grupos familiares retomaram as suas atividades normais colocando pedaços de carne sobre as brasas que depois dividiam entre si. Alguns bebiam uma pasta de água e cereais mal triturados, acompanhados de carne seca. Tudo era melhor quando havia fruta, mas, para já, tinham de se contentar com algumas bagas ou amêndoas e nozes bolorentas.

Faltava apenas um dos grupos de caça… especificamente o de Naci e Fikri, que era o que normalmente se arriscava mais a afastar-se mais da aldeia, mas também era frequentemente o mais bem-sucedido.

Em volta da fogueira, as famílias faziam a refeição e falavam entre si ou em conversas cruzadas com os grupos vizinhos. Erem e Lemi, em grupos separados, debatiam o que deveriam fazer com o prisioneiro. Este último era de opinião que tinham de o matar; era culpado de roubo e quase de certeza matara ou colaborara nas mortes do último assalto. Ou entregavam-no aos familiares das vítimas para se vingarem, como muitos exigiam, ou sacrificavam-no aos deuses.

Nehir, normalmente silenciosa nestes debates, interveio: “Swol e Mensis acasalaram e velam pelos homens desde Manu[1]. Trazem a noite e o dia, as plantas e os animais que comemos, tudo isso para que os seus filhos não precisem de se matar e comer ou serem comidos. Matar outros homens é mau. Os deuses não gostam.”

Zia assentiu para os outros gravemente e depois sorriu e acariciou carinhosamente o braço da filha.

Apesar da conversa importante, Erem estava distraído, atento a todos os movimentos para além da fogueira, sempre na esperança de ver chegar Naci e o seu grupo de caça. Ele era o seu eterno rival, que contestava a maioria das suas decisões, mas era também o alvo da sua admiração, amor e desvelo. Amava os outros filhos, claro; Nehir, a curandeira, sempre serena, atenta e mística, Asil, que escavava as pedras e bocados de madeira transformando-os em objetos de culto, Altan e Tekin, os mais velhos e mais sensatos. A angústia instalou-se-lhe no peito ao lembrar Nuri, morto pelos homens-macaco. Ninguém poderia duvidar do seu amor por todos os filhos e orgulho em todas as suas conquistas, mesmo as de Asil, que alguns homens desprezavam como sendo fraco e pouco dado a lutas; as suas esculturas de madeira levavam longe o nome de Barinak e as pedras do seu amado santuário ficavam maravilhosas após terem sido escavadas por ele… só era pena que demorasse tanto tempo. Às vezes ia espreitá-lo nas suas visitas ao santuário, a bater diligentemente com um pedaço de basalto num dos enormes monólitos até conseguir extrair da sua superfície o focinho de um leão, um cervo, ou mesmo um gafanhoto. Mas era Naci a sua eterna fonte de preocupações; arrojado, atirava-se de peito aberto a qualquer luta e saía quase sempre vencedor. Os deuses sorriam-lhe desde o nascimento, que acontecera numa noite escura, de grandes relâmpagos e trovões que abafavam os gritos de Zia. Durante o seu crescimento revelou-se um líder nato; os outros jovens seguiam-no cegamente deslumbrados com a sua coragem e ímpeto… mas Erem temia faltar-lhe ainda muita sensatez. Era demasiado jovem e as suas ações punham muitas vezes todos em risco, além dele próprio. Lemi dizia que Birol, o avô, também fora assim, mas foi gradualmente ganhando calma e discernimento.

Erem queria a opinião do filho, embora soubesse que na maior parte das vezes realizaria precisamente o oposto, deixando-o furioso. Servia-se dele como um dos pratos de uma balança onde tentava equilibrar a impetuosidade dele e a sua própria sensatez. Ao mesmo tempo, mostrava ao filho que, na maior parte das vezes, agir sem refletir seria um erro. Naci, porém, achava que o pai ficava velho e fraco e já tardava a hora em que um dos irmãos, ou mesmo ele, deveria tomar o seu lugar.

O chefe estava envolvido nesses pensamentos, com o olhar fixo no miserável prisioneiro amarrado ao poste, rodeado por imundícies e pedaços de comida que adultos e crianças lhe atiraram. Estava completamente nu e a sua pele clara marcada pelas equimoses das pancadas que levara. Só não estava já morto pelo respeito que Erem exigira. Como um animal selvagem encurralado, mantinha-se curvado e os olhos vivos circulavam pelos seus captores, sempre pronto a esquivar-se ao que lhe arremessavam. “Tenho de lhe deixar umas peles para dormir” — Refletiu de si para si. — “Não quero que morra gelado. Precisamos de saber o máximo que pudermos dele e do seu clã. Só então se decidirá o que fazer com ele.”

Murmúrios alterados e pequenos gritos de algumas mulheres fizeram-no olhar para além das casas mais próximas, a distância limitada pela escuridão. Ali pareciam materializar-se dois guerreiros magros, vestidos com túnicas compridas. Traziam o cabelo em finas tranças decoradas com pequenas esferas, empunhavam lanças bem direitas, mais altas um palmo do que eles. Vários membros do clã levantaram-se alarmados e preparavam-se para enfrentar a ameaça, quando, pelo meio dos recém-chegados, passou a trote um dos lobos que Cemil, o irmão de Erem criou desde filhote. O predador domesticado atravessou calmamente o centro do aldeamento, rosnando aos que estavam demasiado próximos, em direção ao amontoado de troncos onde dormia. Atrás dos estranhos, que se mantiveram imóveis, começavam a sair da escuridão os esperados membros do grupo de caça, seguidos por Fikri e Cemil. Dois homens arrastando uma padiola fechavam o cortejo.





domingo, 27 de agosto de 2023

Teatro de sombras


 





sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Incógnito

 


Outra vez? Parecia que havia épocas em que tudo se desarmonizava. Era o terceiro dia que Álvaro se deslocava ali, ao pavilhão da farmácia do Santa Maria, para levantar medicamentos. No primeiro, esperara uma hora em vão. Dos 72 números que faltavam para ser atendido, ainda restavam 40 quando desistiu.

No dia seguinte, foi um pouco mais cedo, disposto a enfrentar duas ou mais horas de espera. Até podia dispor de cinco ou dez, percebeu então: os farmacêuticos hospitalares estavam de greve e os Serviços Mínimos só lhes permitiam atender casos urgentes. Por isso se acumulara tanta gente no dia anterior.

“Hoje” sofria o mesmo mal: os atrasos anteriores e a promessa de futuros dias de greve tinham voltado a encher a sala de espera da Farmácia hospitalar, que era também a sala de espera das Colheitas de sangue. O dia quente e os 60 números de espera no meio daquela multidão ameaçavam transformar a manhã de Álvaro numa bizarra experiência de sauna ibérica, apesar do ar condicionado.

Saiu, à procura de um recanto sombreado no recinto hospitalar onde pudesse entreter-se a fazer um sudoku, mas os bancos estavam todos ao sol e ficar encostado a um muro mais de uma hora, e de pé, não era uma perspetiva agradável.

Então, lembrou-se das salas de espera de outros serviços. Ali perto, estava o acesso à sala de espera da Pneumologia. Espreitou e, confortado, verificou que havia vários lugares vazios. Entrou, escolheu um, perto de um canto, e embrenhou-se na sua paciência. O ar condicionado dava um conforto extra. Perfeito! Não incomodava ninguém e, daí a três quartos de hora, iria verificar o “andamento” da Farmácia.

Antes de se abstrair totalmente, tomou consciência de que estava ali completamente incógnito. Num serviço que nunca precisara de frequentar, ali ninguém o encontraria. Como se estivesse num ermo beirão.

Uns dez minutos depois, a surpresa: «Álvaro Inês Trancoso Rebordão — gabinete 14».

Pela mente do convocado perpassou um filme acelerado de possibilidades, como aqueles a que as pessoas prestes a afogar-se dizem assistir. Como era aquilo possível? Em que sociedade vigiada é que vivia para aquilo acontecer? Seria a CIA? O SIR? A Organização Hospitalar, se é que existia?

Acreditou perceber o que acontecera. Embrenhado no seu sudoku, entendera como seu nome outro parecido. Ainda mal decidira esperar, quando o altifalante retiniu a voz masculina clara: «Álvaro Inês Trancoso Rebordão — gabinete 14». E, logo a seguir, a habitual voz feminina gravada: «A 67 — gabinete 5».

Percebeu então que a chamada nunca era feita pelo nome. Invadiu-o um incómodo meio-assustado. Por uns segundos, pensou sair dali, afastar-se como se não tivesse ouvido nada. Mas depois racionalizou. Não sentia que tivesse motivos para recear alguma coisa. O melhor era tentar perceber o que se estava a passar. Até para matar a curiosidade.

Avançou pelo corredor, conferindo os números. Do lado direito, o gabinete 14. Bateu e entrou. Em pé, um tipo sorridente de bata, com um estetoscópio ao pescoço — o identificativo tácito da qualidade de médico.

— Bom dia, doutor. Chamaram-me, mas deve ser engano… — o seu rosto pedia explicações.

— Viva, meu alferes! Há mais de 50 anos que não o via! — respondeu o médico, enquanto estendia a mão para o aperto forte, reforçado com a mão esquerda. — Tá bom?

Álvaro sentiu que se revelava instantaneamente grande parte do mistério que envolvia a situação. Seria um médico militar? Mas, da mesma idade?

— Já não se deve lembrar de mim — continuou o médico —, mas eu nunca esqueci o seu nome. Eu sou o furriel Marques. O Catarino Marques. Estivemos ambos em Lanceiros, lá por 70–71.

— Ah, olá! — fez Álvaro, sem ter a mínima ideia de quem aquele tipo dizia que era. — Tudo bem?

— Antes de mais, meu alferes, deixe-me fazer uma coisa que tenho desejado intensamente fazer estes anos todos: pedir-lhe desculpa.

Perante o olhar perplexo de Álvaro, o outro explicou-se:

— Eu saí no princípio de 72 e, naquela altura, naquele contexto, era uso — uma espécie de praxe invertida e tardia — sacar tudo o que fosse possível, do quartel, dos outros, sobretudo dos oficiais. Eu levei várias malas de coisas que consegui sacar, deste e daquele: umas botas, uma máquina de barbear; montes de tralha. Lembro-me de abordar o meu alferes, que, na altura andava a estudar Psicologia, e pedi-lhe livros. Disse-lhe que era para ler nos primeiros tempos de “peluda”. Quero, finalmente, pedir-lhe mil desculpas.

— Ah! Foi você? — lembrou-se vagamente Álvaro. — Eu vinha de um ambiente familiar e de uma atitude de candura aldeã, em que tinha dificuldade em dizer que não. Você “endrominou-me” bem! Eu a querer saber quando e onde é que mos devolvia e você a dizer que mos dava quando eu passasse por Coimbra e fosse a determinado sítio indefinido.

— O meu alferes era um grande totó, desculpe o termo. Mas eu nunca mais me esqueci desse episódio. Tenho os livros lá em casa, nunca me desfiz deles. um é o “Psicopatologia da vida quotidiana”, outro “A interpretação dos sonhos”, ambos do Freud. Sei bem onde estão, muitas vezes li o seu nome no início e quero devolver-lhos. Até já cheguei a fazer diligências para o encontrar. Eis senão quando, passo pela sala de espera e o vejo ali num canto, sossegado como sempre. Resolvi chamá-lo pela intercomunicação, para falarmos mais à vontade. As minhas desculpas, mais uma vez!

— Ah, tudo bem. Eu até desisti da Psicologia.

— Não diga isso, meu alferes, que me afunda em remorsos — agitou-se Catarino, com o rosto perturbado.

— Não, não; não teve nada a ver! Desisti uns anos depois, porque o ISPA era só discussões administrativas e nada de conseguirem que o curso de Psicologia fosse reconhecido oficialmente. E não me trate por “meu alferes”, doutor.

— O peso do sistema de classes militar que nos inculcavam não é fácil de desfazer. E este encontro fez-me reviver aquele contexto castrense. Já agora, não me chame doutor. Na verdade, não sou médico. Tirei Psicologia Clínica. Já jubilei, mas venho aqui pontualmente dar apoio à Mitigação do tabagismo. E estou convencido de que foi por causa daqueles livros que fiz o curso. Tive curiosidade, aquele da Psicopatologia da vida quotidiana criou-me o gosto pelas temáticas de Psicologia... Como as coisas são…

— São mesmo… Tens visto alguém daqueles tempos?

— De longe em longe, vou a uns almoços. Quer aparecer no próximo? É dia 29 em Belém.

— Hum, sou pouco de convívios. Mas gostava de falar mais contigo. Estás sempre por aqui?

— Sim… acho que sim. Mas esses dedos indicam que o meu al…, perdão, o Álvaro tem tudo a ganhar em frequentar a Consulta anti-tabágica aqui do hospital. Inscreva-se! Ajudá-lo seria a maneira de eu conseguir ultrapassar, de maneira airosa, aquele remorso de que lhe falei.

— Já tentei deixar de fumar várias vezes, sem êxito. Primeiro terias de conseguir convencer-me, porque agora já nem sei se quero!

— Para o “endrominar”, pode contar comigo! — assegurou, de sorriso aberto.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Gaetan, Contra mundum, 1988.

Coleção de Arte Contemporânea do Estado, Museu de Serralves, Porto.

* * *





sábado, 19 de agosto de 2023

Carrossel

 



Não sei se você já fez este exercício: há dez anos eu nunca imaginaria que faria isso ou aquilo. É tão interessante e bobo pensar nos caminhos que a vida toma… Em 2012, recém-saído da faculdade – formei-me em 2010 –, deveria procurar uma carreira promissora prestando concurso, essa era a regra. Um professor perguntou, numa aula do último semestre, quem faria concurso quando se formasse. A resposta deixou encabulado os que queriam advogar; foi um massivo noventa e sete por cento da sala. Entrei nesse bolo concurseiro; levantei a mão, sem ao menos acreditar no que fazia. Era o desejo do meu pai. Ele faleceu em 2011. Passado o vendaval do abalo da morte do meu guru, enfiei a cara nos livros. E uma forte disposição me puxava para longe do embate… Não queria advogar; advogar = embate. Mas com a morte, teria de buscar um emprego. Era isso: estudar para concurso e trabalhar na área. Seguiria; contudo, sem crer que essa fórmula seria possível. E não era mesmo. Foi o caos embarcar num escritório que se quedava a menos de um quilômetro do principal fórum da cidade. Dos seis meses em que aí fiquei, não tive oportunidade de pegar seriamente num livro. A minha chefe me cobrava produtividade – enquanto ela passeava pelos shoppings e eventos. “Produtividade” quer dizer uma média de dez petições por semana – mais de uma por dia –; sem contar que tinha de despachar no bendito fórum apelidado de “O grande elefante branco”. Ou seja, chegava todos os dias estafado em casa. Minha mãezinha perguntava se eu estava bem, e eu achava, inocente, que era isso: ralar como uma mula. O trabalho não tinha nada de intelectual. Devia pegar os casos parecidos e preparar peças “Frankenstein”. Refletia se ser profissional se resumia a insistir, chatear e montar grotescos instrumentos petitórios. A pressão só aumentava. Levava casos e mais casos para trabalhar nos fins de semana, quando devia ser o meu descanso. Não suportando mais, com uma pilha de processos na mesa, e vendo a minha chefe desfilar nos salões da high society alencarina, pedi para sair. Recebi uma gratificação mixuruca. “E se dê por satisfeito”, refleti, derrotado. Não havia carteira assinada. Era tudo uma grande sociedade, da qual eu era um associado, parceiro, chapa ou amigão. Sim, devia estudar sério para concurso, foi o que veio à mente. Recuperar o rumo. A experiência em escritório foi traumática. Se partisse para outro, poderia ser atormentado pela sombra da loucura. Minha mãe tinha medo de que eu adoecesse como o meu pai. Ele era bipolar. Teve várias crises. Um médico, amigo da família, declarava que era algo genético. “Rafael, você pode sofrer do mesmo mal. Tome cuidado com o excesso”. Isso martelava a minha cabeça. Eu poderia ser agravado pela doença pelo simples fato de pensar nela. Que horror. Estudava, dia e noite, com parcimônia. Mãezinha pedia cautela, que não era sangria desatada: “Meu amor, temos uma renda razoável. Não pense que a falta de emprego agora é o fim. Já, já, você passa no seu concurso”. Os meses se acumulavam, a insegurança de saber o que de fato queria. O Direito tornava-se cada vez mais insípido, principalmente quando teimei em trabalhar numa empresa de locação de bens. Confere contrato. Lança ficha. Entra na justiça para cobrar crédito. Sucumbi à “necessidade” de trabalhar – ou à necessidade de me sentir útil –, enquanto esperava ser chamado num concurso para procurador de uma prefeitura do interior – eu estava no cadastro de reserva. Aquilo era monótono e chato. O chefe sabia mais que todo mundo, inclusive sobre Direito, sendo formado em Administração. Eu não tinha, nem nunca tive, aptidão para ser babão. Juscelino, um colega advogado, logo se tornou meu chefe – tendo entrado na empresa comigo. Era o homem de confiança do chefão porque era “atencioso”, sabia oferecer, na hora certa, cafezinhos e quitutes ao mandachuva. Só a ele. E eu não via a hora de ser chamado no concurso, ou de virar a cabeça e viver da minha arte. No tempo livre, escrevia, num blog, crônicas sobre sociedade e política. Era a minha válvula de escape. Virou uma precisão a escrita. Depois de dois anos, enfim fui chamado para ocupar meu posto. Antes disso, dei uma banana ao chefinho que queria ser gente, humilhando e se gabando de suas míseras conquistas. Hoje, depois de dez anos de formado, agradeço a Deus a trilha que ele montou para mim. Sou concursado pela segunda vez. Preferi trabalhar como analista judiciário da Justiça Federal. A escrita, para mim, é um deleite. Já estou no sétimo livro de poesias. Meus colegas me chamam de “pimpão”, carinhosamente, porque veem em mim a doçura e a energia – e não sou tão bom assim. Mamãe insiste que eu me case com Silvana. Não temos pressa, embora esteja nos planos. Somos novos. E ainda, inocente e esperançoso, faço o exercício de saber como será daqui a dez anos.






quinta-feira, 17 de agosto de 2023

O nome da rodovia





                           Não sabia, até então, que a rodovia vai além de Belo Horizonte. Não sabia que o trecho entre as duas capitais se chama Fernão Dias. Fiz mais de cem viagens pela estrada, de ônibus; avião era só às vezes, não era sempre que tinha promoção. Enriqueci a Viação Cometa, passei noites, madrugadas, dias na estrada, memorizando os barulhos da noite dentro da cabine. Sempre viajei na poltrona do corredor, para levantar e ir ao banheiro a hora que quisesse, sem importunar. Foram sessenta mil quilômetros em busca de um futuro. A volta de um outro futuro foi também feita pela estrada. Estou prestes a voltar para Minas Gerais para um último compromisso. E vou de ônibus. Tudo começou na estrada. Tudo está na estrada. Em trânsito ligado ao chão, ao solo. Me sinto em Minas Gerais quando passo de Pouso Alegre. Me sinto em São Paulo quando passo da latitude de Pouso Alegre. Mas na madrugada da cabine não consulto o celular para ver onde estou. Fico de olhos abertos no escuro das poltronas alguns momentos depois das duas paradas, e termino por acordar na praça da Cemig ou na altura de Bragança Paulista. Aí não durmo mais porque sei que estou chegando, desço minha mochila do bagageiro e fico pronto para deixar o ônibus. Farei isso uma última vez. Aí cortarei o vínculo derradeiro com Belo Horizonte, e serei paulista novamente. Já transferi meu título de eleitor. Porém um paulista que tem gosto por subidas e ladeiras, mercados centrais, praças imponentes, jornais de literatura.









domingo, 13 de agosto de 2023

O Telefonema

 

O telefonema

 

O retinir da campainha do meu telemóvel arrancou-me ao sono.

Estremunhado, sentei-me na cama e com as pontas dos dedos tacteei a mesinha de cabeceira, até dar com o telemóvel.

Uma voz angustiada falou de rompante:

− Preciso de falar contigo, é urgente, vem ter comigo à minha casa.

Nem tive tempo para dizer fosse o que fosse, um clique anunciou que a chamada caíra.

Ainda a magicar no telefonema, olhei para o relógio que marcava 1 e 17. Afinal tinha dormido muito pouco tempo, o turno terminara às 10 horas e eu tinha-me deitado por volta da meia-noite.

Àquela hora, com aquele timbre de voz inconfundível, só podia ser Ana Brites, a linda ruiva que tinha conhecido há uns tempos atrás num bar do centro da cidade e que tinha tido com ela alguns encontros de circunstância.

Apesar da hora tardia, decidi aceitar o convite, porque não poderia desprezar um encontro tão prometedor, não só pela pessoa em si, como pelo mistério que o envolvia.

Saltei da cama, tomei um banho frio, porque o calor era muito. De seguida desci as escadas e saí para a rua.

Aguardei no passeio à espera do táxi que tinha acabado de chamar.

Enquanto olhava a noite que brilhava nas luzes das muitas lojas sempre abertas, interroguei-me acerca da estranha chamada.

Algumas respostas assaltaram-me a mente, mas nenhuma foi digna de nota, pois não passavam de puras especulações.   

− Estamos a chegar. – alertou o motorista.

− Encoste aqui por favor. – pedi ao taxista.

Percorri, sem pressa, cerca de uns quinhentos metros até chegar ao número 537.

Olhei para o 5º andar e vi luzes acesas em dois apartamentos. Um deles era o de Ana Brites. Os outros tinham as persianas corridas e pareciam estar apagados. A luz acesa indicava que ela sabia que eu não faltaria ao encontro e, por isso, estava à minha espera.

Dirigi-me para a porta de entrada e quando ia tocar à campainha a porta abriu-se e deixou sair um encapuzado com o rosto praticamente oculto. As roupas largas escondiam o corpo não deixando ver se era um homem ou uma mulher. Ainda pensei segui-lo para ver quem seria o figurão ou figurona que se escondia debaixo daquelas roupas.

Desisti da ideia e segurei a porta para que ela se não fechasse. Entrei, subi as escadas sem acender a luz e sem fazer barulho.

Quando parei em frente ao apartamento 4 C a porta estava fechada.

Toquei à campainha e esperei um bocado até tocar uma segunda vez, com alguma insistência.

Só se ouviu o som da campainha, nada mais, a porta continuou fechada.

Apurei o ouvido, mas nem um se fez ouvir dentro do apartamento, apesar do silêncio reinante.

Algo de estranho se estava passar, porque ainda há pouco tinha sido chamado de urgência e naquele momento estava a fechar-me a porta.

Desci e saí para a rua. Olhei para a janela do 5º andar e a luz continuava acesa. Atravessei a avenida e fui colocar-me no passeio em frente do prédio, onde permaneci algum tempo. Nada mais poderia fazer, a não ser olhar para a luz que teimava em continuar acesa.

A saída precipitada após o telefonema fez com que eu tivesse deixado o telemóvel em casa e, por isso, não lhe podia telefonar naquele momento. Assim que chegasse a casa iria tentar saber o que estava a acontecer.

Durante o regresso fiz o histórico desde o telefonema original a meio da noite e até ao momento em que cheguei ao apartamento 4 C.

Nada de anormal tinha acontecido, a não ser aquela pessoa encapuzada que saiu do prédio àquela hora da madrugada e que deixou a porta aberta, por onde eu entrei. O estranho não estava na saída àquela hora, mas deixar a porta aberta, para qualquer um poder entrar, como aconteceu comigo. Aquele comportamento de desleixo indiciava que a pessoa não vivia lá, pois caso contrário teria fechado a porta, por questões de segurança.

Fiz a chamada para Ana Brites assim que cheguei a casa, mas o retinir da campainha do meu telemóvel arrancou-me ao sono.

Estremunhado, sentei-me na cama e com as pontas dos dedos tacteei a mesinha de cabeceira até dar com o telefone. Levantei o auscultador e uma voz angustiada falou de rompante:

− Preciso de falar contigo, é urgente, vem ter comigo à minha casa.

Fiquei estupefacto! Era um “já visto” e visto há bem pouco, em sonho.

Não hesitei um segundo que fosse, porque precisava de chegar ao prédio antes que acontecesse alguma coisa. Teria de chegar, se fosse possível, antes da personagem encapuzada, ou antes de ela sair do prédio. Só assim poderia impedir a tragédia que o sonho não me desvendou, mas que eu penso que estava lá.

Em menos do que nada já eu estava a apanhar um táxi e a pedir que me levasse à direcção indicada o mais rápido que pudesse. Paguei a corrida, sem me preocupar em receber o troco.

Ainda o carro mal tinha parado já eu estava a correr para a porta que ainda se encontrava aberta. Parei à entrada e esperei que o encapuzado entrasse no elevador. Assim que a porta do elevador se fechou, comecei a correr escadas acima. Quando cheguei à porta do apartamento 4 C, ainda o elevador vinha no andar inferior.

Toquei à campainha e esperei.

Passados alguns segundos ouvi o rodar da chave na fechadura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 





quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Seu belo corpo enterrei

 


Não consegui sufocar o sentimento. Procurei evitar o quanto pude encontrá-la nos braços de outra pessoa. Mudei de cidade, de emprego. Me anulei como homem, eu não conseguiria amar outra mulher. Concentrei-me apenas em sobreviver, vegetar. O trabalho era minha fuga, o sono também.

Poderíamos ter vivido tantas coisas, juntos. Eu queria fazê-la feliz. Não consegui. Que o outro conseguisse, então. Era o que eu desejava, mesmo lutando contra os sentimentos que me consumiam e faziam arder o peito quando uma lembrança dela me vinha à mente.

Eliminei o telefone dela da minha agenda. Cancelei minhas contas nas redes sociais, criei um novo endereço de e-mail. Pensei que ajudaria em meu isolamento. Eu seria apenas mais um vagando pelas ruas de uma grande cidade, desconectado do passado. Um antidepressivo me mantinha, de certa forma, desligado. Afastado dela e de tudo, levado pelo vento, pelo movimento do mundo. Sem reação, sem emoção.

Várias vezes me peguei procurando pelo seu contato nas páginas das redes sociais. Felizmente consegui resistir. Jejuns me mantinham firme ao propósito de não a procurar. Passei a me penitenciar cada vez que um vago pensamento insistia em renascer.

Tudo seguia como planejado, até aquele maldito dia. Estação da Sé do metrô, dezoito horas. Eu precisava fazer uma conexão para a minha linha. A porta se abriu. Na multidão que saia, estava ela, abraçada ao companheiro, carinhosamente. Saíram involuntariamente, empurrados pela massa que se deslocava, voltaram colados a mim, pressionados pela multidão que entrava. Com meu peito junto ao seu rosto, olhei nos olhos dela, que baixaram evitando um cruzamento. Pude sentir o seu perfume, o mesmo que impregnava o meu corpo nos momentos mais ardentes. Ela apenas me ignorou, abraçou-o mais fortemente. Ele, não percebeu o que ocorria, apenas beijou sua testa.

Esforcei-me para ganhar algum espaço, espremido no vagão, até que consegui dar as costas aos dois. Decidi descer na estação seguinte. Percebi seu olhar pela janela do trem que partia. Não parecia triste, tinha apenas uma expressão de dó, pena. Senti-me o último dos homens. Foi como se um fio de arame cortasse o meu cérebro de lado a lado. A dor persistiu ainda por muitas horas. A lembrança, por meses.

Entre tantos milhões de pessoas nesta metrópole, por que tive que encontrá-los? O que mais incomodou-me foi perceber o quanto segura se sentia nos braços do sujeito. Eu que tentei tanto protegê-la!

Minha estratégia havia falhado. Perdi o sono, faltou-me concentração no trabalho. Não encontrei mais a paz que eu supunha ter. Na memória, cenas dela, nua, deitando-se sobre mim. O sorriso, o brilho no olhar, a declaração de amor. Como tudo isso foi acabar?

A voz dela ecoava em minha mente: “não pude mais esperar, você não teve atitude!”. Havia tantas coisas que me prendiam a uma outra vida, a um outro relacionamento. Ela não compreendia.

Eu não conseguiria viver sem ela. Não enquanto ela existisse.

Procurei um lugar distante. Encontrei uma caverna, mata fechada. Havia um ponto de pesca, também era possível caçar. A água pura de uma queda d’água mataria a sede. Comprei um conjunto de arco e flecha. Eu já havia tido um a boa pontaria nas disputas da juventude. Minhas flechas certeiras provocariam morte sem dor. Também levei alguns suprimentos e ferramentas, o necessário para que eu pudesse me adaptar para viver melhor, longe de tudo.

Enterrei-a debaixo de uma grande árvore, com ela os objetos que poderiam lembrá-la. O vestido do primeiro encontro também. Na árvore gravei o seu nome, não o meu. A chuva que caia, parecia mistura-se ao que restou dela e lavava as minhas mãos, tirava a minha culpa.

Cavei uma outra cova ao lado da dela, porém não tive coragem de tirar a minha vida. Joguei-me no fundo da vala. Lá passei três dias de olhos fechados, esperando que a morte decidisse me levar. Apenas servi de aperitivo para formigas e outros insetos, nada aconteceu. Na quarta noite, ela surgiu em meus sonhos, me estendeu a mão e me tirou lá do fundo. Depois, desapareceu, mergulhando na escuridão.

Eu a vigiaria permanentemente, sentado na pedra que rolara morro abaixo no último temporal.

Enganei-me quanto a esquecê-la. Mesmo após orar por ela todas as noites, minha amada surgia em meus sonhos e me perguntava por que eu havia feito aquilo. Chorava e implorava para que eu a libertasse. Gritava de dor, murmurava meu nome. Mas eu não sabia como fazê-lo.

As dores me destruíam. Eu não reconhecia minhas mãos, não tive coragem de olhar o meu rosto no reflexo das águas. O tempo foi passando e acabei esquecendo quem eu era. Também não lembrava por quem eu chorava. Por entre as pedras que cobriam aquela cova, surgiam cabelos negros, que cresciam dia após dia. A árvore secou, caiu, apodreceu. Quando chovia, a água que caia misturava-se ao sangue que extravasava da sepultura, manchando de vermelho a nascente de água de onde eu bebia. A cena não me assustava mais. As vozes sim.

Pensei em escavar a sepultura. Mas quem estaria ali. Não havia cruz, nem nome. Era uma mulher, havia uma pulseira pendurada no galho seco fincado na cabeça da cova. Apenas uma inicial: M.

Peguei meu arco, algumas flechas e decidi sair dali. A voz continuava ecoando em meu pensamento. Eu precisava libertá-la, mas não sabia a quem, nem como. Eu precisava encontrá-la.

Na trilha ouvi vozes. Um grupo se aproximava. Escondi-me e observei. Logo partiriam, não mexeriam comigo. Só prejudicariam a minha caça por um tempo. Estariam armados? Por segurança, preparei meu arco. Já fazia muito tempo que eu não falava com ninguém. Será que ainda sabia?

Dois deles se separam do grupo e foram até uma queda d’água próxima. Resolvi segui-los. Tiraram a roupa, banharam-se, depois sobre uma pedra aquecida pelo sol, faziam sexo. Resolvi aproximar-me, eu parecia reconhecê-los. Perceberam minha presença e ficaram em pé. Sim, eu conhecia aquele corpo, o rosto um pouco mais velho, os mesmos longos cabelos negros.

Procurei certificar-me. Sim, era ela, a mesma mulher que em meus sonhos pedia liberdade. O rapaz, o mesmo que a abraçava naquele vagão de metrô.

Tudo aquilo precisava acabar. Preparei duas de minhas flechas. Seriam disparadas rapidamente, sem tempo para reação. Não havia como errar. Eu a libertaria, eu me libertaria.





terça-feira, 8 de agosto de 2023

A Chamada

 


O som do telefone fixo sobressaltou Artur. Há meses, ou até anos, que não o usava, mantinha-o até mais por inércia do que por necessidade e também porque estava incluído no seu contrato de Internet.

Com a demora em chegar à entrada do apartamento, onde o mantinha a um canto, receou que quem estivesse do outro lado acabasse por desistir e desligar. Mas não, devia ser realmente importante porque teve tempo mais do que suficiente mesmo com a lentidão que a bengala que usava desde o seu acidente há dois meses lhe causava.

E foi com alguma excitação contida que levantou o telefone da sua base e pronunciou o seu usual “Alô?” Após um silêncio um tanto prolongado, que o fez quase desligar, ouviu, finalmente dizer:

“Quem fala?”

“Com quem quer falar?

“Com o Zezinho, claro.”

“Desculpe, aqui não vive ninguém com esse nome.”

E irritado por se ter deslocado em vão, Jorge desligou abruptamente, dando-lhe uma certa satisfação o ruído seco que o aparelho fez ao ser encaixado no seu lugar, algo que sempre lhe fizera falta com os telemóveis, apesar de não chegar aos calcanhares dos telefone de outrora.

Mas de volta ao seu escritório / salinha deu por si a pensar naquela chamada. Seria realmente um número errado? É que na realidade o seu nome completo era José Artur... Mas na adolescência exigira que lhe começassem a chamar só Artur, achava José, ou pior ainda, Zé, demasiado vulgar e popularucho.

A família não respeitara essa mudança, mas com a ida para a universidade e a entrada na vida adulta passara a ser muito simplesmente Artur ou o Sr. Silva. Esquecera, até, de certo modo que nem sempre fora assim. Bom, até à maldita chamada...

Não reconhecera a voz, o que até nem era de admirar, nunca fora muito bom a fazê-lo. Irritava-se, até, solenemente com quem achava que bastava dizer “olá” e pronto, ele teria logo de saber quem era. Felizmente o telemóvel viera resolver a maior parte destes problemas, com o seu identificador de chamadas.

Mas... Zezinho? Mesmo em miúdo poucos lhe chamavam assim, só a família e alguns colegas de escola de quem era amigo na época. E a verdade é que, por motivos que nem ele próprio sabia, fizera questão de manter o mesmo número desde que passara a ter o seu próprio telefone.

Teria sido alguém do seu passado? As hipóteses eram realmente muito reduzidas.

Da família próxima, restava-lhe apenas o pai e uma das irmãs. Mas era duvidoso que fosse um deles, uma vez que não se falavam há anos.

Cortara relações com o pai quando este, tendo ficado subitamente desempregado por ter provocado um acidente na fábrica onde trabalhava, deixara de lhe poder pagar os estudos, ou antes, todas as despesas da sua vida de estudante. Culpava-o por ter sido forçado a arranjar um emprego para custear o quarto, alimentação, transportes e tudo o mais, cortando-lhe, assim, todo o tempo livre para qualquer tipo de diversão.

Mesmo quando veio a saber que havia outras razões para o acidente, de tal modo que o pai recebera, até, uma indemnização pelo despedimento sem justa causa, tinha passado demasiado tempo e não saberia como retomar uma relação que, diga-se de passagem, nunca fora grande coisa.

Quanto à irmã, bom, sendo cinco anos mais nova, pouco convivera a sério com ela até partir para a universidade. Na altura achava-a até um pouco chatinha, sempre a querer estar de volta dele quando ele tinha bem mais que fazer do que aturar uma criancinha.

Aquando do seu casamento tinha havido uma tentativa de aproximação, mas a realidade é que viviam em mundos muito diferentes. Ela casara ainda antes de acabar o liceu com um colega que se tornara taxista e ele tentava singrar no mundo empresarial. Acabaram por se limitar à troca de emails de Natal e de parabéns, mas também esses foram esmorecendo e há já uns dois ou três anos que nada sabia dela.

Era, pois, muito pouco provável que o “Zezinho” viesse de um deles.

Restavam, pois, os amigos de infância. Bom, amigos, é como quem diz. Tinham-se habituado a conviver desde miúdos por serem os únicos da mesma idade naquela rua e mantiveram o seu relacionamento durante a primária e o liceu apenas porque tinham sempre sido postos na mesma turma. Não sabia bem como fora para o Manuel e para o Jorge, mas, no que lhe dizia respeito, fizera-o muito simplesmente porque achara que criar novas amizades daria muito trabalho e, como tencionava partir daquela terriola mal concluísse o liceu, o mais provável era não valer realmente a pena.

E assim fora. Inicialmente, ainda se viam quando ia a casa nas férias. Os amigos não tinham prosseguido os estudos, preferindo algo mais prático e que lhes rendesse um salário mais rapidamente. E descobriram rapidamente que pouco tinham agora em comum. As saídas em grupo passaram a ser quase uma obrigação, bom, no seu caso sempre era um escape à vida familiar, que acabara quando cortara relações com o pai, nunca mais tendo voltado à terra.

Mas, enfim, havia sempre a hipótese muito remota de um deles ter tentado ligar-lhe, sabe-se lá porquê, arriscando usar o seu antigo número. Mas por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia imaginar nenhum cenário em que isso acontecesse.

Ainda pensou em verificar o número de onde partira a chamada, mas o seu telefone fixo era mesmo muito antigo e não tinha essas modernices.

Para quem o conhecesse profissionalmente, esta sua obsessão com o que fora, quase de certeza, um número errado poderia parecer estranha. Mas como a sua ex-mulher nunca se cansara de lhe dizer, a sua personalidade tinha uma forte componente cismática, como se costumava dizer, e odiava ver-se perante questões que não conseguia resolver.

E aqui estava claramente uma delas. Maldita chamada!

Estava decidido, iria imediatamente eliminar do seu nome o telefone fixo e o respetivo número. Mas... e se não tivesse sido engano e a pessoa tentasse novamente?

Luísa Lopes

Imagem criada com QuickWrite





quinta-feira, 3 de agosto de 2023

AUTORRETRATO I

 


Eu não sou somente

este rosto jovem

sou também

este corpo magro

estes pulmões doentes

este ser descrente.

Eu não sou somente

estas cicatrizes

na testa braço e perna

sou também

e principalmente

a lembrança delas.

Eu não sou somente

este sorriso

e estes olhos míopes

minha gente

sou também

humano e tenho

(como vocês)

cáries nos dentes.

Eu não sou somente

este sexo masculino

sou também

os momentos de carinho

e a ausência deles

quando se utiliza

o recurso das mãos

e da mente.

Eu não sou somente

o que como e o que bebo

sou também

o que excreto no banheiro.

Eu não sou somente

um amontoado de órgãos

sou também

a função de cada um deles

isoladamente.          

Eu não sou somente

as palavras e os atos

sou também

(e antes)

os gestos que os/as

determinaram.

Eu não sou somente

o caminhar e o seu contrário

sou também

o percurso no escuro.

Eu não sou somente

poeta

seus estetas

sou também

funcionário público.