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domingo, 28 de agosto de 2022

O Enterro

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Na Madrugada dos Tempos – Parte 1

É incerto o lugar onde a morte te espera;

espera-a, pois, em todos os lugares.

Séneca

(Filósofo romano do século I)

Ouvia-se o choro soluçante fora da casa redonda erguida com pedras e lama, coberta por um telhado de colmo e com a entrada tapada por uma cortina de cor incerta. Lá dentro, uma mulher de cabelo desgrenhado e rosto sujo, vestindo uma túnica grosseira e comprida de pano cru, pranteava desconsoladamente. Estava sentada no chão de terra e com os pés descalços na cova recentemente escavada no centro da única divisão, mesmo ao lado dos restos queimados e apagados da madeira com que diariamente se aqueciam. Os lamentos dela produziam pequenas nuvens de vapor no ar gelado da tarde de inverno.

Do exterior ouviam-se mais gemidos de mulheres misturados com as vozes iradas de homens e essa algazarra irritava-a e fazia-a querer chorar ainda mais alto.

Dois homens vestidos de enormes cabeleiras e barbas hirsutas, envergando túnicas de pele curtida, afastaram a cortina e entraram, algo a medo e depositaram braçados de três ou quatro seixos do rio, cada um maior que o tamanho de dois punhos, ao lado da fogueira apagada. Assim que saíram, outros dois se lhe seguiram e assim continuou até se formar uma pilha que dava pela altura dos joelhos.

Fez-se um silêncio repentino do lado de fora e só o choro da mulher, agora murmurando uma ladainha incompreensível se fazia ouvir.

Um coro de uma cantilena chorosa começou no exterior, destacando-se as vozes agudas femininas e sons guturais masculinos.

Outros dois homens entraram, os seus cerdosos cabelos e barbas estavam cobertos de cinzas e transportavam, pendurado pelos braços e pernas, o corpo franzino e inanimado de um jovem onde ainda mal despontara a barba. O corpo pálido, magro e ossudo, envergava apenas uns pequenos trapos de pano cru por bragas.

— Cala-te mulher! — Censurou asperamente o recém-chegado mais velho. — Já chega!

— Eu é que sei se chega! — Ripostou de imediato a mulher, o rosto sujo de cinza borratado pelas lágrimas era uma máscara de terror. — Era o meu filho e choro-o como e quanto quiser! — Tirou os pés da cova e sem se levantar, virou as costas aos dois homens.

O corpo foi depositado cuidadosamente em posição fetal no buraco, sem esquecer o cuidado de lhe colocar uma das mãos sob a cabeça, como se estivesse adormecido. Tinha sido cuidadosamente lavado e várias nódoas negras destacavam-se na pele quase transparente. A seu lado, ao alcance da mão, colocaram-se respeitosamente uma lança de madeira e um machado cuja lâmina era composta de uma pedra chata cuidadosamente afiada. Próximo da cabeça, depositaram uma lebre morta, um recipiente de barro com azeitonas e outro com nozes. Junto da cinta pousaram uma cabaça com água.

O homem mais velho empurrou a mulher para o lado com um safanão e um empurrão para se poderem chegar ao monte de godos brancos. Os seixos foram usados primeiro para preencher todos os espaços livres à volta do corpo e depois para o cobrir e, assim que já nada era visível, começaram a cobrir a sepultura deitando a terra com os pés e as mãos.

Lá fora a cantoria transformara-se numa algazarra de machos que gritavam e se instigavam como se numa luta estivessem, enquanto corriam e cabriolavam em volta do casebre enquanto em fundo as fêmeas carpiam alto.

Assim que os dois homens terminaram a cobertura, quase em simultâneo, a cantoria terminou repentinamente. O mais novo saiu da casa passando exatamente por cima da sepultura acabada de tapar e logo um outro entrou e passou pelo mesmo sítio, tornando a sair e assim sucessivamente até todos os elementos masculinos passarem, pelo local e só o homem mais velho e a mulher ali restarem em pé junto da campa.

Agarraram os restos apagados da fogueira e colocaram-nos sobre a sepultura recente, para que mais logo se acendesse o fogo que aqueceria a todos, agora aconchegado pelo elemento da família que partira.

O homem gritou com a mulher que continuava a chorar e deu-lhe uma lambada que a atirou ao chão. Ela ergueu-se de um salto e gritou com ele batendo-lhe por sua vez. Trocaram uma sequência de socos e tabefes entre eles, sendo evidente que que a força masculina iria prevalecer.

A cortina da entrada abriu-se bruscamente e entraram dois homens armados com lanças.

— Que estás a fazer pai? — Perguntou o mais alto deles. — Vais ficar aí a gritar e a carpir como as mulheres?

— Se não vieres, não és mais filho do meu irmão! — Vociferou o outro.

Foi a vez da fêmea empurrar o macho, agarrar com força uma lança que estava encostada à parede e colocar-se sobre as cinzas e lenhos acabados de colocar.

— Se ele não tem coragem de ir vingar o filho, tenho eu! — Exclamou a mulher altivamente. — Tanto posso empunhar a lança para matar um porco bravo, como para matar o assassino do meu filho!

Do lado de fora, obviamente escutaram-se as palavras de desafio e um coro de gritos guerreiros responderam ao apelo.

— Temos de ir atrás daqueles homens-macaco, invadir as grutas e acabar com todos! — Sentenciou o outro homem. — Como são mais fortes que nós, não conseguimos disputar-lhes a caça e roubam-nos aquilo que caçamos. Mas chega! Verão que não temos medo deles e não tornarão a fazer mal a um dos nossos!

 

 

Manuel Amaro Mendonça

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quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sarapatel — O making of

 

O hemisfério direito e o hemisfério esquerdo são convocados para criar uma história a dois toutiços. Estabelecem as ligações neuronais habituais e cada um concentra-se nas competências de que dispõe, para dar a melhor contribuição possível.

«Qual é o desafio?», pergunta o hemisfério direito, inquisitivo, sempre a querer criar um mapa geral do problema.

«Escrever uma estória a partir de uma especialidade gastronómica. O protagonista ou a adora ou a detesta. Há que caracterizar a personagem física, psico e sociologicamente», esclarece o hemisfério esquerdo, na sua postura expositiva, analítica e racional.

«Que prato há-de ser?», pergunta o direito, a querer dados para a intuição trabalhar.

«Feijoada, arroz de pato, caril de frango, cabidela de leitão…»

«Sarapatel!» — A opção surge, fulgurante. Parece uma boa ideia.

«Ok. Sarapatel está bem! Sabes que o sarapatel é o laburdo beirão que foi levado pelos Portugueses para o Mundo? A versão goesa foi à Índia e, caldeada com as tradições gastronómicas indianas, voltou das colónias portuguesas picante», explica o esquerdo, sempre explanatório.

«Está bem!», despacha o outro. «Sei é que gosto de sarapatel, do seu picante, da sua sensualidade.»

«É um prato cristão. Usa porco, que a verdadeira comida indiana não tem. São miúdos de porco — fígado, toucinho, sangue, rim, coração, outros miúdos — cozinhados com condimentos indianos e servidos com arroz também aromatizado.»

«Gosto do molho a regar o arroz.» — O direito parece mais interessado nas impressões sincréticas complexas.

«Ok. O protagonista adora sarapatel.»

«Isso significa que é um tipo com gostos ecléticos.»

«Boçal, hedonista, promíscuo», não deixa de acrescentar o analista.

«O que é que uma coisa tem que ver com a outra?»

Nelson pediu mais uma cerveja, a dar tempo à inspiração. Seguiu a empregada de cabelo azeviche com o olhar.

«Voyeur!» — O seu hemisfério esquerdo não lhe dá tréguas.

— Este restaurante já tem muito tempo? — perguntou Nelson.

— Está aberto há dois anos. — O rosto da empregada mostrava uma simpatia que não dependia da função. — Mas eu só cá estou desde o verão.

«Sabes para onde vamos?», quer saber o hemisfério esquerdo.

«Não. Deixamo-nos ir. Partimos de um estímulo e depois vamos desenvolvendo. Às vezes, chega-se a resultados interessantes.»

«Eu acho que devíamos dirigir-nos para um determinado resultado.» — O esquerdo quer programar tudo. «Não gosto de escrever à toa. O mais provável é resultar uma prosa sem foco, sem mensagem, sem interesse.»

«Tens alguma ideia?»

«Não…! Ok, então vamos lá experimentar ir ao sabor dos acasos, das tuas associações de ideias, tateando no escuro, sempre sob pressão da verosimilhança e da relevância» — concedeu.


Carlos Gabriel era doido por sarapatel. Todas as quintas-feiras se sentava pontualmente ao meio-dia e meia num pequeno restaurante de comida goesa, ali junto ao Hospital de São José. O sr. Xavier já lhe reservava o lugar e a dose.

Mas, naquele dia, tudo estava a correr mal a Carlos Gabriel. Pediram-lhe umas fotocópias já em cima da hora, teve de substituir o cartucho de toner e saiu da empresa atrasado. Quando chegou à estação de Metro do Campo Pequeno, estava o comboio a partir. Foi por uns vinte metros que o não apanhou. Esperou dez minutos até chegar outro. No Marquês, a mesma coisa: ele a descer as escadas a correr e a ouvir o comboio para a Baixa a arrancar.

«Boring!», alerta o direito.

«Eu bem te avisei!»

Sentiu-se desanimado, quase deprimido. Uma sensação de vazio apoderou-se-lhe do peito. Ficou-se a meditar no que é que estes percalços podiam significar. Desde pequeno que não descartava uma vaga crença em que os deuses ou um anjo-da-guarda lhe causavam deliberadamente pequenos contratempos para o protegerem de maiores malefícios. Pensava, por exemplo: Se calhar, tropecei naquele passeio e esfolei o joelho para que me atrasasse os segundos suficientes para não ser atropelado mais à frente na passadeira, por aquele maluco que passou a acelerar.

«Isto devia ter mais ação!» É a vez de o esquerdo se queixar.

«Pois, mas como?»

Quando, passados mais dez minutos, entrou na carruagem de Metro, estava mais calmo, mas aborrecido por ir atrasado. O sr. Xavier era tão simpático por lhe reservar a mesa, que sentia que tinha a obrigação de chegar à hora habitual. Saiu nos Restauradores. Em passo ligeiro, esgueirou-se rapidamente por entre as pessoas que flanavam pelas Portas de Santo Antão. Quando começou a subir para São José, o coração batia-lhe descompassadamente no peito.

«Não arranjas uma surpresazinha que seja?», impacienta-se o esquerdo, mas sem soluções.

«Espera, surgiu-me uma ideia…»

Entrou no Pérola do Índico quase à uma da tarde. O seu lugar habitual estava ocupado. Estava lá sentado um tipo magro de meia-idade, de óculos e fato coçado, que saboreava um sarapatel com trejeitos de enorme deleite. Tinha os olhos semicerrados e a boca fechada executava movimentos ondulatórios de interiorizada volúpia. Aquele rosto era-lhe familiar, tão familiar. Era… era ele! Ficou-se pasmado a olhar para aquela figura que comia, alheada de tudo e todos. Era ele próprio. Como é que podia ser? Sentiu uma náusea de desconforto, acompanhada de um vago repúdio pela imagem de lascívia que aquele rosto — o seu? — revelava, ao comer.

Movido pela curiosidade, aproximou-se. O outro, quando sentiu a luz a ser-lhe tapada, abriu os olhos. Com um vago sorriso de desculpa balbuciou:

— Desculpa, vim andando!

— Mas, como?

— Apanhei um táxi!

— Não é isso. Quem é você…?

«Esta foi gira. Sempre quero ver como vais descalçar esta bota», diverte-se o hemisfério esquerdo.

«Não sei como. Vim aqui ter, mas estou perdido.»

Alguns dos outros clientes já tinham reparado nas incríveis parecenças dos dois e o sr. Xavier — o dono do restaurante — aproximava-se com ar intrigado.

— Queres mesmo saber? Há coisas que é melhor não sabermos. — O estranho parecia dominar a situação.

— Não me assuste. O que é que se passa aqui?

— Antes de mais, senta-te! Ó sr. Xavier, é mais um sarapatel, se faz favor.

Carlos Gabriel sentou-se à mesa em frente de si próprio. Num vislumbre, associou a situação à que vivia todas as manhãs em frente ao espelho.

— O sarapatel está bom? — perguntou, sobretudo para comprovar que o momento em nada se assemelhava ao da simetria dos espelhos.

— Divinal. Mas acho que hoje a Kahlía abusou do picante.

— Kahlía?

— Sim, a cozinheira indiana. Não me digas que não sabias o nome dela! Já algum dia reparaste bem como é lindíssima!?

Carlos Gabriel rodou a cabeça para a esquerda, para a abertura pela qual se via parte da cozinha. Kahlía estava de costas na azáfama da preparação das travessas. A sua silhueta era insinuante, os cabelos negros afloravam na orla da touca. Quando Carlos Gabriel se preparava para esperar uns momentos que Kahlía se voltasse, sentiu um ruído do outro lado da mesa. Os trejeitos na face do outro, que há pouco eram de prazer, tinham-se transformado em esgares de sofrimento. Segundos depois tombava e esparramava-se no chão.

Sem saber o que fazer e ainda menos o que pensar, mas apesar de tudo aflito pelo outro — por si? — gritou para os circunstantes:

— Ajudem! Chamem um médico! Liguem para o hospital!

Enquanto de relance corria o olhar pelos atarantados clientes que se apressavam a prestar ajuda, pareceu-lhe perceber um sorriso subtil no rosto da bela Kahlía.

«Uou! E agora? A história está um bocado curtinha, mas podíamos ficar por aqui. Dávamos uma explicação qualquer, desde que fosse verosímil e pronto. Tem mistério, uma surpresa, uma insinuação…»

«Mas, está tão inacabada... E há aqui pano para mangas! Agora é que a arranjámos bonita!»

«Não dizer tudo também tem o seu encanto. Como numa pintura em que o nosso olhar procura identificar e completar as formas pouco explícitas. Numa narrativa, pode ser o leitor a juntar as pontas, se tiver pistas suficientes.»

«Eu preferia uma história que intuísse porque é que estes dois são iguais e o que se passou com o duplo de Carlos Gabriel. Foi envenenado? Devíamos treinar mais vezes continuações de histórias já desenvolvidas.»

«Talvez. De qualquer modo podíamos tentar continuar pelo mesmo processo que nos trouxe até aqui.»

«Não acredito que consigamos. Repara que nos enredámos em complicações, sem saber as razões para elas. Se tivéssemos um plano desde o início, já sabíamos o ponto de destino e era só preencher o itinerário com peripécias.»

«Achas que as criaríamos, ou íamos a correr para o clímax da história, sem enriquecê-la com pormenores que, como sabes, é onde Deus se esconde?»

«Bem, a questão do possível envenenamento faz uma ligação perfeita com o pressentimento de Carlos Gabriel no Metro. Aliás, foi por causa daquela superstição que surgiu a ideia do potencial envenenamento, como sabes.»

«Sim, eu sei é que foste tu que deduziste essa ideia A partir dos elementos que eu pus…»

«Um escritor deve ser como um Sherlock Holmes que deve ir deduzindo os desenvolvimentos a partir dos acontecimentos anteriormente narrados e a partir da personalidade das personagens e da sua interação.»

«Então, disso tratas tu!»

«Ok, não amues. Vê o que achas disto:»

O Hospital era logo ali. Pouco depois chegava uma ambulância e nela seguiu o outro. Carlos Gabriel ficou-se a caminhar na rua, para trás e para a frente, dividido literalmente entre a recém-adquirida preocupação por aquele ser igual a si e a necessidade de encontrar explicações para tudo o que lhe estava a acontecer.

No dia seguinte foi ao hospital. Não encontrou o duplo. Tinha tido alta, disseram-lhe. Consegue saber que não foi envenenamento; só um mal-estar. No restaurante não se lembram de dois sósias, só do desmaio dele mesmo. Quando regressa ao emprego, apercebe-se que o duplo já andou por ali a falar com colegas. O mesmo aconteceu no supermercado perto de casa. Aparentemente, o sósia frequenta os mesmos locais, mas tem um relacionamento mais caloroso com as pessoas, que, equivocadas, dispensam agora a Carlos Gabriel um tratamento mais cordial.

O tempo passa, mas Carlos Gabriel não volta a encontrar o incerto duplo. Começa a desconfiar que não existe um sósia, mas sim uma espécie de dupla personalidade própria. A metade “carlos” de Carlos Gabriel comandará a parte das responsabilidades sociais, na sua postura compenetrada de bom funcionário, pontual, atento às regras, pouco disponível para o contacto social. A metade “gabriel” de Carlos Gabriel é amiga da pândega, dos prazeres da mesa e da carne, desleixa os compromissos, é sociável e brincalhão.

Provavelmente, os dois aspetos da personalidade sempre conviveram, mas de costas voltadas. Agora, aceitando-se mutuamente, cada um dá espaço ao outro para que assuma a sua maior competência, conforme a peripécia da vida em que estão envolvidos.

Nelson olhou para o relógio. "São horas de ir embora", pensou. Tateou o bolso interior do casaco, retirou uma palete de comprimidos, tomou um com o restinho da cerveja e pediu a conta.

«Está acabada, não achas? Tu é que fizeste a maior parte do trabalho, mas tens de admitir que dei ali uma ajuda», reclama o hemisfério direito.

«Sim, claro que admito. Várias e boas. Aliás, a relação daqueles dois faz lembrar o nosso relacionamento...»

«Não digas isso, senão lá vêm assegurar que todas as histórias são autobiográficas...»


Joaquim Bispo

*

Imagem:

Paul Klee, Senecio, 1922.

Museu das Belas Artes, Basileia, Suíça.

* * *






segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O Pé-de-Múmia

 


Era a noite de seu aniversário, e mesmo se fosse dia Vagner dela desconfiaria. Não só devido ao nome, Nestora, mas sobretudo pela circunstância de vir a encontrá-la – ela, a fêmea lapidar – na companhia de amigos galhofeiros, e também por ser ele um azarado de renome, cuja vida fora, e era, uma sucessão de erros e desacertos. Somente conhecera de mulheres assim, monumentais, nos filmes, e mesmo as musas da fantasia ela ofuscava. Nem tanto eram as suas proporções, o contraste entre o volumoso busto e a circunferência dos quadris com a cinturinha de anoréxica, ou a pele, lisa e resplandecente, e sim o rosto, delicado nos olhos cor de mel e selvagem nos lábios e nas sobrancelhas.

Com esse nome, é uma transexual. Ou é tudo efeito da maquiagem, da escuridão e dos ângulos. Ou eu estou bêbado, segredou para si e escorou-se no copo de cerveja, Vagner. Malgrado o mundo ao redor rodasse, rodava por tê-lo, enfim, como eixo – ou assim julgava ele –, e entre as demais peculiaridades da ocasião estava a de Nestora haver iniciado a interação.

Festejavam o aniversário de Vagner numa boate, era sexta, e como Caronte, o barqueiro das esferas inferiores, a transitar de um mundo a outro, mas a nenhum pertencendo, foi tocado por dedos que surgiram da massa popular, morta, e apanharam seu pulso. Adorei a tatuagem, ouviu ele, e já então ela acercava-o com olhos e carnes. Da penumbra avultava o contraste entre o desenho, no antebraço de Vagner, das quatro Tartarugas Ninja, além do braço em si, flácido e murcho, com a graciosa mão de Nestora as unhas negras e pontilhadas de estrelas.

Respondeu ele com um Obrigado arrastado e molengo, e temendo o compromisso da conversação, a incumbência de mitigar os silêncios e, em som e presença, sobrepor-se à multidão, já afastava-se quando Nestora tomou a iniciativa das palavras e conquistou-o com sua personalidade. Por uma, duas horas, confabularam num canto, lábios contra orelhas, e de ela ir ao toalete os amigos de Vagner abordaram-no e felicitaram-no.

É golpe de vocês, disse ele, descrente. É golpe!

Regressando ela, conversaram e tocaram-se, abraçaram-se, e malgrado a evidente atração Vagner furtou-se de beijá-la, furtou-se às chances do amor. Permaneceram juntos, contudo, até as altas horas da noite, e antes de ir embora Nestora exigiu um meio de contato.

Pois já de manhã ele recebia, em mensagem de texto, um bom dia. Restaurado e assentado na realidade, diante de si, suspeitou ainda mais do mulherão antológico e de seu interesse – mas reagiu com boa vontade. Durante a semana, conheceram-se melhor, sem disfarces senão os do estilo. Nestora era, além de belíssima, espirituosa e irônica, expansiva. Proprietária de três lojas de roupa, nas horas vagas ou treinava para disputas de crossfit ou para disputas de jogos eletrônicos. Era competitiva ao extremo, e quando Vagner indagou os porquês de sua aproximação, ela respondeu,

O desafio, o maior dos desafios: o amor.

Riram os dois, e encerradas as risadas ela o convidou para um encontro. Ele aceitou, não sem antes hesitar e ouvir dela outras exortações.

Em minha casa, determinou Nestora. Eu preparo o jantar.

Na noite marcada, tremia. Ao vê-la, só faltou chorar e fugir. Nestora, ainda mais bela, vestia calça jeans rasgadas, tênis, e camisa decotada. Já ele estava mal-humorado, taciturno e calado, como se obrigado a estar ali. Ciente de suas preferências, preparou hambúrgueres e batatas-fritas, sorvete de sobremesa. Saciados de uma fome, sentaram no sofá e beberam cerveja. Abrandara-se o mau humor de Vagner, e eles então criticavam a programação da televisão aberta. Passaram, feito duas crianças endiabradas, a se tocar e lutar, a se arranhar, e não foi sem violência que Nestora, como reação a um apertão na bochecha, sentou em seu colo. Beijou-o, um beijo doloroso, ciente das restrições da carne. Algo nessa comunhão de lábios, contudo, despertou os instintos e a força de Vagner – fê-lo, enfim, reivindicar o controle. Tomando-a pela cintura jogou-a de costas no sofá. Entre beijos e afagões despiram-se eles, e com exceção das meias em Nestora, estavam nus.

Apesar de também ser bela de meias, Vagner encarou-a.

Tire-as, ordenou.

É melhor não, disse ela.

Tire-as.

Irresoluta e trêmula, Nestora desnudou o pé direito, tão lindo quanto o corpo inteiro, a parte tão significante quanto o todo.

Antes de desnudar o esquerdo, soluçava.

Você tem certeza?

Sim, afirmou ele.

Derrotada, arrancou a meia, e diante de Vagner expôs-se um pé horrendo e disforme, acavalado, com nervos e ossos excessivos. Além disso, tinha seis dedos, e o sexto era um dedão adicional. Nestora chorava.

Eu sabia, disse Vagner, eu sabia. Havia algo de errado nessa história.

Com Nestora ajoelhada a seus pés, pegou-a pelos cabelos e, sobrepujada a escuridão, fitaram-se.

Agora sim posso amá-la, declarou ele, e beijou-a.


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quarta-feira, 17 de agosto de 2022

É possível ouvir quase tudo quando o amor vai embora - poema de Vanessa Alves

É possível ouvir quase tudo quando o amor vai embora 


Dentro da madrugada sinistra 
Os cães uivam e os gatos gemem nos telhados 

Os vizinhos existem 
As conduções levam para todos os lugares 
Existe labor demasiado
As esquinas são sujas de merda e mijo e gente e falácias 
Os relógios se arrastam nos escritórios enfadonhos de mulheres penteadas e homens engravatados 
Tua roupa íntima tem um furo 
Você tem um furo no teu centro 
(Mira)
Também que as tuas mãos alcançam o teu sexo, e a tua boca, e os dedos contraem o gosto amargo do Tédio na língua - antes da palavra 

Pois que ficam dois ouvidos dissipando o silêncio - a te perseguir, incontrolável o burburinho colado em                                                                                                                                                                        ti
Uma lástima intermitente brincando de costurar teus órgãos e tecidos vivos 

Pois aqui está: ou pega com a mão teu medo da morte que bate na ferida aberta da tua cara catatônica 

Ou despenca 

Não há negociações quando o amor vai embora 

E não esqueça o caminho que regressa pra tua casa 
Que insiste amanhecer com um raio luminoso no canto da parede 
Onde outrora você pendurou tua esperança.








sábado, 13 de agosto de 2022

Sinais dos não tempos, nnestes tempos de agora

 

Uma luz tão intensa, que conseguiu cegar por completo o sol, brilhou nos céus instantes antes de se ouvir deflagrar uma gigantesca explosão, que devastou em poucos minutos praticamente tudo. Não restou pedra em cima de pedra, de pé só ficou a destruição.

Um vento quente e pegajoso que se formou na altura da explosão continuou a lançar faúlhas ainda incandescentes que alimentaram a voracidade dos incêndios. As cinzas que caíram amortalharam pessoas, animais e coisas.

O número de mortos era incontável e viam-se espalhados por todos os lados. Os feridos agonizavam sob os escombros sem socorros disponíveis para os ajudarem. Os vivos sãos arrastavam-se durante horas pelas ruas, como se fossem sonâmbulos em busca do nada.

Não sabiam o que tinha acontecido, só sabiam que à sua frente tinham o apocalipse.

A., caminhou longas horas arrastando os passos errantes por entre os destroços. Quando sentiu que as forças começavam a fraquejar sentou-se no chão e fechou os olhos à tragédia. Não queria ver mais nada, somente esquecer aquele inferno de ferro e fogo. Já era tarde quando conseguiu reconciliar-se com o sono.

Esse sono que em vez de lhe trazer um pouco de alívio ainda o mortificou mais. Poucos foram os momentos dormidos em que não foi assaltado por negras e tenebrosas imagens saídas do fim dos tempos: pessoas a desintegrarem-se, edifícios a ruir estrondosamente, crateras que se abriam e engoliam pedaços da cidade, negras aves de rapina que voavam rasante com pedaços de carne nas garras, animais famintos que estripavam os ventres dos moribundos.

Toda essa surreal imagética, assim como aparecia assim desaparecia, sucedendo-lhe alguns momentos de silêncios aterradores, quebrados a espaços por assustadoras explosões.

O cheiro a queimado e a morte eram agora ainda mais intensos. A tragédia revelava-se em toda a sua crueldade. Não sabia que horas eram. O negro nevoeiro que envolvia toda a cidade não deixava perceber se ainda era de madrugada ou se o sol nesse dia tinha nascido. Naquela situação, qualquer hora era tão boa como outra qualquer, porque a medição do tempo iria passar a ser feita não pelo passar das horas, mas pelo passar dos metros, quanto mais longe daquele inferno melhor.

Com os olhos semicerrados ficou a olhar para os movimentos dos que se apressavam a partir. Faziam tudo calados e em silêncio partiam. Levavam o que as forças lhes permitiam e lançavam olhares de desconfiança para todos os lados enquanto caminhavam. Não sabiam para onde iam, não sabiam o que existia para além, mas iam.

Aqueles que ficavam, já nem olhavam ao redor, nem perscrutavam o horizonte, esperavam com a resignação estampada no rosto, com o olhar vago, não esboçando sequer um gesto que fosse. Mais pareciam vivos mortos, de tudo alheados, e que se deixavam estar pelos cantos perdidos na solidão dos seus medos.

Alguns dos que partiram, nem avançaram, nem conseguiram regressar, ficaram pelos caminhos, mortos ou feridos, porque as emboscadas e os ataques selvagens eram frequentes. Bandos de malfeitores tinham-se constituído e começaram a construir poderes organizado no meio daquele caos. A luta pela conquista do poder que dava acesso à sobrevivência justificava tudo, cada um escrevia a sua própria lei.

A desconfiança alastrava e o medo ia começando a assentar arraiais. A todos os momentos viam-se partir grupos formados e engrossados ao acaso, porque ninguém se arriscava a aventurar-se sozinho.

Os fracos, feridos e todos os que não estivessem em condições de aguentar a viagem eram considerados um peso morto e mais susceptíveis de aguçar uma atracção apetitosa de salteadores. Facilmente poderiam a vir a ser pasto de bichos esfomeados. Em vez de serem integrados em qualquer um dos grupos que continuamente se iam formando eram deixados à sua sorte. Daquele não mundo, já só esperavam o inferno de uma não vida. Antes a paz duma morte do que uma sobrevivência indigna.

A., decidiu enfim partir, quando o último grupo de sobreviventes se formou. Nada mais ali o retinha.

Teve de parar várias vezes, para perscrutar ansiosamente o horizonte e, por isso, os seus ocasionais companheiros, não esperaram, coisas da sobrevivência, mais uma boca a comer. Viu-os mais tarde ao longe e no fundo dum vale, relativamente perto a corta mato e sem qualquer desvio, mas a cerca de algumas horas de distância se encontrar caminhos inacessíveis. Nunca os conseguiria alcançar, a não ser que lhes gritasse, mas tinha receio que o grito e o eco que naturalmente se lhe seguiria alertassem alguém indesejado. Também não tinha garantias de quem o apunhalou pelas costas uma vez, não o viesse a fazer outra vez. Deixou-se ficar escondido a vê-los a afastarem-se.

Com aquele nevoeiro de cinza e com o calor húmido que se fazia sentir o simples caminhar tornava-se insuportável. Os nauseabundos cheiros trazidos pelos ventos quentes colavam-se às andrajosas roupas e agarravam-se à nua pele. O cansaço e a insuportável dor do abandono dilaceravam-lhe as entranhas da alma. Apesar desse sofrimento estava disposto a ir buscar forças onde fosse possível, para continuar a caminhar para dentro destes tempos, em prol de outros tempos futuros. Não queria ser vencido, sem luta, pela barbárie dos não tempos dos tempos de agora. Continuar o caminho nem que pés se recusassem a andar. Não queria sequer pensar que nessa estrada, sem fim, o fim já se aproxima.

 

 





terça-feira, 9 de agosto de 2022

Os dois elefantes

 



A montra era pequeníssima e muito empoeirada, sendo difícil distinguir os muitos objetos que a atulhavam, contrastando com as muitas lojas e lojinhas daquela rua tão turística, modernas, limpíssimas e com escaparates obviamente saídos das mãos de especialistas. 

Mesmo assim, Sara decidiu entrar apenas por curiosidade. Sempre que visitava pela primeira vez um país gostava de conhecer o artesanato local, mas tentando o mais possível evitar “armadilhas turísticas”, dando preferência às que tinham um ar mais pobre, mas bem mais local. Por vezes comprava alguma coisa mas, na maior parte dos casos, só lhe agradavam peças demasiado caras para os seus poucos recursos ou demasiado volumosas para bagagem aérea ou, até, para o seu apartamento.

Mal passou a porta, foi forçada a parar. O interior era muito escuro, especialmente para quem vinha da luminosidade forte do exterior. Quando ao fim de uns bons minutos começou a distinguir formas, ficou fascinada. Por todo o lado havia estatuetas, vasos, quadros, máscaras, vitrinas cheias de pequenos objetos, tecidos e, até, plantas. Tudo misturado e amontoado para caber numa área em que um terço já seria demais. Poderia passar ali o dia todo que não veria nem metade.

A um canto, empoleirado num banco, estava o dono. Era um velhote baixo, de barbicha branca, que estava muito entretido a escrevinhar num enorme livro pousado numa pequena mesa à sua frente.

Nem levantou os olhos quando Sara entrou. Ou estava muito habituado a ter visitantes ou não lhe interessava saber o que queriam. Tendo esperado em vão um cumprimento, um aceno, um simples reconhecimento da sua presença, acabou por desistir e começou, muito simplesmente, a investigar as peças mais próximas da porta.

Havia coisas maravilhosas. A pequena loja era uma autêntica arca de tesouros, uma verdadeira gruta de Aladino. Infelizmente era tudo demasiado caro, a aparência desleixada da fachada não refletia de modo algum o que escondia. Mesmo assim continuou a explorar, avançando cuidadosamente pelos estreitos corredores irregulares deixados entre móveis e outras peças. Mesmo se não comprasse nada, pelo menos veria coisas bonitas.

Aproximava-se a hora do jantar e Sara tinha de regressar ao hotel, que ainda ficava um tanto distante dali. Decidiu, pois, ver apenas mais uma vitrina e depois desistir. E foi então que os viu. Estavam na prateleira mais alta, cobertos de pó e rodeados de peças um pouco maiores que quase os tapavam. Mesmo assim pareciam sobressair daquele ambiente escuro e poeirento: um par de pequenos elefantes.

Com cuidado, abriu a vitrina e retirou-os. Não tinham mais de um palmo de altura, com uma ligeira diferença entre eles. Tirada um pouco da poeira que os cobria com um dos lenços de papel que trazia sempre consigo, verificou que, para além da altura, afinal não eram iguais. Um era cinzento-claro, com alguns laivos quase negros, e o outro verde-escuro. Pareciam feitos de pedra-sabão e tinham uma expressão muito engraçada com a tromba virada para um lado e as enormes orelhas um pouco afastadas da cabeça, parecendo estar à escuta de alguma coisa.

Verificou a etiqueta com o preço, colada nas respetivas barrigas. Embora não fossem exatamente baratos, custavam bem menos do que as outras peças que vira. Mesmo assim estavam um pouco fora daquilo que pretendia gastar em compras supérfluas.

Ia colocá-los de novo na vitrina, quando algo a fez parar. Eram tão bonitos! E, pensando bem, até nem eram assim tão caros! Bastar-lhe-ia gastar um pouco menos no casino para os poder comprar sem estragar o seu orçamento de férias.

Ainda hesitou durante mais uns momentos, mas por fim decidiu comprá-los. Fechou a porta da vitrina e dirigiu-se para a zona onde estava o dono da loja. Este abandonou a sua escrita de muito má vontade, quase como se achasse que um comprador era uma intrusão desnecessária e indesejada, mas lá lhe embrulhou os elefantes e recebeu o seu valor total, é que perante tanta indiferença Sara nem se atreveu a pedir um desconto..

Chegada ao hotel, Sara mostrou-os aos companheiros de viagem, recolheu alguns elogios, não muito entusiásticos, diga-se de passagem, e depois enfiou-os no fundo da mala, esquecendo-os por completo durante o resto das férias. Só os voltou a ver quando desfez a bagagem ao regressar a casa.

Depois de os limpar muito bem e de lhes pôr uma camada fina de cera, colocou-os em cima da cómoda, mesmo à frente da cama, exatamente no ponto de união das duas cortinas de voile branco. Ficavam bem engraçados, o verde-escuro um pouco à frente do cinzento-claro, com as trombas voltadas para a janela, como se observassem o que se passava lá fora.

E a vida retomou o seu ritmo habitual. Sara andava ocupadíssima no serviço e em geral chegava a casa tão cansada que mal tinha tempo para algumas arrumações indispensáveis. E quando limpava o pó, fazia-o mecanicamente sem se deter em nenhum objeto em particular, limitando-se a manter tudo mais ou menos no sítio. Nunca mais olhara ou acariciara os seus elefantes, como fizera nos primeiros dias após o seu regresso.

Os meses foram passando e o Inverno chegou. A janela do quarto de Sara vedava mal, deixando entrar uma corrente de ar gélido, não havendo aquecedor que chegasse para remediar a situação. O quarto estava, por isso sempre muito frio. Todas as noites Sara lembrava-se que tinha de mandar arranjar a janela quanto antes. Enquanto se encolhia toda debaixo de um monte de cobertores, jurava que seria a primeira coisa que faria na manhã seguinte. Mas esquecia-se sempre ou só se lembrava ao domingo, quando fazia uma arrumação maior.

E os elefantes lá continuavam, no centro da cómoda, com a tromba virada para a janela e para o reduzido jardim do prédio, sem flores e sem folhas. Sara já nem se lembrava deles ou da pequena loja, escura e atravancada de coisas, onde os comprara. Tal como a recordação das férias que então passara, tinham sido postos de parte.

Um sábado à noite Sara foi a uma festa dada por uma colega de serviço. Encontrou pessoas que já não via há muito tempo e divertiu-se de tal modo que já era de madrugada quando regressou a casa. A noite estava mesmo muito fria, com um nevoeiro espesso a cobrir tudo. Chegou a casa tão gelada que foi logo a correr fazer uma grande chávena de café para se aquecer. Quando entrou no quarto lembrou-se da janela mal vedada. Apesar de ter deixado o aquecedor ligado, fazia quase tanto frio lá dentro como na rua. Resmungando contra si própria por se ter esquecido, mais uma vez, de chamar alguém para reparar a janela, lá se enfiou na cama, depois de ter acrescentado mais um cobertor grosso ao monte que utilizava habitualmente.

Esquecera-se de correr as cortinas e à luz acinzentada que o candeeiro da rua espalhava através do nevoeiro podia ver os dois elefantes de pedra-sabão, o verde-escuro à frente e o cinzento-claro um pouco mais atrás. Antes de adormecer recordou subitamente a pequena loja cheia de maravilhas onde os tinha comprado, mas foi só uma visão fugidia pois estava muito cansada e adormeceu quase logo.

À medida que a noite passava, Sara, sempre a dormir, foi-se enfiando cada vez mais debaixo dos cobertores. Nunca tivera tanto frio! Bem se enroscava, mas não havia meio de aquecer.

De repente, acordou sobressaltada. Parecera-lhe ouvir um ruído estranho dentro do quarto. Ainda ensonada, pôs a cabeça de fora dos cobertores e olhou em volta. Via distintamente os contornos dos móveis graças à luz que entrava pela janela. Pelo eu tom, a manhã não devia estar longe. Não fazia ideia do que a acordara, talvez algum carro a passar na rua, mas parecera-lhe ser dentro do quarto.

Não se notava nada de anormal. O pior é que se sentia bem acordada e seria muito difícil voltar a adormecer, sobretudo naquela atmosfera gélida. Deixou-se, pois, ficar simplesmente deitada, com a cara meia tapada pelos cobertores. Mesmo em frente via-se a cómoda, com os vários objetos dispostos no seu topo.

De repente deu um salto na cama. Os elefantes tinham desaparecido!

Espantadíssima sentou-se na cama, esquecendo o frio, concentrando o olhar naquela zona, que era a melhor iluminada do quarto por estar junto à sua única janela. Não, não era ilusão, tinham mesmo desaparecido.

Andaria alguém dentro de casa? Um assaltante? Mas porque teria tirado apenas os elefantes de pedra-sabão que, embora bonitos e engraçados, não valiam assim tanto? Faltaria mais alguma coisa?

Preocupada com a hipótese de ter um ladrão em casa, Sara saltou da cama, enfiou as chinelas e o roupão, que ficava sempre numa cadeira ao lado da cama, e começou a inspecionar o quarto. Não faltava mais nada! Só os pequenos elefantes!

Cada vez mais admirada, apoiou-se na cómoda para observar bem o local onde os vira anteriormente. Como a janela ficava mesmo em frente podia ver, também, o jardim. Este nunca fora bonito mas no Inverno era francamente deprimente: alguns canteiros vazios, duas árvores tortas e despidas de folhas e um caminho ensaibrado por onde se moviam duas manchas escuras.

Duas manchas escuras? Quem estaria no jardim àquela hora?

Debruçando-se um pouco sobre a cómoda, Sara espreitou pela janela.

Nem queria acreditar no que via! Os pequenos elefantes, os seus elefantes de pedra-sabão, que por qualquer razão não lhe pareciam agora tão minúsculos, caminhavam lentamente pelo caminho ensaibrado, o cinzento-claro à frente, o verde-escuro atrás. Dirigiam-se para o portão.

Sem sequer parar para pensar, Sara saiu do quarto e correu, corredor fora, até chegar à porta de entrada. Tinha de ir ver o que se passava.

Perdeu bastante tempo a abrir a porta, que estava bem fechada e trancada. Conseguiu, finalmente, abrir o último fecho e saiu para o jardim. Na sua precipitação, até deixou a porta aberta. Ela,  que era sempre tão cuidadosa!

Os elefantes estavam já a passar o portão que, aparentemente, alguém deixara aberto, sim, porque sem mãos eles não o teriam certamente feito. Sara precipitou-se, mas, quando lá chegou, já eles estavam do outro lado da rua, caminhando sempre no seu passo lento mas regular. E o seu tamanho não era ilusão, parecia mesmo que cresciam a cada passo que davam.

Sem bem saber o que fazia, Sara seguiu-os. Na esquina havia uma loja que vendia flores exóticas. Era uma loja pequena, mas sempre muito bem aquecida por causa do tipo de plantas que tinha. O par dobrou a esquina, sempre sem se apressar. Mas quando Sara atingiu o mesmo ponto parou, desorientada: não os conseguia ver!

Onde se teriam metido? O nevoeiro continuava, mas não estava tão espesso que não se visse uma boa distância em todas as direções. Intrigada, Sara encostou-se à montra da loja de plantas exóticas. Mal tocou no vidro começou a ver tudo a andar à roda. Mas que momento tão mal escolhido para ter uma tontura!

Fechou os olhos com toda a força esperando que passasse. Quando se sentiu um pouco melhor abriu-os de novo, mas voltou a fechá-los logo muito depressa. Devia estar a sonhar! Ou então continuava tonta!

Respirando fundo, lá se encheu de coragem para tentar de novo. Muito devagarinho foi abrindo os olhos, mas apenas uma pequena nesga. E sim, vira mesmo o que vira momentos antes, mas era IMPOSSÍVEL!

Rua e loja tinham desaparecido. Nevoeiro e frio também. Estava agora cercada de uma vegetação luxuriante e desconhecida, pelo menos para si, que pouco entendia de plantas. Mas o sol brilhava sobre as folhas muito verdes e as numerosas flores exóticas e coloridas e fazia bastante calor. Mesmo muito calor!

E ali estava ela, Sara, no meio daquele ambiente tropical, de camisa de noite de flanela, roupão de lã e chinelos quentinhos. Incrível!

Mesmo à sua frente abria-se um caminho estreito e sinuoso.

O chão parecia ser de areia branca e as plantas vinham mesmo até à borda, mas sem o invadirem. Como não sabia o que fazer nem onde estava, decidiu segui-lo. Mas foi forçada a caminhar com cuidado porque as pedrinhas que afinal constituíam o caminho magoavam-lhe os pés através da sola fina dos chinelos.

O calor era tanto que teve de tirar o roupão, nada adequado àquele ambiente. Mesmo assim continuava a sentir-se demasiado quente.

O caminho era tão sinuoso que só conseguia ver uma pequena distância à sua frente. Por isso, assustou-se tremendamente quando a vegetação alargou, surgindo uma grande clareira, terminada, ao fundo por uma parede rochosa. Um fio de água escorria pela ela e ia cair numa grande taça escavada no chão da clareira.

E ali estavam os seus pequenos elefantes mesmo à borda da taça. Pareciam estar a beber da água que escorria pela parede rochosa.

Sara começou a correr na direção deles mas logo parou, espantada, deixando cair o roupão que levava no braço. Os elefantes tinham começado a crescer a ritmo acelerado e, do tamanho de pequenos cães que tinham quando os vira antes de contornarem a esquina, estavam agora enormes. Por fim ficaram do tamanho de elefantes normais, mas mantinham as suas cores originais e viam-se os veios da pedra-sabão ao longo da pele, embora mexem-se orelhas e tromba, como se sondassem o ar.

Assustadíssima, Sara recuou para o carreiro tentando esconder-se no meio da vegetação. Os elefantes estavam agora virados para ela e pareciam estar à espera de qualquer coisa. Tinham a mesma expressão de expectativa que tanto agradara a Sara na pequena loja onde os comprara.

Ao fim de alguns momentos começou a ouvir-se muito barulho. Os elefantes deixaram de abanar as orelhas e ficaram muito quietos lado a lado, com o cinzento-claro um pouco mais à frente.

O barulho aumentou até que entraram na clareira diversos animais, leões, tartarugas, gazelas, búfalos e muitos outros. Pareciam-se com animais verdadeiros, desde que não se olhasse para as cores, que eram bem estranhas: uns eram verdes, outros castanho-dourado, outros ainda cor de leite, havendo-os também em cores berrantes, rosa, verde, amarelo, enfim, um autêntico arco-íris. Mas em todos se viam veios como os do mármore ou pedras semelhantes.

Felizmente, Sara conseguira esconder-se bem por trás do tronco de uma bananeira e nenhum dos animais deu por ela.

Quando já estavam todos na clareira, formaram um grande círculo com os elefantes no centro. Pareciam conhecer-se todos. Pelo menos tocavam-se e faziam uma algazarra tal que parecia uma reunião de velhos amigos que não se viam há uns tempos.

Finalmente, o elefante cinzento-claro levantou a tromba e deu um grande bramido. Fez-se imediatamente silêncio e todos se sentaram, ou deitaram, muito quietos. Tinha começado a reunião.

Sara, que já tivera demasiadas surpresas nos últimos minutos, nem se espantou por perceber tudo o que eles diziam. Pareciam estar a trocar impressões sobre os locais de onde tinham vindo. Nenhum era dali e alguns eram oriundos de países bem distantes, mas parecia terem algo em comum, todos tinham sido trazidos para este país de clima nada apropriado por alguém que os achara engraçados.

Mas quase todos tinham queixas em relação à sua situação atual. Uns queixavam-se de negligência e pó acumulado. Outros falavam de maus-tratos e mostravam cicatrizes e falhas que provavam o que diziam. Outros, ainda, diziam viver em recantos tão obscuros que ninguém dava por eles. Enfim, um nunca acabar de queixumes.

De todos os animais presentes só dois estavam satisfeitos com a vida que tinham: uma tartaruga de olho-de-tigre, muito luzidia e bem tratada, e uma coruja de malaquite, que parecia olhar para os restantes com um certo ar de superioridade.

Finalmente, chegou a vez dos elefantes e Sara. O elefante cinzento-claro, que parecia ser o dirigente da reunião, tomou a palavra. Tinha uma voz muito fina e baixa, que contrastava com o seu corpanzil e com o bramido que dera para iniciar a sessão. Mesmo assim, ouvia-se bem em toda a clareira e Sara prestou a máxima atenção ao que tinha a dizer.

- Meus amigos! Até agora tenho-vos escutado sem dizer palavra mas chegou a minha vez de falar. Pelo que ouvi, todos tendes queixas a apresentar, só dois estão felizes com a vida que têm. A tartaruga, que teve a sorte de ir viver com uma senhora de idade, que passa o dia a limpar e a polir, e a coruja porque foi ter a uma casa onde pensam que tem poderes mágicos. Embora algumas das vossas histórias sejam tristes nada ouvi que se compare com a minha. E com a do meu companheiro, claro, pois sempre formámos um par.

Ao ouvir isto o elefante verde-escuro tossicou modestamente e pareceu ficar envergonhado por ver que todos olhavam para ele, quanto a Sara, lá continuava muito escondida à beira do carreiro, ansiosa por conhecer a tragédia de que falava o elefante cinzento-claro.

- Quando nascemos tínhamos, como todos vós, grandes esperanças no futuro que nos esperava. Fomos criados com tempo e cuidado e esperávamos ser sempre bem tratados e estimados. Mas afinal, que nos aconteceu? Mal ficámos prontos, começaram por nos embrulhar em metros de papel, tão apertado que mal podíamos respirar, e fomos parar a uma caixa que já tinha tantas coisas que por pouco não fomos esmagados. E olhem que somos bastante resistentes!

Ouviu-se um murmúrio de assentimento. Os dois elefantes eram, de longe, os mais fortes animais presentes.

- Enfim! Sempre pensámos que ao fim de algum tempo as coisas melhorassem. Mas não! Quando finalmente nos retiraram daquela caixa e de todo aquele papel, onde é que estávamos? Nas mãos de um velhote distraído que nos levou para uma caverna escura e totalmente atulhada de artigos. E ali ficámos, anos e anos, cobertos de pó e cada vez mais encobertos por outras coisas que iam sendo enfiadas no nosso abrigo. Muita gente entrava e levava outros animais, expostos em condições mais favoráveis. Mas a nós, quem nos via? Até teias de aranha conhecemos.

Ouviram-se exclamações de horror. Afinal, nenhum dos outros animais passara por uma experiência tão horrível como a dos elefantes. Teias de aranha!

- Finalmente, um dia, conseguimos captar a atenção de uma das visitantes da caverna. Mas não foi nada fácil, deu-nos até bastante trabalho! Por pouco não nos colocava de novo no meio de todo aquele pó, abandonando-nos de novo ao nosso triste destino. Mas unindo as nossas forças. lá a convencemos a levar-nos.

Ao ouvir isto Sara recordou-se do modo como hesitara com os elefantes na mão, sem saber se havia de os comprar ou não. E, francamente, perante toda esta estranheza, já estava um tanto arrependida de não os ter deixado na vitrina. Pelo menos não estaria ali, no meio daquele calor, em camisa de flanela e chinelos.

Mas já o elefante continuava.

- Ficámos muito contentes, é claro. Íamos, finalmente, ser bem tratados e apreciados, embora tivéssemos de fazer novamente uma viagem em condições desagradáveis, mas era isso inevitável se quiséssemos chegar ao paraíso. Mas como nos enganámos! Quando chegámos ao nosso destino, fomos postos num sítio sem graça nenhuma, tendo como única paisagem um pequeno terreno com duas árvores quase sem folhas e algumas flores raquíticas. E nem respeitaram as hierarquias. Eu, o mais velho fui colocado atrás do meu companheiro!

Ao ouvir isto o elefante verde-escuro mostrou-se ainda mais envergonhado e voltou a tossicar, nervosamente. Sara estava indignadíssima por ouvir chamar ao seu quarto um sítio sem graça nenhuma, esteve mesmo para sair do esconderijo e protestar contra tal injustiça, mas enquanto se decidia, o elefante recomeçou o seu discurso.

- Ainda se nos tratassem bem! Mas não. De vez em quando tiram-nos o pó, à pressa e de qualquer maneira. Uma vez até me deixaram cair desastradamente, vejam este risco aqui de lado. E ninguém nos aprecia ou admira, ninguém nos toca, sequer, sem ser para a tal pseudolimpeza. É claro que o mesmo acontece a muitos de vós. Mas o pior ainda está para vir.

Neste ponto todos os animais se aproximaram mais e arrebitaram as orelhas para ouvir melhor. Que mais teria acontecido?

- Um dia, o frio começou. E que frio! Exatamente no local onde estávamos havia uma corrente de ar que nos gelava até às moléculas, capaz de nos transformar em blocos de pedra, se não o fôssemos já. Dia após dia o frio aumentava e ninguém fazia nada para o minorar ou para nos proteger. E quando tentávamos desviar a atenção do frio que nos trespassava, o que víamos? O tal terreno, que cada vez tinha um aspeto pior, ou a nossa tratadora que até parecia uma toupeira sempre a resmungar e a enfiar-se em tocas.

Sara sentia-se cada vez mais indignada, embora fosse forçada a reconhecer, bem no íntimo, que o seu elefantezinho até tinha uma certa razão. A indignação dos animais também aumentava, mas por outras razões, é claro! Todos pareciam concordar que a história do elefante era a pior de todas. Começaram todos a falar ao mesmo tempo e a algazarra era tal que Sara teve de tapar os ouvidos. Mesmo assim, era impossível não os ouvir.

Ao fim de algum tempo o elefante cinzento-claro lançou novo bramido e todos se calaram. Depois de tossir para aclarar a voz, um tique irritante que parecia ser muito seu, prosseguiu num tom elevadíssimo e muito agudo.

- Meus amigos! Isto não pode continuar. Não podemos deixar que nos maltratem assim sem nada fazermos. Por isso convoquei esta reunião, temos de arranjar um plano para nos vingarmos.

- Sim! Vinguemo-nos! Vinguemo-nos!

Todos os animais berravam o mesmo, até a tartaruga e a coruja que não tinham histórias tristes para contar, mas pareciam ter sido arrastadas na onda geral.

O barulho era tal que Sara começou a sentir-se atordoada. Sem se importar de ser vista, começou a correr pelo carreiro por onde viera, abandonando o roupão. Mas via tudo a andar à roda e acabou por cair no chão, desmaiada. Quando voltou a si sentiu um grande peso em cima do corpo. Deu um grito, pensando que um dos elefantes estava a tentar esmagá-la. Mas quando abriu os olhos, muito a medo, viu que estava na cama e o peso era dos cobertores.

Afinal fora apenas um pesadelo! Nunca mais beberia café de madrugada.

Satisfeita meteu-se de novo debaixo dos cobertores e adormeceu.

Os elefantes continuavam em cima da cómoda, o cinzento-claro à frente, o verde-escuro atrás, com a tromba afastada da janela e as orelhas muito juntas à cabeça. Mas, mentalmente, deixou a si mesma o recado firme de resolver definitivamente o problema da janela e, porque não, de inverter a posição dos seus dois pequenos elefantes, não fosse o diabo tecê-las!


Texto e foto: Luísa Lopes 








quarta-feira, 3 de agosto de 2022

ACROBATA

 


 

um pessegueiro roxo

braços em formas de garras

dedos intumescidos

pernas retesadas.

 

quando estamos dormindo

tudo parece fácil:

pé fora da cama

e acrobacia de quedas.